Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
156/11.7GARSD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: RELATÓRIO SOCIAL
FACTOS PROVADOS
MAUS TRATOS
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Nº do Documento: RP20140122156/11.7GARSD.P1
Data do Acordão: 01/22/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Deve proceder-se, oficiosamente, à correção da sentença [art. 380.º, do CPP] que reproduz, nos Factos Provados, o relatório social, considerando como efetivamente provados os factos que dele constam.
II – Comete o crime de Violência doméstica, do art. 152.º, do Cód. Penal, o agente que, na sequência de anteriores agressões físicas e verbais infringidas à cônjuge, um dia lhe aponta um objeto que aparentava ser uma pistola e lhe diz: “O que queres? sair viva ou queres que vá ao Alípio buscar a caixa” (caixão), levando-a a, por medo, abandonar de imediato a casa de morada da família e a não regressar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 156/11.7 GARSD.P1
Recurso penal
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório

No âmbito do processo comum que, sob o n.º 156/11.7 GARSD, corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Resende, B…, melhor identificado nos autos, foi submetido a julgamento, acusado pelo Ministério Público da prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica previsto e punível pelo art.º 152.º, n.os 1, al. b), e 2, do Código Penal.
Realizada a audiência, com documentação da prova nela oralmente produzida, foi proferida sentença datada de 05.04.2013 (fls. 232 e segs.) e depositada na mesma data, com o seguinte dispositivo (já com a correcção determinada pelo despacho de fls. 248):
“Em face de todo o exposto, o Tribunal julga procedente por provada a acusação pública e, em consequência:
- Condena o arguido B… pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1 al. a) e n.º 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
- Suspende-lhe a execução da pena de prisão, por igual período, nos termos do disposto nos artigos 50º do Código Penal.”
Inconformado, veio o arguido interpor recurso da sentença condenatória para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, que condensou nas seguintes conclusões (transcrição integral):
1. “Não se conformando com a sentença proferida nos presentes autos, vem interposto o presente recurso, por entender o Recorrente que se impõe a modificação da decisão do Tribunal a quo sobre a matéria de facto e de direito, que se impugna.

2. Os relatos da ofendida são insuficientes para a imputação ao Recorrente do crime de que vinha acusado.

3. Na verdade, não se faz prova bastante para se concluir pela condenação do arguido.

4. Pelo presente recurso, pretende o Recorrente ver reapreciada a matéria de facto provada, nos seguintes termos:

5. O Facto n.º 4 – deve ser dado por parcialmente provado – isto é, deve ser dado como não provado que “começou a dirigir à ofendida, entre outras, as seguintes expressões “puta” e “vaca”, pois conjugando o depoimento da ofendida (cfr. gravação efectuada a 18-02-2013, entre as 10:41:52 e as 11:06:42, aos minutos 04:05 a 04:11 e 06:40 a 06:52), conclui-se que a ofendida de forma contida se referiu a tais nomes, sendo que na sua óptica não têm qualquer significado, logo não ficou com qualquer sequela psicológica, se é que os mesmos foram proferidos…

6. O Facto n.º 5 – deve ser dado como não provado – conjugado o depoimento da ofendida (cfr. gravação efectuada a 18-02-2013, entre as 10:41:52 e as 11:06:42, aos minutos 03:10 a 03:20 e 20:20 a 20:52) e da testemunha C… (cfr. gravação efectuada 21-03-2013, entre as 10:38:33 e as 10:55:04, aos minutos 10:14 a 10:32, 11:05 a 11:35 e 11:39 a 11:50), verificamos que as poucas zangas, como a própria ofendida diz existirem, foram sempre por causa do filho, sendo certo que quanto ao facto em apreço, ninguém, a não ser o filho de ambos – que nada presenciou – a afirmar tais factos, sendo ainda notório que os mesmos não ocorreram pois a ofendida nem sequer foi ao hospital, como nunca o fez das outras vezes que diz ter sido alvo de agressões, as quais nunca consegui concretizar.

7. O Facto n.º 6 – deve ser dado como não provado – pois analisando o depoimento da testemunha D… (cfr. gravação efectuada a 06-03-2013, entre as 14:54:26 e as 15:01:28, aos minutos 03:30 a 04:01), conjugado com o demais produzido em audiência, e em especial o que se teceu na alegação n.º 5, em que a própria ofendida afirma que as poucas chatices que existiam eram por causa do filho, tal facto deve ter-se por não provado, por entrar até em contradição.

8. Os Factos n.ºs 8 e 9 – deve o primeiro ser dado por não provado e o segundo como parcialmente provado – isto é o do facto n.º 9 deve ser dado como não provado que “Face ao receio sentido pela ofendida de que o marido estivesse na posse efectiva de uma pistola verdadeira e que a disparasse contra ela, atingindo-a na sua integridade física”, pois conjugando o depoimento da ofendida (cfr. gravação efectuada a 18-02-2013, entre as 10:41:52 e as 11:06:42, aos minutos 14:00 a 14:22, 16:26 a 16:49, 17:12 a 18:45 e 22:20 a 23:20) e da testemunha C… (cfr. gravação efectuada a 21-03-2013, entre as 10:38.33 e as 10:55:04, aos minutos 06:15 a 06:46 e 14:03 a 14:10), constata-se que este apenas teve conhecimento dos factos derivado daquilo que a sua mãe lhe relatou, não presenciou nada, por seu turno, a ofendida não consegui sequer descrever a arma com que estava a ser ameaçada, referindo-se sempre a uma arma branca, inclusive esteve casada com o Recorrente por mais de 27 anos e nunca lhe viu qualquer arma de fogo, e por fim a mesma não esclareceu o Tribunal se era intenção do Recorrente atirar-lhe com a dita arma, motivo pelo qual estes factos devem ser devidamente alterados.

9. Os Factos n.ºs 10 e 11 – devem ser dados como não provados – conjugando o depoimento ofendida (cfr. gravação efectuada a 18-02-2013, entre as 10:41:52 e as 11:06:42, aos minutos 11.08 a 11:32, 11:50 a 12:11, 12:47 a 13:29 e 17:12 a 18:45) e da testemunha D… (cfr. gravação efectuada a 06-03-2013, entre as 14:54:26 e as 15:01:28, aos minutos 02:08 a 02:59), é demais evidente que falecem os elementos subjectivo do tipo de crime em causa, pois o próprio Tribunal a quo alertou a ofendida para a gravidade dos factos em discussão e que os mesmos em nada contendem com um eventual processo de divórcio ou separação, ademais, a resposta positiva a tais factos entra em contradição com a convicção do Tribunal Recorrido, pois a douta sentença em mérito refere a par e passo que “dizemos admitido, pois esta prestou um depoimento muito contido, quase não descrevendo as agressões; (…) sendo que quanto às agressões o seu depoimento foi por demais contido e vago para que as mesma se pudessem ter por verificadas”, e a própria ofendida no depoimento que fez referia-se quase sempre a relação mais ou menos estável com o Recorrente.

10. Os Factos n.ºs 14.º, 18.º e 20.º - devem ser todos dados como não provados – pois não foi produzida em audiência de julgamento prova sobre tal matéria, sendo mesmo certo que em relação à situação de insolvência a prova admitida seria a prova documental e nunca a vertida em relatório social.

11. O Facto n.º 19 – deve ser dado como parcialmente não provado – ou seja, deve ser dado como não provado que “o arguido no plano familiar tinha um fraco empenho na dinâmica do agregado e que era possessivo na relação conjugal.”, pois nada disto foi objecto de discussão e julgamento nos autos, apenas a ofendida se tendo referido ao seu carácter autoritário e a restante factualidade é contraditória com o que se mostra provado e que não foi impugnado.

12. O Facto n.º 24 – deve ser dado como não provado – conjugando o depoimento testemunha D… (cfr. gravação efectuada a 06-03-2013, entre as 14:54:26 e as 14:54:27, aos minutos 05:15 a 05:25) da testemunha E… (cfr. gravação efectuada a 06-03-2013, entre as 15:02:09 e as 15:04:58, aos minutos 01:12 a 02:00) e da testemunha F… (cfr. gravação efectuada a 06-03-2013, entre as 15:05:40 e as 15:07:53, aos minutos 01:09 a 02.03), facilmente se alcança que sendo pessoas da família e vizinhança nunca ouviram qualquer comentário ou alarido de desavença entre o Recorrente e a ofendida, bem como, ao carácter do Recorrente que é uma pessoa séria, educada, respeitadora e trabalhadora, não se metendo em confusões.

13. Tendo em conta a reapreciação da matéria de facto supra requerida, não estão preenchidos, no presente processo os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime, pelo que, deve o Recorrente ser absolvido.

14. O princípio da presunção de inocência, previsto no n.º 2 do art. 32.º da CRP, aliado ao princípio in dubio pro reo pressupõe que de toda a prova recolhida, os factos que não possam ser subtraídos à dúvida razoável do Tribunal, também não podem considerar-se provados, se durante a sua produção subsistir tal dúvida.

15. Assim, a factualidade produzida em audiência de discussão e julgamento é mais do que suficiente para gerar a dúvida razoável no homem médio, sobre a existência de agressões e insultos se é que os mesmos existiram, tendo sido violado o n.º 2 do art. 32.º da CRP e o princípio in dubio pro reo

16. Salvo o devido respeito, a interpretação que do Tribunal a quo faz dos factos, extrapola as regras do princípio da livre apreciação da prova inserto no art. 127.º do Cód. de Proc. Pen.

17. O relatório social elaborado ao Recorrente apenas tem como objectivo auxiliar o Tribunal na correcta determinação da sanção que eventualmente possa vir a ser-lhe aplicada.

18. Não podem os factos insertos no relatório social ter-se por provados se em audiência de discussão e julgamento os factos aí vertidos foram objecto de prova, pois a força probatória daqueles não é equiparada aquela que é produzida presencialmente em audiência de julgamento.

19. O crime de violência doméstica tem vindo a ganhar relevo no nosso ordenamento jurídico, fruto dos maus tratos que se vão verificando na vida comum dos casais (o que não é o caso dos presentes autos).

20. Contudo, dificuldades acrescidas de prova se deparam neste tipo de crime, na medida em que normalmente apenas contamos com as declarações da(o) ofendida(o) e que nem sempre são aquilo que corresponde à verdade.

21. A verificação dos elementos do tipo de crime está dependente da forma com que as condutas infligidas ao outro cônjuge ocorram, a sua duração as suas sequelas…

22. Conforme salienta TAIPA DE CARVALHO, está em causa, na violência doméstica, a afectação da saúde física, psíquica e mental da vítima, por intermédio de comportamentos susceptíveis de afectar a sua dignidade pessoal.

23. Ainda que haja, nos comportamentos frequentes e sistemáticos, uma maior susceptibilidade de afectação dessa dignidade, o legislador, no art.º 152.º do Cód. Pen., pune também os actos isolados.

24. Contudo, a acção isolada terá que revelar uma especial intensidade ao nível do desvalor da acção e do resultado, devendo, além da susceptibilidade de lesar a saúde física ou psíquica, revelar-se como incompatível com a dignidade da pessoa por ela visada.

25. A este respeito a jurisprudência tem entendido que duas bofetadas na cara que não ocorram na presença de terceiros, o arremessar de uma cadeira no peita da vítima ou um pontapé na barriga e um empurrão (vide acórdãos supra citados) não são integradores do crime de violência doméstica, porque encontram no direito penal outra forma de serem tutelados, como por exemplo o crime de ofensa à integridade física.

26. A separação traz consigo todo um conjunto de emoções, sentimentos e interesses antagónicos. Relações que começaram com amor, muitas das vezes terminam em ódio e desejo de retaliação.

27. No entanto, deve assegurar-se que a natureza urgente atribuída a todos os processos de violência doméstica (art.º 28.º n.º 1 da Lei n.º 112/2009), de clara inspiração vitimológica, não deixe sem protecção todos aqueles que se vêm inocentemente na posição de suspeito/arguido.

28. Por fim, tendo em consideração que a maioria dos maus tratos físicos e psíquicos relatados ocorrem do domicílio comum, onde não existem testemunhas, importante se torna atribuir às declarações da “vítima” uma ponderada valorização.

29. Ocorreu incorrecta interpretação e aplicação dos comandos legais do art. 124.º, art. 377.º, art. 355.º todos do Cód. de Proc. Pen., art. 152.º, n.º 1 al. a) e n.º 2 do Cód. Pen. e art. 32.º da Constituição da República Portuguesa”.
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Admitido o recurso e notificado o Ministério Público, este apresentou resposta à respectiva motivação, pronunciando-se pela sua improcedência e consequente confirmação da sentença recorrida.
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Nesta instância, na intervenção a que alude o art.º 416.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, secundando a posição e aderindo aos fundamentos da resposta do Ministério Público na 1.ª instância, entende ser de negar provimento ao recurso.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, mas não houve resposta do recorrente.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II – Fundamentação
É geralmente aceite que são as conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj)[1] e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso.
Mas, sendo esta a regra, nada obsta a que (antes se impõe que) o tribunal aprecie outras questões que são de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insupríveis e dos vícios da sentença, estes previstos no n.º 2 do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal.
Conforme resulta das conclusões do recurso que ficaram transcritas, o recorrente impugna a decisão, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito.
A impugnação da decisão sobre matéria de facto centra-se na apreciação e valoração da prova, que o recorrente entende ter sido incorrectamente efectuada pelo tribunal, já porque valorou indevidamente depoimentos testemunhais, designadamente o da ofendida G…, e o relatório social, já porque violou o princípio in dubio pro reo.
Além disso, o recorrente discorda do enquadramento jurídico-penal dos factos feito na sentença recorrida, pois considera que não está preenchido o tipo objectivo do crime de violência doméstica.
Podemos, então, identificar como questões a decidir as seguintes:
● o alegado erro do tribunal na apreciação e valoração que fez da prova produzida, com eventual violação do in dubio pro reo;
● a valoração jurídico-penal dos factos.
Antes, porém, de abordarmos as questões enunciadas, julgamos imporem-se, desde já, dois esclarecimentos.
Fala o recorrente em renovação da prova (na página 3 da motivação enuncia as questões que pretende ver reapreciadas pelo tribunal de recurso e uma delas seria a das “provas que devem ser renovadas”), mas confunde esse acto (de natureza excepcional) com reapreciação da prova documentada, produzida em audiência.
Que assim é, revela-o o facto de não invocar nenhum dos vícios da sentença a que já aludimos.
A exigência prevista no artigo 412.º, n.º 3, al. c), do Cód. Proc. Penal só fica satisfeita com a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento no tribunal de primeira instância, a verificação de algum ou alguns dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º e a exposição das razões que permitem crer que a renovação (da prova) permitirá evitar o reenvio do processo (artigo 430.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal).
Cabe fazer notar que “renovação da prova” não é repetição do julgamento, ou a realização de um segundo julgamento. Por isso os factos a provar e as provas a renovar devem estar intrinsecamente ligados aos vícios detectados.
Ora, da leitura da motivação do recurso facilmente se constata que não foi invocado qualquer vício do art.º 410.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal.
O recorrente invoca erro de julgamento em matéria de facto e o que pretende é a reapreciação da prova gravada, não a renovação da prova.
O segundo esclarecimento diz respeito ao relatório social (fls. 216 e segs.), cujo valor probatório é posto em causa pelo recorrente.
Aliás, mais que um esclarecimento, o que se impõe é uma correcção, pois se nos afigura que a sentença recorrida é ambígua, como, adiante, veremos com mais detalhe.
O relatório que foi junto aos autos é uma certidão do original que consta de um outro processo em que o recorrente também é arguido. A circunstância de, eventualmente, já conhecer o seu conteúdo não dispensava a notificação ao arguido da respectiva junção aos autos, mas não foi, oportunamente, arguida a irregularidade decorrente da omissão desse acto.
É praticamente pacífico na jurisprudência o entendimento de que a falta de averiguação das condições pessoais do arguido e da sua situação económica configura o vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito (cfr., entre outros, os acórdãos do STJ, de 29.04.2003, de 06.11.2003 e de 11.11.2004, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Na versão originária do Código de Processo Penal era obrigatória a solicitação de relatório social quando o arguido, ou algum dos arguidos, fosse menor de 21 anos.
Com a reforma de 1998 (Lei n.º 59/98, de 25 e Agosto), deixou de haver essa obrigatoriedade, mas a natureza facultativa do relatório social não significa que ao tribunal tenha sido conferido um poder discricionário, devendo considerar-se a sua realização como uma diligência necessária.
A orientação do Supremo Tribunal de Justiça sobre esta questão está espelhada no acórdão de 05.09.2007 (Relator: Cons. Sousa Fonte), disponível em www.dgsi.pt, quando nele se expende que “independentemente de se considerar ser ou não ser obrigatória a requisição do relatório social ou da informação dos serviços de reinserção social aos quais alude o art.º 370.º, n.º 1, do CPP para aplicação de uma pena de prisão efectiva – a letra da lei sugere francamente que se trata de uma faculdade do tribunal e o TC, no seu acórdão n.º 182/99, Proc. n.º 759/98, de 22-03-1999, já decidiu não ser inconstitucional a norma do n.º 1 do art.º 370.º do CPP quando interpretada no sentido de não ser obrigatória essa solicitação -, entendemos, na esteira da jurisprudência mais comum do STJ, que a falta desse relatório ou informação ou a falta de produção de qualquer outra prova suplementar para determinação da espécie e da medida da pena a aplicar poderá justificar o reenvio do processo para novo julgamento, quando o resultado for a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos dos artigos 410.º, n.º 2, al.a), e 426.º, ambos do CPP”(sublinhado nosso).
Na doutrina, Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 2.ª edição actualizada, 1055) considera mesmo afectada pelo referido vício da insuficiência, por falta de investigação dos factos que condicionam a aplicação de uma pena não detentiva, a sentença que aplique pena de prisão.
Os factos relativos ao processo de socialização, à personalidade e carácter, às condições pessoais do arguido e à sua conduta anterior e posterior aos factos são relevantes não só para a determinação da medida da pena, mas também, e sobretudo, para a decisão de aplicação, ou não, de uma pena de substituição.
Como decorre da fundamentação da sentença impugnada, o tribunal a quo baseou-se, essencialmente, no referido relatório social para dar como provados os factos descritos sob os n.os 13 e segs.
O recorrente impugna alguns desses factos, pondo em causa o valor probatório desse relatório e argumentado mesmo que se trata de prova proibida, nos termos previstos no artigo 355.º do Cód. Proc. Penal, na medida em que, tendo decidido não prestar declarações em audiência, a consideração do conteúdo do relatório social violaria o seu direito ao silêncio.
A questão está, então, em saber se o relatório social que consta dos autos é uma prova válida e se pode ser tida em consideração, designadamente para o efeito que aqui importa, que é a informação sobre aspectos da personalidade do arguido/recorrente, das suas condições de vida, da sua inserção na sociedade.
Discute-se como qualificar o relatório social, mas não há razões para questionar a afirmação de que se trata de um meio de prova, sujeito à livre apreciação do tribunal.
O artigo 1.º, al. g), do Cód. Proc. Penal define-o como “a informação sobre a inserção familiar e sócio-profissional do arguido e, eventualmente, da vítima, elaborada por serviços de reinserção social, com o objectivo de auxiliar o tribunal ou o juiz no conhecimento da personalidade do arguido, para os efeitos e nos casos previstos nesta lei”.
Um desses casos é o artigo 370.º, cujo n.º 1 dispõe que “o tribunal pode em qualquer altura do julgamento, logo que, em função da prova para o efeito produzida em audiência, o considerar necessário à correcta determinação da sanção que eventualmente possa vir a ser aplicada, solicitar a elaboração de relatório social ou de informação de serviços de reinserção social, ou a respectiva actualização, quando aqueles já constarem do processo”.
Foi o que aqui aconteceu: na parte final da 1.ª sessão da audiência, a Sra. Juiz proferiu o seguinte despacho, sem que o arguido tivesse manifestado qualquer oposição:
“Por ser do meu conhecimento funcional que no âmbito do Proc. n.º 238/10.2 JAGRD, foi elaborado um relatório social acerca das condições económicas do arguido, relatório recente, determino a junção de uma certidão do mencionado relatório aos presentes autos, uma vez que o mesmo poderá relevar para a descoberta da verdade no que concerne às condições pessoais e económicas do arguido”.
Das três “sub-fases” em que se desdobra a fase de julgamento em processo comum, importa aqui considerar a da sentença, que se segue ao encerramento da audiência de discussão.
Como se sabe, o legislador consagrou um sistema (muito mitigado) de cisão (“césure”), distinguindo (se bem que, apenas, logicamente, que não materialmente) a deliberação sobre a “questão da culpabilidade” (art.º 368.º) e sobre a “questão da determinação da sanção” (art.º 369.º). É neste segundo momento da deliberação que o tribunal[2] conhece e valora os elementos relativos à pessoa do arguido, designadamente o relatório social.
Com efeito, dispõe o n.º 1 do art.º 369.º do Cód. Proc. Penal:
“Se, nas deliberações e votações realizadas nos termos do artigo anterior, resultar que ao arguido deve ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança, o presidente lê ou manda ler toda a documentação existente nos autos relativa aos antecedentes criminais do arguido, à perícia sobre a sua personalidade e ao relatório social”.
Se o tribunal concluir pela desnecessidade de prova suplementar, nada obsta a que se alicerce no relatório social e o valore como meio de prova para dar como provados os factos relevantes para a determinação da espécie e da medida da pena a cominar.
Se o tribunal considerar necessária a produção de prova suplementar, reabre a audiência (que, por regra, decorre com exclusão da publicidade) para esse efeito e é então que pode proceder-se à leitura do relatório social.
A leitura só será permitida a requerimento (do arguido, do Ministério Público ou do assistente) e o tribunal, para dar como provados factos relativos à personalidade e às condições pessoais do arguido, só pode basear-se no relatório social se este tiver sido lido e examinado na audiência reaberta, face ao disposto no art.º 355.º que o n.º 4 do art.º 370.º manda aplicar nesta situação.
Do regime legal que aqui fica, sinteticamente, exposto, decorre que a regra é a proibição da leitura do relatório social em audiência, mas essa proibição nada tem a ver com o direito que assiste ao arguido de não prestar declarações sobre os factos que lhe são imputados na acusação ou na pronúncia. É, isso sim, uma forma de proteger a privacidade de determinados factos relativos ao seu carácter e condições de vida, que a leitura em audiência pública do relatório social pode comprometer.
Equiparar, como faz o recorrente, o relatório social (para a elaboração do qual deu a sua colaboração, prestando informações ao Técnico de Reinserção Social) às declarações prestadas em audiência e considerar que aquele não pode ser valorado sob pena de violação do seu direito ao silêncio é entendimento que, s.d.r., não pode colher aplauso porque isso seria não lhe reconhecer valor autónomo, transformando-o numa completa inutilidade.
Mesmo quando a fonte de informação é, apenas, o arguido (o que não é o caso, pois o relatório foi elaborado com base numa pluralidade de fontes), existem diferenças qualitativo-funcionais entre esses dois domínios probatórios.
Também na perícia sobre a personalidade do arguido (artigo 160.º do Cód. Proc. Penal) a fonte de informação do perito é o próprio arguido e nunca ninguém se lembrou de equiparar o relatório pericial às declarações que este preste no processo.
São essas diferenças que legitimam a valoração autónoma do relatório social face à da prova por declarações. Se assim não fosse, se esse meio de prova não tivesse valor autónomo, não se vislumbra qual a vantagem na sua realização.
Não se lhe tendo suscitado qualquer dúvida ou reserva a fidedignidade da informação nele contida, a Sra. Juiz reproduziu, parcialmente, o conteúdo do relatório social.
É neste ponto que a decisão recorrida merece reparo.
Com efeito, no elenco de factos provados, o n.º 12 tem a seguinte formulação:
“12. Consta do relatório social elaborado pela Direcção-Geral de Reinserção Social relativamente ao arguido B…:”,
seguindo-se a reprodução de factos que constam desse mesmo relatório.
Ora, afirmar que de determinado documento (uma escritura pública, um escrito particular, um relatório) constam os factos tais e tais não é o mesmo que dar como provados os factos reproduzidos.
No entanto, como já se assinalou, decorre da fundamentação da sentença, designadamente na parte da determinação da pena, que o tribunal considerou como efectivamente provados esses factos.
Por isso se vislumbra aqui uma ambiguidade que se impõe eliminar, podendo a correcção efectuar-se no tribunal do recurso, nos termos previstos no artigo 380.º, n.os 1, al. b), e 2, do Cód. Proc. Penal.
Correcção que há-de efectuar-se nos seguintes termos:
O n.º 12 é eliminado do elenco de factos provados, ficando o n.º 13 com a seguinte formulação:
“13. O arguido casou em 1984 com a ofendida G…, de quem tem um filho, C…, com 25 anos de idade”.
Tudo o mais que se segue, no que respeita a matéria de facto, se manterá, pois não há qualquer prova que contrarie o conteúdo do relatório social e imponha decisão diversa da impugnada.

O alegado erro na apreciação e valoração da prova
Nos n.ºs 2 e 3 do art.º 412.º do Cód Proc. Penal está previsto o erro de julgamento, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito. A sua verificação, sendo correctamente invocada na motivação do recurso, dá lugar à alteração da sentença.
Diferentemente do que acontece com a invocação dos vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, em que temos uma impugnação de âmbito restrito porque o recorrente tem de cingir-se ao texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, no erro de julgamento a apreciação alarga-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no estrito cumprimento dos ónus de especificação impostos pelos citados n.º 3 e 4 do art. 412.º do C.P. Penal.
Além da impugnação de factos relativos às suas condições pessoais, situação económica e aspectos da sua personalidade, sobre a qual já nos debruçámos, o recorrente impugna os factos descritos sob os n.os 4 a 6 e 8 a 11.
Importa, então, conhecer a factualidade provada e não provada:
Factos Provados:
1. B… e G… contraíram casamento católico a 25.05.1985, em …, Resende.
2. Residiram em …, Resende.
3. Na constância do matrimónio tiveram um filho, de nome C….
4. Pelo menos de 2008, por altura em que o filho de ambos, C…, já maior de idade, mas ainda a residir com os pais, iniciou uma relação de namoro que o pai, B…, desaprovava, começou este a dirigir à ofendida, entre outras, as expressões “puta" e “vaca”.
5. Em Setembro/Outubro de 2008, no interior da casa de morada de família, sita no …, freguesia de …, concelho e comarca de Resende, B… agrediu a ofendida com uma canadiana, deixando-a com várias equimoses pelo corpo.
6. Os insultos ocorriam frequentemente, bastando que B… tivesse tido qualquer aborrecimento, ou que os negócios tivessem corrido de modo menos positivo.
7. C… abandonou a casa paterna em 2009.
8. No inicio do mês de Abril de 2011, pelas 21.45 horas, no …, freguesia de …, concelho e comarca de Resende, na casa de morada de G… e de seu marido B…, este, quando aquela se encontrava já deitada na cama, aproximou-se dela, levando consigo, na mão, o que aparentava ser uma pistola pequena, de cor clara, destapou-a, retirando o cobertor com que aquela se cobria, apontou-lhe a dita pistola e disse-lhe: “O que queres? sair viva ou queres que vá ao H… buscar a caixa?”, querendo referir-se a um caixão destinado a enterrar os mortos.
9. Face ao receio sentido pela ofendida de que o marido estivesse efectivamente na posse de uma pistola verdadeira e que a disparasse contra ela, atingindo-a na sua integridade física, decidiu abandonar de imediato a casa de morada de família, não regressando mais.
10. Ao agir como acima se deixou descrito, o arguido procedeu de forma livre, consciente e voluntária, com o propósito concretizado de atingir a integridade física da ofendida, provocando-lhe dores, como efectivamente atingiu e provocou, e exercendo sobre a mesma um poder de lhe aplicar castigos físicos e de a seviciar psicologicamente e, ao ameaçá-la com o que aparentava ser uma arma de fogo para forçá-la a abandonar a casa de morada de família, que também era dela, agiu com intenção de a coagir a fazê-lo, logrando os seus intentos por a ofendida ter receado pela sua vida.
11. O arguido tinha perfeito conhecimento e consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se provou que (já com a alteração atrás decidida):
13 - O arguido casou em 1984 com a ofendida G…, de quem tem um filho, C…, com 25 anos de idade”.
14 - Após poucos anos de alguma estabilidade conjugal e económica, o casal conheceu vários conflitos.
15 - Tem como habilitações escolares a 4.ª classe.
16 - Em 2004, fundou a empresa “I…”, vocacionada para a prestação de serviços temporários no …, mas decorridos dois anos, refundou a mesma empresa com o nome “J…”, com o mesmo tipo de actividade mas com a tutela do filho.
17 - A relação com o filho era marcada por uma excessiva protecção, com intromissões nos vínculos afectivos estabelecidos por este, mesmo já em adulto.
18 - A partir de 2008, avolumaram-se dívidas na empresa.
19 - No plano familiar, o arguido mantinha um fraco empenho na dinâmica do agregado, adoptando uma postura autoritária e possessiva na relação conjugal, ocorrendo a separação em Abril de 2011.
20 - Em Agosto de 2010, abriu uma outra empresa em nome individual, “K…”, com o mesmo tipo de serviços, que veio a declarar a insolvência meses depois.
21 - Em 2011, fundou uma outra empresa “L…" que, para além dos serviços agrícolas, inclui transportes de mercadorias à Suiça, cuja vitalidade económica está aquém do expectável.
22 - O arguido reside em casa emprestada, que era a casa de habitação do ex-casal, sem condições de habitabilidade e sem electricidade.
23 - O arguido verbalizou à equipa da Direcção-Geral de Reinserção Social um discurso pouco amadurecido, parecendo algo descontrolado ao nível emocional, não conseguindo estabelecer prioridades no seu modo de vida.
24 - Na comunidade é referenciado negativamente, pelos problemas de relacionamento com a cônjuge que são públicos, mas também por ser considerado um homem rude no trato intrapessoal.
25 - Não são conhecidos antecedentes criminais do arguido, constando do seu certificado do registo criminal que os não tem.

Factos não provados:

1. O arguido culpabilizava a sua cônjuge pelo sucedido, dizendo que a culpa de tal relacionamento era dela e dizia-lhe “vai para a cona da tua mãe".
2. O arguido agredia a ofendida na presença do filho C… e por outras ocasiões, que não a descrita nos factos provados.
3. Desde Janeiro de 2011 até 01.04.2011, o arguido não deu qualquer dinheiro à ofendida, nem lhe comprava comida para aquela se alimentar, pelo que a fez passar fome durante três meses, querendo assim forçá-la a abandonar a casa de morada de família.
*
Como, facilmente, se constata, o arguido impugna praticamente todos os factos que permitem subsumir o seu comportamento à previsão incriminadora do artigo 152.º, n.ºs 1, al. b), e 2, do Cód. Penal, pelo que se impõe que comecemos com uma breve alusão ao tema dos poderes do tribunal de recurso quando é chamado a sindicar a decisão sobre matéria de facto proferida no tribunal “a quo”.
Aliás, essa abordagem também se justifica na medida em que o arguido/recorrente pretende que este tribunal reaprecie toda a prova produzida em audiência e censure a valoração feita, em 1.ª instância, dessa prova.
Se o recorrente pretende impugnar a decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, tem de especificar (cfr. n.º 3 do citado art.º 412.º):
● os concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados pelo tribunal recorrido (obrigação que “só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida”[3]);
● as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ónus que só fica satisfeito “com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida”[4]).
Além disso, o recorrente tem de expor a(s) razão(ões) por que, na sua perspectiva, essas provas impõem decisão diversa da recorrida, constituindo essa explicitação, nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque (Loc. Cit.), “o cerne do dever de especificação”, com o que se visa impor-lhe “que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado”.
Note-se bem: não basta que as provas, simplesmente, permitam ou até sugiram conclusão diversa; exige-se que imponham decisão diversa daquela que o tribunal proferiu.
É com base na citada norma que se tem defendido, una voce, que o recurso em matéria de facto não implica uma reapreciação, pelo tribunal de recurso, da globalidade dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida.
Duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa direito a novo (a segundo) julgamento no tribunal de recurso.
Mas se o recurso que incide sobre matéria de facto implica a reponderação, pelo Tribunal da Relação, de factos pontuais incorrectamente julgados, essa reponderação não é realizada se este tribunal se limitar a ratificar ou “homologar” o julgado (por exemplo, com a simples constatação, a partir do acolhimento da fundamentação, da correcção do factualmente decidido), em vez de fazer um verdadeiro exercício de julgamento, embora de amplitude menor.
Como faz notar o Supremo Tribunal de Justiça seu acórdão de 30.11.2006 (www.dgsi.pt/jstj), “em sede conhecimento do recurso da matéria de facto, impõe-se que a Relação se posicione como tribunal efectivamente interveniente no processo de formação da convicção, assumindo um reclamado «exercício crítico substitutivo», que implica a sobreposição, ou mesmo, se for caso disso, a substituição, com assento nas provas indicadas pelos recorrentes, da convicção adquirida em 1.ª instância pela do tribunal de recurso, sobre todos e cada um daqueles factos impugnados, individualmente considerados, em vez de se ficar por uma mera atitude de observação aparentemente externa ao julgamento”[5].
É esse exercício que procuraremos fazer de seguida, mas não pode olvidar-se que uma das grandes limitações do tribunal de recurso quando é chamado a pronunciar-se sobre uma impugnação de decisão relativa a matéria de facto, sobretudo quando tem que se debruçar sobre a valoração, efectuada na primeira instância, da prova testemunhal, decorre da falta do contacto directo com essa prova, da ausência de oralidade e, particularmente, de imediação.
Os tribunais superiores têm, justamente, chamado a atenção para esse condicionamento, pois é bem verdade que “a sensibilidade à forma como a prova testemunhal se produz, e que se fundamenta num conhecimento das reacções humanas e análise dos comportamentos psicológicos que traçam o perfil da testemunha, só logra obter uma concretização através do princípio da imediação, considerado este como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes de modo a que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da decisão. As consequências concretas da aceitação de tal princípio definem o núcleo essencial do acto de julgar em que emerge o senso, a maturidade e a própria cultura daquele sobre quem recai tal responsabilidade. Quando a opção do julgador se centra em elementos directamente interligados com o princípio da imediação (v.g., quando o julgador refere que os depoimentos não foram convincentes num determinado sentido em consequência da forma como foram produzidos), o tribunal de recurso não tem a possibilidade de sindicar a aplicação concreta de tal princípio” (acórdão do STJ de 19.12.2007, www.dgsi.pt/jstj).
Queremos com isto dizer que este tribunal não pode censurar a decisão do tribunal recorrido por este ter dado prevalência às declarações prestadas na audiência pela ofendida com fundamentos que não pode sindicar, pois “não pode esquecer-se tudo aquilo que a imediação em 1.ª instância dá e o julgamento da Relação não permite: basta pensar no que, em matéria de valorização de testemunhos pessoais, deriva de reacções do próprio ou de outros, de hesitações, pausas, gestos, expressões faciais, enfim, das particularidades de todo um evento que é impossível reproduzir” (acórdão do STJ, de 15.07.2008, www.dgsi.pt/jstj; Relator: Cons. Souto Moura).
São os elementos racionalmente não explicáveis de que fala o Professor Figueiredo Dias (“Lições de Direito Processual Penal”, 135 e segs.) ou os aspectos que só podem ser percepcionados, apreendidos e valorados por quem os presencia (a que se referia o Professor Castro Mendes) e que não podem ficar gravados ou registados para serem reapreciados por outro tribunal.
Não obstante, o papel fiscalizador deste tribunal não fica inteiramente prejudicado, pois sempre pode apreciar se a valoração dos depoimentos foi feita de acordo com as regras da lógica e da experiência, isto é, se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório de que o tribunal dispôs.
Podemos considerar cumpridos, pelo recorrente, os ónus de especificação previstos no n.º 3 do art.º 412.º do Cód. Proc. Penal.
Não podemos considerar válidas e convincentes as razões esgrimidas para concluir que as provas impõem decisão diversa da recorrida.
Analisado o texto da motivação do recurso, logo se evidencia estarmos perante uma daquelas situações, aliás muito frequentes, em que o recorrente pretende contrapor (e sobrepor) a convicção que ele próprio formou sobre os factos à convicção que o tribunal a quo alcançou com base na livre apreciação e valoração da prova produzida em audiência, num típico fenómeno de inversão da posição das personagens do processo.
Isso é nítido, por exemplo, em relação ao facto, que podemos considerar o principal episódio de violência (descrito sob os n.ºs 8 e 9 da sentença recorrida), que motivou a denúncia que deu origem a este processo e que o recorrente afirma ter sido erradamente julgado como provado.
Para tanto, o recorrente argumenta assim:
A ofendida não sabe o que é uma pistola, pois afirma que nunca teve uma na mão e nem sequer viu uma “ao vivo”. Mais, a testemunha esteve casada com o recorrente durante mais de 27 anos e nunca lhe viu qualquer pistola, além de que não soube precisar o tamanho, “assemelhando-o” a uma caneta.
Ou seja, para o recorrente quem não teve uma pistola na mão nem nunca viu, “ao vivo”, uma tal arma, não pode saber o que isso é, pelo que a ofendida não disse a verdade quando afirmou que ele, recorrente, a ameaçou com uma pistola, apontando-lha à cabeça (sem esclarecer o Tribunal “se era intenção do Recorrente atirar-lhe com a dita arma”).
E porque, durante 27 anos de casados, ela nunca lhe viu qualquer pistola, conclui-se que ele não tinha, nem fez uso, de nenhuma arma dessa natureza contra a ofendida.
Assim mesmo! Tal e qual!...
A inferência é de tal modo legítima e correcta que o recorrente sentiu necessidade de “torcer” os factos, ao atribuir à testemunha/ofendida a afirmação de que a pistola se assemelhava a uma caneta. Na realidade, a iniciativa (infeliz, diga-se) de fazer comparar a pistola com uma caneta foi da Sra. Juiz.
Não podia ter sido mais feliz e adequada a resposta (“eu conheço uma caneta e vi que não era uma caneta; era uma pistola, não sou assim tão burra…”) da testemunha/ofendida ao comentário do ilustre defensor do arguido de que “esse objecto fica assim muito esquisito, podia ser uma caneta que lhe apontou”.
Mas o recorrente não se fica por aqui nas desconcertantes “inferências” que faz.
Na lógica do recorrente, nunca a ofendida podia ter saído de casa por causa de uma simples ameaça “com uma pistola mal descrita e de cor branca[6]” apontada à cabeça.
Normal seria – argumenta o recorrente – que suportasse a ameaça e chamasse “as autoridades ou os vizinhos”, pois seria isso que faria “o homem médio”.
O mesmo tipo de discurso argumentativo usado pelo recorrente para pôr em causa a credibilidade da testemunha/ofendida se surpreende na motivação do recurso quando impugna outros factos.
Assim:
O tribunal deu como provado que, desde, pelo menos, 2008, o arguido passou a dirigir à ofendida, entre outras, as palavras “puta” e “vaca” (n.º 4 do elenco de factos provados).
Porque a própria ofendida “relativizou os próprios nomes que alega o Recorrente ter-lhe chamado, chegando mesmo a dizer que não têm significado algum”, conclui o recorrente que o tribunal decidiu mal ao considerar provado aquele facto.
O tribunal deu como provado que, em Setembro/Outubro de 2008, o arguido agrediu fisicamente a mulher, a ofendida G…, com uma “canadiana”, deixando-a com várias equimoses no corpo (n.º 5 do elenco de factos provados).
Porque a testemunha/ofendida nunca foi ao hospital, afirmando no seu depoimento que nunca o fez por vergonha e porque o arguido, seu marido, nunca lhe partiu uma perna ou um braço, deixando-a, apenas, com “negras”, conclui o recorrente que o tribunal apreciou e valorou erradamente a prova e decidiu mal ao considerar provado esse facto.
Como facilmente se constata, a argumentação do recorrente é de tal modo inconsistente que seriam dispensáveis quaisquer outras considerações.
Mas, como atrás referimos, é imperioso que o tribunal de recurso faça um exercício crítico sobre a convicção adquirida em 1.ª instância relativamente aos factos impugnados, pois o tribunal de recurso pode (deve) censurar a violação de todo o conjunto de princípios que estão subtraídos à livre apreciação da prova: as regras de experiência comum e os princípios “in dubio pro reo” e da presunção de inocência.
Sobretudo quando a prova seja, exclusiva ou essencialmente, testemunhal, ao tribunal de recurso cabe aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração.
Analisemos, então, o processo de formação da convicção do tribunal recorrido para se verificar da razoabilidade do decidido em matéria de facto.
O tribunal foi bem claro na indicação das provas em que se fundamentou o seu juízo probatório: foi, essencialmente, nos depoimentos testemunhais da ofendida G… e do filho C… que o tribunal alicerçou a sua convicção.
E expôs as razões da sua convicção:
“A prova das agressões resultou do depoimento claro, espontâneo e descomprometido de C…, que recordou que o pai trancou a mãe no quarto e, enquanto esta gritava por socorro, o filho tentava que o pai abrisse a porta, a fim de socorrer a mãe. Quando o pai finalmente abriu a porta, encontrava-se com uma canadiana na mão. No dia seguinte foi verificar se a mãe estava bem e esta estava de cama, “toda negra", com pisaduras que indicavam ter sido desferidas com a dita canadiana.
Tal descrição, corroborada pelo facto de a ofendida ter admitido (dizemos admitido, pois esta prestou um depoimento muito contido, quase não descrevendo as agressões) que o arguido chegou a bater-lhe com uma muleta.
Ora, como é evidente, não é necessário que o C… tenha visto o pai a bater na ofendida com a canadiana, para se concluir que assim sucedeu, pois não existe mais nenhuma explicação possível nem plausível para a descrição efectuada pelo C….
A prova da ameaça com o objecto que aparentava ser uma arma resultou do depoimento de G…, o qual, neste particular, foi clarividente e espontâneo.
Se é certo que, no demais, a testemunha se mostrou muito contida, relatando alguns insultos e, vagamente, algumas agressões - sendo que quanto às agressões o seu depoimento foi por demais contido e vago para que as mesmas se pudessem ter por verificadas - neste aspecto, depôs de modo completo, coerente e que por isso foi positivamente valorado.
A prova das expressões que o arguido dirigia à ofendida, frequentemente, resultou da conjugação dos depoimentos coerentes e coincidentes de C… e G….
Também as motivações do arguido, o descontentamento com a relação de namoro que este iniciou e o mau estar que daí adveio para o casal resultaram inequívocos dos depoimentos de C… e G…”.
Não sendo (longe disso) exemplar a análise crítica da prova efectuada pelo tribunal, satisfaz, no entanto, minimamente, as exigências legais.
Mas o mais importante aqui é verificar se este juízo respeita os critérios de apreciação enunciados ou, pelo contrário, há razões para censurar a valoração efectuada, designadamente por violar o princípio da presunção de inocência ou as regras da experiência comum.
Ao contrário do que acontece, por exemplo, com a fundamentação exclusiva da condenação na valoração das declarações de um co-arguido, que a doutrina e a jurisprudência consideram violar a presunção de inocência, pois necessitam de uma corroboração probatória[7], a condenação alicerçada, apenas, no depoimento de um ofendido (constituído assistente ou não, demandante civil ou não) não tem merecido idêntica objecção.
No entanto, uma situação como a que constitui o objecto deste processo causa uma natural perplexidade: como é que se concebe que duas pessoas tenham convivido como marido e mulher durante tanto tempo se era frequente o homem (o arguido) agredir física e psicologicamente a mulher (chegando ao ponto de lhe apontar à cabeça o que, tudo indica, seria uma arma de fogo), maltratando-a, humilhando-a e atentando contra a sua dignidade pessoal?
Como já se ponderou no acórdão de 23.11.2010, proferido no Processo n.º 856/08.9 TAOER. L1-5 (disponível em www.dgsi.pt), é sabido que a convivência aumenta o risco de actos violentos e a afectividade, bem como as dependências (económica, social e psicológica), aumentam a capacidade de resistência à violência.
A ofendida era doméstica, estava economicamente dependente do arguido.
Revelou-se ela merecedora do crédito que o tribunal lhe atribuiu?
Um dos critérios de fiscalização ou verificação dos meios de prova tem a ver com as características da declaração ou atendibilidade intrínseca, em que a sindicância se exerce sobre o conteúdo narrado, procurando aferir-se da sua credibilidade.
Factores como a espontaneidade e tempestividade da declaração, a sua constância e coerência interna, a sua completude e verosimilhança decorrente da ausência de contraste com outros elementos probatórios constituirão importantes elementos de avaliação da credibilidade dessa declaração.
Em sede de avaliação da credibilidade dos depoimentos, o tribunal de 1.ª instância tem a seu favor a relação de imediação que se traduz no contacto pessoal e directo entre o juiz e os diversos meios de prova e confere ao julgador em 1.ª instância meios de apreciação da prova de que o tribunal de recurso, mesmo nos casos de reapreciação ampla, manifestamente não tem.
Compreender a decisão, e a ela aderir, de eleição de um meio de prova como sendo mais credível do que outro, é precisamente o primeiro momento em que a livre apreciação da prova como processo objectivado e motivado se impõe» (Paulo Saragoça da Mata, “A livre apreciação da prova e a fundamentação da sentença”, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, 257).
Como já se salientou, em vão tentou o arguido/recorrente apontar incoerências e debilidades no depoimento da testemunha/ofendida G….
O tribunal qualificou o seu depoimento como um depoimento contido e, se no caso da ameaça com um objecto que aparentava ser uma arma de fogo, ela foi espontânea e clarividente e fez um relato completo e coerente do que se passou, nas situações de agressão física (como aquela que foi confirmada pelo filho do casal, em que o arguido a agrediu com uma “canadiana”), quiçá por vergonha, apenas, as admitiu e foi vaga quando se lhes referiu.
Ou seja, a testemunha G… foi sóbria, séria, não exagerou, não quis empolar os factos nem diabolizar o arguido, como, por vezes, acontece, nem a movem interesses mesquinhos ou menos nobres.
Essa postura só abona a favor da sua credibilidade, mas, curiosamente, o recorrente entende que isso seria motivo para que o tribunal não lhe atribuísse crédito, ou, pelo menos, não tivesse considerado, como considerou, o seu depoimento determinante para a descoberta da verdade.
Por outro lado, a ofendida foi corroborada, pelo menos, no que tange às agressões físicas, pelo depoimento “claro, espontâneo e descomprometido” de C….
O recorrente contrapõe que a credibilidade desta testemunha ficou comprometida porque ela “deixou transparecer uma posição ressabiada em relação à pessoa do seu pai, aqui Recorrente”.
É evidente que há factores, como o tipo de relacionamento existente entre os vários protagonistas destes episódios de violência doméstica, que não podem deixar de ser devidamente ponderados pelo tribunal quando avalia da sua credibilidade.
Frequente nestas situações de litígio entre os progenitores é a instrumentalização que cada um procura fazer dos filhos e o tribunal tem de prestar particular atenção a esse aspecto.
No entanto, neste caso, a testemunha C… é suficientemente adulta e, aparentemente, sensata e isenta quanto baste para que se possa dizer que esse perigo não existiu.
Em todo caso, cumpre aqui salientar que na avaliação desses aspectos que condicionam a credibilidade das testemunhas é fundamental a oralidade e a imediação e, portanto, o tribunal de recurso não está em condições de sindicar o juízo efectuado na 1.ª instância.
Com este material probatório, devia o tribunal a quo ter ficado em estado de dúvida sobre a realidade dos factos tal como foram imputados ao arguido? O resultado do processo probatório deveria ser uma dúvida insanável, como pretende o recorrente?
Importa fazer notar que não é qualquer dúvida que há-de levar o tribunal a decidir “pro reo”. Tem de ser uma dúvida razoável, objectiva, que impeça a convicção do tribunal.
Por outro lado, não se trata aqui de “dúvidas” que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve e devia ter tido, pois o “in dubio” não se aplica quando o tribunal não tem dúvidas. Ou seja, o princípio “in dúbio pro reo” não serve para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a prova de que dispôs.
Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual que conduziu à decisão condenatória, e não tendo esse juízo factual por fundamento uma inversão do ónus da prova[8] (inversão constitucionalmente proibida por força da presunção de inocência), antes resultando do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o artigo 355.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, subordinadas ao princípio do contraditório (art.º 32.º, n.º 1, da Constituição da República), fica afastado o princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência (acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj).
Se o tribunal recorrido, analisada e valorada a prova produzida, não ficou na dúvida em relação a qualquer facto, não pode dizer-se que, na dúvida, decidiu contra o arguido.
Cabe aqui salientar que os referidos depoimentos testemunhais não foram contrariados por qualquer outra prova, designadamente pelo arguido, que entendeu optar pelo silêncio.
O recorrente argumenta que há o depoimento da testemunha D…, sua mãe, a qual garantiu que o filho era incapaz de bater na mulher e mais provável seria que acontecesse o contrário, que o arguido fosse vítima de maus tratos por parte da esposa.
Compreende-se que uma mãe, apesar de não ter conhecimento dos factos, faça uma afirmação destas em defesa do filho.
O que já é difícil de entender é que se esgrima com um tal depoimento para sustentar que se impõe uma decisão diversa da recorrida.
Em jeito de conclusão, diremos que nada há a censurar na opção do tribunal “a quo”, que fez uma análise e uma valoração da prova de acordo com as regras da lógica e da razão, explicou o porquê da decisão e o processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório e porque o que está em causa em sede de fundamentação das sentenças não é um princípio de paridade de consideração e explicitação da prova produzida por todos os sujeitos processuais, mas antes de explicitação do juízo decisório e das provas em que este se baseou (cfr. acórdão TC n.º 27/2007, DR, II, de 23.02.2007), não se justifica a alteração da decisão em matéria de facto pretendida pelo recorrente.

Valoração jurídico-penal dos factos provados
Intenta o arguido (timidamente, é certo) obter uma decisão absolutória porque, na sua perspectiva, não estaria verificado o elemento objectivo do crime de violência doméstica, já que “a acção isolada terá que revelar uma especial intensidade ao nível do desvalor da acção e do resultado, devendo, além da susceptibilidade de lesar a saúde física ou psíquica, revelar-se como incompatível com a dignidade da pessoa por ela visada” (conclusão 24.ª), o que, subentende-se, não aconteceria neste caso, indicando jurisprudência que, supostamente, abonaria a sua tese, como seriam os casos em que se decidiu que “duas bofetadas na cara que não ocorram na presença de terceiros, o arremessar de uma cadeira no peito da vítima ou um pontapé na barriga e um empurrão (…) não são integradores do crime de violência doméstica, porque encontram no direito penal outra forma de serem tutelados, como por exemplo o crime de ofensa à integridade física” (conclusão 25.ª).
A questão mereceu desenvolvido e adequado tratamento na sentença recorrida e por isso não vamos acrescentar muito mais ao que já foi (bem) dito.
Na revisão do Código Penal operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, o legislador não se limitou a autonomizar o crime de violência doméstica em relação ao tipo legal de maus-tratos a cônjuge, tal como este estava configurado no art.º 152.º, n.º 2, do Código Penal: alargou o âmbito das condutas tipicamente relevantes da violência doméstica, passou a punir mais severamente algumas dessas condutas (com relevo para os casos em que o facto é praticado contra menor ou na presença de menor) e aumentou o número de sanções acessórias.
Significa isto que o facto concreto era punível pela lei anterior e continua a sê-lo pela lei nova, podendo, então, falar-se aqui em “continuidade normativo-típica das leis”, já que, tendo-se modificado os elementos do tipo legal, manteve-se a incriminação do mesmo facto, ainda que as consequências possam ser diversas.
O crime de violência doméstica (anteriormente, com o nomen juris de maus tratos, tipificado no art.º 153.º do Cód. Penal de 1982 e depois, com a revisão de 1995, no art.º 152.º), não só tem suscitado alguns problemas de interpretação como tem sido posta em causa a sua manutenção como crime especial relativamente às ofensas corporais, pelo menos no que respeita aos maus tratos conjugais[9].
A questão que maior controvérsia suscitava, na doutrina como na jurisprudência, era, precisamente, saber se para a verificação do crime bastava uma acção isolada ou exigia-se habitualidade.
Prevalecia o entendimento de que “maus tratos” tinha de ser uma realidade diversa das ofensas corporais (simples ou qualificadas). Se assim não fosse, estaríamos perante uma incompreensível duplicação de tipificações criminais.
Na verdade, a verificação do crime, não exigindo habitualidade da conduta, reclamava mais que uma acção isolada, pressupunha uma multiplicidade de factos, uma certa reiteração dos comportamentos agressivos do agente (cfr., entre outros, Américo Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 334; na jurisprudência, por todos, o acórdão do STJ, de 30-10-2003, CJ/Acs.STJ, 2003, tomo 3, 208).
Tratava-se de um crime de conduta plúrima, frequente ou repetida num período de tempo limitado, pois como, então, ensinava Tereza Beleza (“Maus Tratos Conjugais: O art.º 153.º, n.º 3 do Código Penal”, edição A.A.F.D.L., 19), “a(s) situação(ões) social(is) típica(s) a que o art.º 153.º se refere é (são) de continuação, de reiteramento, activo ou omissivo”.
No entanto, logo após a reforma do Código Penal operada pelo Dec. Lei n.º 48/95, de 15 de Março, surgiu uma corrente jurisprudencial propugnando que, em certos casos, um único acto de agressão seria bastante para se preencher o tipo objectivo do crime de maus tratos (acórdão do STJ, de 14.11.1997, CJ/Acs. STJ, 1997, T. 3, 235).
Continuava a exigir-se que, por regra, o crime se consumava com a prática reiterada de vários actos de agressão (física ou psíquica), desde que entre eles houvesse uma certa proximidade temporal, mas admitia-se que, em casos de especial violência, reveladora de qualidades particularmente desvaliosas (crueldade, malvadez, insensibilidade, vingança, etc.) do agente, uma só actuação agressiva, desde que suficientemente grave para afectar de forma marcante a saúde física ou psíquica da vítima e evidenciasse grave desrespeito da dignidade da pessoa da vítima (humilhando-a, privando-a da liberdade, forçando-a à prática de actos sexuais, etc.), tratada como objecto do exercício de um certo domínio, seria bastante para se ter como verificados os maus tratos (assim, o acórdão do STJ, de 04.02.2004, acessível em www.dgsi.pt).
Agora, com a referida reforma, a descrição típica tem uma amplitude muito maior e prevê-se que, para o preenchimento do tipo legal, a inflição de maus tratos pode concretizar-se de modo reiterado ou não.
É defensável afirmar que, com essa formulação, foi acolhido o entendimento segundo o qual um só acto de ofensas corporais já configura um crime de violência doméstica.
Nesse sentido se pronuncia Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, 465-466) e concretiza: «os “maus tratos físicos” correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples e os “maus tratos psíquicos” aos crimes de ameaça simples ou agravada, coacção simples, difamação e injúrias, simples ou qualificadas”, ocorrendo uma relação de especialidade entre o crime de violência doméstica e “os crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, os crimes de ameaças simples ou agravadas, o crime de coacção simples, o crime de sequestro simples, o crime de coacção sexual previsto no artigo 163.º, n.º 2, o crime de violação previsto nos termos do artigo 164.º, n.º 2, o crime de importunação sexual, o crime de abuso sexual de menores dependentes previsto no artigo 172.º, n.º 2 ou 3, e os crimes contra a honra”.
No entanto, se o crime de violência doméstica é punido mais gravemente que os ilícitos de ofensas à integridade física, ameaças, coacção, sequestro, etc., e se é distinto o bem jurídico tutelado pela respectiva norma incriminadora, então, para a densificação do conceito de maus tratos não pode servir toda e qualquer ofensa.
Segundo Augusto Silva Dias (“Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes contra a vida e a integridade física”, AAFDL, 2.ª edição, 2007, pág. 110), com o crime tipificado no art.º 152.º do Código Penal protege-se a integridade corporal, saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana em contextos de subordinação existencial, coabitação conjugal ou análoga, estreita relação de vida e relação laboral.
Na expressiva síntese de Taipa de Carvalho (“Comentário….”, Loc. Cit. 332), “o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental”, estando “na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana” a ratio do artigo 152.º do Código Penal.
Em sentido idêntico se tem pronunciado a jurisprudência, como é sublinhado no acórdão do STJ, de 02.07.2008, disponível em www.dgsi.pt (relator: Cons. Raul Borges), citando-se aí o acórdão daquele Supremo Tribunal de 30.10.2003 (CJ/Acs. STJ, 2003, T. 3) em que se manifesta o entendimento de que “o bem jurídico protegido pela incriminação é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, no âmbito que agora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge e, nessa medida, seja susceptível de pôr em causa o supra referido bem estar»[10].
Ora, se a fórmula legal (“de modo reiterado ou não”) não permite qualquer dúvida quanto ao propósito do legislador de ultrapassar a querela doutrinal e jurisprudencial e consagrar o entendimento de que o tipo legal (de violência doméstica) não exige reiteração de acções ofensivas, também é certo que um único acto ofensivo só consubstanciará um “mau trato” se se revelar de uma intensidade tal, ao nível do desvalor (quer da acção, quer do resultado), que seja apto e bastante a lesar o bem jurídico protegido – a saúde física, psíquica ou emocional -, pondo em causa a dignidade da pessoa humana.
Como, lapidarmente, afirma Plácido Conde Fernandes (“Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal”, in Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, pág. 305), não havendo razão para «alterar o entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral”, também se mantém válida a asserção de que “a dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para preenchimento do tipo legal. O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa”.
É a exigência de especial gravidade da conduta maltratante que se acentua no acórdão da Relação de Lisboa, de 07.12.2010 (disponível em www.dgsi.pt), de que se transcreve o respectivo sumário:
“I - O tipo de crime de «violência doméstica» do art. 152º do C. Penal antes da reforma operada pela Lei nº 59/2007 designado como crime de «maus tratos» visa punir criminalmente os casos mais chocantes de maus tratos em cônjuges ou em pessoa em situação análoga. Pune-se um tratamento cruel, excessivo, sem respeito pela dignidade do companheiro, tudo com aproveitamento de uma autoridade do agente que lhe advém do uso e abuso da sua força física.
II – Com ele se visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade, humilhação, tudo provocado pelo agente, que torna num inferno a vida daquele concreto ser humano”.
Na busca do exacto sentido da norma incriminadora em causa, no acórdão desta Relação, de 19.09.2012 (www.dgsi.pt) é posto em relevo o elemento histórico:
“I - Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.° 98/X, que esteve na origem da Lei n.° 59/2007, de 4/9, escreve-se: «na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa».
II - Para a realização do crime torna-se necessário que o agente reitere o comportamento ofensivo, em determinado período de tempo, admitindo-se, porém, que um singular comportamento bastará para integrar o crime quando assuma uma intensa crueldade, insensibilidade, desprezo pela consideração do outro como pessoa, isto é, quando o comportamento singular só por si é claramente ofensivo da dignidade pessoal do cônjuge”.
Na mesma linha de exigência de que o acto ofensivo singular se revista de uma certa gravidade, situa-se o acórdão do STJ, de 06.04.2006 (C J/Acs. STJ, 2006, T. 2, 166), no qual se salienta não bastarem “as meras ofensas à integridade física” e que é indispensável “que um singular comportamento possa ter uma carga suficiente demonstradora da humilhação, provocação, ameaças, mesmo que não abrangidas pelo crime de ameaças, do acto de molestar o cônjuge ou equiparado”.
Ora, como bem se afirma na sentença recorrida, “as descritas condutas do arguido consubstanciam, para além de injúrias, castigos corporais e privações da liberdade, que são exactamente o estalão do tipo de crime de violência doméstica.
De facto, embora não se possa afirmar a reiteração no que se reporta às agressões e à coacção, as condutas levadas a cabo pelo arguido revestem gravidade tal que atingem o núcleo essencial dos bens jurídicos protegidos pela incriminação”.
Assim acontece, realmente, com a conduta que o arguido teve no dia 11.04.2011, em relação à qual se pode afirmar que, com tal actuação, foi aviltada a dignidade pessoal da G….
Com efeito, o arguido, exercendo grave coacção sobre a ofendida, escorraçou-a, autenticamente, da casa que era, também, o seu lar, ao qual não mais voltou, obrigando-a a refugiar-se em casa do pai, o que constitui uma tremenda humilhação.
Soçobra a tese do recorrente, que cometeu, efectivamente, um crime de violência doméstica.

III Dispositivo
Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em:
A) corrigir, nos sobreditos termos, a decisão impugnada (na parte em que elenca os factos provados);
B) negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida, apenas, com a referida alteração.
O recorrente pagará taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UC´s (artigos 513.º, n.º 1, e 514.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais).
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas)

Porto, 22-01-2014
Neto de Moura
Vítor Morgado
_____________
[1] Cfr., ainda, o acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ n.º 7/95, de 19.10.95, DR, I-A, de 28.12.1995.
[2] Tribunal de estrutura colectiva, claro está. Mas, se num tribunal de estrutura singular não há, obviamente, deliberação, nem por isso deixa de haver esse momento em que o juiz decide a “questão da determinação da sanção”, valorando então os elementos relativos à pessoa do arguido, designadamente o relatório social.
[3] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2.ª edição actualizada, 1131.
[4] Idem
[5] No mesmo sentido, o acórdão do STJ de 15.10.2008 (www.dgsi.pt/jstj; Relator: Cons.Henriques Gaspar) em que se escreveu que “a reapreciação da matéria de facto, se não impõe uma avaliação global e muito menos um novo julgamento da causa, também se não poderá bastar com declarações e afirmações gerais quanto à razoabilidade do julgamento da decisão recorrida, requerendo sempre, nos limites traçados pelo objecto do recurso, a reponderação especificada (ou, melhor, uma nova ponderação), em juízo autónomo, da força e da compatibilidade probatória das provas que serviram de suporte à convicção em relação aos factos impugnados, para, por esse modo, confirmar ou divergir da decisão recorrida (cf. Ac n.º 116/07 do TC, de 16-02-2007, DR, II série, de 23-04-2007, que julgou inconstitucional a norma do art. 428.º, n.º, 1 do CPP «quando interpretada no sentido de que, tendo o tribunal de 1.ª instância apreciado livremente a prova perante ele produzida, basta para julgar o recurso interposto da decisão de facto que o tribunal de 2.ª instância se limite a afirmar que os dados objectivos indicados na fundamentação da sentença objecto de recurso foram colhidos da prova produzida.
[6] O recorrente faz questão de assinalar a cor (branca) da pistola a que se referiu a ofendida, mas omite que esta também se lhe referiu como sendo prateada. Será assim coisa tão inédita uma pistola prateada?
[7] Este não é, porém, entendimento pacífico e é duvidoso que esteja em consonância com o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127º.º do Código de Processo Penal), que impede a formulação de regras que predeterminam, de forma geral e abstracta, o valor que deve ser atribuído a cada tipo de prova.
[8] Embora, em bom rigor, não se possa falar em ónus da prova em processo penal.
[9] No seio da Comissão de Revisão do Código Penal (referimo-nos à revisão de 1995), o Professor Figueiredo Dias manifestou algumas reservas quanto à extensão da tutela penal (no quadro do preceito incriminador em análise, entenda-se) ao cônjuge, por ser duvidoso que ela tenha, ainda, algum suporte sociológico, chegando mesmo a ser proposta a sua eliminação.
Em sentido contrário apontava um Projecto de Lei (a que foi atribuído o n.º 58/VIII) apresentado por deputados do PCP na Assembleia da República, em que, além do mais, era proposto “o alargamento da tipificação do crime de maus tratos, por forma a contemplar situações, como a de ex-cônjuges ou de pessoas que tivessem vivido em união de facto, e ainda de pessoas que tenham em comum filhos, porque a vida demonstra que também nessas situações a motivação do crime de que são normalmente vítimas as mulheres é o menosprezo pelo sexo feminino”.
O alargamento da tipificação do crime de maus tratos veio a concretizar-se.
[10] Enfatizando a natureza complexa do bem jurídico tutelado, o acórdão da Relação de Coimbra, de 24.04.2012 (acessível em www.dgsi.pt), em que se considerou que “o bem jurídico protegido no crime de violência doméstica, agora autonomizado do crime de maus tratos a que alude o art.152-A, do Código Penal, continua a ser plural, complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e, atualmente, mesmo após cessar essa relação”.