Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6245/13.6TBVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CORREIA PINTO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
PRESSUPOSTOS
JUROS
Nº do Documento: RP201410136245/13.6TBVNG.P1
Data do Acordão: 10/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se se verificar qualquer um dos pressupostos enunciados artigo 238.º, n.º 1, do CIRE, nomeadamente, se o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
II - As diversas alíneas daquela norma estabelecem os fundamentos que determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, não constituindo factos constitutivos do direito do devedor de pedir esta exoneração, antes factos impeditivos desse direito, competindo aos credores e ao administrador da insolvência a sua prova.
III - Perante o entendimento de que o simples acréscimo de juros, sem mais, não constitui prejuízo para efeitos de aplicação da alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, poderia chegar-se à situação de alguém, em estado de insolvência e sem perspectivas de melhoria, deixasse correr a situação durante anos, totalmente indiferente à situação dos credores, e vir depois a ser “premiado” com o beneficio da exoneração do passivo, o que é claramente contraditório com o espírito do instituto.
IV - Mas também não basta o simples vencimento de juros, decorrente da apresentação do pedido fora de prazo, sendo necessário que o avolumar de juros se traduza num prejuízo significativo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 6245/13.6TBVNG.P1
5.ª Secção (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (artigo 713.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
I- O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se se verificar qualquer um dos pressupostos enunciados artigo 238.º, n.º 1, do CIRE, nomeadamente, se o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
II- As diversas alíneas daquela norma estabelecem os fundamentos que determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, não constituindo factos constitutivos do direito do devedor de pedir esta exoneração, antes factos impeditivos desse direito, competindo aos credores e ao administrador da insolvência a sua prova.
III- Perante o entendimento de que o simples acréscimo de juros, sem mais, não constitui prejuízo para efeitos de aplicação da alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, poderia chegar-se à situação de alguém, em estado de insolvência e sem perspectivas de melhoria, deixasse correr a situação durante anos, totalmente indiferente à situação dos credores, e vir depois a ser “premiado” com o beneficio da exoneração do passivo, o que é claramente contraditório com o espírito do instituto.
IV- Mas também não basta o simples vencimento de juros, decorrente da apresentação do pedido fora de prazo, sendo necessário que o avolumar de juros se traduza num prejuízo significativo.


Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I)
Relatório
1. B…., no requerimento de apresentação à insolvência, presente em tribunal em 17 de Julho de 2013 e cujo processo corre no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, pediu a exoneração do passivo restante, nos termos documentados nos autos, afirmando preencher os requisitos necessários para esse efeito e aceitar as condições que lhe forem impostas.
Declarada a insolvência da requerente, foi apresentado o relatório do administrador de insolvência a que se reporta o artigo 155.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), nos termos documentados nos autos; neste relatório, concluindo-se não haver lugar à proposta ou apresentação de qualquer plano de insolvência, foi proposto o encerramento do processo, nos termos do disposto nos artigos 39.º e 232.º do CIRE, sem prejuízo da apreciação do pedido de exoneração do passivo restante apresentado.
O C…, S.A., na qualidade de credor, pronunciou-se, declarando-se favorável ao encerramento do processo nos termos do artigo 232.º do CIRE e contra o pedido de exoneração do passivo restante, por entender, antes de mais, que é incompatível com o encerramento do processo nos termos do supra referido preceito legal e que, por outro lado, não estão reunidas as condições legais para o efeito, nomeadamente os requisitos da alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, dado que a insolvente não se apresentou à insolvência nos seis meses subsequentes ao conhecimento da impossibilidade de fazer face às obrigações assumidas, (pois, as suas responsabilidades perante este credor encontram-se vencidas desde 2008) e que bem sabia que não existiam perspectivas de melhoria da sua situação económica, tendo esse comportamento causado prejuízo aos credores.
Depois de declarado encerrado o processo, a requerente veio prestar esclarecimentos relativamente à pretendida exoneração do passivo restante, nos termos documentados a fls. 107 e 108.
A administradora de insolvência emitiu parecer desfavorável, defendendo o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, conforme teor de fls. 111 a 114.
Este parecer mereceu a total adesão do credor D…, nos termos documentados a fls. 120 verso.
A insolvente veio entretanto responder ao parecer, no seu requerimento de fls. 116 a 118, refutando a existência das razões aí enunciadas e concluindo que deve ser-lhe concedido o benefício da exoneração do passivo restante.
Foi então proferido o despacho recorrido que, apreciando esta pretensão, decidiu nos seguintes termos (transcrição parcial):
«B…, identificada nos autos, veio, em 17 de Julho de 2013, apresentar-se à insolvência requerendo simultaneamente a exoneração do passivo restante.
Notificados os credores da insolvente e a Administradora da Insolvência para se pronunciarem sobre tal pedido, veio a Senhora Administradora pronunciar-se pelo indeferimento de tal pedido nos termos e com os fundamentos constantes de fls. 111 e segs.. Igualmente o credor C…, S.A., se manifestou, a fls. 101vº/102 pelo indeferimento do pedido de exoneração do passivo.
Fundamenta a Senhora Administradora o seu parecer desfavorável à exoneração do passivo restante, invocando, em suma, que a insolvente, relativamente às dívidas reclamadas mais relevantes, iniciou o incumprimento em Junho de 2010 e que relativamente a dois contratos de mútuos e um descoberto de depósito à ordem constituídos em 2006, 2007 e 2008, os incumprimentos iniciaram-se em Maio de 2008 bem como se iniciou em Setembro de 2008 o incumprimento relativamente a um outro mútuo em que é credor o E….
(…)
Ora, não há dúvida que o pedido de exoneração do passivo restante foi tempestivamente deduzido (art.º 236.º, n.º 1 do CIRE).
Porém, analisando os autos, os documentos carreados para os mesmos e os juntos pela Senhora Administradora da Insolvência com o seu parecer, resulta que desde pelo menos Maio de 2008 se encontra em incumprimento de obrigações; que só em 17 de Julho de 2013 se apresentou a requerer a declaração de insolvência, sendo que, em data anterior, ou seja, em 1 de Março de 2013 alega ter procedido a celebração de contrato de arrendamento com a renda mensal de 300,00 Euros (cfr. doc. de fls. 23 a 27, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
Ora, não podia a insolvente ignorar, já em, pelo menos Maio de 2008, momento em que iniciou o incumprimento de uma das dívidas, ou até desse Junho de 2010, momento do início do incumprimento da dívida contratada mais relevante, ser incapaz de cumprir as suas obrigações vencidas nessa altura, sendo o valor das obrigações vencidas (passivo) excessivo confrontado com o então seu agregado familiar. A apresentação tardia ou a não apresentação à insolvência não constitui, só por si, fundamento para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, só relevando para efeitos de indeferimento se da não apresentação ou do atraso advierem prejuízos efectivos para os credores e se o devedor souber, ou não puder ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
Da análise dos autos e dos elementos trazidos aos mesmos pela Exm.ª Administradora da Insolvência não restam dúvidas de que o comportamento da devedora, pessoa singular, leva a concluir que se manteve na situação de insolvente durante pelo menos mais de seis meses sem se apresentar à insolvência, contribuindo, com tal conduta, para um agravamento do montante do passivo, mesmo que tal agravamento resulte tão só do mero decurso do tempo e o seu reflexo nos juros, aumentando, assim, a quantia em dívida, o que traduz uma maior dificuldade para o devedor em a poder solver (neste sentido, o A. TRL de 28/1/2010, in http://www.dgsi.pt).
É sabido que o pedido de exoneração do passivo restante depende da não verificação dos pressupostos de facto elencados no art.º 238.º, n.º 1 do CIRE.
O circunstancialismo fáctico apurado, mormente o facto de já desde pelo menos Maio de 2008 estar em incumprimento, resulta que a mesma se encontrava numa situação patrimonial deficitária e que sabia não poder cumprir.
Estava, assim, obrigada a apresentar-se à insolvência, coisa que não fez, o que quer dizer que nos seis meses subsequentes ao início da verificação da situação deficitária, a insolvente não se apresentou à insolvência.
Assim, entendemos mostrar-se verificado o pressuposto de facto contido na mencionada alínea d) do art.º 238.º do C.I.R.E., pelo que se indefere liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
(…).»
2.1 A insolvente, inconformada com esta decisão, interpôs o recurso de apelação que aqui se aprecia, concluindo assim a respectiva motivação:
«1. O despacho de indeferimento liminar do passivo restante da Requerente/Insolvente, ora em crise, é manifestamente distante de toda e qualquer bondade jurídica pois assenta num único fundamente o qual, a esmagadora maioria da jurisprudência, de forma ostensiva aliás, retira, sem mais, qualquer relevo legal: o simples acumular dos juros sobre o capital em dívida.
2. Limitando-se, na fundamentação da decisão em crise a Sra. Juíza a quo, a dizer que pelo menos desde Maio de 2010 a Insolvente não podia ignorar que seria incapaz de cumprir as suas obrigações vencidas, sem nenhum facto concreto que o sustente, antes pelo contrário.
3. Pelo contrário a Insolvente, mau grado as suas severas limitações dado ser quase surda total, desde sempre tentou assegurar que cumpriria as suas obrigações e tentou sempre esperar, fundada e benignamente, por um momento melhor.
4. De facto, manteve o seu emprego, continuou a apostar na sua formação e qualificação, aceitou e plenamente a penhora do seu vencimento, jamais criou qualquer dificuldade à mesma, a qual foi sempre aumentando, mercê do seu aumento de qualificação e consequente aumento de salário, sempre empenhada em conseguir ultrapassar o presente desiderato.
5. A Requerente/Insolvente, nos últimos 6 anos, sempre teve ter uma vida regrada, sem recurso a créditos sobre créditos, tendo derivado a sua situação de insolvência de apostas comerciais falhadas feitas pelo seu então companheiro e a que a insolvente não evitou, naturalmente, em se envolver.
6. Sempre manteve uma postura activa de constante melhoria das suas condições de trabalho, de maior rendimento e como tal de melhor satisfação dos interesses dos credores, nunca tendo diminuído o seu rendimento mensal.
7. Nunca tendo existido qualquer diminuição do rendimento mensal da Insolvente, nos últimos anos, e estando tal rendimento penhorado é inaceitável dizer-se que a sua conduta contribuiu para o agravar do montante do passivo.
8. A doutrina e a jurisprudência exigem, e bem, muito mais do que o simples passar do tempo e o acumular dos juros para se concluir que um alegado atraso na apresentação à Insolvência causou prejuízos aos devedores.
9. Necessário se torna que esses prejuízos derivem da ponderação de todas as circunstâncias comportamentais do devedor insolvente perante os credores, desde o momento que deixa de cumprir as suas obrigações plenamente e até ao momento em que se apresenta à Insolvência.
10. A Insolvente tentou por todos os meios conseguir obter os rendimentos e condições bastantes para solver as suas dívidas, tendo porém concluído que tal seria impossível quando, acabando o seu mestrado, progride na carreira e continua a ver que não conseguiria financiar-se junto de bancos para consolidar as suas dívidas.
11. Nesse momento conclui afinal que somente lhe restava a possibilidade de requerer a sua Insolvência, com exoneração do seu passivo restante, tal como fez, para poder ainda almejar a ter uma vida minimamente serena ao lado de sua filha menor e que tem a cargo.
12. Ninguém, que fique claro pelo menos a Insolvente, se apresenta à insolvência de ânimo leve. Somente quando, de facto, se tenta tudo, e isso leva o seu tempo, é que se assume definitivamente a incapacidade de solver os seus compromissos, como supra referido.
13. É pois distante de toda e qualquer bondade jurídica a simples conclusão do despacho em crise e afirmar-se que a insolvente não podia ignorar, sem culpa grave, de que não existia qualquer perspetiva séria de melhoria das suas condições, quando tudo o que a Insolvente fez foi melhorar as suas condições, ainda que infelizmente, tenha verificado que estava sozinha nesta luta e que tais melhoras significativas não foram suficientes.
14. Do mesmo modo é impertinente afirmar-se que o comportamento da requerente leva a concluir que se manteve em situação de insolvente pelo menos mais de seis meses sem se apresentar à insolvência, contribuindo com tal conduta para o agravamento do montante do passivo, mesmo que tal agravamento resulte do decurso do tempo e o seu reflexo nos juros.
15. Uma vez que, ao longo do tempo, a Requerente sempre continuou, mercê de penhora no seu vencimento, a pagar o que podia aos devedores, logo se a dívida não diminuiu significativamente, o facto é que também não terá aumentado em tal padrão.
16. Estamos, em face ao exposto, perante um despacho ilegal e ilegítimo, porque sem qualquer sustentação ou fundamentação legal e factual, o qual deve ser desde já revogado substituindo-se por outro que conceda o benefício da exoneração do passivo restante à Insolvente/requerente, tal como solicitado.
17. Porquanto a mesma preenche, pela sua conduta, todos os requisitos devidos para que tal lhe seja concedido.
18. O despacho em crise é violador dos artigos 237.º e 238.º, al. d), do CIRE.
Termina afirmando que o recurso deve ser tido como provado e procedente, revogando-se o despacho ora em crise que indeferiu liminarmente o benefício da exoneração do passivo restante da Insolvente/requerente e substituindo-o por outro que lhe conceda tal benefício requerido e devido.
2.2 Não foram apresentadas contra-alegações.
3. Na ausência de fundamento que obste ao conhecimento do recurso, cumpre apreciar e decidir.
As conclusões formuladas pela apelante definem a matéria que é objecto de recurso e que cabe aqui precisar, traduzindo-se na seguinte questão:
● Determinar se a decisão recorrida, ao indeferir liminarmente o pedido de benefício da exoneração do passivo restante, o fez sem fundamento e em violação do disposto nos artigos 237.º e 238.º, alínea d), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), devendo por isso ser revogado.
II)
Fundamentação
1. No âmbito específico da insolvência das pessoas singulares, os artigos 235.º e 236.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estabelecem que pode ser concedida ao devedor a exoneração do passivo restante, isto é, dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos do disposto nos artigos subsequentes; para o efeito, o devedor deve formular pedido no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de dez dias posteriores à citação.
O regime da exoneração do passivo restante tem como objectivo final a extinção das dívidas e a libertação do devedor, para que, “aprendida a lição”, este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua actividade económica – Catarina Serra, “O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução”, Almedina, 3.ª edição, páginas 102 e 103.
Nos termos do respectivo preâmbulo, o código «conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da “exoneração do passivo restante”.
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos – designado período da cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica».
Mas a concessão do benefício pressupõe desde logo a inexistência de fundamento para indeferimento liminar.
Releva a este propósito o disposto nos artigos 237.º e 238.º do CIRE.
Assim, nos termos da primeira das referidas normas, a concessão efectiva da exoneração do passivo restante pressupõe: que não exista motivo para o indeferimento liminar do pedido, por força do disposto no artigo seguinte [alínea a)]; que o juiz profira despacho inicial, declarando que a exoneração será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no artigo 239.º durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência [alínea b)]; que não seja aprovado e homologado um plano de insolvência [alínea c)]; que, após o período de cinco anos antes mencionado e cumpridas que sejam efectivamente as referidas condições, o juiz emita despacho de exoneração, decretando a exoneração definitiva [alínea d)].
Sem prejuízo destes pressupostos e nos termos do artigo 238.º, n.º 1, o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se se verificar qualquer um dos pressupostos aí enunciados, nomeadamente e na parte que aqui interessa, o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica [alínea d].
Importa salientar que, «conforme resulta do disposto no n.º 3 do artigo 236.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o devedor pessoa singular tem apenas, no requerimento de apresentação à insolvência em que formula o pedido de exoneração do passivo restante, de “expressamente declarar” que “preenche os requisitos” para que o pedido não seja indeferido liminarmente.
Ou seja e como refere Assunção Cristas in “Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante” – Themis/Revista de Direito/Setembro de 2005, página 168, “o devedor pessoa singular tem o direito potestativo a que o pedido seja admitido e submetido à assembleia de apreciação do relatório, momento em que os credores e administrador da insolvência se podem pronunciar sobre o requerimento (artigo 236.º/1 e 4)”.
Isto significa, em nosso entender, que o devedor não tem que apresentar prova dos requisitos.
Até porque, bem vistas as coisas, as diversas alíneas do n.º 1 do artigo 238.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estabelecem os fundamentos que determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Não constituem factos constitutivos do direito do devedor de pedir esta exoneração.
Antes e pelo contrário, constituem factos impeditivos desse direito.
Nesta mediada, compete aos credores e ao administrador da insolvência a sua prova – cf. n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil» – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 21 de Outubro de 2010, no processo 3850/09.9TBVLG-D.P1.S1 e disponível na base de dados do IGFEJ (www.dgsi.pt). Este entendimento, não sendo absolutamente uniforme, é afirmado de forma preponderante pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, o que decorre, entre outros e considerando as decisões mais recentes, dos acórdãos proferidos em 21 de Março de 2013 e 17 de Junho de 2014, nos processos 1728/11.5TJLSB-B.L1.S1 e 985/12.4T2AVR.C1.S1, respectivamente, também disponíveis na referida base de dados.
A alínea d), antes citada, reporta-se a comportamentos do devedor/insolvente que de algum modo contribuíram para a situação de insolvência ou que a agravaram, pressupondo a verificação cumulativa dos mesmos.
Também aqui e especificamente no que concerne ao avolumar de juros, não tem havido consenso em sede de jurisprudência. Em algumas decisões (nomeadamente, acórdão da Relação do Porto, proferido em 20 de Abril de 2010, no processo 1617/09.3TBPVZ-C.P1, disponível na base de dados www.dgsi.pt) defende-se que o simples avolumar dos juros decorrente da não apresentação atempada à insolvência integra o conceito de prejuízo previsto no n.º 1, alínea d), do artigo 238.º do CIRE; no entendimento afirmado em outras decisões e que é sustentado pela recorrente, o simples vencimento de juros, sendo uma consequência normal do incumprimento gerador de insolvência, não integra aquele conceito, sendo necessária a verificação de uma desvantagem económica diversa – acórdão da Relação do Porto, proferido em 18 de Novembro de 2010, no processo 1826/09.5TJPRT-E.P1, disponível na mesma base de dados.
Um terceiro entendimento é ponderado, entre outros, no acórdão proferido em 19 de Dezembro de 2012, no processo 4400/11.2TBSTS.P1:
“Pela nossa parte, entendemos que o avolumar de juros integra, em princípio, o conceito de prejuízo previsto na lei.
Na verdade, a seguir-se a tese de que o simples acréscimo de juros, sem mais, não constitui prejuízo para efeitos de aplicação da alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, poderia chegar-se à situação de alguém, em estado de insolvência e sem perspectivas de melhoria, deixar correr a situação durante anos, totalmente indiferente à situação dos credores, e vir depois a ser “premiado” com o beneficio da exoneração do passivo. O que é claramente contraditório com o espírito do instituto.
Entendemos, todavia, que também não basta o simples vencimento de juros, decorrente da apresentação do pedido fora de prazo. Sendo necessário, ainda, que aquele avolumar de juros se traduza num prejuízo significativo. Como se escreve no acórdão supra citado: “Tem de verificar-se um prejuízo sensível em função da apresentação à insolvência fora de prazo, patenteador do agravamento da situação dos credores que, por via disso, ficam mais onerados pela atitude culposa do insolvente, a evidenciar que o devedor não merece uma segunda oportunidade”.
Apreciando esta matéria, o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão proferido em 3 de Novembro de 2011, no processo 85/10.1TBVCD-F.P1.S1 e disponível na base de dados a que se vem fazendo referência, considerou que “o prejuízo para os credores previsto na al. d) do n.º 1 do artigo 238.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não resulta automaticamente do atraso na apresentação à insolvência, mas abrange qualquer hipótese de redução da possibilidade de pagamento dos créditos, provocada por esse atraso, desde que concretamente apurada, em cada caso”.
Explicitou a este propósito:
“Tal prejuízo deve entender-se como abrangendo qualquer hipótese de redução da possibilidade de pagamento dos créditos, provocada pelo atraso na apresentação à insolvência, desde que concretamente apurada, em cada caso.
Em primeiro lugar, porque é o que resulta da letra da lei, que liga causalmente o prejuízo ao atraso na apresentação, por referência ao prazo de seis meses. Restringir a sua aplicação às hipóteses em que o devedor contraiu novas dívidas ou dissipou o património significa encontrar outra causa do prejuízo.
Em segundo lugar, porque não resulta da ratio do instituto da exoneração do passivo restante que se deva adoptar a interpretação defendida pelos recorrentes: a consideração equilibrada do interesse dos credores – protegidos pelo processo de insolvência, como se disse – e dos devedores – que o regime da exoneração beneficia – obriga a exigir como condição deste benefício uma actuação que também objectivamente tenha acautelado os interesses daqueles, traduzida numa apresentação à insolvência em tempo oportuno. Não é suficiente que o devedor não tenha dissipado o património, contraído “mais e mais dívidas”, andado a “meter para o bolso”, para usar as expressões constantes das alegações dos recorrentes; basta recordar que o pedido de exoneração pode ser indeferido mesmo que a insolvência seja apenas fortuita, como se disse já (cfr. as causas de insolvência culposa, constantes do n.º 1 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), para concluir pela incorrecção desta restrição”.
Conclui-se por isso, acolhendo este entendimento e tal como se afirma no acórdão desta Relação do Porto, de 9 de Janeiro de 2012, no processo 3063/10.7TBVFR-D.P1, que «o requisito pressupõe a verificação de um prejuízo concreto, relacionado com o atraso na apresentação à insolvência, mas “tal prejuízo deve entender-se como abrangendo qualquer hipótese de redução da possibilidade de pagamento dos créditos, provocada pelo atraso na apresentação à insolvência”».
2.1 No caso dos autos e conforme resulta da transcrição que se fez da decisão recorrida, aí se julgou verificado o pressuposto de facto contido na alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, como fundamento para o indeferimento liminar.
Partiu-se da seguinte realidade factual, expressa no parecer da administradora de insolvência:
a) A insolvente apresentou a petição que deu origem ao presente processo em 17 de Julho de 2013.
b) As dívidas reclamadas mais relevantes provêm da falta de cumprimento de dois contratos de mútuo com hipoteca, ambos outorgados com o C…, S.A., contraídos em 8 de Março de 2007, para a aquisição de habitação própria, a qual foi já objecto de venda judicial em processo executivo (execução n.º 834/09.0TBMAI, movida pelo C…, S.A., contra a executada, no Juízo de Execução do Tribunal da Maia).
c) Os montantes em dívida relativamente a estes dois contratos de mútuo com hipoteca ascendiam a 58.887,18 € e a 12.503,15 €, respectivamente, correspondendo ao remanescente após a venda judicial em processo executivo antes referido.
d) O primeiro incumprimento, após a referida venda em acção executiva, data de 1 de Junho de 2010.
e) Ao mesmo credor existem dívidas de dois mútuos e de um descoberto de depósito à ordem, constituídas em 28 de Fevereiro de 2007, 31 de Março de 2008 e 30 de Novembro de 2006, respectivamente, iniciando-se o incumprimento relativamente aos dois mútuos em 28 e em 31 de Maio de 2008 e, quanto ao descoberto de depósito à ordem, em 14 de Novembro de 2008, ascendendo as dívidas aos montantes de 45.911,04 €, 6.681,21 € e 404,32 €.
f) Relativamente ao credor E…, S.A., existem dívidas, nos montantes de 8.450,47 € e de 11.331,85 €, de um empréstimo e de um descoberto de depósito à ordem, contraídas em Fevereiro de 2008, sendo o incumprimento do mútuo de 8 de Setembro de 2008.
g) Não são conhecidas dívidas a credores públicos, nomeadamente à Fazenda Nacional e ao Instituto da Segurança Social.
h) Em 1 de Março de 2013, a insolvente, na qualidade de arrendatária, outorgou com sua mãe, F…, na qualidade de senhoria, contrato de arrendamento para fins habitacionais por período limitado (prazo de cinco anos), destinado à habitação da insolvente, convencionando-se o regime de renda livre e a renda anual de três mil e seiscentos euros, correspondendo à prestação mensal de trezentos euros, nos termos documentados a fls. 23 a 27 dos autos.
Importa ainda considerar os seguintes factos, que são afirmados pela própria recorrente, no seu requerimento inicial e no ulterior esclarecimento, com referência ao teor dos documentos de fls. 16 e seguintes, e que constam, no essencial, no aludido parecer da administradora de insolvência:
1) A insolvente, B…, trabalhando na G…, do Porto, auferia em Novembro de 2012 o vencimento mensal base ilíquido de € 1.145,79.
2) Em Março de 2013 o vencimento mensal base ilíquido elevou-se para € 1.373,13 e assim se mantinha em Junho de 2013.
3) Sobre o vencimento mensal, nomeadamente no período antes referido, de Novembro de 2012 a Junho de 2013, incidia penhora correspondente a cerca de 1/3 do respectivo valor.
4) A insolvente tem uma filha menor (nascida a 1 de Fevereiro de 2005, conforme certidão de assento de nascimento de fls. 12); conta com o apoio de sua mãe que é professora reformada e ajuda a sua filha, não só monetariamente como comprando os materiais escolares e livros da escola.
5) O contrato de arrendamento outorgado pela recorrente e antes referido foi presente na Tesouraria de Finanças de Matosinhos em 10 de Abril de 2013.
2.2 No caso em apreciação, sendo pessoa singular relativamente à qual não se demonstra ser titular de uma empresa, sobre a insolvente não recaía o dever de apresentação à insolvência, face às disposições conjugadas dos artigos 18.º e 5.º do CIRE.
Como resulta do quadro legal que se deixou sumariamente enunciado, com referência ao artigo 238.º, n.º 1, alínea d), esse facto não obsta a que, para poder beneficiar da exoneração do passivo e impedir o indeferimento liminar de pretensão por si formulada nesse sentido, tenham que se mostrar satisfeitas as exigências da aludida norma.
Perante os factos que acima se deixaram enunciados evidencia-se que a insolvente deixou de efectuar o pagamento das prestações devidas por empréstimos bancários por si contraídos em 2007, para aquisição de habitação própria; este facto por si só não é determinante, na medida em que viu contra si instaurada acção executiva, em 2009, visando a obtenção dos pagamentos devidos e em falta.
No entanto, a venda efectuada no âmbito da acção executiva não assegurou a satisfação integral dos valores decorrentes dos contratos de mútuo com hipoteca, ascendendo o remanescente aos valores de 58.887,18 € e de 12.503,15 € - a que acrescem valores em falta relativamente a outros mútuos e descoberto bancário.
Sem prejuízo, verifica-se que a insolvente tinha outros empréstimos contraídos perante o mesmo credor, entre Novembro de 2006 e Março de 2008, com situações de incumprimento, relativamente aos mesmos, a partir de Maio de 2008.
O primeiro incumprimento, após a referida venda em acção executiva e reportando-se aos mútuos que tinham garantia hipotecária, data de 1 de Junho de 2010.
Neste enquadramento, é pacífico que a insolvente se absteve da apresentação à insolvência nos seis meses seguintes à verificação dessa situação. Importa então ver se deste facto se evidencia que resultaram prejuízos para os credores e se a insolvente sabia – ou não podia ignorar sem culpa grave da sua parte – não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
O prejuízo em causa deve revelar-se irreversível e grave, nomeadamente como resultado da contração irresponsável de novas dívidas pelo devedor quando já está insolvente, ou da ocultação de património ou de actos de dissipação ou oneração dolosa, que se evidenciam perante factos concretos.
No caso em discussão não se evidenciam de forma incontroversa esses pressupostos, na medida em que não se caracterizam comportamentos da insolvente que tenham os alegados atributos e, por outro lado, se demonstra que, relativamente ao valor em dívida, vinha ocorrendo a contenção que resulta da penhora sobre parte do vencimento auferido pela recorrente.
Por outro lado, também não resulta dos factos que anteriormente se deixaram enunciados o efectivo conhecimento, por parte da insolvente, da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
Justifica-se por isso a procedência do recurso.
III)
Decisão:
Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida, que deverá substituída por outra que, admitindo liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, profira o despacho inicial a que alude o artigo 239.º do CIRE.
Sem custas.
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Porto, 13 de Outubro de 2014.
Correia Pinto
Ana Paula Amorim
Rita Romeira