Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1546/11.0TBAMT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
VENDA EM EXECUÇÃO
CREDOR RECLAMANTE
CREDOR HIPOTECÁRIO
ADQUIRENTE DE BEM
HIPOTECA
DIREITO DE HABITAÇÃO
CADUCIDADE
Nº do Documento: RP201907011546/11.0TBAMT-B.P1
Data do Acordão: 07/01/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 699, FLS 62-68)
Área Temática: .
Sumário: I - O direito de habitação a que se refere o artigo 1484.º, nºs 1 e 2 do CCivil constitui um direito real de gozo limitador do direito de propriedade o qual não pode ser objecto de penhora.
II - A hipoteca constituída e registada em data anterior ao registo do referido direito de habitação impõe, em caso de venda judicial do imóvel ao credor hipotecário, a caducidade de tal direito face ao preceituado no artigo 824.º, nº 2 do C.Civil.
III - E a isso não obsta o facto de a penhora, com registo posterior ao do referido direito, bem como a venda em execução incidirem apenas sobre a nua propriedade, pois que a hipoteca, sendo indivisível, abrangeu a propriedade plena cujo consolidação se operou na pessoa do credor hipotecário por imposição da caducidade do direito de habitação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1546/11.0TBAMT-B.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este-Juízo Local Cível de Amarante
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
Sumário:
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
Nos presentes autos de execução comum que o B…, S.A. move contra C…, Lda., D…, E… e F… tendo o processo seguido os seus regulares termos veio o credor reclamante G…, SA, com data de 26/09/2018, impetrar requerimento do seguinte teor:
“(…)
Dizer:
em face da venda judicial, nos termos do disposto no artigo 824.2 do Código Civil (CC), caducam os ónus e direitos reais que incidem sobre o bem vendido, com as excepções ali elencadas.
Ora, pese embora o registo do direito de habitação ser anterior à penhora efectuada nos presentes autos, é posterior ao registo da hipoteca que garantia o crédito do adquirente.
Pese igualmente embora o facto de aquele direito não ser incompatível com a nua propriedade e hipoteca desta, a verdade é que, sendo posterior a esta última e subsistindo, redu-la praticamente a uma garantia real insignificante.
Sendo a hipoteca um direito real de garantia e o direito de habitação um direito real de gozo, sendo aquele anterior a este, por que a aquisição do bem que servia de garantia o foi pelo beneficiário dessa mesma garantia, tem aquele ónus de caducar juntamente com os demais.
Em face do exposto vem
Requerer:
que V. Exa. se digne a declarar que o direito de habitação é ineficaz/não oponível ao adquirente, aqui impetrante e, como tal, que caduca nos termos do 824.2 CC, devendo o seu registo ser cancelado.
Consequentemente, mais vem requerer, que V. Exa. se digne a ordenar a notificação do ocupante do imóvel para o entregar no prazo de 10 dias, sob pena de recurso ao mecanismo previsto no artigo 828 CPC”.
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Notificados vieram os executados D…, e E…, pugnar pelo indeferimento do assim requerido.
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Com data de 31/01/2019 o tribunal recorrido exarou despacho do seguinte teor:
“Referência 4907048:
Compulsados os presentes autos, verificamos que o G… adquiriu a nua propriedade do bem imóvel, acontece porém que dada a existência do ónus registado do direito de habitação a favor dos Executados, deverá este permanecer porquanto incide este ónus sobre a totalidade do bem, enquanto que o bem vendido corresponde apenas à nua propriedade, ao abrigo do disposto no artigo 824º do Código Civil.
Assim, indefere-se o requerido cancelamento do registo do direito de habitação, por não se verificarem os pressupostos do artigo 824º, do Código Civil, uma vez que o adquirente apenas adquiriu a nua propriedade, mantendo-se em vigor o registo do mesmo.
Notifique”.
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Não se conformando com o assim decidido veio o G… interpor concluindo do seguinte modo:
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Não foram apresentadas contra-alegações
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se o direito de habitação registado sobre a fracção caducou, ou não, com a adjudicação da mesma ao credor reclamante.

A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Com relevância para a apreciação e decisão da questão suscitada no presente recurso, importa ter em consideração a dinâmica processual supra referida no relatório e ainda a seguinte:
1º)- No âmbito do processo de execução, nos termos do qual são Executados D…, E… e F…, veio o Recorrente reclamar o seu crédito com garantia real (hipoteca) constituída sobre a fracção designada pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão e andar–tipologia T3, do lado esquerdo, voltada a nascente e a poente, com garagem e varanda situada em …, freguesia …, descrita na Conservatória do Registo Predial de Amarante sob o n.º 1017 e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 1194;
2º)- Crédito que foi reconhecido e graduado em primeiro lugar, pela sentença de verificação e graduação de créditos prolatada no apenso da Reclamação de Créditos na data de 06.05.2016;
3º)- Nessa sequência, em sede de negociação particular, o Recorrente adquiriu, pelo valor de 83.225,55 € (oitenta e três mil duzentos e vinte e cinco euros e cinquenta e cinco cêntimos)-valor resultante da avaliação da totalidade do bem imóvel-, na qualidade de credor hipotecário, com a dispensa do depósito do preço, a nua propriedade do referido bem imóvel;
4º)- Sobre tal fracção está registado-19/08/2011, com data posterior ao registo da hipoteca-11/04/2003-e anterior ao registo da penhora[1] -13/11/2014-a favor dos executados D…, e E…, o direito de habitação.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se o direito de habitação registado sobre a fracção caducou, ou não, com a adjudicação da mesma ao credor reclamante.
Como se evidencia da decisão recorrida aí se propendeu para o entendimento de que o referido direito não caducou na medida em que o recorrente e credor reclamante adquiriu, em execução, apenas a nua propriedade do imóvel.
Deste entendimento dissente o banco recorrente baseado na circunstância de que sendo o registo da hipoteca anterior do direito de habitação não pode o mesmo ser-lhe oponível.
Quid iuris?
Como emerge da factualidade supra elencada o Banco recorrente adquiriu em execução, por negociação particular, a nua propriedade da fracção “A” correspondente ao rés-do-chão e andar- tipologia T3 do lado esquerdo, voltada a nascente, sul e poente, com garagem e varanda, situado em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Amarante sob a ficha 1017, freguesia …, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1194 da referida freguesia.
Acontece que sobre tal fracção o banco recorrente tinha registada, com data 11/04/2003, uma hipoteca voluntária.
A questão que agora se coloca é se, tendo a propriedade da referida fracção sido adjudicada ao recorrente em execução, o direito de habitação, com registo de 19/08/2011, caducou ou não.
Analisando.
Preceitua o artigo 824.º sob a epígrafe “Venda em execução”, que:
1- A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.
2- Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.
3 (…)
Como nos parece evidente a expressão “direitos reais”, mencionada no citado nº 2 do transcrito inciso, engloba, entre outros, o direito de habitação como direito real de gozo que é (cfr. artigo 1484.º do Civil).[2]
Ora, no cotejo do nºs 1 e 2 do artigo 824.º dúvidas não existem que na venda em execução os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia.
Portanto, a venda em execução provoca a extinção, dadas certas condições, de direitos de terceiro, sejam eles direitos reais de garantia, direitos reais de aquisição, direitos reais de gozo ou direitos pessoais de gozo.
O efeito extintivo da venda executiva é aquele que realmente a contrasta com a venda realizada através de negócio jurídico e justifica-se pela necessidade de favorecer a posição do adquirente e de rentabilizar a venda dos bens, cujo valor seria desvalorizado ou depreciado caso a transmissão operasse com a oneração resultante dos direitos de terceiro, impedindo a obtenção, através da venda, de um valor o mais aproximado possível do seu valor de mercado.
Se a hipoteca não impede o poder de alienação ou de oneração do imóvel sobre que incide, como decorre do disposto no artigo 695.º do Cód. Civil, não é menos certo que, gozando o titular da hipoteca do direito de preferência decorrente da prioridade do registo, fica o proprietário do bem limitado em relação ao seu direito de propriedade, como seja o de pôr em causa o valor do mesmo.
A hipoteca é a garantia de um crédito em que o valor do imóvel é um elemento fundamental na atribuição do empréstimo que lhe subjaz e na determinação do respectivo quantitativo, a situação do direito de habitação será sempre um dos elementos relevantes dessa avaliação.
Se sobre o imóvel incide um direito de habitação devidamente registado, o credor hipotecário pode conhecer dessa circunstância e essa qualidade é-lhe oponível, por ser anterior ao da constituição da hipoteca.
Se, pelo contrário, se sobre o prédio não incide o referido direito de habitação e o imóvel está livre, a constituição do referido direito posteriormente ao registo da hipoteca, vem piorar a situação do credor hipotecário, situação esta com que o mesmo razoavelmente não podia contar, pois a constituição do direito de habitação é posterior à hipoteca.
No caso em apreço o registo da hipoteca-11/04/2003-é muito anterior ao registo do direito de habitação-19/08/2011-, e por sua vez o registo da penhora-13/11/2014-é muito posterior ao registo do referido direito de habitação.
Daqui resulta que não se põe em causa que o se direito de habitação tivesse sido constituído e registado antes de ter sido constituída e registada a hipoteca e realizada a penhora, não caducaria.
Porém se o referido direito de habitação foi constituído e registado depois da constituição da hipoteca, verdadeiro direito real de garantia, e antes da penhora, o citado direito caduca com a venda executiva da fracção ao exequente enquanto credor hipotecário nos termos do citado artigo 824.º nº 2 do C.Civil.
E contra isto não se argumente que o recorrente adquiriu apenas a nua propriedade da fracção em causa, como se afirma na decisão recorrida.
Com efeito, como referem Pires de Lima e Antunes Varela[3] “Ao contrário do que acontece com o usufruto, para o qual vigora o princípio da livre disposição (artº 1444º), o uso e habitação está sujeito à regra da intransmissibilidade. Não sendo transmissíveis, nenhum destes direitos poderá também ser onerado com qualquer garantia real (penhor, hipoteca, etc)”.
Ora, não sendo possível a penhora do referido direito de habitação evidentemente que a penhora tinha que incidir apenas sobre a nua propriedade da fracção assim como a respectiva venda, mas isso não obstaculiza a que a propriedade plena sobre a fracção se venha a consolidar no adquirente por força da caducidade do referido direito de habitação nos termos supra expostos.
Vejamos.
Posteriormente à constituição e registo da hipoteca os proprietários executados D…, e E… doaram o imóvel e reservaram para si o direito de habitação.
Ficou, assim, dividido o direito de propriedade em dois direitos: a nua propriedade e o direito de habitação.
Acontece que este desdobramento da propriedade não afectou a hipoteca sobre o imóvel, visto que o seu registo é anterior ao registo dos direitos resultantes daquele desdobramento e incidiu sobre a propriedade plena.
Com efeito, a hipoteca repercute-se de modo diverso em função do direito real do autor hipotecante.
Se constituída pelo proprietário pleno que, posteriormente, doou o mesmo bem a terceiros e constituiu para si um direito real de gozo sobre o imóvel, esta cisão do direito, não prejudica a posição jurídica do credor hipotecário. Com efeito, mercê da prioridade do registo (cfr. artigo 6º do CRP), e atento o disposto no artigo 696.º do C. Civil nos termos do qual “salvo convenção em contrário a hipoteca é indivisível, subsistindo por inteiro sobre cada uma das coisas oneradas sobre cada uma das partes que as constituam (…)” a hipoteca incide sobre a propriedade plena.
A hipoteca como direito real de garantia que é, goza do atributo de sequela, pelo que e enquanto subsistir, acompanha as vicissitudes do bem sobre que incide habilitando o seu titular a atingir a coisa onde esta se encontrar. O credor hipotecário tem o poder actuar sobre a coisa que lhe foi afecta, sem lhe ser oponível titular de direito real posteriormente constituído e registado.
Desta sorte o direito hipotecário não se subordina à permanência do domínio do imóvel na mesma pessoa; é na pretensão erga omnes que se manifesta com absoluta clareza o carácter real deste direito de garantia, isto é, a hipoteca abrange o bem hipotecado em todas as suas transformações futuras.
Ora, no caso dos autos, a hipoteca incidiu sobre o bem na sua plenitude, ou seja, sobre a propriedade plena que englobava a nua propriedade e o direito de habitação que, por lhe ser posterior, é em relação ao credor hipotecário ineficaz.
Efectivamente, como salienta Lebre de Freitas[4], “a penhora não pode abranger o direito real de gozo do terceiro, limitando o seu objecto ao direito de propriedade limitada do executado. Mas a subsistência do direito do terceiro pode representar prejuízo para o credor reclamante com garantia constituída antes da oneração da propriedade plena (...). por esta razão, o artigo 824.º, n.º 2 do C. C. estatui a caducidade do direito do terceiro (...)” (sublinhado nosso).
Anote-se o que a este respeito diz também Orlando de Carvalho[5] “há subjacente à perspectiva do credor a possibilidade de, não sendo pago, vir a ser-lhe adjudicada essa coisa; ou, de maneira mais correcta, há subjacente a estes jura in re aliena a possibilidade para os reais acumuladores de conseguirem uma “redistribuição” das propriedades existentes que satisfaça o seu “jus” de reais apropriadores. (...) Quer isto dizer que os direitos reais de garantia são também aproximações do pleno domínio, sendo principalmente em tal veste que ajudam à já referida função de darem a medida exacta da ordenação efectiva dos bens: corrigindo a imagem, com certeza mais idílica, que oferece a distribuição dos direitos reais de gozo” (sublinhado nosso).
É claro que neste caso concreto não se pode dissociar a posição processual do Banco recorrente enquanto adquirente/adjudicatário da sua posição de credor hipotecário.
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Procedem, desta forma, todas as conclusões formulados pelo recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente por provada e, consequentemente, revogam o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que defira o impetrado pelo banco recorrente com data de 26 de Setembro de 2018, ordenando o cancelamento do registo do direito de habitação que incide sobre a fracção e a notificação do seu ocupante para proceder à sua entrega.
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Custas pelos executados apelados (artigo 527.º, nºs 1 e 2 do CPCivil).
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Porto, 01 de Julho de 2019.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] A penhora incidiu sobre a nua propriedade da referida fracção sendo do seguinte teor o respectivo auto: “Nua propriedade sob a fracção A correspondente ao rés-do-chão e andar-tipologia T3 do lado esquerdo, voltada a nascente, sul e poente, com garagem e varanda, situado em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Amarante sob a ficha 1017, freguesia …, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1194 da referida freguesia”.
[2] O legislador português define o direito de uso e habitação no artigo 1484º do C.C. nos seguintes termos: “1. O direito de uso consiste na faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respectivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família. 2. Quando este direito se refere a casas de morada, chama-se direito de habitação.
[3] In Código Civil, anotado, vol. III, 1987, pg. 551.
[4] In Estudos Sobre Direito Civil e Processo Civil, Coimbra editora.
[5] In Direito das Coisas, Coimbra 1977, pág. 343-344.