Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1641/16.0T9AVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RAÚL CORDEIRO
Descritores: NOTIFICAÇÃO PARA JULGAMENTO
CONVENÇÃO DE AUXÍLIO JUDICIÁRIO EM MATÉRIA PENAL ENTRE OS ESTADOS MEMBROS DA COMUNIDADE DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA
FORMA DE CONTIFICAÇÁO
IMPOSSIBILIDADE DE NOTIFICAÇÃO
Nº do Documento: RP202206081641/16.0T9AVR-A.P1
Data do Acordão: 06/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A contumácia não representa qualquer sanção para o arguido, mas apenas uma forma de desincentivá-lo da sua condição de “revelia”.
II - Chegado o processo à fase de julgamento, o mesmo não pode prosseguir sem que o arguido seja notificado do despacho que designa dia para a audiência, na medida em que este é o momento em que o contraditório tem de ser exercido em toda a sua plenitude, conforme determinação constitucional (n.º 5 do art. 32.º da CRP).
III - Já assim não sucede com a impossibilidade de notificação da acusação, pois que se os procedimentos de notificação da mesma ao arguido se revelarem ineficazes, o processo prossegue os seus termos (n.º 5 do art. 283.º do CPP).
IV - A notificação ao próprio arguido não significa que tenha que ser feita pessoalmente, ou seja, por contacto físico entre o notificante e o notificando, pois que a lei estabelece que pode ser efetuada mediante “contacto pessoal” ou por “via postal registada” (cfr. arts. 113.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 313.º, n.º 3, parte inicial, do CPP).
V - Entre a República Portuguesa e a República de Cabo Verde vigora a Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, assinada na Cidade da Praia em 23 de novembro de 2005, a qual foi aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 46/2008 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 64/2008 (DR, I Série, de 12-09-2008).
VI - De acordo com tal Convenção, o auxílio entre os “Estados Contratantes” compreende, além do mais, a “notificação de atos e a entrega de documentos”, incluindo a notificação de arguidos [art. 1.º, n.º 2, als. a) e d)], sendo o pedido cumprido, em regra, em conformidade com o direito do Estado requerido, podendo, contudo, ser cumprido em conformidade com as exigências da legislação do Estado requerente, se este expressamente o solicitar (art. 4.º).
VII - A mesma Convenção estabelece os requisitos do pedido de auxílio (art. 9.º), sendo que a notificação de atos pode efectuar-se “mediante simples comunicação ao destinatário por via postal” ou, se o Estado requerente o solicitar expressamente, “por qualquer outra forma compatível com a legislação do Estado requerido” (n.º 2 do art. 11.º), estabelecendo também quanto à forma como é feita a prova da notificação (n.º 3 do mesmo art. 11.º).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1641/16.0T9AVR-A.P1

CONFERÊNCIA DE 08-06-2022
I
Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
Nos autos de Processo Comum Singular n.º 1641/16.0T9AVR, do Juízo de Competência Genérica da Mealhada, foi proferido despacho, em 28-02-2022, com o seguinte teor (no que agora releva):
“O arguido AA não prestou Termo de Identidade e Residência nos presentes autos.
Dos autos resulta que o arguido é notificado da acusação na morada indicada pela Embaixada de Portugal na ... (onde o arguido se encontra inscrito) mais concretamente na localidade de ..., Avenida ..., ..., inscrito naquela Secção Consular – vide fls. 953, veio o AR, assinado, que faz fls. 967.
Notificado para esta morada, veio o arguido juntar Procuração a fls. 966 onde indica esta morada como sendo a da sua residência em Cabo Verde.
Notificado para aquela morada do despacho que designou dia para a realização da audiência de julgamento, veio a carta devolvida com a informação que não atendeu – fls. 1097 e posteriormente que estava fora do país – cfr. fls. 1117.
Por conta destas informações, no início da audiência de julgamento considerou-se o arguido, que se fez ausente, não notificado e os autos seguiram para a sua notificação, desconhecendo-se o seu atual paradeiro.
Foi notificado por editais, para se apresentar em juízo no prazo de 30 dias o que não chegou a acontecer.
O tribunal desenvolveu as diligências necessárias para a notificação do arguido nas moradas conhecidas.
Dos elementos constantes dos autos, concluímos pela verificação de todos os legais pressupostos para a declaração de contumácia.
Assim, e tendo em conta o disposto no art. 335.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CPP, declara-se o arguido contumaz. (…)” - (ref.ª 120407617, de 28-02).
*
Descontente com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido AA, tendo apresentado a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:
1.ª Como se verifica dos artigos 311.º e ss. e 335.º do Cód. Proc. Penal, são pressupostos da declaração de contumácia:
a) - a dedução de uma pretensão punitiva reconhecida por despacho que receba a respetiva acusação e designe dia para julgamento (nos termos do artigo 312.º);
b) - a impossibilidade de notificação desse despacho ao arguido seu destinatário, depois de efetuadas todas as diligências adequadas para a determinação do seu paradeiro;
c) - a sua notificação por editais para se apresentar em juízo, num prazo até 30 dias, sob pena de ser declarado contumaz;
d) - a sua não apresentação dentro do mesmo prazo e, obviamente,
e) - a não extinção da pretensão punitiva, nomeadamente, por efeito de prescrição, pois, se houver, ainda que depois do despacho que designa dia para julgamento, por não ter havido nenhuma causa de suspensão do prazo daquela, concretamente, por a acusação não ter sido notificada (artigo 120.º, alínea b), do Cód. Penal) ou o mesmo prazo não ter sido interrompido, por não ter havido constituição de arguido (artigo 121.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código) ou notificação da acusação (alínea b) do mesmo artigo), é óbvio que a declaração de contumácia não pode ser proferida, pois, então, o processo deverá - tem de ser - arquivado, precisamente, por já não haver procedimento, por este se ter extinguido.
2.ª A não prescrição do procedimento criminal é, pois, um dos pressupostos da declaração de contumácia, verdadeiramente, o primeiro.
3.ª O que, no caso, assume especial relevância, ponderando que se encontra pendente recurso do despacho que negou a verificação dessa causa, afirmando a efetivação da notificação da acusação deduzida e unicamente motivadora da constituição do Recorrente como arguido, apenas com base em:
a) - a carta registada enviada, para essa notificação, em Cabo Verde e como se ainda se estivesse perante território português, ter sido recebida por uma tal BB e
b) - o Advogado subscritor da presente motivação, Mandatário dele há mais de 3 anos e sem poderes especiais, nomeadamente, o de confessar o que quer que seja, ter junto a respetiva procuração, dizendo (com base em informação do filho mais velho do arguido) que ele havia sido notificado, apesar de não ter deixado de acrescentar que “não conhecia o conteúdo dos autos” e que, por isso, pretendia consultá-los (fls. 965).
4.ª Sucede, porém, que tanto esse pressuposto, como o que acima se indicou em segundo lugar não se encontram preenchidos.
5.ª O da existência de uma pretensão punitiva não extinta, pelas razões que se indicaram no referido recurso e de que se junta cópia, dando-se a mesma reproduzida para todos os efeitos, sem prejuízo do que ainda se irá dizer.
6.ª O da não realização das diligências indispensáveis para a notificação do despacho que designa dia para julgamento, por nunca ter sido tentada a notificação do mesmo despacho pela única forma que poderia ter sido efetuada, tendo-se preferido praticar atos como se Portugal tivesse poder jurisdicional em Cabo Verde - onde o arguido reside há muitos e muitos anos - e, desta forma, não atendido:
a) - quer ao disposto no artigo 6.º do Cód. Proc. Penal, segundo o qual “a lei processual penal (só) é aplicável (…) em território estrangeiro nos limites definidos pelos tratados, convenções e regras do direito internacional”;
b) - quer ao preceituado no artigo 111.º, n.º 3, alínea b), do mesmo diploma, enquanto diz que a comunicação de atos processuais a praticar no estrangeiro se efetua por carta rogatória;
c) - quer ao estabelecido na Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa:
- que regula, precisamente, a prática de atos processuais penais de um Estado a deverem lugar num outro igualmente aderente à mesma Convenção, em corolário do princípio “par in parem non habet imperium” e, desta forma, no estrito respeito do poder jurisdicional do Estado requerido; e
- cuja aplicação prevalece sobre as disposições do nosso direito interno, por força não só do artigo 27.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (“uma Parte não pode invocar as disposições do seu direito interno para justificar o incumprimento de um tratado”), mas também, e sobretudo, do artigo 8.º, n.º 2, da nossa Constituição.
7.ª De todas estas disposições resulta, com efeito, que a notificação de um despacho que designa dia para julgamento de um arguido que reside em Cabo Verde - bem como de uma acusação - só pode ser efetuada nos termos da mesma Convenção, concretamente e face ao disposto no artigo 4.º dela, nos do artigo 142.º do Cód. Proc. Penal daquele País, que dispõe:
Artigo 142.º
Notificação a arguido, assistente ou parte civil
1. A notificação a arguido, assistente ou parte civil poderá ser feita, pelos meios previstos neste Código, ao respetivo defensor ou advogado.
2. Porém, deve ser feita na própria pessoa do arguido, assistente ou da parte civil, e igualmente ao respetivo mandatário, a notificação da acusação, da dedução de pedido de indemnização civil, do despacho de pronúncia ou não pronúncia ou do despacho materialmente equivalente, do despacho que designa dia de julgamento” (sublinhados e cheios nossos).
8.ª E, por isso, através de uma carta rogatória a expedir àquele País,
9.ª Conforme, aliás, já explicitou o Acórdão desse Alto Tribunal, de 30-06-2021, proferido no processo n.º 343/15.9JALRA-A.C1, a propósito de um arguido que residia em França.
10.ª Nos termos do seu sumário: “I - Residindo o arguido no estrangeiro e sendo a respetiva localização conhecida nos autos, a forma de assegurar a regularidade da notificação do despacho que designa dia para a audiência de discussão e julgamento, quando por outro meio não tenha sido possível notificá-lo, passa necessariamente pela expedição de carta rogatória com acionamento dos mecanismos de cooperação judiciária internacional. II – Não tendo a notificação sido efetuada por essa forma, não estão reunidos os pressupostos para a declaração de contumácia do arguido”.
11.ª E é óbvio que se a notificação do despacho em causa só pode ser efetuada nos termos das disposições citadas, por maioria de razão deve ser realizada a notificação da acusação, já que é ela que define o objeto do processo e, por isso, as balizas dentro das quais o arguido deve defender-se, não valendo, em consequência e também aqui, qualquer notificação por carta registada.
12.ª Ademais, efetuada, no caso, em pessoa diferente do arguido e de identidade desconhecida (sabe-se apenas o nome).
13.ª Arguido, acrescente-se, que só revestiu a respetiva qualidade em virtude da dedução da acusação (artigo 57.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal).
14.ª. E relativamente ao qual nem sequer podia valer a ficção do artigo 113.º, n.º 3, alínea c):
a) - não só por a situação não se enquadrar nele,
b) - mas também por a mesma alínea pressupor a aplicabilidade do respetivo artigo (obviamente, por força do artigo 6.º do Cód. Proc. Penal) e, portanto e como (também) se salienta no aludido Acórdão, que a notificação tenha de ser efetuada em Portugal.
15.ª Acresce que, ao invés do que pretende o Tribunal “a quo” e como bem refere o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, secundado pelo Tribunal Constitucional (Ac. n.º 17/2010, processo n.º 498/09) estamos num domínio em que não há campo para conhecimentos presumidos ou informais, sendo inconstitucional, por violação do princípio da legalidade (artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição) e do direito ao processo devido (artigo 32.º, n.ºs. 1 e 5, da Constituição) o normativo extraído do disposto no artigo 121.º, n.º 1, alínea b), do Cód. Penal, segundo o qual a notificação da acusação nele referida pode ser efetuada por carta registada enviada para o estrangeiro e recebida por terceiro, desde que o mandatário do arguido afirme a sua efetivação, independentemente de incorrer ou não em lapso na mesma afirmação - inconstitucionalidade que se invoca.
16.ª Violaram, pois, os despachos recorridos todos os artigos acima citados.
17.ª Pelo que deve a declaração de contumácia ser revogada e, face à prescrição do procedimento criminal, ser o processo arquivado.
Assim, se fará JUSTIÇA.”
*
Admitido o recurso, respondeu o Ministério Público, dizendo que se verificam os pressupostos legais para ser decretada a contumácia do arguido, pois que o mesmo foi notificado da acusação, através de carta registada com aviso de receção, para a morada conhecida em Cavo Verde, vindo depois a constituir mandatário nos autos, o que significa que teve conhecimento da acusação, da qual deve ser considerado notificado, sendo que as duas cartas depois remetidas para o notificar da data do julgamento vieram devolvidas, a primeira com a indicação de “destinatário ausente” e a segunda com a indicação que se encontrava “fora do país”, pelo que bem andou o tribunal ao determinar a sua notificação edital, não existindo qualquer violação de princípios jurídico-penais nem constitucionais.
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Remetidos os autos a este Tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, sustentando, em síntese, que o arguido não foi formalmente notificado do despacho que designou dia para julgamento, pois que deveria sê-lo, porque residente em país estrangeiro, por contacto pessoal, através da expedição de carta rogatória, devendo, por isso, o recurso ser julgado procedente e, consequentemente, revogar-se o despacho recorrido.
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A tal parecer favorável à procedência do recurso respondeu o recorrente AA, dizendo, em síntese, não haver que trazer à colação o acórdão aí indicado, por se tratar de situação diferente da dos autos, não compreendendo a relutância do Ministério Público (tanto na 1.ª Instância, como na 2.ª) em observar a lei, pois que, no caso, se trata de notificação a efectuar em território estrangeiro, que deveria ser efetuada por Carta Rogatória, devendo extrair-se as devidas consequências da inexistência da notificação de qualquer acusação ao arguido e, consequentemente, da impossibilidade de proceder à notificação de um despacho a designar dia para julgamento que não tem a procedê-lo uma acusação regularmente notificada ao seu destinatário.
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Foi proferido despacho liminar e colhidos os vistos, com apreciação em conferência.
II
As aludidas conclusões delimitam o objeto do recurso (art. 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal – doravante CPP),[1] sendo a única questão a apreciar relativa à verificação dos pressupostos legais para ser declarada a contumácia, com o pretendido arquivamento dos autos, caso se verifique a prescrição do procedimento criminal (esta de conhecimento oficioso).
O presente recurso, atento o seu objeto, versa, pois, exclusivamente sobre matéria de direito (n.º 2 do art. 412.º do CPP).
Relativamente à declaração de contumácia, estabelece o n.º 1 do artigo 335.º do CPP que “Fora dos casos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo anterior, se, depois de realizadas todas as diligências necessárias à notificação a que se refere o n.º 2 e a primeira parte do n.º 3 do artigo 313.º, não for possível notificar o arguido do despacho que designa dia para a audiência, ou executar a detenção ou a prisão preventiva referidas no n.º 2 do artigo 116.º e no artigo 254.º, ou consequentes a uma evasão, o arguido é notificado por editais para se apresentar em juízo, num prazo até 30 dias, sob pena de ser declarado contumaz.”
Por sua vez, estabelece o n.º 1 do artigo 336.º que “A declaração de contumácia caduca logo que o arguido se apresentar ou for detido, sem prejuízo do n.º 4 do artigo anterior.”
E acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito que “Logo que se apresente ou for detido, o arguido é sujeito a termo de identidade e residência, sem prejuízo de outras medidas de coacção, observando-se o disposto nos n.ºs 2, 4 e 5 do artigo 58.º.”
Atenta a configuração legal deste instituto, a contumácia não representa qualquer sanção para o arguido, mas apenas uma forma de desincentivá-lo da sua condição de “revelia”.
Conforme refere António Jorge de Oliveira Mendes, “o instituto da contumácia visa forçar o arguido que, não tendo prestado termo de identidade e residência, dolosamente se furta à notificação do despacho que designa dia para julgamento, a colocar-se à disposição do tribunal” (in Código de Processo Penal Comentado, 3.ª Edição Revista, Almedina, pág. 1052).
Com efeito, chegado o processo à fase de julgamento, o mesmo não pode prosseguir sem que o arguido seja notificado do despacho que designa dia para a audiência, na medida em que este é o momento em que o contraditório tem de ser exercido em toda a sua plenitude, conforme determinação constitucional (n.º 5 do art. 32.º da CRP).
Já assim não sucede com a impossibilidade de notificação da acusação, pois que se os procedimentos de notificação da mesma ao arguido se revelarem ineficazes, o processo prossegue os seus termos (n.º 5 do art. 283.º do CPP).
Ou seja, para o caso presente não é relevante saber se o arguido AA foi ou não notificado na acusação,[2] sendo que o próprio despacho recorrido aparenta contradição a tal respeito, pois que começa por dizer que o arguido “é notificado da acusação” na morada indicada pela Embaixada de Portugal ..., mas na parte final determina que no ato de detenção (se vier a ocorrer) deverá a entidade policial “notificar o arguido (…) do despacho de acusação, com a advertência de que, querendo, poderá requerer a abertura da instrução, no prazo de 20 dias, nos termos do art. 336.º, n.º 3, e 287.º, n.º 1, do CPP…”.
Na verdade, se o Tribunal a quo considera o arguido notificado da acusação através da carta registada, com aviso de receção, que remeteu para Cabo Verde (Av. ..., ..., ...) em 07-01-2021, tendo tal aviso de receção a data de 19-01-2022, sem que no prazo legal tenha requerido a abertura da instrução (art. 287.º, n.º 1, al. a), do CPP), não é legal voltar a notificá-lo, quando vier (se vier) a ser detido, da acusação e com a advertência de que poderá requerer a abertura da instrução, nos termos do citado n.º 3 do artigo 336.º do CPP.
A considerar-se a notificação da acusação efetuada naquela primeira ocasião, a nova notificação da acusação só fará sentido acompanhada do despacho que designa dia para a audiência, nos termos do n.º 2 do artigo 313.º do mesmo Código.
Neste caso, é seguro que não se logrou a notificação do arguido AA do despacho que designou dia para a audiência, nos termos dos mencionados n.º 2 e primeira parte do n.º 3 do artigo 313.º do CPP.
A questão é saber se foram “realizadas as diligências necessárias” para levar a cabo tal notificação, havendo indicação de que o mesmo reside naquela morada, em Cabo Verde. Pelo menos foi essa a informação da Embaixada de Portugal na ... e também ele mencionou essa residência na procuração que juntou aos autos, datada de 20-08-2018, pela qual constituiu mandatário o Ilustre advogado que o vem representando no processo (e subscreveu o recurso).
É seguro que o despacho que designa dia para a audiência, acompanhado de cópia da acusação ou da pronúncia, tem de ser notificado ao próprio arguido, além de ser também notificado ao seu defensor (arts. 113.º, n.º 10, e 313.º, n.º 2, do CPP).
Mas a notificação ao próprio arguido não significa que tenha que ser feita pessoalmente, ou seja, por contacto físico entre o notificante e o notificando, pois que a lei estabelece que pode ser efetuada mediante “contacto pessoal” ou por “via postal registada” (cfr. arts. 113.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 313.º, n.º 3, parte inicial, do CPP).
O Tribunal Constitucional já negou a inconstitucionalidade desta última norma na “interpretação segundo a qual o arguido não tem que ser notificado por contacto pessoal do despacho que designa dia para a audiência de julgamento, podendo essa notificação se efetuada por via postal simples para a morada indicada pelo arguido no termo de identidade e residência” (veja-se o Acórdão n.º 17/2010, de 12-01-2010, publicado no DR II Série de 22-02-2010).
Neste caso tal notificação por via postal simples para a morada indicada no termo de identidade e residência (TIR) não seria possível, pois que o arguido AA não foi sujeito a esta medida de coacção (art. 196.º do CPP), sendo que há indicação de que o mesmo reside no estrangeiro – República de Cabo Verde.
É sabido, tal como alega o recorrente, que a comunicação entre as autoridades judiciárias nacionais e as estrangeiras é feita, em regra, através de carta rogatória (al. b) do n.º 3 do art. 111.º do CPP), sendo que reveste a forma de notificação a convocação para participação em audiência (al. b) do n.º 3 do art. 112.º do mesmo Código).
Mas já não é admissível, em face da jurisprudência obrigatória fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, a expedição de carta rogatória para um arguido prestar termo de identidade e residência no estrangeiro, sendo que tal prestação não faria cessar a contumácia (Acórdão n.º 5/2014, de 26-03, in DR I Série, de 21-05-2014).
Como também refere o recorrente AA, entre a República Portuguesa e a República de Cabo Verde vigora a Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, assinada na ... em 23 de novembro de 2005, a qual foi aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 46/2008 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 64/2008 (DR, I Série, de 12-09-2008).
De acordo com tal Convenção, o auxílio entre os “Estados Contratantes” compreende, além do mais, a “notificação de atos e a entrega de documentos”, incluindo a notificação de arguidos (art. 1.º, n.º 2, als. a) e d)), sendo o pedido cumprido, em regra, em conformidade com o direito do Estado requerido, podendo, contudo, ser cumprido em conformidade com as exigências da legislação do Estado requerente, se este expressamente o solicitar (art. 4.º).
A mesma Convenção estabelece os requisitos do pedido de auxílio (art. 9.º), sendo que a notificação de atos pode efectuar-se “mediante simples comunicação ao destinatário por via postal” ou, se o Estado requerente o solicitar expressamente, “por qualquer outra forma compatível com a legislação do Estado requerido” (n.º 2 do art. 11.º), estabelecendo também quanto à forma como é feita a prova da notificação (n.º 3 do mesmo art. 11.º).
Ou seja, ao contrário do que parece sustentar o recorrente, mesmo quando formulado um pedido de notificação por uma autoridade judiciária nacional a um dos Estados Contratantes, a mesma não é, necessariamente, realizada por contacto pessoal com o notificando, sendo a regra a via postal.
Efetivamente, nem tal resulta da Convenção, nem tão pouco do disposto no artigo 142.º do Código de Processo Penal de Cabo Verde (que o recorrente transcreve), o qual, aliás, tem uma redação muito idêntica à do n.º 10 do artigo 113.º do nosso Código de Processo Penal, pois que em ambos se estabelece que as notificações da acusação, da decisão instrutória e do despacho que designa dia para julgamento são feitas (também) ao próprio arguido. Mas, como já de disse, a notificação na “própria pessoa” (expressão do CPP de Cabo Verde) não significa que tenha de ser uma notificação feita pessoalmente, por contacto físico entre o notificante e o notificando (a própria Convenção estabelece, salvo solicitação em contrário, a notificação por “via postal”).
Voltando ao caso dos autos, evidencia-se que não está aqui em causa uma notificação que tenha sido considerada regularmente efetuada pelo Tribunal, ainda que sem observância das formalidades estabelecidas, no caso sem recurso à expedição de Carta Rogatória às Autoridades Judiciária da República de Cabo Verde.
O que está em causa é, sim, uma tentativa de notificação do arguido na residência conhecida naquele país, através de carta registada expedida pelo Tribunal, com aviso de receção, tendo a primeira delas vindo devolvida com a informação de que não atendeu e a segunda com a indicação de que estava fora do país (fls. 1097 e 1117). Efetivamente, tal como o recorrente invoca e é pacífico no recurso, essas cartas não lhe foram entregues, nem isso a Exm.ª Juíza titular do processo, que subscreveu os despachos agora causa, considerou.
Contudo, nestas tentativas de notificação foram preteridas as formalidades legal e convencionalmente estabelecidas, tal como argumenta o recorrente e é referido no parecer do Exm.º Procurador-Geral Adjunto.
E importa, por isso, perceber quais as consequências que daí podem / devem ser extraídas.
Adianta-se que, seguramente, não será a “inexistência jurídica” do despacho recorrido, que o agora recorrente suscitou após a sua notificação, relativamente ao que foi proferido o despacho de 08-03-2022 (ref.ª 120621979), do qual agora, alegadamente, também recorre. Na verdade, o recorrente não fundamenta, com base em qualquer preceito legal, em que se traduz essa inexistência,[3] sabendo-se que tal figura não está contemplada na legislação processual penal. Trata-se, sim, de uma figura autónoma que tem afloramento pontual no Código Civil, como é o caso do casamento “juridicamente inexistente”, podendo tal inexistência ser invocada por qualquer pessoa e a todo o tempo (arts. 1628.º e 1630.º), sendo que o mesmo Código, como sustenta Carlos Alberto da Mota Pinto, não estabelece a “admissibilidade da figura como categorial geral do negócio jurídico”, ainda que o mesmo afirme “estarmos perante esta figura quando nem sequer aparentemente se verifica o «corpus» de certo negócio jurídico…”.[4]
E no que respeita à sentença,[5] já José Alberto dos Reis referia que “A nossa lei, como aliás as dos outros países, não faz referência alguma a sentenças inexistentes”, dando depois exemplos de sentenças que poderiam ser tidas como tal, concretamente peças com essa denominação proferidas por pessoa não investida de “poder jurisdicional”.[6]/[7]
É, pois, manifesto, sem necessidade de mais delongas, que o despacho recorrido não padece do vício de inexistência jurídica, tal como não padece aquele outro subsequente, nem o processado após a após a expedição da carta para notificação da acusação ao arguido AA.
Questão diferente é a figura da irregularidade, também apontada pelo recorrente, com alusão ao artigo 123.º do CPP.
Dispõe o artigo 118.º, n.º 1, do referido Código que “A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei.” E acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito que “Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular.”
Num caso e noutro trata-se de um ato ou de uma omissão desconformes com a lei processual, daí serem ilegais. Todavia, consoante o grau de gravidade desse desvio à lei, assim haverá uma nulidade (forma mais grave) ou uma irregularidade (forma menos grave). Por outro lado, a nulidade só existirá se estiver “expressamente” prevista na lei, vigorando o princípio da tipicidade das nulidades.
Todas as demais violações ou inobservância das leis processuais caem no “saco” das irregularidades.
Ora, estando em causa a expedição de carta registada, com a aviso de receção, para notificar o arguido, com residência conhecida em Cabo Verde, do despacho que designou dia para a audiência, sendo que a sua notificação deveria ser solicitada às autoridades judiciárias daquele país, através de Carta Rogatória, ao abrigo daquela Convenção de Auxílio Judiciário, manifestamente ocorreu a inobservância de disposições legais do processo penal. Contudo, não existe nenhuma norma processual específica que comine com nulidade essa inobservância das formalidades de notificação, não existindo tal cominação concretamente no n.º 3 do artigo 313.º (que estabelece a forma como a mesma tem lugar), nem nos artigos 111.º (que estabelece quanto à forma de comunicação dos atos processuais), 112.º (relativo à convocação para ato processual) e 113.º (relativo às regras gerais sobre notificações).
Do mesmo modo, tal situação não encontra menção nos artigos 119.º, que especifica as nulidades insanáveis, e 120.º, que enuncia as nulidades dependentes de arguição.
Clarifica-se que não se trata de uma situação enquadrável na alínea c) do artigo 119.º - “A ausência do arguido (…), nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência”. Na verdade, embora o arguido não tenha comparecido na sessão da audiência de 09-11-2021, a mesma não se realizou, precisamente por se ter considerado que o mesmo não se encontrava notificado (ref.ª 118723447).
Estamos, portanto, no campo aberto do regime das irregularidades, em face do estabelecido no citado n.º 2 do artigo 118.º, com sujeição ao regime estabelecido no artigo 123.º do mesmo Código.
Mas a irregularidade cometida não se reporta ao despacho agora recorrido, que declarou o arguido contumaz, mas sim ao despacho proferido na referida sessão da audiência de 09-11-2021. Expliquemos porquê.
Como se verifica pela respectiva ata, o arguido AA não compareceu nessa sessão,[8] dizendo-se aí que o mesmo “nem teria sido notificado, uma vez que a correspondência foi devolvida.”
O seu Ilustre mandatário, agora subscritor do recurso, que esteve presente, referiu, então, que “o último contacto que teve com o arguido foi no ano de 2019 e que nessa altura o mesmo estaria a residir em Cabo Verde, na ....”
Perante isso e na sequência de promoção da Digna Procuradora, a Exm.ª Juíza proferiu o seguinte despacho:
Uma vez que o arguido AA não se encontra regularmente notificado para comparecer no dia de hoje neste Tribunal, defere-se a sua notificação através de editais para se apresentar em juízo, sob pena de não o fazendo ser declarado contumaz – art. 335.º do CPP.
Dá-se sem efeito a presente diligência.”
Como se disse, as duas tentativas de notificação do arguido na morada conhecida em Cabo Verde haviam sido feitas através de carta registada, com aviso de receção, tendo a primeira vindo com a informação de que “não atendeu” e a segunda, que era para aquela sessão da audiência, com a informação de que estava “fora do país” (fls. 1097 e 1117).
Ao determinar-se essa notificação edital, considerou-se que já tinham sido realizadas as necessárias diligências tendentes à notificação do arguido do despacho que designou dia para a audiência, sem que a mesma tenha sido possível, como estabelece o citado n.º 1 do artigo 335.º do CPP.
E nessa altura, estando presente na diligência, o Ilustre mandatário do arguido (com procuração para o representar nos autos desde 20-08-2018, como dela consta), tendo para si que as formalidades legais estabelecidas para a notificação não haviam sido observadas, pois que não havia sido expedida Carta Rogatória, nenhuma outra diligência requereu ou sugeriu com vista à notificação do despacho em causa ao arguido (referindo agora que deveriam ter sido feitas – págs. 2/3 e 20/21 da motivação) e nada arguiu a respeito da irregularidade cometida pelo Tribunal, até essa sessão da audiência terminar (nada consta da ata nesse sentido), conforme impõe o n.º 1 do dito artigo 123.º do CPP.
Considera-se, pois, que a omissão de diligências necessárias à localização ou notificação do arguido, a que se refere o n.º 1 do artigo 335.º, constitui uma mera irregularidade, que deve ser invocada, nos termos do artigo 123.º, n.º 1, ambos do CPP, sob pena de considerar-se sanada.[9]
Ao não ter sido arguida a irregularidade no decurso dessa sessão da audiência, a mesma ficou sanada, não podendo agora ser invocada.
Com efeito, voltamos a referir que a irregularidade foi cometida aquando desse despacho de 09-11-2021, proferido em audiência, e não com o despacho que declarou o arguido contumaz, ora em recurso. Este último, datado de 28-02-2022, ainda que fazendo o “historial” da tramitação relevante ocorrida, limitou-se a afirmar que o arguido não se apresentou em juízo no prazo de 30 dias constante dos editais afixados, como tinha sido determinado, declarando-o contumaz. O mesmo despacho já não postergou, porque entretanto não determinadas e realizadas, “diligências necessárias à notificação”.
Não se olvida que o n.º 2 do mesmo artigo 123.º estabelece que “Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se toma conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado.”
Tal como escreve Fernando Gama Lobo, “há irregularidades que são inclusivamente suscetíveis de pôr em causa direitos fundamentais e a própria verdade material, fim do processo, impondo o seu conhecimento oficioso e gerando efeitos semelhantes aos das nulidades insanáveis.”[10]
Com efeito, se a norma se destina a proteger unicamente interesses de determinado sujeito processual e este não se tiver prevalecido da faculdade de invocar o vício, a irregularidade fica definitivamente sanada, não sendo possível declará-la oficiosamente.
Pelo contrário, se estiver em causa norma que tenha subjacente a concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de Direito material, a irregularidade já pode ser declarada oficiosamente. Neste caso, a extrema gravidade e as consequências da imperfeição que atinge o ato decisório determinam que o tribunal possa declarar a sua ineficácia, independentemente da sua arguição (nulidade insanável ou irregularidades de conhecimento oficioso), dada a ofensa aos mais elementares direitos, liberdades e garantias individuais, sobrepondo-se aos ideais de segurança, celeridade e economia na administração da justiça penal.
Este poder-dever restringe-se aos casos em que esteja em causa o interesse público na boa administração da justiça penal.[11]
Mas, claramente, não é este o caso da irregularidade aqui em causa. Na verdade, com o cometimento da mesma, não foram violados ou sequer ameaçados direitos processuais fundamentais do arguido, designadamente as garantias de defesa e o direito ao contraditório, constitucionalmente consagrados (n.ºs 1 e 5 do art. 32.º da CRP).
Aliás, as diligências prévias e a própria declaração de contumácia destinam-se a por fim à “revelia” e a obrigar o arguido a vir ao processo, para, então, poder exercer esses seus direitos legítimos, ficando o processo suspenso até que tal ocorra, sendo apenas praticados os atos urgentes (n.º 3 do art. 335.º).
O que a lei não permite é que o arguido seja julgado e, eventualmente, condenado sem sequer saber que contra si correu um inquérito, que nele foi deduzida a acusação e que depois foi submetido a julgamento, situação em que não poderia ter exercido esses seus direitos com tutela na Lei Fundamental. E isso só poderia ocorrer se o processo prosseguisse sem que para os seus termos fosse regularmente notificado, especialmente do despacho que recebeu a acusação, com cópia desta, e designou o dia para julgamento. Isso seria um julgamento à revelia, o que a lei e a Constituição de República não consentem.
Daí a obrigatoriedade de sujeição do arguido a TIR, nos termos do artigo 196.º do CPP, ficando, então, ciente, além do mais, de que as notificações lhe são feitas para a morada que nele indicar, exceto se vier a comunicar outra aos autos (al. c) do seu n.º 3).
Como se escreveu no citado Acórdão do STJ n.º 5/2014, a prestação de TIR “assume-se, no enquadramento legal actualmente vigente, como o elemento fulcral de ligação do arguido ao processo, permitindo a sua tramitação até final, e simultaneamente facultando ao arguido o exercício efectivo dos seus direitos de defesa.” E aí se refere também, com inteira propriedade, que a contumácia “só é aplicável nos casos excecionais em que os arguidos não tenham prestado TIR, nem tenha sido possível proceder à sua detenção ou à prisão preventiva, se admissível, para proceder à sua notificação da data da audiência.” (pág. 2915 do DR).
Existe, pois, uma íntima ligação da contumácia à não prestação de TIR. Declarado contumaz, o arguido não pode fazer mais nada no processo além dos atos conducentes à caducidade de tal declaração, designadamente apresentar-se e prestar TIR (citados n.ºs 1 e 2 do art. 336.º).
Mas isso não tolhe os seus direitos e garantias erigidos a estruturantes do processo penal. Pelo contrário, visa permitir o seu pleno exercício e salvaguarda.
Em abono do tudo quanto se disse, só mais uma nota final. Se em vez da carta registada tivesse seguido uma Carta Rogatória para cumprimento da notificação pelas autoridades judiciárias cabo-verdianas, teria havido uma salvaguarda mais efectiva dos interesses e direitos do arguido?
Claramente que não. Na verdade, se não tivesse sido localizado e notificado o efeito seria o mesmo, ou seja, a contumácia. Se tivesse sido localizado e notificado, o julgamento teria sido realizado, onde, aí sim, o arguido poderia exercer plenamente o seu direito de defesa e o contraditório.
Ressalvando tudo quanto já se disse, importa, assim, afirmar que o ocorrido no caso presente, ao contrário do alegado pelo recorrente, não trouxe qualquer prejuízo para os referidos direitos deste com a prolação do despacho recorrido, sendo que o mesmo percute na questão claramente na perspectiva daquilo que está em causa no outro recurso que interpôs (relativo à não notificação da acusação e consequente prescrição do procedimento criminal).
Não podem, pois, proceder os argumentos invocados pelo recorrente AA para lograr a revogação do despacho que o declarou contumaz.
O recorrente invoca também a prescrição do procedimento criminal, pedindo que a mesma seja declarada e os autos arquivados.
A prescrição do procedimento criminal, sendo de conhecimento oficioso, pode, como se afigura evidente, ser declarada durante a vigência da contumácia, pois que se traduz numa causa de extinção da responsabilidade do agente.[12]
Contudo, resulta dos autos (e o recorrente refere-o na motivação) que o arguido AA interpôs um outro recurso, em 10-01-2022, do despacho que “lhe negou a verificação dessa causa”, o qual não terá ainda sido decidido e onde será questionada / discutida a ocorrência da notificação da acusação (vide conclusão 3.ª).
Ora, não tendo a questão da validade ou não da notificação da acusação sido objeto de apreciação pelo despacho recorrido, mas sim pelo despacho de 01-12-2021 (ref.ª 119019916), objeto daquele recurso autónomo, onde está em discussão / apreciação a verificação ou não dessa causa de suspensão e de interrupção da invocada prescrição (arts. 120.º, n.º 1, al. b), e 121.º, n.º 1, al. b), do C. Penal), não pode agora conhecer-se da regularidade ou não de tal notificação.
Com efeito, os recursos representam formas de reação dos sujeitos processuais contra as decisões, suscetíveis de impugnação, consideradas injustas, inválidas ou ilegais, para submissão das mesmas à apreciação pelo Tribunal Superior, sendo a recorribilidade a regra no processo penal (art. 399.º do CPP). Os mesmos constituem, pois, um meio de sindicância das decisões judiciais, cuja finalidade consiste na eliminação dos erros, defeitos ou lapsos de uma decisão através da sua análise por outro órgão jurisdicional.
Assim, não tendo a decisão aqui recorrida apreciado a dita questão da regularidade e validade da notificação da acusação ao arguido, enquanto questão (prévia) relevante para a verificação ou não da prescrição do procedimento criminal, este Tribunal de recurso, se tomasse posição a tal respeito, estaria a apreciar uma questão nova, em contrário do fundamento e da lógica próprios dos recursos.
Essa questão só poderá, assim, ser apreciada no âmbito do recurso interposto pelo arguido do tal despacho de 01-12-2021.
Assim e sem prejuízo do que venha a decidir-se a respeito da (ir)regularidade da notificação da acusação e da prescrição do procedimento criminal, no âmbito desse outro recurso, não pode o presente recurso proceder, pois que não se mostram violados os normativos constitucionais e processuais indicados, vários deles, aliás, tal como boa parte da própria motivação, reportados a tal questão da notificação da acusação (vide conclusão 15.º).
Nesta conformidade, improcede o recurso interposto.
*
São devidas custas pelo arguido no caso de “decaimento total” no recurso, com taxa de justiça a fixar entre 3 e 6 UC, não havendo lugar às mesmas apenas em caso de procedência, mesmo que apenas parcial (arts. 513.º, n.º 1, do CPP e 8.º, n.º 9, do RCP e tabela III anexa).
III
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se o despacho recorrido.
b) Condenar o recorrente nas respectivas custas, com taxa de justiça de 4 (quatro) UC.
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Notifique.
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Porto, 08-06-2022.
Raul Cordeiro
Carla Oliveira
_________
[1] Sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso que pudessem suscitar-se, como é o caso dos vícios indicados no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo Código, mesmo que o recurso verse apenas sobre a matéria de direito (cfr. Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, in DR I, de 28-12-1995).
[2] A ocorrência da notificação da acusação poderá relevar para outros efeitos, designadamente como causa de suspensão e interrupção da prescrição (arts. 120.º, n.º 1, alínea b), e 121.º, n.º 1, alínea b), do C. Penal), como se referirá infra.
[3] O mesmo, no início de tal requerimento, invoca também a “inexistência jurídica de todo o processado após a expedição da carta registada para notificação da acusação.”
[4] Cfr. Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª Edição Atualizada, Coimbra Editora, págs. 608 e 609.
[5] O que seria aplicável aos despachos, em face do disposto nos artigos 613.º, n.º 3, do CPC e 380.º, n.º 3, do CPP.
[6] Cfr. Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, págs. 113 e 114.
[7] O próprio recorrente observa, citando Nichturteil, que “uma sentença ditada por quem não é juiz, não é uma sentença, mas uma não sentença” (pág. 19 da motivação, a final), com o que se concorda plenamente, sendo que no caso presente não é invocado qualquer despacho, designadamente os recorridos, que não tenha sido proferido pela Exm.ª Juíza titular do processo.
[8] Ainda que a expressão de faltoso aí mencionada não seja a mais correta, pois que para estar em falta teria de estar notificado para comparecer.
[9] Assim se entendeu também no Acórdão da Relação de Guimarães de 13-02-2006 - Proc. 2115/05-1 (in www.dgsi.pt), ainda que aí a irregularidade tenha sido arguida atempadamente. [10] In Código de Processo Penal Anotado, 3.ª Edição, Almedina, pág. 193.
[11] Assim João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal Anotado, Almedina, 2019, Tomo I, pág. 1295.
[12] Veja-se, entre outros, o Ac. do STJ de 08-02-2006 – Proc. 2604/07 (in www.dgsi.pt).