Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5829/16.5T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: ESTABELECIMENTO DA AVOENGA E DA BISAVOENGA
ANALOGIA DO ESTABELECIMENTO DA FILIAÇÃO
DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL
Nº do Documento: RP201706265829/16.5T8PRT.P1
Data do Acordão: 06/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 137-144)
Área Temática: .
Sumário: I – Sendo omissa no registo civil a paternidade da avó materna do Autor e tendo já caducado o direito desta e dos seus descendentes instaurarem acção de investigação de paternidade – artigo 1818.º do Código Civil –, a ordem jurídica não impede que o Autor, seu neto, peça em tribunal declaração judicial de que ele (neto) é bisneto da pessoa que identifica como pai da sua avó materna.
II – Neste caso o bisneto exerce um direito próprio.
III – O regime jurídico aplicável é o previsto para o estabelecimento da filiação nos artigos 1796.º a 1873.º do Código Civil, aplicável por analogia, com as devidas adaptações – artigo 10.º do Código Civil.
IV – O reconhecimento da existência do direito de um neto ou bisneto obter a declaração de que certa pessoa é seu avô ou bisavô, não implica o renascimento de direitos patrimoniais que os seus ascendentes tenham perdido, por ter decorrido o prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, dentro do qual podiam ter instaurado acção de investigação de maternidade/paternidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Tribunal da Relação do Porto – 5.ª Secção.
Recurso de Apelação.
Processo n.º 5829/16.5T8PRT do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Instância Central – 1.ª Secção Família e Menores – J2.
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Juiz relator………….Alberto Augusto Vicente Ruço
1.º Juiz-adjunto……Joaquim Manuel de Almeida Correia Pinto
2.º Juiz-adjunto…….Ana Paula Pereira de Amorim
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Sumário:
I – Sendo omissa no registo civil a paternidade da avó materna do Autor e tendo já caducado o direito desta e dos seus descendentes instaurarem acção de investigação de paternidade – artigo 1818.º do Código Civil –, a ordem jurídica não impede que o Autor, seu neto, peça em tribunal declaração judicial de que ele (neto) é bisneto da pessoa que identifica como pai da sua avó materna.
II – Neste caso o bisneto exerce um direito próprio.
III – O regime jurídico aplicável é o previsto para o estabelecimento da filiação nos artigos 1796.º a 1873.º do Código Civil, aplicável por analogia, com as devidas adaptações – artigo 10.º do Código Civil.
IV – O reconhecimento da existência do direito de um neto ou bisneto obter a declaração de que certa pessoa é seu avô ou bisavô, não implica o renascimento de direitos patrimoniais que os seus ascendentes tenham perdido, por ter decorrido o prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, dentro do qual podiam ter instaurado acção de investigação de maternidade/paternidade.
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Recorrente/Autor…………………B…, residente na Rua …, …, …, …. - … ….
Recorrida/Ré……………………….C…, residente em Rua …, …., …. - … Porto
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I. Relatório
a) Através da instauração da presente acção declarativa constitutiva, o autor B… pretende que o tribunal declare, no confronto com C…, herdeira e filha única de D…, que este último, já falecido, é seu bisavô.
O tribunal indeferiu liminarmente esta pretensão, com os seguintes fundamentos:
«Nos termos do artigo 26º, n.º 1 da CRP, “a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal (…)”,
Sobre este princípio escreveram os Profs. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, em “Curso de Direito de Família”, Vol. II, pág. 50 e 51 que o mesmo consiste “(…) num direito ao conhecimento da identidade dos progenitores que, por sua vez, garante um direito à «localização familiar» , de tal modo que cada indivíduo possa identificar os seus parentes, a sua origem geográfica e social.”
Na mesma obra referem fazem aqueles Mestres referência ao princípio da taxatividade dos meios para o estabelecimento da filiação, no sentido que “(…) os vínculos só podem ser constituídos através dos meios rigorosamente previstos na lei, e não por outros.” – obra citada, pág. 55.
Mais se refere ali que “o acto de iniciar uma investigação de paternidade também releva de uma vontade privada do pretenso filho, que pode abster-se da acção e, neste sentido, dispõe livremente do estabelecimento do vínculo” – obra citada, pág. 55.
Conforme se retira do disposto no artigo 1847º do C. Civil “o reconhecimento do filho nascido ou concebido fora do matrimónio efectua-se por perfilhação ou decisão judicial em acção de investigação.”
Dos preceitos e das considerações supra descritas podemos concluir que, salvo melhor opinião, não tem o autor qualquer direito a ver reconhecida a identidade de um qualquer ascendente que não o pai (pai a mãe, claro).
Com efeito o que o princípio constitucionalmente garantido da identidade pessoal garante é o direito de cada um em conhecer a identidade dos pais e, indirectamente, dos demais ascendentes.
Por outro lado o Código Civil apenas prevê a possibilidade de reconhecimento do filho, sendo de recordar a existência do princípio da taxatividade dos meios para o estabelecimento da filiação. Por outro lado importa reter ainda que está na disponibilidade do filho em abster-se de intentar a respectiva acção.
Nos termos do artigo 2.º, n.º 2 do CPC “ a todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção.”
Não tendo o autor direito ao reconhecimento de como seu bisavô importa indeferir liminarmente a petição inicial. Com efeito, os presentes autos foram conclusos, apesar e não existir disposição legal que o determinasse.
Contudo, em face da evidente falta de fundamento do pedido, por inexistência do direito invocado, importa proferir decisão desde já.
Por todo o exposto, julgo a acção improcedente, absolvendo a ré do pedido.
Custas pelo autor.
Registe e notifique».
b) É desta decisão que recorre o autor, tendo formulado estas conclusões:
«A Apelante está convicta que V.as Ex.as reapreciando a matéria de direito e subsumindo-a nas normas legais, doutrina e jurisprudência aplicáveis, não deixarão de revogar a sentença proferida pelo tribunal “a quo”.
II. O A. peticionou o reconhecimento da paternidade da sua avó materna.
III. Embora a lei não preveja qualquer meio de estabelecimento da filiação entre avô e neto, ou bisavô e bisneto, o facto é que o direito à identidade pessoal, constitucionalmente salvaguardado fica irremediavelmente coarctado se nos cingirmos à taxatividade dos meios para o estabelecimento dafiliação de que se vale a sentença recorrida.
IV. Ora, determina a Douta sentença do tribunal “a quo”:
“Com efeito o que o princípio constitucionalmente garantido da identidade pessoal garante é o direito de cada um em conhecer a identidade dos pais e, indirectamente, dos demais ascendentes”. E simultaneamente refere que “importa reter ainda que está na disponibilidade do filho em abster-se de intentar a respectiva acção”.
V. Deste modo, o A. ficaria irremediavelmente cerceado nas suas acções. Na medida em que, não tendo a sua avó tomado a iniciativa de intentar a presente acção, nada mais lhe restaria que se conformar com a impossibilidade de repor a verdade biológica ou de dispor de uma génese reconhecida e legalmente atestada.
VI. Este entendimento, salvo melhor opinião, preclude o prescrito no artigo 26.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, que comporta em si um direito à historicidade pessoal, sendo certo que o desconhecimento da identidade do seu bisavô importa para o A. o desconhecimento de parte da sua história pessoal e um sentimento de desenraizamento que perturba o seu desenvolvimento pessoal.
VII. O que move o A. é um interesse legítimo e atendível de repor a verdade biológica da filiação e garantir o respeito pelo direito à identidade pessoal de que ele e os seus descentes deveriam gozar.
VIII. Se se admite e compreende que o respeito pelos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, ínsitos no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, tenham levado ao estabelecimento de prazos para a investigação da paternidade, pior se compreende a limitação da legitimidade para interpor a presente acção ao filho não reconhecido, uma vez que a sua omissão pretere direitos constitucionalmente salvaguardados das gerações seguintes.
IX. Ora, a manutenção da segurança jurídica e da protecção da confiança do progenitor, e, bem assim, da sua família, não apresenta, no caso em apreço, especiais cautelas, na medida em que não haverá qualquer alteração na estrutura familiar; Em consequência do reconhecimento peticionado, uma vez que o bisavô do A. sempre se assumiu publicamente como pai da avó do A. e avô da mãe do A.. Acresce que o A. não pretende por em causa o bom nome dos bisavós, nem pretende quaisquer benefícios de carácter material ou pecuniário, que não lhe eram sequer legalmente devidos, mas aos quais expressamente renunciou.
X. Nestas condições, na colisão entre a salvaguarda do direito à identidade pessoal e à salvaguarda da protecção da confiança e da segurança jurídicas, no caso em apreço, afigura-se, salvo melhor opinião, como atendível a restrição destas últimas garantias, ainda que de modo residual, atendendo às circunstâncias concretas.
XI. Nesse sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido a 06/09/2011, no processo n.º 1167/10.5TBPTL.S1, e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido a 24/05/2012, no processo n.º 69/09.2TBMUR.P1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt.
XII. Por fim, cumpre arguir a inconstitucionalidade dos artigos 1847.º e 1869.º do Código Civil, aplicados pela douta sentença de que se recorre, quando interpretados no sentido de que só o filho pode interpor acção para investigação da paternidade e que as gerações subsquentes estão impossibilitadas de interpor a referida acção, mesmo que o filho se tenha abstido de a intentar, porquanto esta interpretação viola os artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1 e 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos e nos melhores de Direito, Requer-se a V.as Ex.as que reapreciem a matéria de direito, subsumindo-a nas normas legais, doutrina e jurisprudência aplicáveis, e consequentemente revogarem a douta sentença proferida pelo tribunal “a quo”. Assim decidindo V.as Ex.as farão inteira, sã e costumada JUSTIÇA.
c) A recorrida não contra-alegou.
II. Objecto do recurso
Tendo em consideração que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o recurso coloca a seguinte questão:
Sendo a paternidade da avó materna do Autor omissa no registo civil, a ordem jurídica nacional permite que o Autor, seu neto, peça em tribunal declaração judicial de que ele é bisneto de determinada pessoa, o que implica estabelecer a paternidade da sua avó?
III. Fundamentação
a) Matéria de facto
1 – D… nasceu em 5 de Abril de 1887 (fls. 32), tendo já falecido.
2 – E… nasceu em 25 de Outubro de 1929 e faleceu em 24 de Julho de 2004, sendo filha de F…, não constando do assento de nascimento a identidade do seu pai.
3 – G… nasceu em 22 de Setembro de 1963 e é filha de E… e de H….
4 - O autor B… nasceu a 30 de Novembro de 1992 e é filho de G… e de I….
5 – C… (a Ré) nasceu em 19 de Maio de 1936 e é filha de F… e de D….
6 - Quando C… nasceu, seu pai D… era viúvo.
b) Apreciação da questão objecto do recurso.
Vejamos então se sendo a paternidade da avó materna do autor omissa no registo civil, a ordem jurídica permite que o autor, seu neto, peça em tribunal a declaração judicial de que D… é o pai da sua avó, ou seja, seu bisavô materno.
A resposta a esta questão é afirmativa, pelas seguintes razões:
A.1 – A ordem jurídica nacional prevê apenas o estabelecimento da maternidade e da paternidade – artigos 1814.º e 1869.º do Código Civil.
O estabelecimento da avoenga e da bisavoenga não está previsto na lei.
Coloca-se a questão de saber se esta omissão constitui, ou não, uma proibição colocada sobre o neto ou bisneto no sentido de não poderem determinar judicialmente quem é o seu avô/avó ou o seu bisavô/bisavó.
A resposta é negativa.
Em primeiro lugar, não resulta do texto da lei que o legislador tenha querido tal limitação.
Se a tivesse querido, era espectável que o tivesse dito expressamente.
Da circunstância da lei só prever o estabelecimento da filiação não se retira, logicamente, que exista uma proibição legal de estabelecer a avoenga.
As proibições legais ou são expressas ou, não o sendo, como é o caso, têm de resultar de modo inequívoco da interpretação dos textos legais.
Não existe essa inequivocidade.
Com efeito, da racio legis inerente ao instituto relativo ao estabelecimento da filiação, que consiste na investigação, atribuição e registo da paternidade e maternidade a cada ser humano, não resulta qualquer obstáculo à obtenção judicial de uma decisão que declare que determinada pessoa é avô/avó ou bisavô/bisavó de outra pessoa.
Poderá, no entanto, objectar-se que a pretensão do autor, ou de outrem que se encontre em posição idêntica, implica, logicamente, que seja reconhecida a filiação paterna da sua avó, e a avoenga paterna da sua mãe.
Ora, pode ocorrer que num caso concreto estas pessoas (mãe e avó) possam já ter falecido; pode ocorrer que tenha já caducado em relação a elas o direito de instaurar a acção de reconhecimento de paternidade/maternidade ou que estas pessoas não pretendam ver a sua filiação reconhecida.
Nestes casos concretos poderá existir incompatibilidade de interesses, mas esta incompatibilidade não é necessária, pois a gestão dos interesses depende da vontade de cada sujeito.
Por isso, em alguns casos concretos poderá existir incompatibilidade entre os diversos interesses, mas noutros casos pode existir harmonia de interesses.
Por conseguinte, não existindo uma proibição expressa da lei, tem de se concluir que é possível, em princípio, um filho investigar quem são dos seus avós ou bisavós.
2 – Em segundo lugar, não estamos perante uma questão inócua do ponto de vista jurídico, pois a generalidade das pessoas considera valioso ter conhecimento da sua árvore genealógica, principalmente nos casos em que há ascendentes famosos, tratando-se de uma informação que tem valor no âmbito da identidade pessoal.
Está aqui em causa um interesse digno de tutela legal, ou seja, o interesse que todo o ser humano tem em conhecer e ver reconhecida publicamente a sua identidade e antecedentes genéticos, enfim, o interesse resultante da construção da sua árvore genealógica.
E muito embora haja numerosos cidadãos que certamente não se interessam por esta matéria, outros há que se interessam, como sucederá certamente com aqueles que supõe ter como seu ancestral uma celebridade.
Trata-se, por isso, de um interesse a que corresponde um direito de personalidade, porque tem como objecto um modo de ser moral da pessoa ([1]), isto é, o estabelecimento do «trato sucessivo» da sua árvore genealógica, a sua historicidade pessoal.
Cumpre saber se a este interesse corresponderá um direito.
A resposta é afirmativa.
Como referiu Manuel de Andrade «Todo o direito objectivo – e, portanto, também o direito subjectivo – foi criado para satisfazer interesses humanos (…) O interesse constitui o substrato do direito subjectivo. É-lhe subjacente; está antes dele. Ou então – se se prefere – está para além dele. Em todo o caso, está fora dele. Não diz respeito à sua estrutura, mas só à sua função» ([2]).
A este interesse ligado ao conhecimento e estabelecimento da história pessoal corresponde um direito subjectivo, pois o artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa, consagra o direito à identidade pessoal, em cujo conteúdo, segundo os autores Gomes Canotilho e Vital Moreira, se encontra o direito à historicidade pessoal enquanto conhecimento da identidade dos progenitores ([3]).
O que vale em relação aos progenitores vale em relação a outros ascendentes, pois a identidade pessoal e a historicidade pessoal não se esgotam nos progenitores, indo, sim, até onde a memória ou a informação permitem.
Por conseguinte, o neto, e, no caso dos autos, o bisneto, exercem nestes casos um direito próprio.
Prosseguindo.
Nos termos do n.º 2, do artigo 2.º do Código de Processo Civil,
«A todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação».
Por conseguinte, não se encontrando razões jurídicas em contrário, há que reconhecer ao autor o direito de instaurar e promover o andamento da presente acção.
3 – Em terceiro lugar, o facto do artigo 1847.º do Código Civil dispor que o reconhecimento do filho nascido ou concebido fora do matrimónio se efectua por perfilhação ou decisão judicial em acção de investigação, não impede que um filho possa investigar quem são os seus avós ou bisavós, pois a taxatividade dos meios refere-se aos «meios», não às «pessoas» que os podem usar juridicamente.
Esta norma legal refere-se à filiação e no caso dos autos estamos perante a determinação da avoenga ou bisavoenga, mas deve-se aplicar a mesma taxatividade.
Porém, o autor serve-se do mesmo meio previsto nesta norma, ou seja, utiliza o meio «decisão judicial em acção de investigação».
B. Face ao silêncio da lei acerca de um caso com a configuração que tem o caso dos autos, tem de se concluir que estamos perante uma lacuna, pois, como referiu Baptista Machado, «Existirá uma lacuna quando a lei (dentro dos limites de uma interpretação ainda possível) e o direito consuetudinário, não contêm uma regulamentação exigida ou postulada pelo ordem jurídica global – ou melhor: não contêm resposta a uma questão jurídica» ([4]).
C. As lacunas preenchem-se nos termos prescritos no artigo 10.º do Código Civil, onde se determina que:
«1. Os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos.
2. Há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei.
3. Na falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema».
No caso existe analogia na medida em que os interesses do filho, do neto ou do bisneto são idênticos: trata-se sempre de preencher espaços omissos na árvore genealógica.
No presente caso estamos perante uma lacunas de índole teleológica, tratando-se nas palavras de Baptista Machado de «…lacunas de segundo nível, a determinar em face do escopo visado pelo legislador ou seja, em face da rácio legis de uma norma ou da teleologia imanente a um complexo normativo. Estamos no domínio de eleição da analogia: a analogia serve aqui tanto para determinar a existência de uma lacuna como para o preenchimento da mesma» ([5]).
Por conseguinte, a lacuna deve ser suprida aplicando as normas do estabelecimento da filiação adaptadas ao caso, designadamente a norma do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, onde se determina que
«A acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação» (redacção da Lei n.º 14/2009 de 1 de Abril).
O autor cumpre este requisito, pois nasceu em 30 de Novembro de 1992.
É certo que o artigo 1818.º (Prossecução e transmissão da acção) do Código Civil dispõe que
«O cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou os descendentes do filho podem prosseguir na acção, se este falecer na pendência da causa; mas só podem propô-la se o filho, sem a haver intentado, morrer antes de terminar o prazo em que o podia fazer».
Como já se referiu acima, poderá objectar-se que a pretensão do autor, ou de outrem que se encontre em posição idêntica, implica, logicamente, que seja reconhecida obrigatoriamente a filiação paterna da sua avó, e a avoenga materna da sua mãe.
A solução encontrada no presente caso tem de ser a mesma que valerá em qualquer outro caso idêntico.
Ora, dada a diversidade de situações possíveis, estas pessoas (mãe e avó) podem já ter falecido, noutros casos pode ter caducado em relação a elas o direito de instaurar a acção de reconhecimento de paternidade/maternidade ou não pretenderão, inclusive, ver a sua filiação reconhecida.
No caso concreto, relativamente à avó materna do autor, caducou há muito o direito de instaurar a acção de reconhecimento de paternidade.
Porém, no caso dos autos, não estamos a lidar apenas com o direito da avó do autor, E…, falecida em 2004, instaurar acção destinada a obter decisão que declare D… como seu pai.
No caso dos autos estamos a considerar os direitos do autor determinados através do preenchimento da lacuna assinalada, suprida por aplicação das normas do estabelecimento da filiação adaptadas ao caso, designadamente, como se disse, da norma do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, onde se consigna o prazo de 10 anos, com início na maioridade ou emancipação, para a instauração da acção.
Estamos, por isso, a lidar com pessoas diversas e com direitos diversos, pelo que a caducidade de um deles não determina a caducidade do direito do outro.
D. Esta problemática afigura-se ser novidade na nossa jurisprudência, mas no Brasil esta questão tem sido debatida. A título de exemplo pode ver-se o acórdão do Superior Tribunal de Justiça no recurso especial n.º 604.154 - RS (2003/0198071-2) Relator: Ministro Humberto Gomes De Barros, com este sumário:
«-É juridicamente possível o pedido dos netos formulado contra o avô, os seus herdeiros deste, visando o reconhecimento judicial da relação avoenga.
-Nenhuma interpretação pode levar o texto legal ao absurdo» ([6]).
Entre nós Jorge Duarte Pinheiro aborda esta questão a propósito da caducidade das acções de investigação da maternidade/paternidade, referindo que «...ao paralisar totalmente o direito de investigar, por causa de uma actuação censurável do investigante, não contempla a posição de terceiros que possam estar legitimamente interessados no estabelecimento da filiação entre o investigante e o pretenso pai (v.g., dos filhos do investigante: o direito à identidade ou historicidade pessoal não se reduz ao conhecimento e reconhecimento do parentesco no 1.º grau da linha recta)» ([7]).
Este autor defende uma interpretação do artigo 1817.º do Código Civil no sentido de confinar a sua disciplina normativa apenas à obtenção de efeitos sucessórios, permitindo-se, deste modo, a instauração de acções de investigação fora dos prazos de caducidade estabelecidos neste artigo para fins do «exercício do direito à identidade pessoal e do direito de constituir família» ([8]).
E. Cumpre ter ainda em consideração os eventuais conflitos de direitos entre descendentes, quando uns (por exemplo, os netos) pretendem ver reconhecida uma certa paternidade e por via dela a avoenga ou bisavoenga materna ou paterna e outros (por exemplo, pais daqueles netos) não querem que essa situação seja conhecida e declarada judicialmente.
Aqui estamos no âmbito da colisão de direitos, aplicando-se a regra do artigo 335.º do Código Civil.
Cumpre ainda deixar a nota de que a admissibilidade de acções judiciais com tal objecto não implica forçosamente a exumação de cadáveres com a finalidade de estabelecer a filiação através de exames genéticos, pois nem sempre as partes se servem deste meio de prova ([9]), nem a mesma será viável.
F. Como se referiu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/06 (Paulo Mota Pinto) há diversos argumentos que militam a favor da limitação temporal das acções destinadas a estabelecer a filiação como a segurança jurídica daqueles que veriam as suas relações jurídicas continuamente em situação de instabilidade por não estarem seguros da sua inalterabilidade, dado que poderia a qualquer momento surgir um novo familiar com pretensões patrimoniais sobre os bens das heranças dos pretensos progenitores; o «envelhecimento» ou «perecimento das provas», resultante da simples passagem do tempo, desde a degradação da memória das testemunhas à sua morte, etc.; os fins «egoístas e de cobiça» dos investigantes relativamente às heranças, os quais deixariam para o fim da vida dos pretensos progenitores a demanda destes com vista a partilharem as respectivas heranças» ([10]).
São estes os argumentos que estão na origem da limitação temporal da instauração da acção de investigação da maternidade/paternidade no actual Código Civil, agora alargada no artigo 1817.º do mesmo código, de 2 anos para 10 anos, contados a partir da maioridade do investigante ([11]).
Estes argumentos não se afiguram decisivos, pelas seguintes razões:
Em primeiro lugar, o tipo de direito que aqui está em causa tem duas dimensões: uma patrimonial e outra não patrimonial.
A patrimonial respeita aos bens deixados pelo pretenso progenitor, digamos B, a herança de B; a outra, ao direito de alguém, por exemplo C, descendente de B, a conhecer e ver reconhecida a identidade dos ascendentes que formam a sua árvore genealógica, entre os quais A, pretenso pai de B.
Os direitos de natureza patrimonial radicam-se na esfera jurídica daquele que poderia ser herdeiro, de B, mas se ele não instaurou a acção de investigação nos 10 anos seguintes a ter alcançado a maioridade, nos termos do n.º1, do artigo 1817.º, do Código Civil, B perdeu esse direito, ele e os seus herdeiros mencionados no artigo 1818.º do mesmo código.
O direito de B extinguiu-se pelo não exercício e os seus herdeiros não poderão exercer direitos patrimoniais inexistentes na herança de B.
Quanto aos direitos não patrimoniais destinados a assegurar a cada pessoa o conhecimento e estabelecimento legal da sua árvore genealógica, verifica-se que estes direitos são direitos pessoais, de personalidade, que nascem originariamente na esfera jurídica de cada sujeito.
Continuando com o exemplo, nascem na esfera jurídica dos descendentes de B; não são herdados a partir da herança de B.
Como estes direitos não dependem da herança de B, não podem ser afectados na sua existência pelo comportamento de B, pelo que podem ser exercidos autonomamente, com a limitação de prazo estabelecida no artigo 1817.º, aplicável por analogia, como acima se referiu.
Claro que o exercício destes direitos se personalidade, por parte de descendentes de B, pode implicar que B seja declarado filho de A, direito que A já tinha perdido.
Nesta parte, quanto aos efeitos patrimoniais decorrentes de tal situação, e em nome da não contradição da ordem jurídica ou da harmonia entre as suas normas, há que considerar que o reconhecimento do direito dos descendentes de A a estabelecerem a sua avoenga ou bisavoenga, como direito de personalidade, tem de conviver com a perda do direito acabada de mencionar na esfera jurídica do seu ascendente B, por força do disposto no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil.
Porém esta perda de direitos só se mostra relevante ao nível dos direitos patrimoniais, porque são os únicos que poderiam ter sido transmitidos de B, da sua herança, para os seus descendentes, incluindo pela via do direito de representação previsto no artigo 2039.º do Código Civil.
O direito de representação, sendo embora um direito próprio ([12]) do descendente do herdeiro que não pôde ou não quis aceitar a herança ou o legado, depende da existência jurídica desse herdeiro, por exemplo, de B.
Porém, tendo decorrido o prazo de 10 anos estabelecido no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, sem que B tenha instaurado a acção, os filhos de B não adquirem o direito de representação, porque B não adquiriu previamente, nem pode adquirir, o estatuto de herdeiro.
Concluindo: o reconhecimento da existência do direito de um neto ou bisneto no sentido de que certa pessoa é seu avô ou bisavô, não implica o renascimento de direitos patrimoniais que os seus ascendentes tenham perdido, por ter decorrido o prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, sem que os mesmos tenham instaurada acção de investigação de maternidade/paternidade.
G. Quanto à legitimidade passiva, o autor afirma que a única descendente conhecida de D… é a ré C…, não havendo informação noutro sentido.
Procede, por conseguinte, o recurso.
IV. Decisão
Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente e revoga-se a decisão recorrida, devendo prosseguir o processo para a apreciação do mérito da causa.
Custas pela parte vencida a final.
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Porto, 26 de Junho de 2017
Alberto Ruço
Correia Pinto
Ana Paula Amorim
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[1] Segundo Adriano de Cupis, o objecto dos direitos de personalidade é «…um modo de ser físico ou moral da pessoa…» - Os Direitos da Personalidade. Lisboa, Livraria Morais Editora, 1961, pág. 29.
[2] Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I. Coimbra, 1987, pág. 8.
[3] Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª Ed. Revista. Coimbra Editora, 1993, pág. 179.
[4] Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador. Coimbra, Almedina, 1989, pág. 194. Ou, nas palavras de Karl Larenz, «A expressão “lacuna” indica que algo está incompleto, Exige-se que a ordem jurídica seja completa, porque o juiz, a que se vai solicitar uma decisão num litígio jurídico, não pode denegar uma sentença de mérito, posto que seja competente e se verifiquem os restantes pressupostos processuais. Ma só se trata dum “litígio jurídico”, se a decisão requerida diz respeito a uma questão que é susceptível duma regulamentação jurídica, e que também necessita dela segundo a concepção da comunidade jurídica e cultural em causa» - Metodologia da Ciência do Direito. Edição da Fundação Calouste Gulbenkian/1978, pág. 428.
[5] Ob. cit., pág. 196.
[6] http://www.valedomogi.com.br/Download/atts/familia/RECURSO.ESPECIAL.FAMILIA.RELAÇÃO AVOENGA.RECONHECIMENTO JUDICIAL. pdf (consulta em 24 de Maio de 2017).
[7] O Direito de Família Contemporâneo, 2.ª reimpressão, 3.ª edição. Lisboa, edição da AAFDL, 2012, pág. 196. Em nota (266), nesta página, o autor refere que «No Brasil, vários juristas entendem que o art. 1606 do Código Civil deste País (igualmente limitativo da legitimidade para intentar e prosseguir a acção de investigação da paternidade) não obsta a que o neto intente em nome próprio uma acção "investigatória de ancestralidade" /cf. Berenice Dias, MDF pp. 419-421; Rolf Madaleno CDF pp. 377-381)».
[8] Ob. cit., pág. 197.
[9] Como certamente é o caso dos autos atendendo ao tipo de factos que são alegados e aos escritos atribuídos ao pretenso bisavô e fotografias de família, apresentados como provas.
[10] Diário da República nº 28/06, Série I-A de 8 de Fevereiro.
[11] Pires de Lima/Antunes Varela. Código Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1995, pág. 82.
[12] De iure próprio como referem Pires de Lima/Antunes Varel Código Civil Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, 1998, pág. 48.