Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
21/19.0GALSD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA
Descritores: INIMPUTABILIDADE
INIMPUTABILIDADE DIMINUÍDA
FUNDAMENTAÇÃO
Nº do Documento: RP2020090821/19.0GALSD.P1
Data do Acordão: 09/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: DECRETADO O REENVIO DO PROCESSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Nos casos de imputabilidade diminuída, o juiz tanto pode considerar o arguido imputável, como inimputável, dada a flexibilidade da norma do n.º 2 do artigo 20º.
II – Daí que tenha de fundamentar devidamente tal decisão, não bastando para tanto a mera referência acrítica, como se estivéssemos face a um caso de “inimputabilidade natural”, previsto no n.º 1 do artigo 20º do CP.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec. Penal n.º 21/19.0GALSD.P1
Comarca do Porto Este
Juízo Local Criminal de Lousada

Acordam, em Conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I-Relatório.

No Processo Comum singular n.º 21/19.0GALSD do Juízo Local Criminal de Lousada, Comarca do Porto Este, foi submetido a julgamento o arguido B… [nascido a 13.05.1973] identificado na sentença.
A sentença de 26.03.2020, tem o seguinte dispositivo:
«Nos termos e com os fundamentos acima expostos, julgo:
1- provada a acusação e, em consequência, decido:
a) julgar provada a prática pelo arguido B… de factos integradores de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, alínea a), e n.ºs 2, al. a), 4 e 5, todos do Código Penal e de 2 (dois) crimes de violação de domicílio, p. e p. pelo disposto no art.º 190.º, n.º 1, do Código Penal;
b) declarar o arguido B… inimputável por causa da anomalia psíquica de que padece, ao abrigo do artigo 20.º, n.º 2, do Código Penal;
c) declarar a perigosidade do arguido B…, por, em face daquela anomalia e da gravidade dos factos por ele praticados, haver razões que fundamentam o receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie;
d) ordenar, com esses fundamentos, a aplicação ao arguido da medida de segurança de internamento, num estabelecimento de cura, tratamento e segurança adequado às suas patologias (psiquiátricas) pelo período máximo de 3 (três) anos;
e) condenar o arguido nas custas do processo, fixando em 2 (duas) UC a taxa de justiça (cfr. artigos 513, n.º 1 e 514.º, n.º 1. do CPP)
2- parcialmente procedente, por provado na mesma medida, o pedido de indemnização civil deduzido por C… e condeno, em consequência, o arguido B… a pagar-lhe, a título de indemnização, a quantia de € 3.000 (mil e quarenta euros e sessenta cêntimos), bem como juros de mora, à taxa legal, anual, civil, de 4% desde esta data até integral pagamento.
- As custas do pedido cível serão suportadas pelo demandado e pela demandante na proporção dos respectivos vencimentos (art.º 527.º do Código Civil).
(…)»
*
Inconformado, o arguido interpôs recurso apresentando a competente motivação, que remata com as seguintes conclusões:
………………………………
………………………………
………………………………
Termina pedindo que seja dado provimento ao presente recurso e, por via dele, revogar-se a sentença recorrida substituindo-a por outra que atenda às conclusões aduzidas, tudo com as legais consequências.
*
Admitido liminarmente o recurso, veio o MP e, bem assim, a Assistente oferecer cada um sua resposta.
………………………………
………………………………
………………………………
*
Neste Tribunal foi emitido Parecer do qual se respiga, por pertinente o seguinte:
………………………………
………………………………
………………………………
*
Foi cumprido o artigo 417º, n. º2 do CPP.
Houve resposta, que no essencial, excepção feita á invocação de um erro do MP já reparado, remete para as conclusões de recurso.
Colhidos os vistos cumpre apreciar e decidir.
*
II- Fundamentação.
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – vícios decisórios e nulidades referidas no artigo 410.º, n.º s 2 e 3, do Código de Processo Penal – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
1.-Questões a decidir
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
- Falta de factos para decidir da perigosidade do arguido.
- Subsunção dos factos a dois crimes de violação de domicílio.
- Verifica-se perigosidade social do arguido necessária para aplicação da medida de segurança de internamento.
- Suspensão do internamento.
- Pedido de indemnização civil.
*
2. Factualidade.
Segue-se a enumeração dos factos provados não provados e respectiva motivação.
«A)-Factos Provados
(acusação)
1) A ofendida C… viveu maritalmente com o arguido B… desde o ano de 2000 até ao dia 29 de Maio de 2007, data em que se casaram;
2) Inicialmente fixaram residência comum em habitação em Sesimbra sendo que, em data não concretamente apurada, passaram a residir em …, Lousada onde permaneceram cerca de 10 anos até se mudarem novamente, no ano de 2013, para uma residência localizada em Sesimbra;
3) Em Agosto de 2017, o casal separou-se e a ofendida regressou a Lousada e, em Maio de 2018, formalizaram o divórcio;
4) Posteriormente, em data não apurada do ano de 2018, após o divórcio, reconciliaram-se tendo fixado residência na Rua …, n.º …, …, Lousada, onde residiram até à separação definitiva, que ocorreu em Dezembro de 2018;
5) Deste relacionamento amoroso nasceu em 24/10/2004, em Lousada, D…, actualmente com 15 anos de idade;
6) O arguido B… padece de patologia do foro psiquiátrico tendo sido diagnosticado com psicose esquizofrénica pelo que, desde que começou a coabitar com a ofendida, passou a adoptar comportamentos violentos e agressivos para com a sua mulher;
7) Tais problemas de saúde foram piorando progressivamente sendo que a partir do ano de 2011, em datas não concretamente apuradas, no interior da residência comum, em …, Lousada, muitas vezes em frente ao filho menor, o arguido, sempre que se exaltava, o que acontecia com uma frequência variável, às vezes semanal, outras mensal, desferia murros à ofendida que a atingiam em várias zonas do corpo;
8) Nessas alturas, o arguido também apertava o pescoço à ofendida e empurrava-a com força fazendo-a cair ao chão;
9) Como consequência directa e necessária de tais condutas a ofendida ficava com dores nas zonas atingidas;
10) Por causa destes comportamentos o casal chegou a separar-se, tendo vindo a reconciliar-se após o arguido ter sido submetido a internamento compulsivo no ano de 2011;
11) Todavia, a partir do ano de 2013, quando se encontravam a residir em Sesimbra, o arguido começou a ingerir bebidas alcoólicas em excesso;
12) Assim, em datas não concretamente apuradas situadas no período de tempo em que a família residiu em Sesimbra (2013-2017), o arguido, sempre que se embriagava, partia vários objectos quando chegava a casa e desferia murros e empurrões a C…, o que lhe causava dores;
13) Nessas alturas também dirigia à sua mulher palavras como “és uma puta, uma vaca, não vales nada”;
14) Situações como as descritas no ponto que antecede, ocorriam muitas vezes na presença do filho menor de ambos;
15) Em Agosto de 2017 a ofendida decidiu separar-se, tendo regressado a Lousada juntamente com o filho menor e, em Maio de 2018 divorciou-se do arguido;
16) Sucede, porém, que o arguido, não se conformando com o fim da relação, após Agosto de 2017, deslocava-se várias vezes a Lousada;
17) Cerca de 3 meses depois da data referida em 16), o casal voltou a reconciliar-se, todavia, o arguido continuou a ingerir grandes quantidades de bebidas alcoólicas e a comportar-se de forma agressiva e violenta para com a ofendida;
18) Após esta reconciliação, em datas não concretamente apuradas, tanto na via pública como no interior da residência onde a ofendida habitava, localizada em Lousada, o arguido dirigia-lhe reiteradamente, em tom de voz sério e grave, expressões como “eu passo-te com o carro por cima”, “em mato-te”, “faço um buraco na terra e enterro-te”;
19) Efectivamente, a partir dessa altura, no interior da residência comum sita na Rua …, n.º …, …, Lousada, em datas não concretamente apuradas, com uma frequência variável, às vezes mensal outras semanal, o arguido durante as discussões verbais, dirigiu à ofendida palavras como “puta, vaca, porca, não vales nada”;
20) O casal acabou por se separar definitivamente tendo o arguido abandonado a habitação em data não apurada de Dezembro de 2018;
21) Contudo, no dia 31 de Dezembro de 2018, pelas 17:00 horas, quando a ofendida chegou à sua residência deparou-se com o arguido no seu interior;
22) De seguida, na sequência de uma discussão, na presença do menor D…, o arguido exaltou-se, aproximou-se da ofendida e agarrou-a pelos braços pressionando-os com muita força;
23) Nesse momento, a ofendida fugiu na direcção do piso superior da residência e o arguido foi impedido de a seguir pelo seu filho que lhe pediu que cessasse com a sua conduta;
24) No dia 5 de Janeiro de 2019, pelas 13:00 horas, o arguido deslocou-se à residência da ofendida e do filho sita na Rua …, Lousada e, uma vez neste local, desferiu vários pontapés à porta de entrada logrando forçar a sua abertura;
25) Após, introduziu-se nesta habitação sem o consentimento da ofendida e, na presença do filho, sem qualquer motivo que o justificasse, pegou na PlayStation do menor e, de forma não apurada, partiu-a;
26) Nessas circunstâncias de tempo e lugar, dirigiu-se à cozinha e partiu a televisão;
27) Face ao sucedido, a ofendida pegou no telemóvel para contactar telefonicamente a GNR tendo, nessa altura, o arguido dito o seguinte: “liga, liga minha puta que a GNR vem cá e faz-me um bico”;
28) Entretanto, o arguido pegou num jarrão de louça e, enquanto mantinha este objecto suspenso no ar, voltou-se na direcção da ofendida e, em tom de voz grave e sério, disse-lhe “eu mato-te minha puta”;
29) De seguida, o arguido arremessou tal objecto na direcção da ofendida, acabando por embater no fogão que ficou partido;
30) Nessa altura, a ofendida e o filho menor fugiram de casa, contactaram as autoridades policiais e refugiaram-se em casa de familiares;
31) No dia 6 de Janeiro de 2019, pelas 22:57 horas, o arguido, através do seu telemóvel com o número ………, enviou para o telemóvel da ofendida, com o número ………, a seguinte mensagem escrita: “És uma grande porca a desviar-me do teu filho sabes bem que me provocaste não te quero ver mais um dia vou tirar o carro da garagem e vou ao teu trabalho dar te um beijo calma andas a ser comida pelos homens do talho com os melhores cumprimentos”;
32) No mesmo, dia, pelas 23:06 horas, o arguido, através do seu telemóvel com o número ………, enviou para o telemóvel da ofendida, com o número ………, a seguinte mensagem escrita: “sobre o apartamento vais resolver tu nunca mais te metas comigo e não desvies o meu filho de mim vai foder com os talhantes minha grande vaca um mete me os cornos com o homem do talho vaca”;
33) No mesmo dia, pelas 23:18 horas, o arguido, através do seu telemóvel com o número ………, enviou para o telemóvel da ofendida, com o número ………, a seguinte mensagem escrita: “Aviso te para não desviares o meu filho de min já basta de me teres os cornos com o homem do talho calma vou te dar muitos beijos um dia querida calma muita calma”;
34) No dia 15 de Janeiro de 2019, pelas 22:00 horas, o arguido deslocou-se à residência da ofendida sita na Rua …, Lousada e, uma vez neste local, de forma não apurada, introduziu-se nesta habitação sem a autorização da ofendida e arrombou a porta do quarto de casal, arrombou ainda a porta de acesso à garagem, tendo-a arrancado desse local e partido;
35) De seguida, entrou no veículo de matrícula TS-..-..., de marca Volvo, iniciou a sua marcha e ao volante do mesmo fê-lo embater propositadamente contra o portão da garagem que ficou amolgado e com o sistema de fechadura avariado;
36) No dia 16 de Janeiro de 2019, pelas 00:38 horas, o arguido, através do seu telemóvel com o número ………, enviou para o telemóvel da ofendida, com o número ………, a seguinte mensagem escrita: “manda um beijo ao meu filho minha grande p”;
37) No dia 16 de Janeiro de 2019, pelas 00:40 horas, o arguido, através do seu telemóvel com o número ………, enviou para o telemóvel da ofendida, com o número ………, a seguinte mensagem escrita: “Já lá tens mais estragos para pagar devia ser o teu amante não vi o portão partido diz ao teu amante para não fazer isso com os melhores cumprimentos”;
38) Na sequência dos factos supra descritos a vítima e o filho menor, por temerem pela sua integridade física e vida foram encaminhados para instituição casa abrigo;
39) O arguido previu e quis, através da prática reiterada das condutas atrás referidas, ocorridas sobretudo no interior da residência familiar, lesar a saúde física e mental, assim como a auto-estima, a consideração pessoal e ainda a liberdade de autodeterminação da ofendida, sua mulher, de molde a feri-la na sua dignidade e a provocar-lhe mau estar psicológico, inquietação e angústia, assim como receio pela sua própria vida e integridade física, o que conseguiu;
40) O arguido estava ciente que ao praticar os actos acima descritos em frente ao seu filho menor de idade o atemorizava e afectava o seu adequado desenvolvimento psicossocial;
41) Mais previu o arguido que, através dos seus actos, condicionaria as acções da ofendida e, portanto, devido ao medo que lhe incutia, constrangia a sua vida diária, sendo certo que, apesar desse conhecimento, o mesmo quis agir da forma descrita tendo alcançado o seu desiderato;
42) Ademais, conforme descrito nos pontos 24), 25) e 34), o arguido quis e conseguiu introduzir-se no domicílio da ofendida habitado por esta e pelo filho, não obstante saber que já ali não residia, que não tinha o seu consentimento para entrar e que actuava contra a sua vontade;
43) Agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
(pedido de indenização civil)
44) Em virtude da conduta do arguido, a ofendida sofreu desgosto durante o período em que conviveu com o arguido;
45) Sentiu e sente ainda tristeza, frustração e humilhação;
46) A ofendida vivia em constante temor pela vida, vivenciando diariamente intranquilidade, angústia e ansiedade e sentindo pavor de que o arguido cumprisse as ameaças de que iria acabar com a sua vida.

Mais se provou que:

47) O arguido tem um diagnóstico de esquizofrenia, associada a perturbação por consumo de álcool. A anomalia psíquica de que o examinado padece, ter-se-á manifestado aos 20 anos de idade, condicionando inclusivamente a necessidade de internamentos vários o último dos quais em regime compulsivo. Através dos elementos fornecidos e da história clinica colhida, é possível concluir que à data dos factos, 31 de dezembro de 2018 e 04, 06, 15 e 16 de janeiro de2019, não cumpria qualquer tratamento psicofarmacológico e mantinha consumo de álcool com padrão de abuso. Apesar da ausência de terapêutica à data dos factos em apreciação nos presentes autos, os mesmos não parecem ter resultado de um comportamento isolado e impulsivo, mas antes de um padrão de comportamento que se vem repetindo ao longo do tempo, e para o qual parecem contribuir factores da personalidade. Não existe evidencia de qualquer episódio de descompensação da sua doença que o impedisse de avaliar a ilicitude dos factos. No entanto, entendemos que a sua capacidade de autodeterminação, fruto das características da sua personalidade e da sua patologia, aliada aos consumos a que é feita referência, se encontrava prejudicada. Nesse sentido, estritamente do ponto de vista médico-legal consideramos que possa integrar pressupostos de imputabilidade, estando esta sensivelmente diminuída. A probabilidade de repetição de factos semelhantes (perigosidade) estará em estreita relação com a evolução do seu quadro clínico e do seu comportamento e dependerá do acompanhamento psiquiátrico que deve manter e do cumprimento da medicação instituída, bem como do facto de se manter abstinente.
Uma vez que se torna necessário manter uma elevada supervisão, sobretudo no que concerne a toma da medicação antipsicótica, existindo história de adesão aos referidos psicofármacos, será aconselhável a manutenção da administração da mesma na forma injetável de longa duração.
A falta de tratamento e de cumprimento da prescrição médica adequada e conveniente acompanhamento psiquiátrico, poderá traduzir-se em situação ou situações de perigo para bens de relevante valor, próprios e/ou alheios de natureza pessoal e/ou patrimonial, nomeadamente contra a vida em sociedade;
48) O percurso desenvolvimental de B…, nascido na Alemanha, decorreu em Portugal desde os 2 anos de idade; até aos 14 anos, momento em que ocorreu a separação conjugal dos pais, residiu com ambos e com a irmã germana no concelho do Seixal.
Alegadamente, a dinâmica marital/familiar foi perturbada pela comunicação verbalmente agressiva dos progenitores, que discutiam com frequência em tom elevado, recorrendo mutuamente à utilização de insultos e impropérios, tendo o arguido presenciado diversos destes episódios, que referiu terem-lhe causado mal-estar. B…parece ter estabelecido uma relação de vinculação afectiva preferencial com o progenitor (com quem ficou a viver após a separação dos pais), avaliando-o como uma pessoa afectuosa, ainda que muito “nervosa” (desde que sofreu uma lesão num confronto com elemento de um OPC, passando a deslocar-se em cadeira de rodas).
Por outro lado, mostrou-se afectivamente distante da mãe, que descreveu como uma pessoa fria e agressiva, que não acarinhava os filhos e recorria a alguns castigos físicos (não severos) para os repreender em caso de incumprimento das regras. Não foram visíveis quais as repercussões no arguido dos mencionados constrangimentos relacionais/afectivos, tendo as suas descrições sido emocionalmente neutras.
B… frequentou o sistema de ensino até aos 13 anos, tendo completado o 7.º ano de escolaridade; alegou, sem explicitar, que o abandono escolar se deveu a absentismo decorrente do facto de não deter condições psicológicas para se centrar nas actividades lectivas/aprendizagens. Posteriormente, até aos 14/15 anos, dedicou-se à prática de futebol num clube da sua área residencial, actividade que deixou para passar a trabalhar em estabelecimento comercial (cafetaria) pertencente ao pai. A partir dos 18 anos, passou a trabalhar na compra e venda de veículos automóveis, primeiro apoiando o pai, que trabalhava nessa área, e depois por conta própria. Continuou a coabitar com o progenitor até ao falecimento deste em 1999.
Segundo B…, há cerca de vinte anos, foi-lhe diagnosticado um problema psiquiátrico, que o próprio identifica como “doença bipolar”, referindo ter tido dificuldade em aceitar o mesmo.
Ao longo do tempo, segundo os dados disponíveis, o arguido manteve uma atitude inconsistente, tendencialmente de resistência, à intervenção terapêutica proposta (acompanhamento psiquiátrico e toma de medicação específica ao seu transtorno), sendo que, em períodos de menor adesão/oposição àquela intervenção, apresentou significativa instabilidade emocional e comportamentais que originaram, pelo menos, uma situação de internamento hospitalar compulsivo em 2011. Acresce a este aspecto o consumo, por vezes intensivo, de bebidas de teor alcoólico, como factor de potencial desregulação pessoal. Alguns anos após o referido diagnóstico, o arguido veio a reformar-se por invalidez, usufruindo de uma pensão mensal que ascende aos 288€, tendo mantido a actividade laboral supramencionada. Destaca-se que não foi possível consultar quaisquer elementos clínicos relativos ao arguido, que alegou não os ter na sua posse (por terem ficado na habitação em que viveu com a ofendida).
Na fase adulta, B… manteve, segundo descreveu, alguns relacionamentos amorosos sem grande significância para o próprio, os quais designou como “namoricos”, ou seja, relações envolvendo interacções sociais/sexuais pontuais e sem vínculo afectivo e compromisso. A relação com C… foi iniciada em 2000, momento em que o arguido alega ter estado emocionalmente fragilizado na sequência do falecimento do pai, tendo-se sentido apoiado pela atitude carinhosa da ofendida. No contexto deste relacionamento ocorreu o nascimento do filho do casal, hoje com 14 anos.
Os factos constantes na acusação proferida neste processo dizem respeito ao período temporal situado entre 2000 e 2019 que compreende a fase de vivência conjugal de B… e de C… e a subsequente à separação definitiva. O arguido avalia de forma globalmente positiva o seu relacionamento com a ofendida e a dinâmica familiar/parental, alegando que o divórcio, em 2018, decorreu de estratégia de resolução dos problemas financeiros do casal. Salienta-se que a sua narrativa diverge significativamente dos dados recolhidos junto da CPCJ de Lousada, que indicam que o processo de promoção e protecção referente ao filho do arguido e da ofendida decorreu da instabilidade pessoal do primeiro e das condutas de natureza violenta que manteve no contexto familiar.
No início da fiscalização electrónica da proibição de contactos, B… mantinha uma relação afectiva de coabitação com uma cidadã de nacionalidade russa, relacionamento cuja dinâmica e características se desconhecem e que o próprio alega ter terminado, por sua iniciativa, ao fim de três meses de duração. Nesta fase, nos contactos que manteve com esta Equipa, B… evidenciou, tendencialmente, um discurso acelerado, prolixo, proferido em tom elevado e com conteúdo revelador de sobranceria, irritabilidade e impaciência, aspectos compatíveis com alguns dos indicadores comummente apresentados por indivíduos portadores de doença psiquiátrica em fases de humor pessoal eufórico.
De acordo com a sua descrição, B… vivencia dificuldades económicas/materiais desde o divórcio e posterior separação da ofendida: afirma ter gasto as suas poupanças e ter vindo a realizar apenas algumas tarefas laborais pontuais, pelo que actualmente reside num quarto arrendado situado na …. Por razões que não ficaram esclarecidas, o arguido parece vivenciar numa situação de algum isolamento social. Dado ter interrompido o acompanhamento psiquiátrico há alguns meses, alegadamente devido às suas limitações económicas, não estão disponíveis dados relativos à sua actual situação clínica.
Na entrevista realizada, B… apresentou, tendencialmente, uma atribuição causal externa, imputando a factores que considera fora do seu controlo, designadamente à doença bipolar e aos consumos excessivos de álcool, eventuais condutas pessoais desconformes com as normas sócio-jurídicas.
B… discorda da maioria das situações e comportamentos descritos na acusação proferida, negando ter infligido maus tratos físicos a C… e considerando excessiva e desnecessária a proibição de contactos com o filho e o ex-cônjuge. Atribui a sua posição de arguido a algumas condutas impulsivas (porventura com algum cariz agressivo) que endereçou à ofendida na presença do filho; contextualiza as referidas condutas num período temporal, que considera circunscrito e ultrapassado, em que efectuou consumos excessivos de bebidas de teor etílico e, paralelamente, a medicação prescrita para o transtorno bipolar se revelou desadequada, originando um desajustamento comportamental que avalia como momentâneo. Alega, que posteriormente, passou a tomar um medicamento psiquiátrico mais adequado à sua problemática e consome bebidas alcoólicas de forma não intensiva e esporádica.
Numa reflexão em abstracto sobre o crime de violência doméstica, o arguido patenteou alguma noção de interdito; apresentou, contudo, uma concepção restrita sobre os actos que configuram esta tipologia de crime e uma percepção estereotipada sobre os papéis de género/conjugais.
B… tem mantido um comportamento genericamente cumpridor das regras da proibição de contactos fiscalizada por vigilância electrónica. Não obstante na fase inicial da medida coactiva tenham sido registadas algumas anomalias pontuais, estas corresponderam ao uso incorrecto da unidade de posicionamento móvel de que é portador e não coincidiram com tentativas de contacto com C…, segundo os dados prestados pela mesma e os registados pelo sistema de monitorização.
Do ponto de vista de C…, sobressai o facto de considerar que a monitorização da medida de proibição de contactos tem garantido a sua segurança pessoal e a do filho, detendo a expectativa de que a decisão judicial no presente processo contemple a manutenção da fiscalização electrónica da referida interdição. Atendendo à literatura científica sobre a temática da violência doméstica, na avaliação de B… destacou-se como principal variável de desprotecção pessoal, potencialmente gerador de condutas não assertivas, a atitude de inconsistência do arguido face à intervenção terapêutica adequada ao seu transtorno psiquiátrico, com reflexos negativos no seu equilíbrio emocional, conduta relacional/social e capacidade de autoavaliação do seu desempenho, sendo de relevar que interrompeu o acompanhamento psiquiátrico alguns meses e que se desconhece a sua actual situação clínica. Em paralelo, sobressaíram outros factores desprotectores como sejam o seu posicionamento nestes autos (associado a atribuição causal externa), uma percepção desfasada sobre o ilícito em causa e sobre os papéis de género/conjugais e as alegadas limitações das suas condições de vida, potencialmente geradoras de tensão pessoal e de menor autocontrolo.
Como variável protectora, salienta-se o facto do arguido estar cumprir satisfatoriamente a medida coactiva em execução, possibilitando a C… (e, aparentemente, ao filho comum) uma percepção de segurança pessoal.
Face ao exposto, caso B… seja condenado neste processo, considera-se que deve ficar vinculado à obrigação de se sujeitar a acompanhamento terapêutico e medicamentoso adequado ao transtorno bipolar, dado que se trata de uma condição essencial ao seu ajustamento psíquico e comportamental.
49) O arguido não tem antecedentes criminais;
50) A assistente ainda hoje tem receio de que o arguido lhe faça mal.
*
B)- Factos não provados:
Não ficaram provados outros factos com relevo para a boa decisão da causa, designadamente que:
a) A ofendida e o arguido residiram cerca de 13 anos em … e em 2014 mudaram-se para Sesimbra;
b) Os factos descritos em 11) ocorreram a partir de 2014;
c) A família do arguido residiu em Sesimbra de 2014 a 2017;
d) Em Julho de 2017, a ofendida decidiu separar-se;
e) No período de Julho de 2017 a Maio de 2018, o arguido deslocava-se várias vezes a Lousada e começou a vigiar a ofendida, seguindo-a de carro e controlando todos os movimentos que esta dava e as suas rotinas;
f) Os comportamentos do arguido descritos em 18) ocorreram apenas no período de tempo referido em e);
g) O arguido dirigiu à ofendida, nas circunstâncias descritas em 19), palavras como vai ter com os teus colegas e eles que te fodam o cu;
h) Imediatamente depois do descrito em 22), o arguido, com um pontapé, arremessou um objecto na direcção da ofendida atingindo-a numa das pernas e causando-lhe um hematoma e dores;
i) O filho do arguido chorou nas circunstâncias descritas em 23);
j) Os factos descritos em 24) a 30) ocorreram no dia 04/01/2020;
k) Nas circunstâncias referidas em 26), o arguido pegou numa cadeira e arremessou-a na direcção da televisão;
l) O arguido apenas não atingiu, nas circunstâncias referidas em 29), a ofendida com o jarrão porque esta se desviou;
m)No dia e hora referidos em 34), o arguido partiu um móvel camiseiro;
n) A residência sita na Rua …, Lousada constituía a casa de morada de família do casal em 05 e 15 de Janeiro de 2019;
o) O arguido sempre foi um homem trabalhador, honrado e respeitado por todos aqueles que com ele convivem;
p) É pessoa muito educada, calmo e pacato, respeitado e bem considerado por todos que com ele convivem;
q) Sempre se pautando por elevados princípios éticos e educacionais;
r) Encontra-se perfeitamente integrado, social e familiarmente.
*
C)- Convicção do Tribunal:
………………………………
………………………………
………………………………
*
3.- Apreciação do recurso.
3.1. - Falta de factos para decidir da perigosidade do arguido.
De ofício verificar da contradição insanável da fundamentação.
Omissão de factos relevantes para a decisão.

O processo crime que correu contra o arguido terminou com a seguinte decisão:
1- provada a acusação e, em consequência, decido:
a) julgar provada a prática pelo arguido B… de factos integradores de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, alínea a), e n.ºs 2, al. a), 4 e 5, todos do Código Penal e de 2 (dois) crimes de violação de domicílio, p. e p. pelo disposto no art.º 190.º, n.º 1, do Código Penal;
b) declarar o arguido B… inimputável por causa da anomalia psíquica de que padece, ao abrigo do artigo 20.º, n.º 2, do Código Penal;
c) declarar a perigosidade do arguido B…, por, em face daquela anomalia e da gravidade dos factos por ele praticados, haver razões que fundamentam o receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie;
d) ordenar, com esses fundamentos, a aplicação ao arguido da medida de segurança de internamento, num estabelecimento de cura, tratamento e segurança adequado às suas patologias (psiquiátricas) pelo período máximo de 3 (três) anos;
e) condenar o arguido nas custas do processo, fixando em 2 (duas) UC a taxa de justiça (cfr. artigos 513, n.º 1 e 514.º, n.º 1. do CPP)
2- (…)»
Dos factos provados consta:
39) O arguido previu e quis, através da prática reiterada das condutas atrás referidas, ocorridas sobretudo no interior da residência familiar, lesar a saúde física e mental, assim como a auto-estima, a consideração pessoal e ainda a liberdade de autodeterminação da ofendida, sua mulher, de molde a feri-la na sua dignidade e a provocar-lhe mau estar psicológico, inquietação e angústia, assim como receio pela sua própria vida e integridade física, o que conseguiu;
40) O arguido estava ciente que ao praticar os actos acima descritos em frente ao seu filho menor de idade o atemorizava e afectava o seu adequado desenvolvimento psicossocial;
41) Mais previu o arguido que, através dos seus actos, condicionaria as acções da ofendida e, portanto, devido ao medo que lhe incutia, constrangia a sua vida diária, sendo certo que, apesar desse conhecimento, o mesmo quis agir da forma descrita tendo alcançado o seu desiderato;
42) Ademais, conforme descrito nos pontos 24), 25) e 34), o arguido quis e conseguiu introduzir-se no domicílio da ofendida habitado por esta e pelo filho, não obstante saber que já ali não residia, que não tinha o seu consentimento para entrar e que actuava contra a sua vontade;
43) Agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
47) O arguido tem um diagnóstico de esquizofrenia, associada a perturbação por consumo de álcool. A anomalia psíquica de que o examinado padece, ter-se-á manifestado aos 20 anos de idade, condicionando inclusivamente a necessidade de internamentos vários o último dos quais em regime compulsivo. Através dos elementos fornecidos e da história clinica colhida, é possível concluir que à data dos factos, 31 de dezembro de 2018 e 04, 06, 15 e 16 de janeiro de2019, não cumpria qualquer tratamento psicofarmacológico e mantinha consumo de álcool com padrão de abuso. Apesar da ausência de terapêutica à data dos factos em apreciação nos presentes autos, os mesmos não parecem ter resultado de um comportamento isolado e impulsivo, mas antes de um padrão de comportamento que se vem repetindo ao longo do tempo, e para o qual parecem contribuir factores da personalidade. Não existe evidencia de qualquer episódio de descompensação da sua doença que o impedisse de avaliar a ilicitude dos factos. No entanto, entendemos que a sua capacidade de autodeterminação, fruto das características da sua personalidade e da sua patologia, aliada aos consumos a que é feita referência, se encontrava prejudicada. Nesse sentido, estritamente do ponto de vista médico-legal consideramos que possa integrar pressupostos de imputabilidade, estando esta sensivelmente diminuída. A probabilidade de repetição de factos semelhantes (perigosidade) estará em estreita relação com a evolução do seu quadro clínico e do seu comportamento e dependerá do acompanhamento psiquiátrico que deve manter e do cumprimento da medicação instituída, bem como do facto de se manter abstinente.
Uma vez que se torna necessário manter uma elevada supervisão, sobretudo no que concerne a toma da medicação antipsicótica, existindo história de má adesão aos referidos psicofármacos, será aconselhável a manutenção da administração da mesma na forma injetável de longa duração.
A falta de tratamento e de cumprimento da prescrição médica adequada e conveniente acompanhamento psiquiátrico, poderá traduzir-se em situação ou situações de perigo para bens de relevante valor, próprios e/ou alheios de natureza pessoal e/ou patrimonial, nomeadamente contra a vida em sociedade;

Nas considerações de direito o Tribunal a quo escreveu [passamos a citar]:
«Inimputabilidade
A culpa, como é sabido, constitui pressuposto de toda a responsabilidade penal, ou seja, da condenação numa pena. Ela constitui seu fundamento e limite.
Mas o juízo de reprovação ou de censura ético-jurídica supõe a liberdade do agente. Ele é culpado na medida da sua capacidade de auto-determinação.
A imputabilidade constitui o primeiro elemento sobre que repousa o juízo de culpa. Dito por outras palavras, é necessário que o agente disponha do discernimento suficiente para representar a situação, consciencializar a ilicitude da mesma e agir de acordo com essa avaliação” (cfr. Ac. STJ, de 17/04/2007, relatado pelo Exmº. Conselheiro Ribeiro Cardoso, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
Prescreve o art.º 20.º, n.º 1, do CP que “É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação”.
Nos termos do n.º 2 do citado art.º 20.º, pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída.
A “Imputabilidade traduz-se naquele conjunto de qualidades pessoais que são necessárias para ser possível a censura ao agente por ele não ter agido de outra maneira” (Eduardo Correia, Direito Criminal I, pág. 331).
Na norma do n.º 1 do art.º 20.º consagra-se o chamado critério misto ou bio-psicológico, pressupondo, pois, por um lado, a existência de uma anomalia psíquica e, por outro, o efeito dela decorrente, segundo o qual o agente é incapaz de avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de harmonia com essa avaliação. Aqui radica a chamada componente de matriz axiológica ou normativa.
Os pressupostos biológicos da imputabilidade diminuída são os mesmos que o art.º 20.º do CP prevê para a inimputabilidade: a existência de uma anomalia ou alteração psíquica (substrato bio-psicológico) que afecte o sujeito e interfira na sua capacidade para avaliar a ilicitude do facto e de se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída (efeito psicológico ou normativo).
A diferença reside no efeito psicológico ou normativo: a capacidade de compreensão da acção não resulta excluída em consequência da perturbação psíquica, mas, antes, notavelmente diminuída. Se a imputabilidade diminuída significa uma diminuição da capacidade de o agente avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação, ela há-de, em princípio, reflectir um menor grau de culpa (uma culpa diminuída), como se refere no Ac. STJ de 21/06/2012 , disponível para consulta em www.dgsi.pt.
Como resulta dos factos provados, o arguido padecia e padece de patologia mental (psicose esquizofrénica), associada a perturbação por consumo de álcool.
Tal quadro patológico, aliado a características da sua personalidade e ao consumo abusiva de álcool, prejudicou a capacidade de autodeterminação do arguido. Com efeito, não obstante ser capaz de avaliar a ilicitude dos actos por si praticados, o arguido tinha, no momento da prática desses factos, a sua capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída. Efeito este que preenche a previsão do citado nº. 2 do cit. art.º 20.º.
Logo, não tem capacidade de culpa e, por isso, não é punível a sua conduta (art.º 13.º do CP) – cfr. M. Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, I, Verbo 1985, págs. 157 e sgs. e Figueiredo Dias, Jornadas, CEJ, pág. 75-78.
O arguido deve, pois, ser declarado inimputável.
O tipo de crime de violência doméstica é punível com pena de prisão de 2 a 5 anos – art.º 152.º, n.º 2, do CP.
O crime de violação de domicílio é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias – art.º 190.º, n.º 1, do CP.
Não podendo o arguido ser punido com pena, resta a hipótese de lhe ser aplicada uma medida de segurança, face à inimputabilidade e em caso de perigosidade.» [fim de citação]

Vejamos.
Dispõe o artigo 20º do CP.
1 - É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.
2 - Pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída.

Começamos por referir que a culpa é a censurabilidade face à conduta antijurídica.
São obstáculos à comprovação da culpa a inimputabilidade em razão da idade (artigo 19º) e a inimputabilidade em razão de anomalia psíquica (art. 20º).
A inimputabilidade em razão de anomalia psíquica (art. 20º) representa um obstáculo à determinação da culpa.
A culpa como se sabe, manifesta-se quer sob as formas de dolo quer de negligência, já que e no caso específico do dolo, além do mais, o dolo é a expressão de uma atitude contrária ou indiferente ao direito.
Por isso que, na decisão em recurso a primeira contradição encontrada resida no facto de ter sido decidido “declarar o arguido B… inimputável por causa da anomalia psíquica de que padece”, ao abrigo do artigo 20.º, n.º 2, do Código Penal, e ao mesmo tempo terem sido provados os factos 39 a 43 com especial incidência neste último onde se considera que o arguido” Agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;”
Pois, é certo que a considerar-se de facto o arguido portador de uma anomalia psíquica capaz de gerar uma inimputabilidade “natural”, então, teria de considerar-se esta inimputabilidade como um obstáculo à determinação da culpa, não sendo possível dar como provado tal facto.
Poderia então constar dos factos provados e após se dar como provada a anomalia de que padece que:
««- Quando actuou, o arguido, embora tivesse querido praticar tais factos, devido à anomalia psíquica de que se encontrava afectado, estava incapaz de se consciencializar de que os mesmos eram proibidos e punidos por lei;»»
Os factos referidos nos pontos 39 a 43, não podem conter elementos de consciência e previsão, caso se conclua que o arguido é inimputável com uma “inimputabilidade natural”.
Sucede que o relatório pericial embora não completamente esclarecedor, aponta para uma imputabilidade sensivelmente diminuída do arguido.
A imputabilidade diminuída do artigo 20º, n.º2 do CP, deve ser resolvida à luz da culpa e da inimputabilidade.
Maria João Antunes, in “Medida de Segurança de Internamento e Facto de Inimputável em Razão de Anomalia Psíquica”, Coimbra Editora, 2002, pág. 482, explica: «Para o agente de imputabilidade diminuída que, mercê da nossa opção por um sistema monista de reacções criminais, pode ser declarado inimputável, permitindo, pois, aquele n.º 2 do artigo 20º, nas palavras de Eduardo Correia, a “realização de um pensamento de alternatividade, ou seja, de uma aplicação de sanções em função da inimou imputabilidade, em que não deixará de intervir a ideia do efeito que elas podem ter sobre o agente de um facto criminoso”(…): o agente é declarado imputável e condenado em pena se esta sanção puder ainda satisfazer as exigências de prevenção especial que se façam sentir no caso; o agente é declarado inimputável e condenado em medida de segurança se as exigências de prevenção especial que se façam sentir no caso puderem ser satisfeitas de forma mais eficaz e adequada através da aplicação desta sanção, desde logo porque mais vocacionada para o necessário tratamento psiquiátrico.»
Nas palavras do Ac. do STJ de 21.05.2008, “Sempre que a capacidade do agente para avaliar a ilicitude e de se determinar por ela está muito diminuída, embora seja ainda possível um juízo de censura, este é substituído por um juízo de perigosidade, substracto da aplicação de uma medida de segurança”.
Por sua vez Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, 2007, pág. 583 a 588 defende: «Na concepção tradicional e ainda hoje dominante em muitas doutrinas a anomalia psíquica pode ser uma tal que tenha como efeito normativo não a incapacidade do agente para avaliar a ilicitude do facto ou para se determinar de acordo com essa avaliação, mas uma capacidade ainda subsistente mas em grau sensivelmente diminuído. Nestes casos justamente se vem falando de uma imputabilidade diminuída.
…o problema da imputabilidade diminuída (…). Do que se trata é…, verdadeiramente, de casos de imputabilidade duvidosa, no particular sentido de que neles se comprova a existência de uma anomalia psíquica, mas sem que se tornem claras as consequências que daí devem fazer-se derivar relativamente ao elemento normativo-compreensivo exigido; casos pois, da nossa perspectiva, em que é duvidosa ou pouco clara compreensibilidade das conexões objectivas de sentido que ligam o facto à pessoa do agente.
(…)
…poderá desde logo aceitar-se como legítimo que o legislador, dada a pouca clareza e a consequente incerteza da compreensibilidade das conexões objectivas de sentido que ligam o facto ao seu autor possa decidir por passar a considerar de verdadeira inimputabilidade os casos mais graves e duvidosos de imputabilidade (diminuída).
(…)
Não foi tão longe, porém, o legislador português; (…). Antes, com o disposto no art. 20º-2 ele propôs-se oferecer ao juiz uma norma flexível que lhe permite, em casos graves e não acidentais – em casos, portanto, em que a pratica do facto se revela já uma espécie de forma adquirida do existir psiquicamente anómalo -, considerar o agente imputável ou inimputável consoante a compreensão das conexões objectivas de sentido do facto como facto do agente se revele ou não ainda possível relativamente ao essencial do facto. De um ponto de vista de puro legalismo, a opção entre imputabilidade e inimputabilidade será lograda quando se decide sobre se o agente pode ou não “ser censurado” por não dominar (“falta de controlo”) os efeitos da anomalia psíquica. E ainda em função de um outro elemento…o de o juiz considerar que para a socialização do agente será preferível que este cumpra uma pena ou antes, eventualmente, uma medida de segurança.» [sublinhados nossos, fim de citação]
Ora, nada disto se reflete nos autos, o Tribunal raciocinou como se tivesse comprovado a existência de uma imputabilidade diminuída e se esta tivesse como consequência automática a inimputabilidade.
Posto isto, e compulsados os factos que reproduzimos, verificamos que a presente decisão não contém os factos necessários e devidamente esclarecidos para se saber: a) qual a real situação pretérita e à data dos factos da doença – anomalia psíquica - do arguido; b) como essa doença se conexiona com os factos praticados; c) se no momento da prática dos factos, devido à anomalia psíquica de que se encontrava afectado o agente estava incapaz de se consciencializar de que os mesmos eram proibidos e punidos por lei; d) ou estava capaz [ainda que de forma diminuída] de avaliar a ilicitude da conduta; e) e/ou estava capaz de se determinar [ainda que de forma diminuída] de acordo com essa avaliação; e f) se existe o fundado receio de que o arguido venha a cometer factos da mesma natureza; e, finalmente g) se esse receio, supostas, em regime ambulatório, as medidas de seguimento clínico-psiquiátrico (psicofarmacológico, psicoterapêutico e psicossocial) regulares e adequadas, seriam em meio aberto suficientes ou insuficientes, face por exemplo à ausência de apoio social familiar, laboral ou outro ou todos [o que também é relevante para efeitos de avaliar se estando em causa uma imputabilidade diminuída, pode ser aplicada uma pena ou se, por razões de prevenção especial se torna mais adequada uma medida de segurança].
O ponto 47 dos factos provados não obedece aos requisitos de assentamento de factos em processo penal, dado que muitos deles constam em forma de informação, outros na forma condicional ou de mera probabilidade ou conselho, há que tomar uma decisão e expor os factos escorreitos e decididos pelo Tribunal, com a necessária apreciação crítica da prova à luz dos ensinamentos que deixamos expostos. [Uma nota para referir que nos parece claro que o novo julgamento parcial, que ordenaremos, deve começar por pedir esclarecimentos periciais em ordem a responder cabalmente a todas as questões colocadas nesta decisão.].
E, já agora, uma vez que também na redacção do artigo 48º se usa técnica manifestamente incorreta de redacção de factos, com a reprodução do Relatório social, o que é potenciador de contradições e refere declarações do arguido de que o Tribunal não teve a imediação, deve ser aquele ponto da matéria de facto restringido às conclusões do relatório relevantes para aplicação da sanção.
Acresce, atento o que acima referimos quando expusemos doutrina, que nos casos de imputabilidade diminuída, embora o juiz tanto possa considerar o arguido imputável, como inimputável, dada a flexibilidade da norma do n.º 2 do artigo 20º, tem no entanto de fundamentar porque toma tal decisão, não bastando para tanto a mera referência acrítica como se estivéssemos face a um caso de “inimputabilidade natural”, previsto no n.º1 do artigo 20º do CP à incapacidade de culpa como decorre da transcrita decisão [“Tal quadro patológico, aliado a características da sua personalidade e ao consumo abusiva de álcool, prejudicou a capacidade de autodeterminação do arguido. Com efeito, não obstante ser capaz de avaliar a ilicitude dos actos por si praticados, o arguido tinha, no momento da prática desses factos, a sua capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída. Efeito este que preenche a previsão do citado nº. 2 do cit. art.º 20.º. Logo, não tem capacidade de culpa e, por isso, não é punível a sua conduta (art.º 13.º do CP) – cfr. M. Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, I, Verbo 1985, págs. 157 e sgs. e Figueiredo Dias, Jornadas, CEJ, pág. 75-78. O arguido deve, pois, ser declarado inimputável.»].
Por tudo o exposto, quer porque a decisão sofre de insuficiência de factos – artigo 410º n.º2 al. a) do CPP - , para efeitos de se averiguar se estamos perante um inimputável ou imputável diminuído e se, portanto, há-de ser aplicada ao arguido uma pena ou uma medida de segurança, e sofre também pelo menos na perspetiva, que foi a da sentença recorrida, de que o agente é inimputável por não ter capacidade de culpa, de contradição insanável entre os factos e a decisão – artigo 410º, n.º2 al. b) do CPP -; determinamos o reenvio do processo para novo julgamento parcial limitado aos pontos 39 a 43, 47 e 48º da matéria de facto provada e, bem assim, à contemplação dos factos supra referidos em falta e elencados de a) a g), dado que os restantes factos provados não foram impugnados e nesse sentido estão definitivamente assentes, salvo sempre alguma pontual necessidade de harmonização com o que vier a ser dado por provado.
Procede, assim, parcialmente o recurso.
Ficam prejudicadas as demais questões.
*
III- Decisão.

Pelo exposto, acordam os juízes da segunda secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso e determinar o reenvio do processo, ao abrigo dos artigos 410º, n.º2 als. a) e b) e 426º e 426º -A do CPP, para novo julgamento parcial [por juiz diferente do que proferiu a decisão em recurso] limitado aos pontos 39 a 43, 47 e 48 da matéria de facto provada e, bem assim, à contemplação dos factos supra referidos em falta e elencados de a) a g), dado que os restantes factos provados não foram impugnados e nesse sentido estão definitivamente assentes, salvo sempre alguma pontual necessidade de harmonização com o que vier a ser dado por provado.
*
Sem custas.
*
Notifique.
*
Processado em computador e revisto pela relatora – artigo 94º, n.º 2, do CP.P.

Porto, 08 de Setembro de 2020
Maria Dolores Silva e Sousa
Manuel Ramos Soares