Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
189/17.0GCOVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
COMUNICAÇÃO AO ARGUIDO
CRIME DE AMEAÇA
CRIME DE INJÚRIA
INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
SITUAÇÃO ECONÓMICO-FINANCEIRA
CONDIÇÕES PESSOAIS
ARGUIDO
Nº do Documento: RP20180613189/17.0GCOVR.P1
Data do Acordão: 06/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 26/2018, FLS.227-235)
Área Temática: .
Sumário: I - Nem todas as ofensas à integridade física, à honra, e consideração ou à liberdade de determinação de outrem constituem crime de violência doméstica, apenas, pelo facto de ocorrerem no seio de uma relação conjugal ou equiparada.
II - Se os actos de agressividade verbal não representam um potencial de agressão que supere a protecção oferecida pelo crime de injúria e de ameaça, então, não são susceptíveis de integrar o tipo legal de violência doméstica.
III - Condenado o arguido em pena de prisão pelo crime de violência doméstica e decidindo o tribunal de recurso, afinal, ser caso de condenação, pelo crime de ameaça, em pena de multa, verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, na medida em que o tribunal não curou de apurar factos imprescindíveis à obtenção de uma decisão justa, designadamente acerca da situação económico - financeira e condições pessoais do arguido, cuja falta impossibilita a determinação concreta da pena, pelo tribunal de recurso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 189/17.0GCOVR.P1
1ª secção
Relatora: Eduarda Lobo
Adjunto: Des. Castela Rio

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto
I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos no Juízo Local Criminal de Ovar, Comarca de Aveiro, com o nº 189/17.0GCOVR, foi submetido a julgamento o arguido B…, tendo a final sido proferida sentença, depositada em 31.10.2017, que condenou o arguido, pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. no artº 152º nºs. 1 al. a) e 2 do Cód. Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, mediante acompanhamento por parte da DGRSP e condicionada ao cumprimento de deveres e regras de conduta.
Foi ainda o arguido condenado na pena acessória de proibição de qualquer tipo de contacto com a ofendida C… durante o período de dois anos e dois meses, fiscalizada por meios electrónicos, desde que obtidos os consentimentos necessários, bem como a pagar à ofendida a quantia de €1.950,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a data da sentença até integral pagamento.

Inconformado com a sentença condenatória, veio o arguido interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. O recorrente vem condenado, pelo crime de violência doméstica qualificada, numa pena suspensa na sua execução de 2 anos e dois meses.
2. O recorrente considera, com o devido respeito, que o douto tribunal a quo, na sentença que proferiu, ignorou factos que não deveria ter ignorado, levando assim a que se considerasse uma medida da pena aplicada ao recorrente superior àquela que a lei determina ao ultrapassar a medida da culpa do arguido (artº 40º nº 2 C. Penal) ao considerar exigências de prevenção especial que não existem, e ignorou as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do arguido (artº 71º nº 2 do C. Penal).
3. Conforme consta dos factos alegados na contestação apresentada pelo arguido (matéria que não foi objeto de impugnação), aquando da prática dos factos, o recorrente que se viu forçado a regressar de França onde vive e trabalha há vários anos, por motivos de doença grave (diabetes), encontrava-se física e psicologicamente fragilizado, pois contava com o apoio familiar na sua recuperação e viu-se confrontado com a indiferença e total alheamento por parte da ofendida acerca do seu estado de saúde.
4. No momento em que mais precisava de ajuda e apoio familiar, a ofendida informou-o que tinha feito um acordo extrajudicial de partilha com seus irmãos e sua mãe, nas partilhas por óbito do pai, e que “agora, aqui, não mandas nada”, referindo-se à casa de morada de família, que o arguido construiu com as suas próprias mãos, tendo-a implantado, a pedido dos sogros, em terreno que é agora bem próprio da ofendida, atento o regime de comunhão de bens adquiridos em que se encontram casados.
5. O arguido viu-se também confrontado com o facto da ofendida ter retirado quantia elevada da conta bancária de ambos, para pagar as tornas a seus irmãos – sem que para tal tenha tido o cuidado de informar o arguido e muito menos de obter o consentimento do mesmo.
6. Tais factos foram confirmados pelo tio paterno da ofendida, a testemunha D…, bem como pelas outras testemunhas apresentadas pelo arguido, as quais são vizinhas desde há muitos anos e que bem conhecem a realidade e o dia a dia do casal.
7. Assim, incorreu num erro notório de apreciação da prova (artº 410º C P Penal) que poderia ter levado a resultados bastante diferentes, sobretudo na determinação da medida concreta da pena principal, bem como as condições impostas para que a mesma fique suspensa na sua execução, e ainda.
8. A incompatibilidade da pena acessória com os direitos mais elementares do arguido, como pai, no exercício das suas responsabilidades parentais, além de que revela-se desadequada e exagerada face à conduta do arguido posterior aos factos objeto de julgamento.
9. Não se provou que o arguido e a assistente mantenham, à data, um relacionamento conflituoso ou que o comportamento do arguido se tenha perpetuado no tempo.
10. Os conflitos entre o arguido e a assistente ocorreram apenas naqueles dias a que aludem os factos provados (vide pontos 3, 4 e 5 dos factos provados), estando já a decorrer, desde o passado mês de Agosto (ainda o arguido se encontrava em Portugal), o competente processo de divórcio movido pela ofendida, precedida de providência cautelar de arrolamento de bens, conforme informação prestada pela ilustre mandatária da ofendida.
11. Pelo que a aplicação da pena acessória ao arguido patenteia uma situação de injustiça.
12. Atentos os factos provados a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, impedindo-o de comportamentos de violência, satisfazendo dessa forma as exigências de prevenção geral e especiais que se possam fazer sentir.
13. A douta sentença violou, entre outras disposições legais, o disposto no artº 40º, 65º, 71º e 152º nº 4, todos do Código Penal e, nessa conformidade, deverá ser revogada.
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Na 1ª instância o Mº Público respondeu às motivações de recurso, concluindo que o mesmo não merece provimento.
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
A sentença sob recurso considerou provados os seguintes factos: transcrição
1. O arguido, que é casado com a ofendida C… há já cerca de 25 anos, recusa terminar o casamento entre ambos quando a ofendida, há cerca de 3 meses, lhe declarou que pretendia o divórcio, razão pela qual, sobretudo desde então, reiteradamente, o arguido tem vindo a mostrar-se conflituoso ao ponto de intimidar a ofendida, dirigindo-lhe, nomeadamente, as seguintes expressões: “olha que tu não peças o divórcio para teu bem”, “ o que se vê na televisão não acontece só aos outros”;
2. Além de lhe atentar várias vezes contra a honra e consideração, designadamente acusando-a de manter relacionamento amoroso com outros homens quando não acata envolver-se sexualmente com o arguido.
3. No dia 16.4.17 na residência do casal, o arguido advertiu a ofendida para não pedir o divórcio para seu bem, senão estragava tudo;
4. No dia 18.4.17, igualmente na residência do casal, o arguido declarou à ofendida, novamente, que se pedisse o divórcio se iria arrepender, que a matava logo que recebesse as cartas do divórcio;
5. E, no dia 20.4.17, irritado porque a vítima se recusou a cozinhar-lhe o almoço e inconformado, mais uma vez, com a vontade da ofendida em pretender o divórcio, o arguido encetou discussão entre ambos em cujo decurso referiu que a queixosa era uma “ladra”, que a sustentara todos estes anos e que o enganara pretendendo o divórcio, que “só sairia da casa num carro blindado porque senão a matava”, que “as coisas que se vêm na TV não acontecem só aos outros”, que “lhe iria acontecer o mesmo que à outra” - referindo-se à recente vítima de homicídio conjugal ocorrido em …;
6. Declarou-lhe ainda que “não iria chegar a velha”, que “a família dela era um veneno”, que “não aceitaria o divórcio pois casara para toda a vida”, que “não se importava de ir preso pois já tinha 60 anos e nada a perder”; que a ofendida era uma “mentirosa”, uma “malandra”, que “tinha andado a trabalhar toda a vida lá fora para ela andar aqui a gozar e a andar à vontade”;
7. Declarou-lhe que não fosse com o divórcio para a frente senão “vais fechar os olhos, aviso-te que não tenho nada a perder”;
8. E, como a vítima já não partilha o quarto de dormir com o arguido e se recusa a manter relações sexuais com o mesmo, este referiu-lhe que andava com outros homens, mesmo em frente das filhas do casal, de tal modo que a vítima, temendo pelo que poderia acontecer, acabou por abandonar a residência comum e refugiou-se em casa de uma irmã, onde se manteve durante os dias seguintes.
9. Durante o lapso temporal que se seguiu à data da saída de casa, o arguido passou a seguir a ofendida, praticamente de forma diária, sempre de moto, e foi visto a rondar a casa da irmã da ofendida, onde esta também habitou, bem como em todos os locais públicos frequentados pela ofendida, designadamente no ginásio e supermercado.
10. O arguido agiu, sempre, de forma voluntária, deliberada e consciente, conhecendo bem que praticava factos ilícitos e criminalmente puníveis no próprio domicílio do casal, em presença das filhas de ambos, bem sabendo que daquela maneira, como queria e conseguiu, molestava física e psiquicamente a ofendia, acometendo-lhe contra o seu sossego, tranquilidade, e contra a honra e consideração da ofendida, pessoa que, como sua esposa por cerca de vinte e cinco anos e mãe das seus filhas, bem sabia dever respeito, consideração e amparo.
Provou-se ainda que:
11. Em consequência das condutas perpetradas pelo Demandado civil, acima descritas, a Demandante civil sentiu-se abalada, assustada e atemorizada;
12. E ainda para mais por ter sido ameaçada de morte pelo arguido na presença das filhas do casal;
13. Para além da vergonha que provocou na ofendida quando em frente das suas filhas se lhe dirigiu acusando-a de manter relações sexuais com outros homens;
14. Receia ainda que o arguido lhe ponha fim à vida;
15. Ficou ainda com medo de ser surpreendida pelo arguido a qualquer momento, razão que a leva a comunicar com as autoridades sempre que o arguido se aproxima ou tenta aproximar-se;
16. Assim logrando perturbá-la na sua paz e tranquilidade, inquietando-a.
17. O arguido é uma pessoa respeitada pelos seus vizinhos, sendo por estes bem considerado e tido como um homem honesto e bom, e visto como uma pessoa calma, pacata, afável e de bom trato social.
18. O arguido regressou a França no passado mês de Agosto, aí permanecendo a residir e a trabalhar por conta de outrem, desde então e até ao momento, no âmbito de contrato de trabalho.
19. A ofendida denota afastamento afetivo do arguido, desejando o divórcio. Tendo regressado recentemente à casa morada de família, designadamente após a ida do arguido para o estrangeiro, deseja manter a sua ocupação juntamente com as filhas e a manutenção da sua estabilidade emocional através do afastamento do arguido/proibição de contactos. Reconhece e admite um conflito latente que decorre do seu desejo de divórcio e de factores de ordem patrimonial.
20. O arguido não tem antecedentes criminais.
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Foram considerados não provados os seguintes factos: transcrição
a. Que há poucos anos, por altura do falecimento do pai da assistente, e por razões económicas, começaram a surgir discussões entre o casal por questões relacionadas com “partilhas” no seio das quais a assistente dizia ao arguido “tu aqui não mandas nada, a casa é minha, está no terreno da minha herança”.
b. Que parte dos problemas entre o casal composto pelo arguido e pela assistente resultam da influência da irmã da assistente, pessoa com quem o arguido nunca teve um bom relacionamento.
c. Que a assistente não tem receio do arguido.
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A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: transcrição
Na formação da sua convicção, o Tribunal apreciou de forma livre, crítica e conjugada a prova produzida em audiência, bem como a prova documental junta aos autos, de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º do Código de Processo Penal.
De notar, que livre apreciação da prova não é sinónimo de apreciação arbitrária da prova, antes significando uma apreciação de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador.
Assim:
A audiência decorreu legalmente na ausência do arguido, o qual requereu a realização da audiência de discissão e julgamento na sua ausência por se encontrar emigrado a trabalhar em França, pretensão que foi deferida. Assim, a única versão dos factos que se mostra apresentada pela defesa é a que resulta da contestação escrita, na qual o arguido negou ter praticado os factos acusados, versão [negação dos factos] que não colheu ante toda a prova produzida nos moldes que infra se explicitará.
Com efeito, para alcançar a prova dos factos acusados, foram fulcrais as declarações da assistente/demandante civil C…, a qual relatou a factualidade apurada, de que o arguido vinha acusado, de forma honesta, espontânea e isenta, com a normal angústia e amargura que o seu reviver (ocasionado por esse mesmo relatar em sede de audiência de julgamento) compreensivelmente tende a arrastar, mas sem revelar quaisquer sentimentos de vingança e/ou retaliação para com a pessoa do arguido.
Mais explicitou de forma crível e assertiva o contexto fáctico que envolveu a sua decisão de terminar o casamento entre ambos e o inconformismo do arguido perante essa vontade, expresso nos vários episódios descritos nos factos provados.
Neste contexto vivencial, logrou assim explicitar, de modo circunstanciado, assertivo e coerente, apresentando sempre a mesma versão dos acontecimentos ao longo das várias instâncias a que foi sendo submetida em audiência, os vários episódios descritos em 1. a 9. dos factos provados, de forma que se nos pareceu absolutamente sincera e verdadeira, com a normal ansiedade e nervosismo que a exposição pública que o seu relatar em sede de audiência de julgamento, na presença dos demais, em alguns momentos envolveu.
Assim, a ofendida foi dando conta da evolução da relação afetiva com o arguido ao longo dos anos, do agravamento dos insultos (em que se traduzem as acusações de manter relacionamento amoroso com outros homens) e das ameaças, com expressividade nos concretos episódios narrados nos acima indicados pontos da matéria de facto (1. a 9.).
Assim, no contexto fáctico assim trazido em audiência de julgamento, a ofendida relatou, reiterou e afirmou, de forma peremptória, assertiva e coerente, ao longo das várias instâncias a que foi submetida em audiência, como já mencionado, os impropérios (as ditas acusações falsas de infidelidade) e as ameaças dirigidas pelo arguido, tendo tal relato dos acontecimentos encontrado apoio nos depoimentos prestados pelas várias testemunhas inquiridas, designadamente pelas seguintes:
- E…, mãe da assistente;
- F…, irmã da assistente; e
- G…, filha menor do casal composto pelo arguido e assistente.
Todas estas testemunhas tendo secundado tal relato dos acontecimentos, corroborando não só o cenário de conflitualidade existente entre o casal decorrente da personalidade agressiva do arguido acentuada a partir do momento em que a ofendida se lhe transmitiu a pretensão irreversível de dele se divorciar, e ante o seu inconformismo perante essa pretensão, e revelado pelos episódios de insultos e ameaças acima descritos; atestando ainda o estado de perturbação, tristeza, humilhação e temor que as condutas protagonizadas pelo arguido ocasionaram na assistente.
Donde, as declarações críveis, assertivas e circunstanciadas da assistente / ofendida encontraram eco nos depoimentos prestados pelas supra indicadas testemunhas, em especial, das testemunhas F…, irmã da assistente, e G…, filha de ambos, as quais, para além das aludidas especiais relações de família tão próximas, eram (e continuam a ser) as pessoas que fisicamente se encontram mais próximas da assistente já que convivem habitualmente com a mesma.
Tais identificadas testemunhas confirmaram ainda os episódios em que o arguido seguiu a assistente, após a mesma ter saído de casa, designadamente no ginásio frequentado por uma sobrinha daquela e no supermercado, e ainda passando de moto pelos sítios que previsivelmente sabia que a iria encontrar.
Note-se que, não obstante as especiais relações de proximidade familiar, todas as acima identificadas testemunhas depuseram com genuinidade e de modo sincero, não resvalando em qualquer eventual tentação de afirmar mais do que realmente presenciaram, e, em especial, não revelando qualquer tipo de alinhamento prévio à audiência de julgamento no sentido de, nesta sede, prestar um depoimento inteiramente coincidente entre si e/ou com o da assistente / ofendida. Assim, com esta valoração crítica, pequenos desacertos quanto a concretos dias em que os episódios ocorreram revelaram-se absolutamente normais pois anormal seria o contrário, dado que, por apelo às regras da habitualidade, tendem a traduzir o mencionado alinhamento prévio e deliberado dos depoimentos, o que não sucedeu no caso vertente – como tais pequenos desacertos permitem sustentadamente concluir, pois, reitera-se, são reveladores sim da espontaneidade e sinceridade dos depoimentos que foram concretamente prestados.
Por seu lado ainda, igualmente não esconderam o estado de relacionamento que mantêm com o arguido, não evidenciando para com a pessoa deste, contudo, qualquer tipo de sentimento persecutório e/ou de retaliação.
Donde, em face do modo genuíno como foram prestados, mereceram, a par do da ofendida, inteira credibilidade por parte do Tribunal, constituindo todas as indicadas circunstâncias elementos que reciprocamente reforçaram a credibilidade que mereceram as declarações da assistente.
Ou seja, no encruzamento crítico das declarações da ofendida, do depoimento prestado pelas supra identificadas testemunhas que secundaram e credibilizaram o relato dos acontecimentos pela assistente, foi possível alcançar, sem qualquer margem para dúvidas, a vivência do casal constituído pela ofendida e arguido durante o lapso temporal retratado no libelo acusatório, marcado pelos insultos e, sobretudo, pelas ameaças que dirigiu e reiterou àquela nesse lapso temporal.
Note-se ainda que os depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela defesa – H…, vizinha do arguido, D…, tio da assistente e, por afinidade, também do arguido, e I…, vizinha do arguido – não foram de molde a infirmar a realidade dos factos apurados dado que, por não os terem presenciado, tal evidentemente não significa que os mesmos não ocorreram ou que não poderiam ter ocorrido, significa tão-somente o referido – que os não presenciaram; e tanto mais que nenhuma destas testemunhas convivia com carácter de regularidade com o ex-casal constituído pelo arguido e assistente, antes pelo contrário, mantendo relações de convívio circunstancial e de vizinhança com o arguido, e, em todo o caso, em situação de modo algum próxima e/ou que fosse proporcionadora de partilha de qualquer tipo de confidências com a ofendida. Assim, de relevante para a decisão dos autos, o conhecimento que demonstraram foi sobre a materialidade levada ao ponto 17 dos factos provados, tendo abonado sobre a personalidade do arguido, pessoa tida entre as antes indicadas testemunhas como uma pessoa respeitada, sendo bem considerado pelos seus vizinhos e tido como um homem honesto e bom, e visto como uma pessoa calma, pacata, afável e de bom trato social. Imagem social positiva granjeada junto das identificadas testemunhas e no seu meio social absolutamente compatível com a prática dos factos acusados, julgados e a final dados como provados, pois como é consabido são duas realidades que obviamente que se apresentam como compagináveis e articuláveis entre si, de modo algum tendo qualquer aptidão de se afastarem reciprocamente, muito pelo contrário, a realidade comparada dos nossos tempos nos ensina e revela que não raras vezes convivem em paralelo e simultâneo, e se verificadas, naturalmente que devem ser apreciadas e sopesadas pela importância que têm, em sede e lugar próprio (relevando uma matéria para efeitos da responsabilização criminal do arguido, e a outra para determinação da eventual medida da pena a aplicar, onde deverão ser ponderadas, entre o mais, as necessidades da punição em face das exigências de prevenção geral e especial que no caso se façam sentir).
De notar que estamos perante um tipo de crime cometido, em regra, na intimidade da família, encobertos pela vergonha da vítima em expor em público um casamento ou uma relação afetiva de especial proximidade falhada, e não raras vezes disfarçados pelo agressor, que frequentemente ameaça quem os sofre de graves represálias se os divulgar e de manipular os sentimentos dos agredidos, como sucedeu no caso vertente.
Daí a especial relevância das declarações das próprias vítimas neste tipo de crimes, sujeitas, como é óbvio, ao princípio da livre apreciação do julgador e assim valoradas, com apelo às regras da experiência comum, normal suceder e bom senso.
Por seu lado, a prova assim produzida, à luz das regras da habitualidade e da experiência comum, permitiu apurar as consequências que advieram para a assistente /demandante civil em consequência das condutas protagonizadas pelo arguido, nomeadamente em sede de dores e sequelas, sobretudo, psicológicas, que resultaram para a mesma, tendo igualmente interessado, nesta parte, os depoimentos prestados pelas testemunhas acima elencadas – E…, mãe da assistente; F…, irmã da assistente; e G…, filha menor do casal composto pelo arguido e assistente –, que concordantemente dilucidaram sobre a facticidade descrita nos pontos 11. a 16., atestando as consequências que advieram na pessoa da assistente em razão das condutas perpetradas pelo arguido, a humilhação, a vergonha, as dores e o sofrimento provocados pelos insultos (em que se traduzem as acusações de manter relacionamento amoroso com outros homens) e ameaças, o medo – pânico - face às ameaças dirigidas, dando conta da evolução negativa que tais atos provocaram na sua pessoa, tornando-se a mesma numa pessoa com falta de auto-estima e fragilizada.
Por seu lado, a prova assim produzida e valorada, à luz das regras da habitualidade e da experiência comum, permitiu igualmente apurar tais consequências, nomeadamente em sede de sequelas psicológicas, resultando inegável, por apelo às ditas regras, que os apurados atos protagonizados pelo arguido, pela forma, modo de execução e alcance com que foram protagonizados, foram de molde a provocar tristeza, humilhação e perturbação na mesma. A análise dos factos objetivos materiais cuja prova resultou cabal, à luz das regras da experiência comum, normal suceder e habitualidade, a par dos depoimentos da ofendida e antes elencadas testemunhas, confirmam a ocorrência de tais danos psicológicos pois que é do senso-comum e resulta igualmente manifesto das mencionadas campanhas de prevenção de situações de violência doméstica não só a dita punibilidade penal das condutas protagonizadas, mas também que o tipo de condutas das protagonizadas causam tristeza, humilhação e perturbação nas respectivas vítimas.
Por seu lado, no plano subjetivo do ilícito, na falta de uma confissão, ponderámos o iter criminis apurado, quanto ao dolo imputado. Existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são suscetíveis de prova indireta como são todos os elementos de estrutura psicológica [cfr. M.Cavaleiro Ferreira, in Curso de Proc. Penal. vol. II, 1981, p. 292], os relativos ao aspeto subjetivo da conduta criminosa. Em correção e simultânea corroboração desta afirmação, diz-nos N. F. Malatesta [In “A Lógica das Provas em Matéria Criminal”, p. 172 e 17] que excetuando o caso da confissão, não é possível chegar-se à verificação do elemento intencional, senão por meio de provas indiretas: percebem-se coisas diversas da intenção propriamente dita, e dessas coisas passa-se a concluir pela sua existência.
Na prática, como refere este mesmo autor [Ibidem, p. 176 e 177] afirma-se muitas vezes sem mais nada o elemento intencional mediante a simples prova do elemento material (...) O homem, ser racional, não obra sem dirigir a suas ações a um fim. Ora quando um meio só corresponde a um dado fim criminoso, o agente não pode tê-lo empregado senão para alcançar aquele fim.
No caso, as condutas objetivas apuradas permitem concluir, pelo dolo apurado quanto a cada uma dessas condutas.
Interessou ainda a informação social de fls. 312 e o próprio teor do requerimento apresentado pelo arguido a requerer a realização da audiência de julgamento na sua ausência, de fls. 314, para o apuramento da facticidade levada ao ponto 18.
Quanto aos factos levados ao ponto 19, interessou o relatório social realizado à vítima, de fls. 320 a 323.
Para o apuramento da matéria levada ao ponto 20 (ausência de antecedentes criminais) interessou o certificado de registo criminal documentado nos autos, a fls. 310.
No que tange aos factos não provados, os mesmos resultaram de nenhuma prova, sequer suficiente, se ter produzido em audiência de discussão e julgamento sobre tais factos, mormente testemunhal. Nenhum elemento probatório sustentou de forma coerente e segura essa matéria.
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
Das conclusões de recurso é possível extrair a ilação de que o recorrente delimita o respetivo objeto às seguintes questões:
- qualificação jurídica dos factos como integrando a prática do crime de violência doméstica;
- vício de erro notório na apreciação da prova;
- desadequação da pena acessória aplicada, face à conduta do arguido posterior aos factos
Da qualificação jurídica dos factos[3]:
Alega o recorrente que a matéria de facto provada não consubstancia “uma perpetração de qualquer ato de violência que afetasse a saúde física, psíquica e emocional da assistente, diminuindo do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa.
Antes de mais importa realçar que o crime de violência doméstica é um “crime de relação”[4], em que releva um certo grau de proximidade ao lado de uma estreita comunidade de vida, realidades que instituem normas de conduta cuja violação fundamenta ou agrava a ilicitude do facto, que põe em destaque a especial relação que intercede entre os sujeitos ativo e passivo da conduta criminosa. Entre as pessoas que se incluem no âmbito de proteção da norma encontram-se o cônjuge ou ex-cônjuge; a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; o progenitor de descendente comum em 1º grau, entre outras.
No caso em apreço, existindo uma relação conjugal entre o arguido e a assistente, independentemente de haver descendentes comuns, a situação apenas é suscetível de integrar a previsão da al. a) do artº 152º, sem prejuízo da agravação prevista no nº 2 do mesmo preceito.
Quanto à invocada ausência de atos de violência que afetassem a saúde física, psíquica e emocional da assistente, dir-se-á que nos termos do art. 152º, nº 1, al. a), do CP, “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge ou ex-cônjuge”, é “punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.” Dispõe, por outro lado, o nº 2 do mesmo preceito, que “se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima, é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.
Na disposição legal citada está em causa a proteção da pessoa individual, da sua dignidade humana, podendo dizer-se, com Taipa de Carvalho[5] que “o bem jurídico diretamente protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afetado por toda a multiplicidade de comportamentos”, tendo em atenção as características do sujeito passivo, neste caso particular, que afetem a dignidade pessoal do cônjuge ou ex-cônjuge do arguido.
Trata-se de um crime específico por pressupor uma determinada relação entre os sujeitos ativo e passivo. Pode ser um crime habitual, caso a sua prática seja reiterada no tempo (de forma mais ou menos espaçada, dependendo das circunstâncias do caso concreto), altura em que, se assim suceder, a reiteração (que não é exigível para o preenchimento do tipo legal crime) funciona como elemento constitutivo do crime[6] (por isso o crime consuma-se com a prática do último ato que integra a atividade criminosa em causa).
No entanto, o crime em apreço também se preenche mesmo que não haja reiteração quando são infligidos maus-tratos físicos ou psíquicos.
Como expressivamente se refere no Ac. desta Relação do Porto de 09.01.2013, “este tipo legal previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e atue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação.
Este é, segundo cremos, o verdadeiro traço distintivo deste crime relativamente aos demais onde igualmente se protege a integridade física, a honra, a liberdade de determinação ou a liberdade sexual. O bem jurídico tutelado pela incriminação, assim caraterizado, é plural e complexo, visando essencialmente a defesa da integridade pessoal (física e psicológica) e a proteção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal.
Desta mesma forma ele se encontra caraterizado por André Lamas Leite[7], quando refere que o mesmo tem como fim o “(…) asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima de tipo familiar ou análogo (…)” sendo este bem jurídico multímodo “(…) uma concretização do direito fundamental (artigo 25º da C.R.P.) mas também do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (artigo 26º da C.R.P.), nas dimensões não recobertas pelo artigo 25º da Lei Fundamental, ambos emanações diretas do princípio da dignidade da pessoa humana. (…) A degradação, centrada na pessoa do ofendido, desses valores jurídico constitucionais deve ser a pergunta operatória no distinguo entre o crime de violência doméstica e todos os outros que, por via do designado concurso legal, com ele se relacionam.
A revisão do Cod. Penal de 2007 ultrapassou a querela de se saber se para o crime de violência doméstica (ou «maus tratos», como era a epígrafe da anterior redação do artº 152º do Cod. Penal) bastava a prática de um só ato, ou se era necessária a “reiteração” de comportamentos. Atualmente, o segmento «de modo reiterado ou não» introduzido no corpo da norma do nº 1 do artº. 152º do Cod. Penal, é unívoco no sentido de que pode bastar só um comportamento para a condenação.
Como, então, delimitar os casos de violência doméstica daqueles em que a ação apenas preenche a previsão de outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou o sequestro?
A solução está no conceito de «maus tratos», sejam eles físicos ou psíquicos.
Há «maus tratos» quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima. Como se refere no Ac. Rel. Guimarães de 15.10.2012[8] “Uma mesma bofetada, dependendo das circunstâncias, pode ser só uma ofensa à integridade física ou um caso de maus tratos. Poderá haver maus tratos se, por exemplo, um cônjuge esbofetear o outro na presença de filhos menores de ambos. Aqui, mais do que a ofensa corporal, sobreleva o juízo de que ao agressor foi indiferente a imagem com que os filhos ficam do outro progenitor. É especialmente humilhante um pai ou uma mãe ser agredido na presença dos filhos, sendo a humilhação agravada se o agressor for o outro progenitor. O comportamento revela um desejo de abaixamento do ofendido, sendo que as regras mínimas de civilidade impõem que cada um dos progenitores preserve a imagem do outro, perante os filhos menores de ambos.”
Entre muitos outros, cremos particularmente feliz a síntese contida no sumário do Acórdão desta Relação de 28.09.2011[9], do seguinte teor: “No ilícito de violência doméstica é objetivo da lei assegurar uma ‘tutela especial e reforçada’ da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu caráter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima.
Daqui sobressai o que cremos essencial para a caraterização do crime de violência doméstica, que se evidencia da sua génese e evolução; a existência de uma vítima e de um vitimador, este numa posição de evidente dominação e prevalência sobre a pessoa daquela.
Ora, no caso em apreço, como resulta da matéria de facto provada nos pontos 4 a 8 – e que não se mostra validamente impugnada pelo recorrente – (já que o constante dos pontos 1, 2 e 9 constituem imputações genéricas que, como tal, não devem ser consideradas e o facto constante do ponto 3 não assume qualquer relevância jurídico-penal) os atos de agressividade verbal imputados ao arguido e praticados na pessoa da ofendida, sua mulher, não têm a virtualidade de se integrarem na previsão da norma do artº 152º do Cód. Penal, por não representarem um potencial de agressão que supere a proteção oferecida pelo crime de injúria simples e de ameaça agravada p. e p., respetivamente, nos artºs 181º e 153º e 155º nº 1 al. a) do Cód. Penal. Desde logo porque não se trata de um comportamento repetido, reiterado, humilhante ou vexatório, mas também por não serem factos de gravidade tal que prescindam dessa reiteração para serem qualificados como de maus tratos psíquicos, muito embora se reconheça que possam abalar a tranquilidade moral da pessoa visada e, como tal, constituírem factos ilícitos típicos e, como tal, puníveis.
Conclui-se, por isso, que os factos provados e constantes das alíneas 4, 5, 6 e 7, bem como a alínea 8 integram os elementos objetivos e subjetivos da prática pelo arguido de um crime de injúrias e de dois crimes de ameaça agravada p. e p. nos artºs 181º e 153º e 155º nº 1 al. a) do Cód. Penal.
Aliás, em conformidade com as considerações supra tecidas, pode concluir-se que nem todas as ofensas à integridade física, à honra e consideração ou à liberdade de determinação de outrem, constituem um crime de violência doméstica, apenas pelo facto de ocorrerem no seio de uma relação conjugal ou equiparada.
É o que acontece na situação em apreço.
De realçar que a alteração da qualificação jurídica agora determinada não carece de prévia comunicação ao arguido, nos termos do disposto no artigo 358.º, n.º 1 e 3, do CPP, uma vez que, ao degradar a acusação por um crime de Violência doméstica [do artigo 152.º, n.º 1, do CP] – cometido por meio de condutas que traduzem ofensas à integridade física, ameaças e injúrias – em dois crimes de ameaça agravada e um crime de injúria, não implica a necessidade de nova defesa: não sendo juridicamente relevante, não “surgem vulneradas as garantias de defesa do arguido”[10].
Há, porém, que apurar se se verificam quanto a esses crimes as necessárias condições objetivas de procedibilidade, designadamente quanto à dedução de acusação particular relativamente ao crime de injúrias, já que o crime de ameaça agravada reveste natureza pública.
Na verdade, atribuída natureza particular àquele crime pelo art. 188º do C. Penal, a dedução de acusação particular, imposta pelo art. 50º do C.P.Penal, constitui pressuposto processual do procedimento criminal respetivo, ou seja, condição positiva daquele mesmo procedimento que, do mesmo modo, condiciona a responsabilidade penal[11].
Sendo a falta de acusação particular insuscetível de suprimento, a sua verificação na fase de julgamento ou de recurso impede o prosseguimento do procedimento criminal pelo crime respetivo se a questão se colocar até ao encerramento da audiência ou a condenação do arguido nas hipóteses em que a questão se coloque depois daquele, nomeadamente em resultado da qualificação jurídica dos factos provados operada na sentença ou no recurso, como no caso presente.
Aliás, não sendo passível de suprimento a falta de acusação particular, carece o Mº Pº de legitimidade para o prosseguimento do processo pelo referido crime de injúrias – artº 50º do C.P.P., impondo-se o arquivamento dos autos nessa parte.
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Importa agora determinar a pena concreta a aplicar ao arguido, dentro da moldura penal de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, por cada um de dois crimes de ameaça agravada.
Tendo em vista os desideratos constantes do artigo 40º do Código Penal, atendendo a que o crime é punível, em alternativa, com pena de prisão ou multa, atento o estatuído no artigo 70º do Código Penal, decide-se optar pela pena de multa, por se entender que ela realizará de modo adequado e suficiente as finalidades da punição.
Com efeito, as exigências de prevenção especial não são muito acentuadas, já que o arguido não tem antecedentes criminais o que, tendo em conta a sua idade, assume já um significativo relevo. Maiores são as exigências de prevenção geral, atendendo a que, com muita frequência, se cometem crimes deste tipo sobretudo em idênticos contextos relacionais.
Considerando que, de acordo com a matéria de facto provada, o arguido é uma pessoa respeitada e considerada no seu meio social, vista como pessoa calma, pacata, afável e de bom trato social, entendemos que a pena de multa será seguramente sentida como advertência bastante para que o arguido não volte a delinquir.
Verifica-se, porém, que a decisão recorrida padece do vício previsto no artº 410º nº 2 al. a) do C.P.P., de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, na medida em que o tribunal não curou de apurar factos imprescindíveis à obtenção de uma decisão justa, designadamente acerca da situação económico-financeira e condições pessoais do arguido, cuja falta impossibilita a determinação concreta da pena por este Tribunal de recurso, impondo-se o reenvio do processo para novo julgamento.
Há assim que ordenar o reenvio do processo para novo julgamento, com produção de prova suplementar, restrito ao apuramento da questão supra referida e subsequente prolação de nova sentença – artº 426º nº 1 e 426º-A do C.P.P., que imponha ao arguido a pena de multa adequada, dentro da moldura abstrata prevista na lei – artº 155º nº 1 al. a) do Cód. Penal.
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Ficam naturalmente prejudicadas as restantes questões suscitadas pelo recorrente.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em:
a) Conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido B…, absolvendo-o do crime de violência doméstica que lhe era imputado e condenando-o pela prática de dois crimes de ameaça agravada p. e p. nos artºs. 153º e 155º nº 1 al. a) do Cód. Penal;
b) por ausência de acusação particular e falta de legitimidade do Mº Público para o procedimento criminal pelo crime de injúrias p. e p. no artº 181º do Cód. Penal, na pessoa da assistente C…, determina-se o arquivamento dos autos nessa parte;
c) determinar o reenvio parcial do processo para novo julgamento, nos termos dos artºs. 426º nº 1 e 426º-A do C.P.P:, restrito à questão da determinação da pena de multa aplicável, com produção da prova considerada necessária, nos termos supra referidos e prolação de nova sentença.
Sem tributação.
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Porto, 13 de junho de 2018
(Elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários)
Eduarda Lobo
Castela Rio
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] De notar que, apesar de o recorrente apenas ter suscitado a questão da qualificação jurídico-penal dos factos provados nas motivações de recurso, não as tendo incluído nas conclusões que formulou, iremos conhecer da referida questão, aderindo à posição que vem sendo defendida pelo Supremo Tribunal de Justiça (Cf., por todos, Ac. do STJ de 24.02.2010, Proc. nº 59/06.7GAPFR.P1.S1, Cons. Raul Borges e disponível em www.dgsi.pt.), de que o tribunal superior pode sempre conhecer da qualificação jurídica, estando em causa matéria de direito, pelas implicações que pode ter na medida da pena, ressalvada a proibição da “reformatio in pejus” e também, como afirmou o Ac. desta Relação do Porto de 06.05.2009 (Proferido no Proc. nº 104/03.8GAVFR.P1, relator Manuel Braz), sem necessidade de qualquer comunicação prévia desde que tal alteração não prejudique a defesa do arguido.
[4] Como expressivamente é designado no “Código Penal – Parte Geral e Especial” de Miguez Garcia e Castela Rio, anotação 3ª ao artº 152º, pág. 617.
[5] In Comentário Conimbricense do Código Penal, Volume I, Coimbra Editora, 2ª ed., pág. 512.
[6] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008, p. 112, parte final da anotação 1.
[7] In Estudo publicado na Revista Julgar, nº 12, página 25 e ss.
[8] Relatado pelo Des. Fernando Monterroso e disponível em www.dgsi.pt
[9] Proferido no Proc. nº 170/10.0GAVLC.P1, Des. Artur Oliveira, disponível em www.dgsi.pt
[10] Cfr. Ac. Rel. Porto de 12.01.2011, Proc. nº 208/07.8TACDR.P1, Des. Artur Oliveira.
[11] Nestes termos, Taipa de Carvalho, Sucessão de leis penais, 3ª ed. 2008 p.385. Em sentido similar F. Dias: «Relativamente a certos pressupostos processuais, porém, o seu conteúdo contende com o próprio direito substantivo, na medida em que a sua teleologia e as intenções político-criminais que lhes presidem, têm ainda a ver com condições de efetiva punição, que nesta mesma encontram o seu fundamento e a sua razão de ser. (…) É esse o caso dos institutos da queixa e da acusação particular» - Consequências jurídicas do crime – 1993 p. 663.