Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
246/16.0T8OAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA CECÍLIA AGANTE
Descritores: COMPROPRIEDADE
MURO PROVISÓRIO
PRÉDIO URBANO
PRÉDIO RÚSTICO
POSSE
PRESUNÇÃO DO DIREITO
Nº do Documento: RP20190604246/16.0T8OAZ.P1
Data do Acordão: 06/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 897, FLS 55-79)
Área Temática: .
Sumário: I - A presunção de compropriedade do muro divisório entre dois prédios urbanos confinantes supõe a prova de estarem em causa dois edifícios adjacentes ou pátios e quintais dos respetivos prédios, pois não está legalmente prevista a presunção de comunhão para muro divisório entre dois prédios urbanos, mas apenas entre prédios rústicos, edifícios, pátios ou quintais.
II - Provado o poder de facto de ambos os proprietários confinantes sobre o muro, traduzido nos atos materiais consubstanciadores do corpus, fica estabelecida a sua posse em nome próprio.
III - Como o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, exceto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse, não havendo factos que ilidam qualquer dessas presunções, fica apurada a compropriedade de ambos os possuidores sobre o muro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 246/16.0T8OAZ
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira - Juiz 1

Acórdão
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
1. B… e marido, C…, residentes na Rua …, …, Bloco ., .º Dto. São João da Madeira, e D…, divorciada, residente na Rua …, .., …, Oliveira de Azeméis, propuseram a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra E… e marido, F…, e G…, solteira, maior, e H…, viúva, ambas residentes na Rua …, .., …, Oliveira de Azeméis, pedindo a sua condenação a:
«1. reconhecerem que as Autoras são, em comum e partes iguais, as donas e legítimas proprietárias do prédio acima melhor identificado, por aquisição derivada e titulada.
Assim não se entendendo,
2. por aquisição originária, decorrente da invocada usucapião;
3. reconhecerem que as Autoras são, em comum e partes iguais, as donas, legítimas e exclusivas proprietárias do muro acima melhor identificado, em toda a sua extensão.
Assim não se entendendo,
4. e pelo menos, ao longo da extensão que confronta com o prédio das Rés, por aquisição derivada e titulada, uma vez que faz parte integrante dos pertences desse prédio.
Ou aqui assim não se entendendo,
5. por aquisição originária, decorrente da invocada usucapião.
Em consequência,
6. devem as Rés serem condenadas a demolirem o murete de tijolos que construíram sobre o acima referido muro e daí retirarem tudo o que tenham implantado nesse muro ou que sobre o mesmo tenham feito suportar ou pender.
7. Mais devem as Rés serem condenadas a recolocarem o muro no estado e nas condições em que antes se encontrava.
E, ainda,
8. devem as Rés serem condenados a, de ora em diante, absterem-se de, por qualquer forma, praticarem mais qualquer acto que perturbe, limita, impeça ou prejudique o pleno exercício da dominialidade das Autoras sobre o seu prédio, e em particular sobre este muro,
9. mais se condenando as Rés no pagamento às Autoras, e a título de sanção pecuniária compulsória, duma quantia pecuniária, calculada à razão de 37,50€ dia, por cada dia de atraso no cumprimento das obrigações que daqui lhes decorrem.
Alegaram, para tanto, que o muro que delimita o seu prédio, que identificam, na parte em que confronta com o prédio dos Réus, foi construído pelos seus antepossuidores e por eles mantido e conservado, sendo de sua exclusiva propriedade. Contudo, os Réus alçaram sobre ele um murete e neste assentaram caleira, transformando o referido muro na parede exterior da sua casa que pretenderam ceresitar e pintar ao que os Autores se opuseram.
2. Citados os Réus, contestaram, alegando a Ré G… encontrar-se inabilitada por anomalia psíquica e requerendo a sua representação pela sua irmã E…. Deferido o requerido, foi julgada sanada a sua incapacidade judiciária. Impugnaram os Réus os factos alegados pelos Autores, opondo serem eles os donos exclusivos do muro que delimita os prédios de ambos. Em reconvenção pediram a condenação dos Autores a:
«1. reconhecerem que os Réus são, em comum e partes iguais, os donos, legítimos e exclusivos proprietários do prédio identificado no Artigo 45.º da Contestação.
Assim não se entendendo,
2. por aquisição originária, decorrente da invocada usucapião;
3. reconhecerem que os Réus / Reconvintes são, em comum e partes iguais, os donos, legítimos e exclusivos proprietários do muro identificado nos presentes Autos, iniciando-se a sul, junto à estrada e seguindo para norte, até ao prédio confinante, propriedade de I….
Ou aqui assim não se entenda,
4. por aquisição originária, decorrente da invocada usucapião;
Em consequência,
5. devem as AA. / Reconvindas serem condenadas a, de ora em diante, absterem-se de, por qualquer forma, praticarem qualquer acto que perturbe, limita, impeça ou prejudique o pleno exercício da dominialidade das RR. / Reconvintes sobre o seu prédio e, em particular, sobre este muro».
A Ré H… pediu, ainda, que, a não ser entendido do modo peticionado, deve ser reconhecido que o muro é meeiro.
Alegaram que a parede da sua casa esteve, desde a sua construção originária, assente no muro durante mais de 140 anos, nele assentando um telheiro, com caleira, colocada numa fiada de tijolos, tudo feito pelos seus antecessores.
3. Os Autores replicaram, impugnando os factos alegados pelos Réus.
4. Para fixação do valor processual da lide foram oficiosamente avaliados os imóveis e atribuída à ação o valor de 66.825,00.
5. Realizada a audiência prévia, com frustração da conciliação das partes, foi admitida a reconvenção e foram fixados o objeto do litígio e os temas de prova.
6. Foi realizada a requerida perícia colegial e apresentado o respetivo relatório, unânime, mas com pedido de esclarecimentos por ambas as partes, a que os Srs. Peritos responderam.
7. Realizou-se audiência final e foi pronunciada sentença com o subsequente dispositivo:
«V – Como tal julgo a acção e as reconvenções parcialmente provadas e parcialmente procedentes e, em consequência:
i. Reconheço os Autores como donos e legítimos proprietários do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Azeméis sob o número 57 524, da freguesia …;
ii. Reconheço os Réus como donos e legítimos proprietários do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Azeméis sob o número 252, da freguesia …;
iii. Absolvo os Réus do demais pedido;
iv. Absolvo os Autores do pedido reconvencional de reconhecimento de propriedade exclusiva do referido muro pelos Réus;
v. Declaro a natureza comum do muro que separa os prédios referidos em i e ii em toda a extensão em que confrontam um com o outro condenando os Autores a reconhecer tal compropriedade.

8. Não se conformando com a sentença, apelaram os Autores, assim rematando a sua alegação:
«A) da matéria de facto
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II. Thema decidendum
Como o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes (artigos 635º e 639º do Código de Processo civil, daqui em diante denominado “CPC), cumpre apreciar as seguintes questões:
1. O (in)cumprimento do ónus de impugnação da matéria de facto;
2. A extemporaneidade do recurso;
3. A impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
4. O direito de propriedade sobre o muro reivindicado pelas partes.

III. Fundamentação
1. O (in)cumprimento do ónus de impugnação da matéria de facto
Como questão prévia suscitam os Réus/Recorridos a ausência de cumprimento, por parte dos Autores, do ónus da impugnação da matéria de facto, por falta de indicação das concretas passagens da gravação em que sustentam o apontado erro no julgamento da matéria de facto.
Na impugnação da matéria de facto com base em provas gravadas, deve o recorrente mencionar os depoimentos em que funda o seu entendimento, indicando, com exatidão as passagens da gravação em que baseia o seu recurso, bem como os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, referindo qual o sentido da resposta que, na sua ótica, deverá ser dada a tal matéria (artigo 640º do CPC).
Vista a alegação dos Recorrentes, cremos que a mesma dá observância ao ónus imposto pelo ordenamento jusprocessual civil à impugnação da decisão de facto, expressando a sua discordância quanto à falta de prova dos pontos de facto que enuncia, bem como manifesta a sua posição quanto aos que pretende ver alterados, invocando os correspondentes meios de prova e exarando as passagens do registo da prova em suporte informático.
A Relação “deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos com assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa” (artigo 662º/1 do CPC), a significar que o tribunal de segunda instância faz um novo julgamento da matéria de facto, procurando a sua própria convicção, assim assegurando às partes um efetivo duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto. Já não está em causa uma mera atividade de controlo por parte da Relação para deteção e correção de pontuais e excecionais erros de julgamento ou para ponderação da razoabilidade da convicção expressa pelo tribunal a quo com suporte nos elementos existentes nos autos. Ao invés, “por se encontrar na posse dos mesmos elementos de prova que a 1ª instância, a Relação, se entender, dentro do princípio da livre apreciação da prova, que aqueles elementos impõem uma decisão diferente sobre o ponto impugnado da matéria de facto, alterará a decisão que sobre ele incidiu. Também aqui a reapreciação da prova pela Relação coincide em amplitude com a 1ª instância”[1].
O Tribunal da Relação deve, pois, exercer um verdadeiro e efetivo segundo grau de jurisdição da matéria de facto, sindicando os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou de gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos impugnados diversa da recorrida, e referenciar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
O formalismo imposto ao recorrente que impugna a matéria de facto não pode, contudo, ser excessivamente valorizado, antes se devendo adotar uma interpretação conciliável com as exigências de princípio fundamental da proporcionalidade e adequação, com vista à realização da justiça material[2]. Na verdade, a jurisprudência tem enjeitado uma visão formalista desses procedimentos e propugnado que, “sem ceder a facilitismos que acabem por desprezar os objectivos e os fundamentos do ónus de alegação previsto no art. 640º do CPC, não é legítimo que se faça do regime vigente uma interpretação excessiva” (…) com “uma inaceitável sobreposição de aspectos de ordem formal numa situação em que se mostra razoavelmente cumprido o ónus de alegação”[3].
Somos também adeptos desta visão menos rígida e formalista dos procedimentos impostos pelo artigo 640º do CPC e, embora nos pareça cumprido o referido ónus, sempre tenderíamos a aceitar a impugnação da decisão de facto ainda que efetuada em moldes mais amplos. Assim concluímos pela improcedência da correspondente argumentação dos Recorridos.

2. A extemporaneidade do recurso
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3. Factos provados
1. No dia 01/09/1950, por escritura pública de doação de cujo integral teor é o de fls. 33 a 35 cujo e aqui se dá por reproduzido J… e mulher K… doaram a L… e mulher M… parte do prédio que pertencia ao descrito sob o número 22.160 e que veio a constituir descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 57.524.
2. Por escritura pública de compra e venda outorgada em 03/05/1976, L… e mulher M… venderam às aqui Autoras, suas netas, em comum e partes iguais, a nua propriedade de um terço do prédio acima melhor identificado cujo usufruto venderam ao seu filho e nora, respetivamente, N… e mulher O…, apenas a começou a gozar após a morte do último dos vendedores, conforme documento de fls. 36 a 38 cujo teor aqui se dá por reproduzido.
3. No dia 29/11/1991, as Autoras declararam adquirir e P…, Q…, S… e T… declararam vender a nua propriedade dos dois terços indivisos do referido imóvel, por escritura pública cujo teor é o de fls. 39 e 40 que aqui se dá por reproduzido.
4. No mesmo dia os pais das Autoras, N… e O… renunciaram ao acima referido direito de usufruto que haviam adquirido sobre este prédio por documento cujo teor é o de fls. 41 verso e 42 cujo teor aqui se dá por reproduzido.
5. Sito no …, freguesia …, concelho de Oliveira de Azeméis, existe um prédio, composto de casa térrea, pátio com ramada, poço e quintal e ainda de cultura, ramada e pomar, o qual está inscrito na matriz predial sob os artigos urbano 653 e rústico 3043 e se reporta ao descrito na Conservatória Registo Predial de Oliveira de Azeméis sob o nº 22.160 a fls 135 vº do Livro B-60 e ao aí também descrito sob o nº 57.524 a fls 73 do Livro B-149» (alterado pela Relação).
6. As Autoras, por si e seus antepossuidores, iniciaram o uso do prédio identificado em 5. há mais de 100 anos.
7. Comportando-se, elas e os seus antepossuidores, como verdadeiros proprietários do mesmo, usando-o e fruindo-o de forma pública e sem oposição de ninguém.
8. J… e a sua mulher K… habitaram tal prédio e o mesmo sucedeu com L… que aí nasceu e sempre residiu, e depois com sua a mulher M… que o habitaram até ao seu falecimento.
9. Os filhos deste casal aí nasceram e cresceram, tendo o pai das Autoras, após o seu casamento, igualmente aí continuado a residir com a sua mulher.
10. As Autoras nasceram e cresceram neste prédio onde residiram até ao casamento de cada uma delas.
11. Neste prédio, e ainda hoje, residem os pais das Autoras.
12. Os prédios que confinam de poente com o acima identificado prédio situam-se numa cota mais elevada e os prédios que com este confinam de nascente situam-se numa cota inferior.
13. A poente o muro serve de separador das propriedades com que, daí, confina, mas serve ainda de muro de suporte de terras, tendo as casas térreas aí entretanto edificadas, e existentes no prédio das Autoras, sido deste afastadas em cerca de 0,75 cm em toda a sua largura.
14. A nascente, esse muro passou também a servir de muro de suporte das terras do prédio destas, tendo apenas visível, para quem está no prédio das Autoras, e apenas nalguns dos seus pontos, mais a norte, uma altura de cerca de dez centímetros, sendo que na linha que delimita o prédio das Autoras do prédio das Rés, esse muro praticamente alinhava com a cota das terras do prédio destas.
15. O prédio das Autoras confronta de nascente, e seguindo o sentido sul/norte, primeiro com o prédio dos Réus.
16. A sul, e por força do recuo do muro das Autoras por cedência para alargamento da via pública, na largura de 0,75 cm, de nascente tal prédio confronta com a rua, pois os Réus não acederam a tal alargamento o que, de sul, e na medida do acima referido, deixou estes dois prédios desalinhados.
17. O prédio dos Réus, pelo menos até ao ano de 1984, era composto de casa terra, pátio com ramada e quintal e era pertença de U… e estava descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número 51036.
18. Este U… era, inicialmente, o proprietário de todos os prédios que confinam de nascente com o prédio das Autoras.
19. Em 11/01/1984 U… e mulher V…, venderam ao marido e pai das Rés, W…, por escritura pública cujo teor é o de fls. 49 e 50 e aqui se dá por reproduzida, parte de tal prédio atualmente inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 650º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 252 da freguesia …, concelho de Oliveira de Azeméis.
20. Na sequência do falecimento do W…, foram as Rés habilitadas como suas únicas e universais herdeiras.
21. No prédio referido em 19 existia uma casa, a sul, junto à estrada.
22. A nascente desta construção e a ela contíguo, havia um telheiro.
23. Seguindo no sentido sul/norte e encostado à sua parede a norte, existia uma outra construção mais baixa que a primeira e que alinhava com a parede a nascente.
24. Entre as construções referidas em 23 e o acima referido muro, que separava tal prédio do referido em 5., existia um corredor a céu aberto.
25. Em data não concretamente apurada as Rés procederam à colocação de telha sob este corredor construindo o telheiro referido em 22 que era suportado em barrotes apoiados em parte no muro que separava tal construção do prédio referido em 5.).
26. A parede do corpo do casa das Rés, a poente, é mais alta do que a cota do prédio destas.
27. Após essa construção e seguindo de sul para norte, a linha divisória com o prédio referido em 5. tinha uma altura de cerca de 1, 190 m, contados do chão do logradouro do prédio dos Réus.
28. A delimitar a propriedade das Rés encontra-se, de norte junto à linha que entronca com a linha de estrema das Autoras, uma rede a separar o prédio das Rés com o prédio contíguo.
29. Os antepassados das Autoras e antepossuidores do prédio já referido em 5., colocaram esteios em cimento que suportam ramada sobre parte do murete construído sobre o muro de pedra solta que confronta com o prédio dos Réus.
30. O avô das Autoras mulheres ordenou a manutenção e reparação de tal muro sempre que o julgou necessário, tendo efetuado pequenas obras de sustentação do mesmo, do seu lado, sem a oposição, reparo ou disputa de ninguém.
31. À vista de toda a gente e de modo a ser conhecido por todos os interessados.
32. No ano de 2009 a Ré E… requereu junto dos serviços competentes do Município … um pedido de licenciamento para alteração e ampliação do seu prédio - processo de obras nº …./2009 na sequência do que o Município … lhe emitiu o alvará de obras de construção nº …/12.
33. Na execução da parede a poente, que saindo do corpo mais a sul do prédio das Rés, (e que estas mantiveram com a implantação até aí existente), estas construíram uma nova parede (antes aí não existente), paralela ao muro das Autoras e deste afastado em cerca de 10/15 cm.
34. Em meados do ano de 2012, e ao perceber que as Rés, nesse ponto a poente, estavam a edificar uma parede dupla, o pai das Autoras, com o seu conhecimento, começou a denunciar tal facto junto dos serviços competentes da Câmara Municipal, primeiro verbalmente e, depois, por escrito.
35. Na denúncia escrita apresentada pelo mesmo em 08-06-2012, cujo teor é o de fls. 172 e aqui se dá por reproduzido, o mesmo alega que a denunciada “se encontra a construir sobre parte de um muro que também lhe pertence (meeiro)”.
36. As Rés não foram impedidas de continuar a levar a cabo tais obras ali executando uma caixa-de-ar, usando para o efeito a parede que aí edificaram, o muro que confronta com o prédio referido em 5., e o espaço que entre uma e outra foi deixado.
37. Neste corpo de edifício, agora mais alteado em relação ao antes existente, as Rés, para concluírem esta caixa-de-ar, utilizaram o muro que confronta com o prédio referido em 5. como segunda parede, no que vai abaixo da cota do prédio das Autoras, e para o que vai daí acima e até ao telhado, agora mais alto, fizeram assentar tijolos sob este muro, até à altura do telhado, e ao longo de toda a sua extensão.
38. Porque a Ré E… pretendia concluir esta parte a poente, mais concretamente este murete de tijolos, ceresitando-o e pintando-o e concluir parede exterior a poente do seu prédio e as Autoras se opuseram, aquela intentou processo de jurisdição voluntária para suprimento de consentimento contra as aqui Autoras.
39. A parede poente da casa antiga que existia no prédio referido em 19, antes das obras referidas em 33, esteve assente no muro que a delimitava do prédio referido em 5. que constituía parede exterior dessa casa a poente.
40. Tal casa foi construída antes de 1937.
41. Os dois prédios identificados matricialmente em 5. constituem uma realidade física unitária, com uma área global de 1380 m2, confrontando a norte com X…, a sul com caminho, atual Rua …, a nascente com Y… e Réus, em parte, e a poente com Z…, com uma área global de cerca de 1.368 m2 (aditado pela Relação).
42. A delimitação física dos prédios dos Autores, a nascente, no sentido sul/norte, inicia-se com a parede da casa antiga dos Réus, troço em murete de tijolo cerâmico de 11 cm, numa extensão de 14,60 m, seguido de muro de pedra solta até ao limite norte dos prédios com 53,3 m de comprimento. Muro esse que, em todo o seu comprimento, tem como características visíveis a pedra solta, com uma cota de desnível entre os dois prédios de 1,43 m, ficando o dos Réus a um nível inferior (aditado pela Relação).
43. O muro das Autoras, no ponto que entronca com o prédio das Rés no limite deste de poente/norte, não faz qualquer derivação para o prédio das Rés, antes seguindo, desde a casa destas, e sem qualquer interrupção ou qualquer outro sinal de derivação ou descontinuidade, ao longo da linha de estrema do prédio das Autoras, numa extensão superior a 65 m.

4. Factos não provados
a) Em data seguramente anterior ao ano de 1920, e pelos então proprietários do prédio das Autoras acima identificado, foi edificado um muro em pedra.
b) Decorrente da inclinação que os terrenos apresentavam (sentido descendente, de poente para nascente) e visando a construção das casas térreas que, no prédio das Autoras, nessa altura, se pretendiam edificar, os antepassados das Autoras aplanaram o prédio, e ao longo da linha do seu perímetro que o separava dos demais confrontantes de norte, nascente e poente, e ainda ao longo da linha em que confrontava, de sul, com o caminho, sempre dentro de terreno que era de sua propriedade exclusiva, e sob este, implantaram e construíram um muro, com uma extensão aproximada de 176 metros com o que passaram a delimitar toda a acima referida propriedade.
c) Este muro, em toda a sua extensão, com uma largura de cerca de 40 centímetros, foi construindo em pedra tinha uma altura que, não sendo constante em toda a sua extensão, porque variava em função dos pontos cardeais que delimitava, em todos eles era superior a dois metros de altura.
d) Para suportar a colocação da telha, as Rés montaram uma estrutura em madeira, que fixaram à parede poente desta parte da sua casa, e daí, em sentido descendente fizeram sair vários barrotes, espacejados entre si, barrotes que apoiavam, a poente, num barrote horizontal, tudo em madeira, que, junto ao muro das Autoras e ao longo dessa extensão de corredor, era apoiado por barrotes verticais também espacejados. O barrote horizontal “amarrava” toda esta estrutura em madeira.
e) Uma vez que o muro, na parte em que confrontava com o prédio das Rés, ficava até à cota das terras do seu prédio, que aí suportava, as Autoras, por volta do ano de 1992, e por forma impedir que do seu prédio e para o prédio das Rés, por aí pudessem cair detritos, mandaram colocar duas fiadas de tijolos, em largura e em altura, sobre esse muro, praticamente em toda a linha em que confronta com o prédio das Rés, fiadas de tijolos que ficaram a ocupou toda a largura desse muro.
f) Sob os barrotes que saíam do telhado referido em 25 e pendiam até ao barrote horizontal que encostava no muro das Autoras, foram colocados vários barrotes horizontais, paralelos a este, que suportavam as telhas aí colocadas.
g) As telhas aí colocadas pendiam de nascente para poente (considerado o prédio das Rés) ao longo desse corredor, e até ao acima referido muro.
h) Esta estrutura de telhado não estava fixada no muro, nem as telhas que suportava sobre ele pousavam.
j) Os antepossuidores do prédio referido em 5. agiram sempre relativamente ao muro que o delimita a nascente, como se de verdadeiros proprietários desse muro se tratassem.
k) Em vários pontos da extensão do murete de tijolos referido em 36 o mesmo excede a metade do muro antes existente, invadindo a metade que fica para o lado do prédio das Autoras, o mesmo sucedendo com a acima referida caleira metálica.
l) O telheiro referido em 25 foi suportado num murete de tijolo que os antecessores dos Réus mandaram construir sobre o muro de pedra solta que delimitava tal prédio do referido em 5.
m) O muro que delimita os prédios referidos em 5. e 19 era o mesmo que delimitava todos os prédios referidos em 18 tendo sido construído para delimitar todas as propriedades do referido U….

IV. Subsunção jurídica
Uma das faculdades reconhecidas ao proprietário é a de murar, valar, rodear de sebes ou tapar de qualquer modo e a todo o tempo o seu prédio (artigo 1356º do Código Civil). Daí que os prédios dos Autores, a que correspondem dois artigos matriciais, um urbano e outro rústico, se encontrem murados, como uma unidade física. A disputa que os opõe aos Réus reside, precisamente, em saber a quem pertence o muro que divide o prédio de ambos.
Não provaram os Autores nem os Réus a construção do muro por si ou pelos antecessores, apesar de ser admissível que essa construção constitua um modo de aquisição originária do direito de propriedade sobre a coisa por via da acessão, se feito em terreno alheio. A disputa não foi, contudo, encarada sob esta perspetiva e apenas se discutiu a aquisição originária da propriedade sobre o muro pela via da usucapião.
Efetivamente, a usucapião produz a aquisição, por efeito da posse, mantida durante certo lapso de tempo, do direito real a cujo exercício ela corresponde. Por isso se afirma que a usucapião é efeito da posse reiterada de um direito real[4]. Contudo, não demonstraram os Autores nem Réus a prática de atos de posse reconduzíveis ao direito de propriedade sobre o muro.
É certo estarem apurados alguns atos de posse quer dos Autores quer dos Réus, por si e antecessores, mas a usucapião, como forma de aquisição originária do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, decorrente de uma situação possessória, exige a sua manutenção durante certo lapso de tempo e com determinadas características (artigo 1287º do Código Civil). O nosso ordenamento juscivilista perfilha um conceito subjectivo de posse, que tem de revestir o corpus, representado pela relação material e permanente com a coisa, e o animus, pela intenção de atuar como se o agente fosse o titular do direito real correspondente.
Os factos relatados não subsumem os atos praticados pelas partes e/ou antepossuidores sobre o muro com a delimitação legal definida e, decerto por isso, a sentença recorrida apelou às presunções de compropriedade dos muros ínsitas ao ordenamento juscivilista. Presunções que visam, exatamente, superar as dificuldades em fazer a prova da propriedade sobre muros muito antigos, dando relevância à forte probabilidade de que essa propriedade seja comum. Na verdade, a identidade de interesses dos proprietários confinantes em relação a um muro divisório fez o legislador partir do pressuposto que o muro foi construído com o contributo de ambos ou que um deles adquiriu posteriormente a meação no muro. É assim que o artigo 1370º/1 do Código Civil impõe a comunhão forçada, facultando ao proprietário de prédio confinante com parede ou muro alheio adquirir nele comunhão, no todo ou em parte, quer quanto à sua extensão, quer quanto à sua altura, pagando metade do valor do solo sobre que estiver construído.
O conceito de muro ou parede integra qualquer construção em pedra ligada por cal ou cimento, mas admite também as pedras soltas, desde que as pedras estejam regularmente dispostas e ofereçam certa adesão e consistência[5]. Portanto, apesar de estar em causa um muro em pedra solta, pode ter sido exercitado direito à comunhão forçada, mas nada foi alegado sobre essa matéria. Ainda assim, os factos provados revelam que Autores e Réus fazem uso do muro.
Por seu turno, o artigo 1371º/1 e 2 do Código Civil define as diversas situações em que se presume a compropriedade do muro, dentre as quais se contam, no que ao caso poderá importar, os muros entre prédios rústicos, ou entre pátios ou quintais de prédios urbanos, situação em que se presumem comuns, não havendo sinal em contrário. Trata-se de uma presunção juris tantum e, por isso, suscetível de prova em contrário (artigo 350º/2 do Código Civil) e, na sua base, está a dificuldade em fazer a prova da comunhão e a probabilidade de que ela exista, dada a identidade de interesses dos proprietários confinantes em relação ao muro ou parede.
Não havendo, no quadro que apreciamos, qualquer sinal em contrário, considerou a sentença recorrida que, à luz dessa presunção, o muro é meeiro. A tanto se opõem os Recorrentes, defendendo que a presunção não tem aqui aplicação, por não estarem em causa prédios da mesma natureza. Enquanto o seu prédio tem uma natureza rústica – entendem que é o prédio inscrito sob o artigo matricial 3043º que confina com o prédio dos Réus – o destes é de índole urbana.
É unânime o entendimento doutrinário e jurisprudencial no sentido de que a diversa natureza dos prédios confinantes não funda a presunção de comunhão do muro ou parede, porque não existem interesses iguais que fazem presumir a construção em comum, que é o que constitui a base da própria presunção[6]. Partindo dessa asserção não é seguro que possa funcionar a presunção de comunhão do muro, uma vez que os prédios das partes parecem não apresentar, prima facie, a mesma natureza. Os prédios dos Autores estão inscritos na matriz sob os artigos 653º urbano e 3043º rústico, mas constituem uma realidade física unitária, com uma área global de 1380 m2, e que, a nascente, confronta, em parte, com os Réus (n.º 5 dos factos provados). Por seu turno, os Réus são donos de um prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 650º, onde existia uma casa, a sul, junto à estrada, e a nascente desta construção e a ela contíguo, havia um telheiro e, no sentido sul/norte, encostado à sua parede a norte, existia uma outra construção mais baixa que aquela e que alinhava com a parede a nascente. Entre esta construção e o muro existia um corredor a céu aberto, configuração que existiu até ser construída a atual casa de habitação dos Réus (n.ºs 19 a 23 dos factos provados). Prédio este que, pelo menos até ao ano de 1984, era composto de casa terra, pátio com ramada e quintal (n.º 17 dos factos provados). Porém, não está demonstrada a atual composição do prédio dos Réus.
Considerando que os dois prédios dos Autores constituem uma realidade unitária, estando ali implantada a sua casa de habitação, antevemos que, do ponto de vista funcional, o logradouro do urbano e o rústico integrarão um quintal ou um logradouro da casa ou até ambas as coisas. Apesar de ignorarmos as precisas circunstâncias deste eventual “logradouro” e/ou quintal do prédio dos Autores, o prédio dos Réus, tal como parece estar hoje configurado, não tem quintal ou logradouro que possa conferir-lhe características comuns aos prédios dos Autores. A atual implantação da casa de habitação dos Réus terá desvirtuado as anteriores características do seu prédio, porque havia um espaço, um corredor a céu aberto entre uma das construções nele existentes – a mais baixa – e o muro divisório aqui em causa. Ainda assim, também não fornecem os autos dados de facto que, em concreto, facultem a qualificação desse espaço. Poderia ser um pátio, mas da factualidade apurada nem a prova foi conduzida nesse sentido nada resulta quanto às características dos espaços existentes nos dois prédios sob cotejo. Desta análise logo redunda que não pode funcionar a presunção de compropriedade do muro divisório.
Como antecipámos, em sede de direito civil, prédio rústico corresponde a uma parte delimitada do solo e às construções nele existentes que não tenham autonomia económica e prédio urbano a qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro. E a esta luz, face à afetação económica dos dois prédios sob cotejo, podemos afirmar que ambos – o dos Autores no seu conjunto – têm uma natureza urbana, por neles terem implantadas construções com autonomia económica.
Donde se entenda que «[E]m conformidade com o critério legal, não devem considerar-se prédios urbanos, mas partes componentes dos prédios rústicos, as construções que não tenham autonomia económica, tais como as adegas, os celeiros, as edificações destinadas às alfaias agrícolas, etc., assim como não devem considerar-se prédios rústicos os logradouros de prédios urbanos, como os jardins, pátios ou quintais. Ao logradouro deve ser atribuída a mesma natureza do edifício a que está ligado (…)»[7].
Sendo indiferente a tipologia da inscrição matricial para a apreciação desta matéria, podemos afirmar que os núcleos dos conceitos de prédios rústicos e urbanos residem na sua afetação económica e esse é o ponto de partida para a qualificação dos prédios[8]. Donde a asserção de que o prédio é rústico ou urbano conforme a habitação seja fundamentalmente um meio de ligação à terra cultivada ou antes a terra constituir apenas um complemento da habitação e não um fim essencial da ocupação da habitação. E, portanto, «[N]ão se pode dizer que um prédio tenha deixado de ser um prédio rústico porque não perdeu a sua destinação autónoma para fins agrícolas com a construção de uma habitação que constitui não uma alteração da destinação económica do prédio mas antes a conjugação dos interesses habitacionais dos proprietários com os interesses económicos da exploração agrícola do prédio»[9].
Mesmo admitindo – e não elementos de facto que para tal bastem – que os dois prédios confrontam, de um e do outro lado do muro, com um logradouro, estamos perante um conceito que a lei não define, mas que vem sendo delimitado como o terreno contíguo a prédio urbano que é ou pode ser fruído por quem se utilize daquele, constituindo um e outro uma unidade. Em suma, o logradouro é um espaço complementar e serventuário de um edifício com o qual constitui uma unidade predial, sendo o prédio urbano, tal como a definição legal, qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro. Nesta perspetiva talvez possamos afirmar que o prédio dos Autores é unitariamente um prédio urbano com um logradouro e é este logradouro que confina com a casa de habitação dos Réus, relativamente à qual está, pelo menos, nessa confinância, excluída a existência de logradouro.
Logo, estando excluída a presunção de compropriedade do muro por não estarem os dois edifícios em confinância (previsão do artigo 1371º/1 do Código Civil), também não quadra a presunção de compropriedade a que alude o n.º2 dessa mesma norma, pois só se presumem comuns os muros entre prédios rústicos, ou entre pátios e quintais de prédios urbanos. Vale por dizer que não está prevista presunção de comunhão para muro divisório entre dois prédios urbanos, mas apenas entre prédios rústicos, e os dois prédios em causa têm natureza urbana, como também não está estabelecida presunção de compropriedade entre um logradouro e um edifício. Aliás, não há presunção de comunhão em relação aos muros que separam prédios rústicos de pátios ou quintais de prédios urbanos ou mesmo em relação aos que separam um pátio de um quintal. Antes «[É] necessário que separem dois pátios ou dois quintais, como resulta, aliás, da própria letra da lei»[10]. Embora, o muro comum seja tido como «o muro divisório de dois prédios rústicos ou urbanos, o qual pertence aos respectivos proprietários e, longe de poder ser dividido entre estes, se destina a perpétua indivisão, pelo menos por tanto tempo quanto durarem as distintas propriedades que ele separa»[11], é inequívoco que ele não se poderá presumir de comum se dividir um edifício de um logradouro de um prédio urbano.
Também não podemos dizer que este muro divisório pertence exclusivamente aos Réus/Recorridos pelo facto de suportar as terras dos Autores. O muro serve de suporte às terras do logradouro do prédio dos Autores, mas esse dado não integra a previsão artigo 1371º/5 do Código Civil, que só faz presumir a propriedade exclusiva do muro no proprietário confinante quando o muro sustenta, em toda a sua largura qualquer construção que esteja só de um dos lados[12]. Como os prédios que confinam de nascente com o muro se situam numa cota inferior e o muro, para além de servir de separador das propriedades com que confina, também serve para suporte das terras que se encontram numa cota superior em 1,43 m, (n.ºs 12 a 14 dos factos provados), cremos não ocorrerem as circunstâncias factuais de tal presunção. Se o muro sustenta qualquer construção que esteja só de um dos lados, não é de presumir a comunhão, dada a falta de interesse que o proprietário vizinho tenha contribuído para a sua construção e, portanto, antes se presume que é da exclusiva propriedade do dono da construção[13] Só que, no caso, o muro não suporta apenas a construção dos Réus, antes prosseguindo para lá da construção e mesmo para além do prédio/prédios dos Autores (n.º 40 dos factos provados).
Há, no entanto, elementos que nos facultam a ilação de que o muro tem sido usado em compropriedade, como seja o facto de a parede poente da casa antiga que existia no prédio dos Réus, antes das obras por estes executadas, a estrutura de um telheiro existente no seu prédio estava cravado nesse muro. Efetivamente está apurado que, em data não concretamente apurada, as Rés procederam construíram um telheiro referido que era suportado em barrotes apoiados em parte no muro (n.os 21, 22 e 25 dos factos provados). Como também houve atos de manutenção do muro por parte dos antecessores dos Autores, com pequenas obras de sustentação do muro, do seu lado, sem a oposição, reparo ou disputa de ninguém, à vista de toda a gente e de modo a ser conhecido por todos os interessados. Também colocaram esteios em cimento que suportam ramada sobre parte do murete construído sobre o muro de pedra solta que confronta com o prédio dos Réus (n.os 29 a 31 dos factos provados). Não obstante estes dados, iteramos, não facultarem, desde logo por falta de prova do necessário hiato temporal da posse, a declaração da aquisição do direito de propriedade do muro por usucapião, estado de facto criado por autores e réus não pode deixar de relevar. Esse poder de facto sobre o muro, traduzido nos atos materiais consubstanciadores do corpus, faz presumir a posse naquele que exerce o poder de facto (artigo 1252º/2 do Código Civil). Portanto, a norma estabelece uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem o corpus, a qual se destina a facilitar a prova do animus. Donde a afirmação de que «[O]s efeitos que derivam exclusivamente da posse têm por base o estado de facto, que é a sua essência»[14]. É a posse que colmata as brechas existentes na ordenação dominial definitiva, pondo fim a situações de indefinição, decidindo do estatuto dos bens»[15].
Por ser difícil, se não impossível, fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente, é que o citado preceito estabelece aquela presunção, pois como se exige o corpus e o animus para efeito de haver posse, e como a prova do animus poderá ser muito difícil, aquela presunção legal presume a posse naquele que exerce o poder de facto. O mesmo é dizer que o exercício do corpus faz presumir a existência do animus[16]. Ora, «o possuidor goza da presunção da titularidade do direito excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse» (artigo 1268º/1 do Código Civil), a significar que a presunção fundada na posse só cede quando existir registo anterior ao início da posse.
Na situação sob análise, não dispomos de factos que ilidam qualquer destas presunções. Como a posse que determina esta presunção da titularidade não é a que produz usucapião, pois esta é uma forma concreta de aquisição originária, esta posse terá de ser aquela a que ainda falta capacidade aquisitiva por carência do decurso de tempo necessário. O mesmo é dizer que uma ação tendente ao reconhecimento do direito de propriedade pode fundamentar-se na presunção de titularidade do direito estabelecida por aquele artigo 1268º/1 do Código Civil[17].
Proposição a que adere a doutrina ao defender que a presunção da titularidade do direito, enquanto efeito da posse, tem grande importância prática, porque facilita ao titular do direito real que não tem elementos que lhe permitam fazer prova em juízo, com segurança, do seu direito. É que «o titular do direito real que esteja na posse da coisa apenas tem que fazer a prova da posse, cabendo aos terceiros o ónus de impugnar a presunção legal. Por isso se diz que a situação do possuidor é, para certos efeitos, mais vantajosa do que a do próprio titular do direito ‘melhor est condicio possidentis’»[18].
Assim enquadrados os factos de que dispomos, cremos estar em condições de decidir que Autores e Réus são comproprietários do muro que divide os seus dois prédios, confirmando a decisão apelada, ainda que a partir de diversa fundamentação jurídica.

V. Dispositivo
Na defluência do exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e confirmar, consequentemente, a sentença recorrida.
Custas a cargo dos Apelantes (artigo 527º/1 do CPC).
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Porto, 04 de junho de 2019.
Maria Cecília Agante
José Carvalho
Rodrigues Pires
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[1] Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª ed., pág. 228.
[2] In www.dgsi.pt: Acs. do STJ de 06/12/2016, processo 437/11.0TBBGC.G1.S1; 08/02/2018, processo 8440/14.1T8PRT.P1.S1.
[3] In www.dgsi.pt: Ac. STJ de 28/04/2016, processo 1006/12.2TBPRD.P1.S1.
[4] Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, 2.ª ed. revista e atualizada, pág. 22.
[5] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, Coimbra Editora, 2.ª ed. revista e atualizada, pág. 244.
[6] Pires de Lima e Antunes Varela, ibidem, pág. 247; Manuel Rodrigues, in RLJ, ano 58º, págs. 386/387; in www.dgsi.pt: Ac. RG de 28/01/2016,processo 213/14.8TBAVV.G1; RL de 01/03/2007, processo 929/07-6;
[7] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 4.ª ed., revista e atualizada, pág. 196.
[8] Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Lex, pág. 274.
[9] Acórdão do STJ de 31/01/1991, in BMJ 403, pág. 416.
[10] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, citado Volume III, pág. 247.
[11] Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, vol. VI, págs. 93/94.
[12] In www.dgsi.pt: Ac. RC de 26/04/2016, processo 170/13.8TBSBG.C1.
[13] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, citado Volume III, pág. 249.
[14] Manuel Rodrigues, A Posse, Estudo de Direito Civil Português, Almedina, 1996, pág. 276.
[15] In www.dgsi.pt: Ac. RC de 16/12/2015, processo 1395/08.3TBLRA.C1.
[16] Acórdão de uniformização de jurisprudência de 14/05/1996, in DR 144/96, Série II, de 24/06/1996.
[17] In www.dgsi.pt: Acs. do STJ de 14/11/2013, processo 74/07.3TCGMR.G1.S1; 21/06/2016, processo7487/11.4TBVNG.P2.S1.
[18] Henrique Mesquita, Direitos Reais, Sumário das Lições ao Curso de 1966-1967, Coimbra 1967, págs. 110/111.