Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1220/17.4T8VNG-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ IGREJA MATOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: RP202011101220/17.4T8VNG-B.P1
Data do Acordão: 11/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Nos termos do art. 185º do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), a insolvência deve qualificar-se como “culposa” ou “fortuita”; para que seja “culposa” exige-se que a situação de insolvência tenha sido criada, ou agravada, em consequência de uma actuação dolosa ou com culpa grave do responsável indiciado.
II - A culpa pressupõe uma conduta pessoal em que se materialize um domínio do facto, não podendo ser valorado como culposo um comportamento sobre o qual não se detenha qualquer controlo.
III – Uma administradora de facto e de direito que se furta deliberadamente aos contactos com o administrador de insolvência, encerra as duas lojas em que a empresa exerce a sua actividade em 2015 e nada requer, pese a existência de um passivo acumulado, quanto à insolvência da mesma, a qual apenas vem a ser solicitada em 2017 por uma sua trabalhadora, age de molde a preencher as duas circunstâncias previstas no art.º 186º do C.I.R.E., uma na alínea i) do seu nº 2, e outra na alínea a) do nº 3 da citada norma, relativas à qualificação da insolvência em causa como culposa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal Colectivo da Relação do Porto

I - Relatório
Por apenso aos autos de insolvência em que foi declarada insolvente a sociedade comercial “B…, Lda.”, no âmbito do incidente de qualificação da insolvência, veio o Sr. Administrador da Insolvência apresentar parecer, propondo a qualificação da insolvência como culposa, com base nas circunstâncias previstas no art. 186º, n.º 2, alíneas a), d) e i), e n.º 3, do Código das Sociedades Comerciais, indicando como afectados C… e D….
Alegou, em síntese breve, que remeteu carta registada com aviso de recepção à gerente D…, reiterando o dever previsto no n.º 1 do art. 24º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e solicitando a entrega de vários documentos, tendo a carta sido devolvida com a menção “Objecto não reclamado”. Para além disso, apesar da tentativa de contacto pessoal com a mesma, não o conseguiu, apenas tendo conseguido obter os documentos junto da Autoridade Tributária e Aduaneira e após levantamento do sigilo fiscal. A insolvente apresentou resultados negativos nos anos de 2013 e 2014, sendo que já em 2013 o passivo era manifestamente superior ao activo. A situação de insolvência verifica-se, pelo menos, desde 2012 e agravou-se posteriormente, não tendo sido identificados quaisquer bens pertença da devedora, apesar de a insolvente ter, a 31 de Dezembro de 2014, activos fixos tangíveis no montante de 65.028,46 euros e inventário no montante de 4.945,28 euros. A insolvente também não apresentou a Declaração Modelo 22 IRC e a IES/DA referentes aos anos de 2015 e 2016, nem depositou as contas relativas ao mesmo período e encerrou os estabelecimentos comerciais, pelo menos, até 30 de Setembro de 2015.
O Ministério Público acompanhou o parecer do Sr. Administrador da Insolvência [cfr. parecer de 5 de Fevereiro de 2019].
*
O requerido C… deduziu oposição, alegando nomeadamente que a gerência esteve sempre a cargo dos seus pais, E… e D….
Também a requerida D…, ora recorrente, deduziu oposição. Alegou que apenas foi gerente de direito, por imposição do seu falecido marido, que nunca praticou qualquer acto com ou sem relevo na actividade da insolvente, sendo certo que a gerência de facto sempre foi detida pelo seu falecido marido, impugnando os factos vertidos no parecer do Sr. Administrador da Insolvência.
Foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento, tendo após sido proferida sentença, ora sob recurso, a qual, na sua parte dispositiva, ora se reproduz:
Decisão.
Nestes termos, decido:
a) Qualificar a insolvência da devedora “B…, Lda.” como culposa;
b) Declarar afectada por tal qualificação D…;
c) Decretar a sua inibição para administrar patrimónios de terceiros pelo período de 3 (três) anos;
d) Decretar a sua inibição para o exercício do comércio, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de 3 (três) anos;
e) Condenar a afectada B… a indemnizar os credores da insolvente no montante dos respectivos créditos, incluídos na lista de credores reconhecidos apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência (cfr. apenso A), até às forças do respectivo património;
f) Absolver do pedido o requerido C….
*
Custas do incidente pela afectada pela qualificação, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (arts. 303º e 304º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, art. 527º, n.º 1 e n.º 2, do Código de Processo Civil, e art. 7º, n.º 4, do Regulamento das Custas Processuais).
*
Inconformada com a decisão, dela recorreu D…, apresentando as respectivas alegações e formulando as conclusões que agora se reproduzem:
CONCLUSÕES
A. O presente recurso tem por base a sentença da Meritíssima Juiz “a quo” cuja decisão acima se reproduziu.
B. Entende a apelante que a Meritíssima Juiz a quo interpretou de forma errada a prova produzida em sede de audiência de Julgamento, designadamente os depoimentos das testemunhas, e mormente as declarações do Exmo. Senhor Administrador de Insolvência, bem como a prova documental junta aos autos, o que levou o Tribunal a quo a dar como provados factos que deveria ter dado como não provados e o inverso.
C. Da errónea apreciação da prova produzida e gravada, resultou, por isso, errada a decisão acerca da matéria de facto, com relevância para a decisão da causa, que deverá ser distinta da proferida pelo Tribunal a quo.
PRIMEIRA CONCLUSÃO:
D. O Tribunal a quo deu como não provado os artigos 9.º, segunda parte 10.º, 11.º, 12.º, 20.º, 22.º, 23.º, 24.º, 26.º, 27.º, 28.º, 29.º, segunda parte, 30.º, 31.º, 47.º e 52º da oposição da requerida D….
E. O Tribunal a quo deu como não provado que recorrente foi apenas gerente de DIREITO, pelo que, não praticou qualquer acto com ou sem relevo na identificada empresa, daí que não tenha procedido com dolo ou culpa grave; que a recorrente foi e soube agora que ainda é apenas gerente de DIREITO da sociedade “B…, LDA.” pelo que, NUNCA DETEVE e NEM DETÉM, em nenhum dos períodos de vida da sociedade, a gerência de FACTO; quem deteve a gerência de FACTO foi sempre o Exmo. Senhor E…, de quem a recorrente é viúva, tendo este falecido no dia 1 de Março de 2018; O facto de a recorrente ter sido nomeada como gerente de direito teve origem numa decisão unilateral – imposição – por parte do Exmo. Senhor E…, que, como já se referiu, era seu marido à data da constituição da gerência; porque lhe foi imposto pelo seu ex-marido, mas sempre sem qualquer percepção ou consciência dos efeitos ou resultados de tais actos; ex-marido da recorrente exercia poder marital com autoridade despótica e com violência física e verbal, tendo a recorrente sido vítima de violência doméstica, factos foram corroborados pelos depoimentos das testemunhas F… (sistema Bailios com o n.º 2020601112208_15043169_3995032, ao minuto 37:12 e ao minuto 37.55 a 38:26) e Cabo G… da “GUARDA NACIONAL REPUBLICANA” (sistema Bailios com o n.º 20200601124111_15043169_3995032, ao minuto 0:52 a 0:59 e aos minutos 2:22 a 2:26, 3:20 a 3:37, do sistema Bailios com o n.º 20200601124111_15043169_3995032).
F. Provou-se que quem decidia quem ocupava os cargos da sociedade era o Exmo. Senhor. E…, o que foi certificado de forma assertiva e sobremaneira relevante para os autos, pela testemunha H…, questionada pelo Tribunal a quo sobre se o ia ao estabelecimento referiu, ao minuto 3:53, que “às vezes ia…sim”, e mais adiante, refere peremptoriamente ao Mandatário da ora recorrente, sobre quem lhe pediu para ceder a sua quota na empresa, aos minutos 9:32 a 9:47, “quem me pediu para me ceder a quota? ah…Sr. C1…” in sistema Bailios n.º 2020060112553_15043169_3995032.
G. A prova da gerência de direito deveria ter assentado, assim, numa presunção judicial face aos factos dados como provados e não provados, tendo por base a alteração, inclusive por aditamento, da matéria de facto a efectuar pelo Tribunal ad quem, face pedido infra pela recorrente.
H. In adicio, o Tribunal a quo deveria ter aquilatado, pois não era difícil, outro factor sobremaneira relevante para entender e decidir que a recorrente não é e nunca foi gerente de facto. Com efeito, foi dito perante o Tribunal a quo pela testemunha F… (minuto 11:50 até 12:02 da gravação do sistema 202006112208_15043169_3995032) que a recorrente lhe transmitiu que ia abrir uma loja nova, só dela e na sequência do facto de ter sido agredida pelo marido, daí que se fosse separar do mesmo (minutos 48:32 a 48:37 e minutos 49:10 a 49:18 da mesma gravação), o que também foi corroborado pela testemunha Cabo G… da “GUARDA NACIONAL REPUBLICANA” (minutos 4:47 a 5:01, no sistema Bailios 20200601124111_15043169_3995032).
I. Assim e recorrendo a uma presunção judicial – provada pelos aludidos depoimentos das testemunhas, pelos próprios documentos, uma vez que nenhum demonstra que a recorrente interveio como gerente –, nos termos supra recortados, deveria o Tribunal a quo ter dado como provado que “a requerida D… é apenas gerente de Direito e não de facto”, pois não faria sentido ser a efectiva gerente e sócia da insolvente e «abrir» um novo estabelecimento, acresce que o marido dela decidira a qualidade de sócio da H… e de gerente do C…, o que inculca que o mesmo fez à recorrente, desde logo pelo facto desta sofrer de violência doméstica, que anda sempre associada a fenómenos de subserviência (facto notório e da experiência comum), motivos pelos quais não lhe devia ter imputando a afectação da insolvência culposa.
J. Assim deve ser acrescentado aos factos dados como provados pelo Venerando tribunal ad quem o seguinte: “A requerida D… comunicou à requerente F… que ia abrir um estabelecimento seu no Porto, bem como que ia separar-se do marido.”.
K. Uma vez que o juiz a quo não levou aos factos dados como provados que a recorrente sofreu de violência doméstica, apesar de se referir a ele na sentença, importa por uma questão de rigor processual acrescentá-lo ao elenco dos factos como provados e com a seguinte redacção:
“a requerida D… foi vítima, pelo menos mais do que duas vezes, de violência doméstica por parte do seu falecido marido, do qual tinha medo e pretendia separar-se”.
L. Devendo, nesta parte, a douta sentença ser revogada e decidindo pelo Venerando Tribunal ad quem como facto provado: “A requerida D… nunca exerceu funções próprias de gerente, nomeadamente, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.”, o que desde já se requer. Em consequência deverá dar-se como não provado que: “A requerida D… exerceu funções próprias de gerente, nomeadamente, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.”.
SEGUNDA CONCLUSÃO:
M. Não ficou como provado que a recorrente violou, reiteradamente, o dever de colaboração, nos termos do 83.º e 186.º, n.º 2, alínea i) do CIRE, o que deve ser concluído e levado aos factos dados como não provados pelo Venerando Tribunal ad quem.
N. Na sentença que declarou a insolvência da “B…, LDA.” foi fixada errada e ilicitamente a morada da gerente D… na sede da insolvente (facto provado q)), ou seja, à Rua …, n.º .., loja R/C, Vila Nova de Gaia, uma vez que o art. 36.º, n.º 1, al. b) do CIRE refere-se à residência e esta não é o domicílio profissional.
O. A residência da recorrente poderia ser encontrada facilmente por recurso ao disposto no art. 236.º do CPC ex vi art. 17.º do CIRE, não tendo sido praticado este acto a decisão é nula e de nenhum efeito, já que a omissão do mesmo influenciou o exame e a decisão tomada (art. 195.º, n.º 1 do CPC ex vi art. 17.º do CIRE), a qual se deixa arguida para todos os legais efeitos.
P. É também nula a sentença em crise, uma vez que não podia a julgadora relevar para a sua decisão este facto que bem sabe que é contrário à lei (art. 36.º, n.º 1, al. b) do CIRE), motivo pelo qual não podia dele conhecer (art. 615.º, n.º 1, al. d, 2.ª parte do CPC), nulidade que se deixa arguida para todos os legais efeitos.
Q. O Exmo. Senhor Administrador de Insolvência, descurando tudo e todos e num comportamento absolutamente negligente, o que não foi sindicado pela negligência do Tribunal a quo, endereçou cartas para uma morada que o próprio decidiu, sem ter nos autos factologia que escorasse a sua decisão, desde logo porque não fora a que o Tribunal a quo fixou à recorrente.
R. A demonstrar, sobremaneira, o desleixo do Exmo. Senhor Administrador, este não endereçou, novamente, missiva nem antes nem depois da devolução da única carta que enviou à aqui afectada, para a outra morada da insolvente, que, entretanto, apurou pelas reclamações de créditos: sita na Rua …, n.º …, 2.º, Vila Nova de Gaia.
S. O Exmo. Senhor Administrador não provou que contactou pessoalmente a requerida, queda-se a dizer que tentou, mas no seu relatório nem identificou a morada, facto que passou totalmente ao lado do julgamento do juiz a quo, sendo certo que também não cuidou de o fiscalizar (art. 58.º do CIRE), mas quando chegou a hora de punir esqueceu-se do seu péssimo labor e o do Exmo. Senhor Administrador.
T. O Exmo. Senhor AI não requereu ao Tribunal a quo que citasse/notificasse a recorrente para juntar aos autos a informação contabilística da sociedade insolvente, o que é sua função e dever, nos termos do n.º 6, do art. 55.º do CIRE.
U. A incúria funcional do Exmo. Senhor AI, à qual o Tribunal a quo decidiu passar uma esponja, é patente no facto de NUNCA ter tentado contactar o filho da recorrente, C…, requerido nos autos, para efeitos de junção dos elementos contabilísticos ou de identificação de contactos da aqui recorrente, conforme o mesmo confessa (sistema Habillus n.º 20200601104504_15043169_3995032(2), dos minutos 3:22 aos 4:07 e aos minutos 4:24 até 16:30).
V. Mas estes atributos da actuação destes intervenientes não se ficam por aqui, uma vez que o Exmo. Senhor AI refere no seu Parecer, e repetiu em sede de depoimento (Sistema Habillus n.º 20200601102629_15043169_3995032(2), aos minutos 4:24 até 16:30) que a informação que obteve do estado económico da insolvente foi através das Finanças.
W. O Exmo. Senhor AI, em negligência funcional, confessou não ter indagado e aquilatado junto da AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA por saber quem era o contabilista certificado da empresa insolvente, que constitui uma diligência elementar [minutos 2:00m a 2:44m do Sistema Habillus 20200601104504_15043169_3995032(2)]. O MP decidiu ser boa companhia do AI e também nada fez. O juiz a quo, como não há duas sem três, decidiu fazer igual e dispensar o seu poder inquisitório.
X. Por todos estes elementos de prova, deveria ter o juiz a quo decidido que não se provou que a recorrente tenha sido notificada para entregar o quer que fosse ao Exmo. Senhor AI, motivo pelo qual não violou os deveres de apresentação e de colaboração e muito menos de forma reiterada, o que deverá ser concluído e decido por esta Veneranda Relação.
Y. Face ao exposto, deverá ser considerado como não provado pelo o Venerando tribunal ad quem o seguinte facto: “Não se provou que o Sr. Administrador da Insolvência tentou contactar pessoalmente com a requerida D…, deslocando-se, para o efeito, aos locais onde estavam instalados os estabelecimentos comerciais da insolvente, sem sucesso.”. Consequentemente deverá retirar-se dos factos provados o facto da alínea w) transitando-a para os factos.
TERCEIRA CONCLUSÃO:
Z. O presente incidente gira também em torno do incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
AA. O Tribunal a quo confunde contas da sociedade com o cumprimento das obrigações fiscais, em concreto dos procedimentos referentes às mesmas.
BB. Como o Exmo. Senhor AI não contactou o contabilista certificado da insolvente não se provou se a insolvente aprovou as contas e as submeteu à fiscalização societária, o que era fácil de provar pela existência ou não dos documentos a que aludem os art. 65.º e 66.º-B do CSC.
CC. Note-se que a norma divide-se em duas injunções sendo que a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, e submetê-las à devida fiscalização, ficou por provar, na medida em que não foi requerida pelo Administrador de Insolvência nem pelo Ministério Público nem ordenada oficiosamente a inquirição do contabilista certificado que poderia dizer se estavam ou não elaboradas as contas.
DD. A fiscalização das contas diz respeito ao órgão de fiscalização societário com competência para o efeito, sempre obrigatório nas sociedades anónimas (art. 420.º do CSC), sendo que nas sociedades por quotas, em princípio, tal órgão revela-se facultativo.
EE. Há que provar primeiro os factos e só depois operar a presunção, ou seja, que efectivamente não foram aprovadas as contas e para isso era necessário inquirir o contabilista certificado, era preciso ter acesso ao livro de actas, o que foi totalmente ignorado pelo Exmo. Senhor AI e pelo MP e pelo Tribunal a quo. Diga-se, sem rodeios, que sem a apreensão da contabilidade (e que era tão fácil de concretizar) não é possível concluir, com o rigor que este incidente merece, que a devedora estava na situação de insolvência, já que o CIRE não assimilou qualquer espécie de «insolvência fiscal».
FF. Não ficou provado que a insolvente incumpriu a obrigação de depositar as contas na Conservatória do Registo Comercial, uma vez que não ficou provado que a mesma tinha um exercício anual correspondente ao ano civil ou o mesmo era diferente com uma duração superior a 18 meses (art. 65.º-A do CSC) – não foi alegado sequer e nenhuma pergunta foi feita ao Administrador de Insolvência a este propósito. A haver atraso quanto às contas de 2015, o mesmo seria de pouco mais do que dois meses de atraso, o que é insuficiente para concluir pela qualificação da insolvência e muito menos pela a afectação da recorrente.
Relativamente às contas de 2016, mesmo que o exercício anual fosse correspondente ao ano civil não ocorria qualquer atraso, uma vez que tal obrigação impendia sobre o Exmo. Senhor AI.
GG. Defronte a falta de prova por demais evidente o Tribunal a quo dar como não provado, face ao que se produziu nos autos, a não verificação do incumprimento e violação do dever de colaboração, não aplicando o art. 186.º n.º 2, al. i) nem o seu n.º 3 do CIRE, nem se provou o nexo de causalidade entre os alegados actos e a insolvência, e este tem de provar-se porque o legislador só presumiu a culpa e não os demais pressupostos de responsabilidade.
HH. Face ao exposto, deverá ser aditado um facto como não provado pelo Venerando tribunal ad quem o seguinte facto: “Não se provou que a insolvente tinha um exercício anual correspondente ao ano civil.”. Dessarte, deveria o Tribunal a quo ter dado como não provado o que provou em no facto T e com a seguinte redacção “não resulta provado o atraso na elaboração das contas anuais, no prazo legal, e da sua submissão à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.”, sentenciando de forma justa e cabimentada, o que será agora pelo Venerando tribunal ad quem.
QUARTA CONCLUSÃO:
II. O que está em causa é qualificar a insolvência e esta só é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. Os n.os 2 e 3 não prescindem da alegação e prova do nexo de causalidade, da consequência da actuação, o qual não é presumido, sob pena de estar em causa o princípio da defesa, o mesmo é dizer a violação da tutela jurisdicional efectiva, mediante processo equitativo, contido nos n.os 1 e 4 do art. 20.º da CRP, e mais especificamente os seus corolários do direito ao contraditório e da proibição da indefesa.
JJ. Todavia, além de não se terem alegado circunstanciadamente os factos integradores da facti specie das normas das alíneas referenciadas pelo juiz a quo dos n.os 2 e 3 do art. 186.º do CIRE, também não se provaram os mesmos, como se deixou já alegado e demonstrado circunstanciadamente, daí que nem a culpa ficou presumida. Todavia e em caso algum ficou provado o nexo de causalidade entre o facto e o resultado, motivo pelo qual deverá ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra que qualifique como fortuita a insolvência, com todas as legais consequências.
QUINTA CONCLUSÃO:
KK. Não foi feita prova alguma sobre o incumprimento generalizado – o juiz a quo não disse que considerava que a insolvente se encontrava em incumprimento generalizado e muito menos justificou esse juízo –, nem se provou que a devedora estava efectivamente insolvente em face dos seus elementos contabilísticos, uma vez que os mesmos não se encontram junto aos autos.
LL. O juiz a quo apenas elencou as dívidas da insolvente, as quais são insuficientes, desde logo, para concluir que a mesma encontrava-se em situação técnica de insolvência e muito menos para se poder integrar as mesmas ao incumprimento generalizado a que alude a al. g) do art. 20.º do CIRE, sendo certo que não é mera cessação da actividade que determina a insolvência imediata.
MM. O estabelecimento da insolvente estava inserida no mercado, detinha bons equipamentos e serviço prestado pela insolvente era um negócio que tinha muita procura e clientela, a chamada “freguesia”, ou seja, era um negócio que gerava liquidez e lucro e que tinha rentabilidade financeira. Portanto, bastava que o seu marido reabrisse o estabelecimento que a insolvente poderia obter capacidade reditícia e a prová-lo estão as reclamações de créditos oferecidas e reconhecidas nos autos.
NN. Veja-se que ficou provado nos factos gg), jj), kk), ll) e mm) que, além da “AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA” e da “SEGURANÇA SOCIAL” os únicos credores da insolvente eram a “I…”, a “J…” e a requerente da insolvência (ex-trabalhadora), num total de créditos de cerca de EUR. 7 000,00, créditos com datas de vencimento em 2015/2016. Este melting pot económico constituído por clientela, mercadoria, stock e créditos, aliado ao reduzido valor do passivo, ao que acresce a possibilidade de acordos de pagamentos alargados com os credores, inclusive com a Fazenda Nacional e Segurança Social, evidencia que o devedor consciencialize que essa situação é facilmente resolúvel. Note-se que não há sinais nos autos que a AT e a SEGURANÇA SOCIAL tivessem já intentado acções executivas de cobrança, o que demonstra que a pressão financeira não era premente, dada a possibilidade de se firmar acordos de pagamento.
OO. O valor global das reclamações de créditos é que objectivamente importa e é relevante para apurar a situação de insolvência de uma pessoa (colectiva ou singular) e a sua real afectação a situação económico-financeira. Não existia o dever de apresentação à insolvência, além de não existir, na medida em que os créditos, de montante diminuto, (reclamados e reconhecidos) não o justificavam, a ter de ser cumprido nunca seria pela recorrente, mas sim pelo marido E…, verdadeiro gerente, de facto, da insolvente.
PP. Acresce que não se provou que foi a requerente que encerrou o estabelecimento sito na Rua …, n.º .., loja R/C, …, Vila Nova de Gaia, uma vez que as testemunhas só se referiram ao estabelecimento sito na Rua …, n.º …, 2.º, Vila Nova de Gaia, motivo pelo qual o mesmo deverá ser aditado aos factos não provados pelo Venerando tribunal ad quem e com a seguinte redacção: “não se provou quem ou por ordem de quem foi encerrado o estabelecimento sito na Rua …, n.º .., loja R/C, …, Vila Nova de Gaia.”.
QQ. Por fim, não está demonstrada, com um mínimo de segurança, a participação da recorrente na definição e/ou execução dos aludidos actos que conduziram à insolvência da sociedade em causa.
RR. O Tribunal a quo não valorou as evidências, ou falta delas, tendo interpretado erradamente os factos que ele próprio deu como provado.
SS. Sempre que a recorrente refere que não se provou os factos que identificou como relevantes, reporta-se à prova negativa, ou seja, aquela que não se verifica – ao contrário do que deveria ocorrer – qualquer documentação nesse sentido nem foi produzida prova testemunhal, sendo que quanto a esta deverá o Venerando Tribunal a quo ouvir toda a prova produzida no sentido de concluir que efectivamente não se provou pelo depoimento das testemunhas o que era devido provar-se.
TT. Tudo o exposto revela o desajuste da decisão.
UU. Assim foram violados, entre outros, os artigos 18.º, 83.º, 186.º, n.º 1, n.º 2, al. i) e n.º 3, todos do CIRE e ainda o art. 20.º da CRP e o princípio da indefesa.
Termina a apelante peticionando o provimento do presente recurso e a revogação da sentença recorrida e, por via disso, ser a insolvência qualificada como fortuita sendo revogadas as decretadas medidas de inabilitação e inibição para o exercício do comercio.
Subsidiariamente, pretende que sejam procedentes as nulidades da decisão recorrida com as devidas consequências legais.
Foi deduzida resposta pelo Ministério Público onde se pugna pela improcedência do recurso formulado, formulando-se as conclusões que igualmente se reproduzem:
1.ª - De harmonia com o disposto no nº 1 do art.º 186º do C.I.R.E. “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.
2.ª - De acordo com o nº 2 do mesmo artigo considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de facto ou de direito, tenham praticado algum dos factos previstos nas diversas alíneas desse número. O que significa que neste nº 2 se consagram presunções de insolvência culposa.
3.ª - Tais presunções, atento o advérbio “sempre” utilizado no preceito e a ausência daquele na redação do nº 3 do mesmo artigo, leva a considerá-las como presunções “juris et de jure”, inilidíveis.
4.ª – Já as situações contempladas nº o n.º 3 do citado art.º 186º meras situações de presunção juris tantum de culpa grave do administrador ou gerente que incumpriu algum dos deveres mencionados nas suas alíneas a) e b), para qualificar a insolvência como culposa, torna-se necessário demonstrar o nexo de causalidade entre aquela omissão culposa e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
5.ª - Os factos dados como provados na douta sentença recorrida mostram-se devidamente fundamentados e alicerçados na conjugação de toda a prova produzida, não merecendo qualquer reparo.
6.ª – Da conjugação dos meios de prova resultam verificados os factos ínsitos nas alíneas i) do nº 2 e a) do nº 3, do art.º 186º do C.I.R.E.
7.ª - Verificada qualquer uma das situações tipificadas nas alíneas do nº 2 do art.º 186º do C.I.R.E., deve o julgador, sem mais exigências, qualificar a insolvência como culposa.
8.ª - Ainda assim, a recorrente não ilidiu as presunções de culpa grave contidas nas alíneas a) e b) do nº 3 do art.º 186º do CIRE, cabendo-lhe o ónus de as ilidir.
9.ª - O comportamento da recorrente criou ou, pelo menos, agravou a situação de insolvência de B…, Lda.
10.ª - Como tal, bem andou o tribunal recorrido em qualificar a insolvência como culposa e declarar como afetado a aqui recorrente, com as legais consequências.
11.ª - Pelo que o recurso não merece provimento, devendo a douta sentença recorrida ser mantida nos seus precisos termos, por nenhum agravo ter feito à Lei.
*
III – Questões a Apreciar
O presente recurso encontra-se, naturalmente, delimitado no seu objecto pelas alegações e conclusões da apelante.
Donde, haverá que atentar na impugnação da matéria de facto que foi feita e, em qualquer caso, apurar se a presente insolvência deve ser qualificada, no que à apelante concerne, como culposa ou fortuita.
*
III – Factos Provados
Foram apurados pela primeira instância os seguintes factos:
a) A sociedade comercial “B…, Lda.” está registada na Conservatória do Registo Predial com o NIPC ………, com o capital de 5.010,00 euros, com sede na Rua …, n.º .., loja r/c, …, Vila Nova de Gaia, tendo por objecto instituto e clínica de beleza, estética e spa, actividades de bem-estar físico;
b) Foi constituída a 19 de Março de 2008, tendo como sócios K…, C… e L…, cada um com uma quota no valor nominal de 1.670,00 euros, tendo todos os sócios sido designados gerentes;
c) Através da inscrição com a ap. 54, de 8 de Fevereiro de 2011, mostra-se registada a cessação de funções de gerentes dos sócios identificados na alínea anterior;
d) A 8 de Fevereiro de 2011 mostram-se registados os seguintes actos:
- Transmissão da quota titulada por C…, no valor nominal de 1.670,00 euros, a favor de D…;
- Transmissão da quota titulada por L…, no valor nominal de 1.570,00 euros, a favor de D…;
- Transmissão da quota titulada por L…, no valor nominal de 100,00 euros, a favor de E…;
- Transmissão da quota titulada por K…, no valor nominal de 1.670,00 euros, a favor de D…;
e) Através da inscrição com a ap. 42, de 8 de Fevereiro de 2011, está registada a designação como gerente da sócia D…;
f) A 16 de Fevereiro de 2011 mostram-se registados os seguintes actos:
- Transmissão das quotas tituladas por D…, nos valores nominais de 1.670,00 euros, 1.670,00 euros e 1.570,00 euros, a favor de H…;
- Transmissão da quota titulada por E…, no valor nominal de 100,00 euros, a favor de H…;
g) A 14 de Junho de 2013 mostram-se registados os seguintes actos:
- Transmissão das quotas tituladas por H…, nos valores nominais de 1.670,00 euros, 1.670,00 euros e 1.570,00 euros, a favor da sociedade comercial “M…, Lda.”;
- Transmissão da quota titulada por H…, no valor nominal de 100,00 euros, a favor de C…;
h) Através da inscrição 39, de 31 de Julho de 2013, mostra-se registada a cessação de funções de gerente de D…;
i) Através da inscrição com a ap. 40, de 31 de Julho de 2013, está registada a designação como gerente de C…;
j) A 13 de Agosto de 2014 foi registada a transmissão da quota titulada por C…, no valor nominal de 100,00 euros, a favor de D…;
k) Através da inscrição com a ap. 13, de 13 de Agosto de 2014, mostra-se registada a cessação de funções de gerente de C…;
l) Através da inscrição com a ap. 14, de 13 de Agosto de 2014, está registada a designação como gerente da sócia D…;
m) O último registo de prestação de conta é de 18 de Julho de 2014, relativo ao exercício de 2013;
n) A sociedade comercial “M…, Lda.”, com o NIPC ………, foi constituída a 21 de Maio de 2013, com sede na Rua …, n.º .., loja R/C, …, Vila Nova de Gaia, tendo como objecto compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, arrendamento de bens imobiliários, com o capital de 1.000,00 euros, dividido em duas quotas, uma no valor nominal de 990,00 euros, titulada pela sociedade comercial “N…, Unipessoal, Lda.” e outra no valor nominal de 10,00 euros, titulada por C…, sendo gerente D…;
o) O pedido de insolvência da sociedade comercial “B…, Lda.” foi apresentado a 9 de Fevereiro de 2017, por F…, com os fundamentos que aqui damos por reproduzidos;
p) A sociedade comercial “B…, Lda.” não deduziu oposição e, a 7 de Junho de 2017, foi proferida sentença que declarou a situação de insolvência, transitada em julgado a 3 de Julho de 2017;
q) Na sentença a residência da gerente D… foi fixada na sede da insolvente;
r) A 14 de Julho de 2017, na sequência do requerimento do Sr. Administrador da Insolvência de 13 de Julho de 2017, junto a fls. 64 e seguintes do processo principal, foi proferido despacho que determinou o levantamento do sigilo fiscal, autorizando-se a Autoridade Tributária e Aduaneira a prestar ao mesmo os documentos e as informações descritos a fls. 65 verso e 66, cujo teor se dá aqui por reproduzido;
s) A Autoridade Tributária e Aduaneira, nessa sequência, remeteu a certidão de dívidas, informação sobre património, declarações modelo 22 e declarações de informação empresarial simplificada (IES) relativas aos exercícios de 2013 e 2014, juntas a fls. 96 e seguintes do processo principal;
t) A insolvente não entregou à Autoridade Tributária e Aduaneira as declarações modelo 22 e IES relativas aos exercícios de 2015 e 2016;
u) O Sr. Administrador da Insolvência, por carta registada com aviso de recepção, datada de 29 de Junho de 2017, remetida na mesma data para a Rua …, n.º …, …, Vila Nova de Gaia, cuja cópia se encontra junta a fls. 86 verso e 87 do processo principal, solicitou à requerida D… a entrega de documentos e informações, incluindo livros, registos contabilísticos e respectivos documentos de suporte;
v) Tal carta foi devolvida com a menção “Objecto não reclamado”;
w) O Sr. Administrador da Insolvência tentou contactar pessoalmente com a requerida D…, deslocando-se, para o efeito, aos locais onde estavam instalados os estabelecimentos comerciais da insolvente, sem sucesso;
x) A insolvente tinha dois estabelecimentos comerciais, um sito na sede, na Rua …, n.º .., loja R/C, …, Vila Nova de Gaia, e outro sito na Rua …, n.º…, 2º, Vila Nova de Gaia;
y) O estabelecimento sito na Rua …, n.º .., loja R/C, …, Vila Nova de Gaia, encerrou em Abril de 2015, ao passo que o estabelecimento sido na Rua …, n.º …, 2º, Vila Nova de Gaia, encerrou no final de Setembro de 2015;
z) A insolvente desenvolveu a sua actividade até 30 de Setembro de 2015, não o tendo feito desde tal data;
aa) O volume de negócios nos anos de 2013 e 2014 foi, respectivamente, de 5.546,99 euros e de 2.453,79 euros;
bb) A despesa com pessoal e serviços externos ascendeu aos montantes, respectivamente, de 18.048,88 euros e de 31.662,89 euros;
cc) A insolvente nos anos de 2013 e 2014 apresentou resultados negativos nos montantes, respectivamente, de 22.335,27 euros e de 41.009,91 euros;
dd) A insolvente, a 31 de Dezembro de 2014, tinha contabilisticamente registados activos fixos tangíveis no montante de 65.028,45 euros e inventários no montante de 4.945,28 euros;
ee) A insolvente, nos anos de 2013 e 2014, apresentou capital próprio negativo (no montante, respectivamente, de 125.793,42 euros e de 166.803,33 euros), sendo que, no ano de 2013, apresentou resultados transitados negativos no montante de 108.468,15 euros;
ff) Nos anos de 2013 e 2014 o passivo contabilisticamente registado ascende aos montantes, respectivamente, de 214.137,14 euros e de 250.215,05 euros;
gg) Foram incluídos na lista de credores reconhecidos, a qual não foi objecto de impugnação, créditos no valor global de 47. 482,01 euros;
hh) O crédito da Autoridade Tributária e Aduaneira, no montante global de 19.054,39 euros, relativo a IVA de 2009, 2010, 2015 e 2016, coimas, custas, IRS de 2015, IRC de 2014 e 2015, tem datas de vencimento de 31 de Agosto de 2013, 16 de Fevereiro, 20 de Julho e 21 de Setembro de 2015, 6 de Setembro e 6 de Dezembro de 2016, 3 de Março e 6 de Junho de 2017;
ii) O crédito do Instituto da Segurança I.P. ascende ao montante de 21.641,65 euros está vencido desde 20 de Abril de 2011;
jj) O crédito da “I…, S.A.”, no montante de 1.120,87 euros, está vencido desde 19 de Janeiro de 2015;
kk) Tal crédito diz respeito às seguintes facturas e locais de consumo:
· Local de consumo sito na Rua …, n.º .., Loja, …, Vila Nova de Gaia:
- Factura n.º ……….., emitida a 28 de Novembro de 2014, vencida a 18 de
Dezembro de 2014, no valor de 77,87 euros;
- Factura n.º ……….., emitida a 28 de Dezembro de 2014, vencida a 19 de Janeiro de 2015, no valor de 92,15 euros;
- Factura n.º ……….., emitida a 28 de Janeiro de 2015, vencida a 18 de Fevereiro de 2015, no valor de 98,35 euros;
- Factura n.º ……….., emitida a 1 de Março de 2015, vencida a 9 de Abril de 2015, no valor de 124,97 euros;
- Factura n.º ……….., emitida a 12 de Março de 2015, vencida a 9 de Abril de
2015, no valor de 86,17 euros;
· Local de consumo sito na Rua …, n.º …, 2, Vila Nova de Gaia:
- Factura n.º ……….., emitida a 11 de Agosto de 2015, vencida a 31 de Agosto
de 2015, no valor de 127,04 euros;
- Factura n.º ……….., emitida a 11 de Setembro de 2015, vencida a 30 de
Setembro de 2015, no valor de 127,04 euros;
- Factura n.º ……….., emitida a 11 de Outubro de 2015, vencida a 30 de
Outubro de 2015, no valor de 122,41 euros;
- Factura n.º ……….., emitida a 11 de Novembro de 2015, vencida a 17 de
Dezembro de 2015, no valor de 139,93 euros;
- Factura n.º ……….., emitida a 23 de Novembro de 2015, vencida a 17 de
Dezembro de 2015, no valor de 39,72 euros;
ll) O crédito da “J…, S.A.”, no montante de 665,43 euros, está vencido desde 12 de Agosto de 2015;
mm) O crédito da requerente do processo de insolvência, F…, no montante de 4.999,67 euros, emerge de contrato de trabalho, foi reconhecido por sentença proferida a 15 de Dezembro 2016, transitada em julgado a 23 de Janeiro de 2017, na acção emergente de contrato individual de trabalho instaurada pela mesma contra a insolvente, que correu termos com o número 4605/16.0T8VNG, no Juízo do Trabalho de Vila Nova de Gaia – Juiz 3;
nn) A insolvente, a 13 de Julho de 2015, comunicou à credora F…, a cessação do contrato de trabalho, com efeitos para o dia 30 de Setembro de 2015, com fundamento em extinção do posto de trabalho;
oo) O processo de insolvência foi encerrado por insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente por decisão de 27 de Setembro de 2018, transitada em julgado;
pp) O requerido C… nunca exerceu funções próprias de gerente, nomeadamente, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência;
qq) A requerida D… tem residência na …, n.º …, 2º, Vila de Gaia.
Pelo tribunal apelado, nenhum outro facto ficou provado, nomeadamente, os alegados nos artigos 9º, segunda parte, 10º, 11º, 12º, 20º, 22º, 23º, 24º, 26º, 27º, 28º, 29º, segunda parte, 30º, 31º, 47º e 52º da oposição da requerida D….
*
Fundamentação de direito
Encontra-se cumprido o disposto no artigo 640º do CPC relativamente ao ónus de impugnação da matéria de facto que recai sobre o recorrente.
Importa, pois, reapreciar os factos controvertidos questionados nas doutas alegações.
Porém, em ordem a melhor escalpelizar os diversos argumentos aduzidos pela apelante, por facilidade metodológica, iremos decompor a apreciação do presente recurso a partir das cinco conclusões acima enunciadas aquando das conclusões das alegações de recurso.
Primeira Conclusão:
Assenta a alegação neste segmento na circunstância de que a apelante nunca teria exercido funções próprias de gerente e que esta tarefa pertencia apenas ao seu marido; a D… agiria apenas por medo deste de quem era vítima de violência doméstica.
Assim, entende o apelante que deveria ter sido acrescentada à matéria de facto dada como provada o seguinte:
“A requerida D… comunicou à requerente F… que ia abrir um estabelecimento seu no Porto, bem como que ia separar-se do marido.”
“A requerida D… nunca exerceu funções próprias de gerente, nomeadamente, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.
“A requerida D… foi vítima, pelo menos mais do que duas vezes, de violência doméstica por parte do seu falecido marido, do qual tinha medo e pretendia separar-se”.
Concomitantemente, deveria ter sido dado como não provado o seguinte facto:
“A requerida D… exerceu funções próprias de gerente, nomeadamente, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”
Pois bem. Procedemos à análise de toda a prova constante dos autos incluindo, naturalmente, a audição dos diversos depoimentos das testemunhas arroladas e do administrador da insolvência, para além da reapreciação dos documentos juntos.
Aventemos, afoitamente, desde já, que nada nos aparta da convicção expressa pelo tribunal “a quo”. Na verdade, julgamos ter sido a prova produzida clara no sentido de que a recorrente exerceu, durante vários anos até à cessação da actividade da empresa, funções como gerente; o seu marido é que estaria mais afastado da mesma, tendo explorado, sim, de modo próximo, mormente uma agência de publicidade e um restaurante. Neste sentido, veja-se como foi elucidativo o depoimento, detalhado e convincente, de F…, funcionária da empresa em causa nos autos durante cerca de sete anos (desde 2008) e requerente da insolvência. Esta depoente explicou como a D… era a “patroa” em tudo, nos horários, nas instruções laborais, na marcação de férias e como era ela que se deslocava várias vezes por semana aos estabelecimentos, nomeadamente para levantar o dinheiro apurado, levando-o consigo.
Apenas no final da vida da empresa é que começou a referir os problemas com o marido – sem prejuízo de constar há muito que este a agredia – mas foi a própria apelante que, com a ajuda de terceiros, decidiu apoderar-se de equipamentos e outros materiais da empresa que fez seus com evidente prejuízo para os credores, incluindo os próprios trabalhadores da empresa.
Em relação a esta mesma depoente foi a apelante que lhe pagou algumas parcas prestações laborais em atraso mas, tal como fez com o tribunal (no caso, com as cartas enviadas, nomeadamente no âmbito deste processo) também acabou por a evitar, desaparecendo de contacto. Esta atitude por parte da D… que se prolongou no tempo levou a que, entretanto, tivesse transcorrido o prazo para accionar a Segurança Social o que impediu a F… de ser minimamente ressarcida dos vencimentos e demais créditos laborais em atraso. Note-se que a apelante assim agiu depois de dizer à testemunha que lhe “ia pagar os direitos todos”, à razão de € 350,00 por mês.
A própria H…, também ex-funcionária da empresa, pese o facto de ter levado emprestado (segundo disse) vários materiais da empresa insolvente para uma loja que depois veio a abrir em seu nome, admitiu igualmente que a D… era “mais patroa” que o marido e que este ia lá às vezes mas não dava quaisquer indicações sobre o serviço; só a recorrente o fazia.
As situações de violência doméstica - um terrível flagelo social - que existiram e foram referenciadas na decisão sob escrutínio, nada têm a ver, em concreto, com a matéria em discussão nos autos, sendo que, obviamente, não impossibilitam que a recorrente possa ter gerido, de direito e de facto, uma qualquer empresa, como efectivamente o fez.
E fê-lo nessa dupla vertente, administração de facto e de direito, quer pelo que resulta do registo comercial, quer por ser ela quem exercia, com autonomia e liderança, o giro da sociedade.
Nada a alterar, portanto, neste segmento; igualmente secunda-se a não inclusão do facto de a requerida D… ter comunicado à requerente F… que ia abrir um estabelecimento seu no Porto, bem como que ia separar-se do marido, pois a mesma resulta inócua para o circunstancialismo em discussão nos autos.
Segunda Conclusão:
Neste âmbito, coloca a apelante, essencialmente, em causa a violação do dever de colaboração, nos termos do 83.º e 186.º, n.º 2, alínea i) do CIRE. Assim, porque teria sido fixada erradamente a morada da gerente D… na sede da insolvente e não foi feita uma indagação sobre qual seria essa residência, a decisão recorrida seria nula porque essa omissão influenciou o exame e a decisão tomada (art. 195.º, n.º 1 do CPC ex vi art. 17.º do CIRE), sendo ainda nula a sentença uma vez que não podia o tribunal relevar para a sua decisão este facto contrário à lei (art. 36.º, n.º 1, al. b) do CIRE), motivo pelo qual não podia dele conhecer (art. 615.º, n.º 1, al. d, 2.ª parte do CPC).
Para reforço desta tese, alega-se que o Senhor Administrador agiu com “incúria funcional” o que explicaria esta situação; donde deveria ainda dar-se como não provado que o Sr. Administrador da Insolvência tivesse tentado contactar pessoalmente com a requerida D…, deslocando-se, para o efeito, aos locais onde estavam instalados os estabelecimentos comerciais da insolvente, sem sucesso.
Segundo a recorrente, “da não prova deste facto decorrerá, na alegação da apelante, a nulidade da decisão em apreço.”
Apreciando. Desde logo, importa sublinhar que a morada da sede da empresa era justamente a que constava como morada da gerente da insolvente na respectiva certidão permanente. Depois, o depoimento do Sr. Administrador explica, a nosso ver, a situação com que se confrontou nos autos. Uma empresa cujas lojas, em … e ..., foram, pura e simplesmente, abandonadas pelos seus representantes, em particular pela ora apelante. Essa demissão de responsabilidades levou à situação detalhadamente descrita pela funcionária F… que viu como a sua “patroa” se furtava a quaisquer contactos consigo, como credora, mas também com o tribunal, como se foi dando conta ao longo dos meses em que a empresa simplesmente encerrou, num período normalmente de férias, em Agosto/Setembro de 2015, sem mais ter a responsável assumido qualquer contacto ou tarefa.
A única ocorrência descrita foi a retirada de valiosos equipamentos pertença da empresa a par de outros materiais, como tapetes, por exemplo, numa afectação do património da empresa.
Quanto à actuação do Senhor Administrador bastará, a nosso ver, atentar no seu respectivo depoimento bem como, em particular, no relatório junto aos autos, referido na douta resposta do Ministério Público, em que são juntas fotos dos imóveis onde se situavam ambos os estabelecimentos explorados pela sociedade insolvente. Na sua investigação, o administrador apenas logrou falar com um vizinho de uma das lojas, que explorava uma garrafeira no rés-do-chão e que lhe explicou que o estabelecimento da insolvente, que funcionou no 2º andar, tinha encerrado há cerca de dois anos. O Administrador da Insolvência deslocou-se a ambos os locais que eram, afinal, as moradas associadas aos estabelecimentos de acordo até com as facturas da I… emitidas em nome da insolvente, mas nunca a conseguiu localizar nem esta nunca o procurou.
Perante esta atitude da apelante, bem andou o tribunal em dar como provado a alínea w) devendo manter-se incólume a factologia vertida neste contexto.
As pretensas nulidades da sentença, consequentemente, igualmente inexistem atenta a prova feita dos factos descritos e a devida actuação dos envolvidos, em particular do Senhor Administrador.
Terceira Conclusão:
Invoca ainda a requerente inexistir qualquer incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.

Salvo o devido respeito, não vemos como possa pôr-se em causa também este incumprimento. Durante os anos de 2014 e 2015, nada foi feito pela apelante neste domínio; a empresa tinha passivos superiores aos activos já desde 2013 mas não manifestou qualquer preocupação em procurar equilibrar as contas em causa ou, pelo menos, em elabora-las, conferindo a necessária transparência à administração. Apurou-se, ao invés, como foi referido pelo Senhor Administrador que, mesmo junto das Finanças, apenas foram apresentadas declarações nos anos de 2013 e 2014; depois nada foi entregue até ao ano de 2017. Tudo isto num contexto em que o passivo, já nos anos de 2013 e 2014, se apresentava elevado, cerca de 250 mil euros, bastando atentar-se que somente os gastos com pessoal excediam em 4 a 5 vezes as receitas obtidas.
A realidade económica da empresa, face ao caso concreto, não podia ser mais eloquente aquando da tramitação desta insolvência – recorde-se que o presente processo inicia-se em 2017. Totalmente encerrada desde 2015, com a responsável ausente e furtando-se às diligências dos credores e do tribunal para a encontrar, com passivos acumulados e sem receitas, sem cumprir elementares obrigações fiscais, o Administrador da Insolvência agiu, correctamente, à luz dos dados descritos e desta factualidade eloquente e definitiva.
A insolvente tem dívidas à Autoridade Tributária e Aduaneira vencidas desde Agosto de 2013 e à Segurança Social vencidas já desde Abril de 2011; são ainda credores a “I…, S.A.” vencidas entre Dezembro de 2014 e Dezembro de 2015 e a J…, S.A.” está vencida desde 12 de Agosto de 2015, sendo certo que a insolvente encerrou os seus estabelecimentos comerciais e deixou de ter qualquer actividade, pelo menos, a partir de Outubro de 2015. Acresce que o último registo de prestação de contas diz respeito ao exercício do ano de 2013, quando a insolvente desenvolveu a sua actividade efectiva até 30 de Setembro de 2015, muito embora a sua situação de insolvência date, a nosso ver, de 2013/2014.
Donde, o incumprimento em causa, a par de outros, ocorreu e foi devidamente demonstrado; não haverá, pois, que aditar qualquer facto não provado relativo às contas anuais, conforme requerido.
Quarta e Quinta Conclusões:
Segundo a requerente não se teria apurado o nexo de causalidade entre a actuação culposa desta e a presente situação de insolvência. Esta alegação prende-se com a quinta conclusão a qual assenta na invocação - talvez prévia a esta dita ausência do nexo de causalidade - segundo a qual não existiria sequer prova alguma sobre o incumprimento generalizado, nem se teria demonstrado que a devedora estava efectivamente insolvente.
Pelo que fomos expondo acima, face à concreta realidade apurada desta empresa, há muito encerrada e sem gerar quaisquer receitas desde 2015 até 2017, não poderíamos dissentir mais quanto a esta última conclusão.
De qualquer forma, anote-se que, no que ao caso interessa, a qualificação da insolvência como culposa deveu-se ao preenchimento de duas circunstâncias previstas no art.º 186º do C.I.R.E., uma na alínea i) do seu nº 2, e outra na alínea a) do nº 3 da citada norma.
Num enquadramento jurídico atinente ao caso em apreço, temos que segundo o art. 185º do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), a insolvência pode obter a qualificação de “culposa” ou de “fortuita”.
Nos termos do art. 186º, nº1 do CIRE “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.
O legislador não se limitou, no entanto, a definir os pressupostos gerais da qualificação da insolvência como culposa, pois, nos seus nºs 2 e 3 definiu diversos comportamentos dos administradores/gerentes do devedor que importam, no caso que nos interessa, ou seja os que resultam das nove alíneas do nº 2 do citado art. 186.º, a presunção «juris et de jure» (presunção inilidível) de que são culposos, sendo, igualmente culposa, sem mais, a insolvência.
Nos termos da sentença apelada, entendeu-se que relevaria, tendo em conta os factos provados, a al. i) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE que estabelece que será culposa a insolvência quando o devedor tiver incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do art.º 188.º.
Tal preenchimento desta alínea decorreria da circunstância de o administrador da insolvente (não só de direito como também de facto) ter-se furtado a todas as notificações do tribunal na morada por si indicada, o que se mostrava necessário para este apurasse as causas da situação de insolvência da sociedade e destino dado aos bens desta, muitos entretanto retirados da empresa. Está em causa a violação do dever de colaboração previsto pelo art.º 83.º do CIRE designadamente, para elaboração do parecer para efeitos de qualificação da insolvência. Por outro lado, sabe-se que a recorrente foi notificada da sentença declaratória da insolvência e das obrigações que sobre si impendiam, entre as quais a colaboração com o Administrador da Insolvência a qual manifestamente não prestou.
Alem da verificação desta alínea e da culpa da requerente aliada ao devido nexo de causalidade, temos que resultou demonstrado ainda o incumprimento pela recorrente do dever de requerer a insolvência que veio apenas a ser requerida por uma trabalhadora em 09/02/2017, cerca de dezoito meses após o encerramento das lojas, numa altura em que não se elaboravam ou depositavam as contas, perante uma decorrente total ausência de receitas.
A recorrente agiu, comprovadamente, com culpa pois tinha o domínio do facto; não se coibiu de fazer promessas, incumpridas, de pagamentos a seus funcionários, nem se absteve de ordenar a transferência de equipamentos e outros materiais para uma outra loja, assumindo que a empresa não exercia qualquer actividade mas olvidando de prestar a colaboração exigida para os trâmites do seu encerramento ou, previamente, de requerer uma insolvência que tornou evidente a partir da paralisação da actividade empresarial. Anote-se, como se explica na resposta às alegações, que o último depósito das contas foi em 18/07/2014, relativo ao exercício de 2013, omitindo-se o depósito das contas dos exercícios de 2014 e 2015; não se tratam, salvo o devido respeito, dos poucos meses alegados no recurso.
Sabe-se que a D… detinha poderes efectivos de gestão, praticamente únicos pois o marido focar-se-ia noutras empresas, em nada sendo alheia às condutas que, activa ou passivamente, conduziram à situação de insolvência, criando-a ou, no mínimo, agravando-a (vide artigo 186º, nº1 do CIRE).
Como, a nosso ver, abundantemente se alcança do exposto, concluímos dever considerar-se demonstrada a culpa grave da apelante na situação de insolvência verificada.
Donde, improcederá o recurso, confirmando-se integralmente a sentença apelada com fundamentos que em nada dela dissentem.
*
Sumariando o decidido (art. 663.º, nº7 do Código do Processo Civil):
………………………………
………………………………
………………………………

V – Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso deduzido, confirmando-se a decisão proferida.
Custas pela apelante.

Porto, 10 de Novembro de 2020
José Igreja Matos
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues