Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
276/11.8TAVLC.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ CARRETO
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
FUNDAMENTAÇÃO
IRREGULARIDADE
Nº do Documento: RP20161012276/11.8TAVLC.P2
Data do Acordão: 10/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL
Decisão: JULGO INVÁLIDA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 1024, FLS.55-71)
Área Temática: .
Sumário: No despacho de não pronuncia, a falta de descrição dos factos suficientemente indiciados e não indiciados constitui irregularidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec nº 276/11.8TAVLC.P2
TRP 1ª Secção Criminal

Acordam em conferência os juízes no Tribunal da Relação do Porto

No Proc. de Instrução nº 276/11.8TAVLC do Tribunal da Comarca de Aveiro – Santa Maria da Feira - Instância Central – 3ª Secção Instrução Criminal – J1 em que é arguido
- B… e assistente C… foi por despacho de não pronuncia, de 21/10/2015, no final da instrução requerida pelo assistente, decidido:
Termos em que, por todo o exposto, e ao abrigo do disposto nos artigos 308º, n.º 1 e 287.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal, decido não pronunciar o arguido B… pela prática do crime de abuso de poder e do crime de peculato de uso, previstos e punidos, respetivamente, pelo artigo 382º e pelo artigo 376º, n.º 2, ambos do Código Penal.
*
Custas a cargo do assistente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal (artigos 515.º, nº 1, alínea a) e 517.º, a contrário, ambos do Código de Processo Penal e artigo 8º do Regulamento das Custas Processuais).”

Recorre o assistente o qual no final da sua motivação apresenta as seguintes conclusões:
“1° - O despacho de não pronúncia de que se recorre enferma de erro notório na apreciação da prova violando o n°.2, alínea c) do art. 410 do C.P..
2° - O dito despacho enferma ainda de contradição insanável da fundamentação - art. 410, n°.2 alínea b) do C. Penal.
3° - A instrução visa apurar a suficiência ou insuficiência dos indícios de ocorrência do ilícito criminal por forma a pronunciar ou não o arguido por remissão à teoria da probabilidade dominante, que nos parece a mais adequada.
4° - Entende a Meritíssima Juiz a quo que os factos indiciados no termo do inquérito são exactamente os mesmos que resultam indiciados no termo da presente instrução.
5° - O que não se aceita.
6° - Na verdade esses factos são os seguintes:
- O arguido B…, exerceu o cargo de vereador da Câmara Municipal de …, com o pelouro das obras públicas entre 2002 e 2004, data em que passou a ser Presidente da Câmara daquela autarquia.
- Para condução das águas de um poço que construiu até á sua habitação com instalação de tubagem teve que proceder à repavimentação de uma via pública.
- O arguido pagou tal obra de repavimentação á Câmara Municipal com base num orçamento que lhe foi apresentado pelos serviços daquele, mas tal orçamento apenas contabilizou o material e a mão de obra, chegando a um valor de € 300,00, muito abaixo dos preços praticados e valores de mercado.
- O preço indicado para aquela obra, quer por entidades privadas, quer públicas (outras Câmaras) é superior a € 2.000,00.
- Acresce que foi utilizada maquinaria, bem como um camião de transporte quer da matéria prima, quer da maquinaria utilizada sem que tal fosse contabilizado no orçamento que a Câmara Municipal apresentou.
- A C. Municipal não faz esse tipo de obra para os munícipes, mas fê-lo ao seu Presidente da Câmara Municipal, ora arguido.
- A justificação da urgência e necessidade da obra, para que a C. Municipal fizesse a obra, foi a de que se tratava de uma via pública importante, por ser de acesso a uma empresa, cujos camiões ali passavam (Depoimento da Eng. D… à Policia Judiciária).
- O arguido procedeu á construção de um poço de água num lote de terreno - lote 5 - situado na Zona Industrial …/… (…).
- Do dito lote n°.5 tinha a sociedade "E…, Lda.", de que o arguido era sócio, um contrato promessa de compra e venda outorgado entre si e o Município de ….
- A título pessoal e não a sociedade, o arguido ali construiu um poço de água entre 11 de Abril de 2008 e 22 de Outubro de 2009, com autorização dos restantes sócios, informando-os que trataria da legalização do poço - o que nunca fez.
- A dita sociedade não concretizou o negócio de compra do lote n°.5, tendo desistido do negócio.
- Nunca o arguido participou a construção do poço, nem requereu a legalização do mesmo, nem à Câmara Municipal, nem aos outros organismos competentes.
- Em 2008 é feito com conhecimento e anuência do arguido uma alteração ao loteamento daquela zona industrial, apenas com duas rectificações, sendo uma delas, a criação de um novo lote - o lote ...
- Tal lote de 19m , sem qualquer acesso foi individualizado do lote n°.5, passando a possuir apenas o poço de água construído pelo arguido, sendo posteriormente adquirido por sua esposa pelo preço de € 900,00.
- Dado a exiguidade do referido lote, o seu encravamento e a sua incapacidade construtiva, o lote vale apenas pelo valor da água, pelo que tendo o seu valor sido calculado com base na área, fica a Câmara Municipal prejudicada.
- O acesso ao lote .. ó se pode fazer pelo lote 5, que agora é pertença a Câmara Municipal, por desistência do negócio por parte da firma "E…, Lda.", razão pela qual se vê a autarquia obrigada a vender um lote que está onerado com uma servidão de passagem, diminuindo assim o seu valor e o interesse na sua aquisição por terceiros.
-Quando o Chefe de Divião de Planeamento informou o arguido de que a criação do lote .. só tinha razão de ser desde que fosse adquirido pelos adquirentes do lote 5, este remeteu-se ao silêncio e omitiu que o poço era de sua propriedade exclusiva e que o pretendia adquirir através de compra a efectuar pela sua cônjuge. -O arguido em razão da sua função e da sua profissão sabia que tal operação urbanística era ilegal, como bem sabia que o preço que os serviços da autarquia lhe apresentaram para a repavimentação era muito baixo e distante dos valores reais e de mercados praticados, como sabia ainda que não lhe foi cobrado o uso da maquinaria necessária á realização daquela obra.
7° - A Meritíssima Juiz a quo não levou em conta os esclarecimentos prestados em sede de instrução pela testemunha, F…, vereadora da Câmara Municipal, que disse que, só em reunião do executivo em 26/07/2011 os dois elementos do G… que compunham o elenco camarário, tiveram conhecimento da criação do lote .. (poço de água), da sua área e da sua exiguidade, bem como do seu preço, bem como da pessoa que o pretendia adquirir (esposa do presidente), e que se abstiveram com declaração de voto, por lhe ter surgido dúvidas quanto à legalidade daquele processo.
Esta parte do depoimento da vereadora, foi corroborado pela testemunha também ouvida em sede de inquérito, I…, vereador do mesmo partido e presente na dita reunião.
8° - Consta ainda da data da dita reunião do executivo, parecer do Chefe de Divisão de Planeamento (acta e parecer junto aos autos) que alerta para a questão do lote .. só poder ser adquirido pelos proprietários do lote ….
9° - Os vereadores do J… em maioria, votaram favoravelmente a aquisição do lote .. pela cônjuge do presidente declarando que o faziam no sentido do parecer técnico junto com a informação, ora o parecer técnico ad contrarium propõe exactamente o contrário.
10° - Por sua vez, a testemunha K…, membro da Assembleia Municipal, e não vereador, como ficou dito, engenheiro técnico de profissão, refere no seu depoimento que qualquer obra de repavimentação necessita obrigatoriamente de um cilindro e que o mesmo tinha que ser transportado para o local da obra em camião. Mais refere que o orçamento para esse tipo de obra teria que contemplar o custo da máquina e do seu transporte para estar bem feito.
11° - Conforme a regra da experiência ensina é, de facto, necessário a utilização da dita máquina e o transporte da mesma até ao local da obra; tendo sido a autarquia a realizar a obra e não constando do orçamento o seu custo, nem tenha sido feito prova pelo arguido de que pagou, é de concluir que o Sr. Presidente da Câmara beneficiou do uso da maquinaria em seu proveito próprio e, portanto, para fins alheios àqueles a que se destinem.
12° - Ad contrarium, conclui o despacho de não pronúncia, que se não foi demonstrado nos autos o uso de maquinaria, é porque não houve qualquer crime de peculato de uso.
13° - No modesto entender do recorrente, a conclusão haveria de ser outra: sendo obrigatoriamente necessário o uso de maquinaria para a repavimentação da via, se esta foi feita pela autarquia e se encontra pronta, não se encontrando prova do pagamento da mesma, então é porque não foi paga.
14° - Mais refere o despacho de que se recorre que "a repavimentação foi feita na sequência de um pedido próprio, "acessível a qualquer munícipe".
15° - Tal não corresponde à verdade porque como ficou apurado a Câmara Municipal não faz esse tipo de obra aos munícipes, logo esse pedido não é acessível a todos os munícipes.
16° - Tanto mais que, tendo sido oficializado pelo Tribunal à Câmara Municipal que juntasse aos autos comprovativo de pagamento de execução de obras deste tipo, apenas foi junto um único documento, do ano de 2007. Ou seja, pelo menos entre 2007 e 2015 apenas aparece uma única obra realizada pela Câmara - A obra do então Sr. Presidente da Câmara Municipal!
17° - Refere ainda aquele despacho: "A excepção foi justificada por um critério de celeridade na reposição por beneficiários da via"
18° - Pergunta-se: Se era um pedido acessível a qualquer munícipe porque justificar a excepção? Em que ficámos, abriu-se ou não uma excepção para o Sr. Presidente?
19° - Inquirida uma 2a vez, a Eng. D…, também testemunha do processo, não refere o que disse no seu primeiro depoimento, ou seja inicialmente era por causa da existência de uma empresa no local e do uso dessa via por viaturas pesadas, posteriormente já só era por causa de alguns utentes da via.
20° - Por outro lado, a vereadora L…, refere no seu depoimento que aquela via não serve nenhuma empresa, pois ela não existe, que aquela via é secundária e que serve apenas uma, ou duas habitações.
21° - Menciona aquele despacho "mediante um preço que a Câmara Municipal considerou justo".
22° - Não se vislumbra nos autos qualquer depoimento, qualquer documento ou qualquer outro indício que provocasse tal afirmação.
23° - O arguido deve de facto ter considerado um preço justo, pois pagou-o. Mas, já nessa data, o arguido tinha na sua posse orçamentos de entidades privadas para aquela obra e sabia que o preço apresentado por aquelas era muito, mas muito superior ao que lhe estava a ser cobrada pela Câmara (orçamento que consta dos autos e foi junto pelo próprio arguido).
24° - Como também consta dos autos, até autarquias muito mais pequenas e situadas mais no interior do país, com o é o caso de S. Pedro de Sul, cobrariam muito mais que o preço que foi calculado pelo Eng. M….
25° - Da análise desses orçamentos e sabendo que o arguido já tinha conhecimento deles, como se pode dizer que tal preço pode ser considerado justo? E quem o achou justo? O presidente? O técnico orçamentista? A engenheira D…? Quem mais sabia desse orçamento para dele poder aquilatar?
26° - E se não há termo de comparação dentro da Câmara Municipal já sabemos porquê: pelo simples facto de a Camara não levar a efeito esse tipo de obras aos munícipes.
27° - E, mesmo entendendo, a Meritíssima Juiz, que se pode ter tratado de uma bonomia da Câmara Municipal, esta foi ao seu presidente da Câmara, pois nenhum outro munícipe teve direito a tal tratamento. " À mulher de César não basta ser honesta tem que parecer honesta".
28° - Conclui-se ainda que o lote .., foi uma operação urbanística ilegal, mas cometida pelo Chefe de Divisão de Planeamento, Dr. O…, e que o arguido não participou nem interferiu na mesma porque não participou, nem votou na reunião do executivo de 26/07/2011, parece-nos também um exercício de raciocínio, para o recorrente, difícil de alcançar.
29° - O arguido aceitou a sugestão do seu chefe de Divisão de Planeamento e com base nela, a alteração ao loteamento.
30° - Tanto mais que, tendo o Dr. O… apresentado parecer escrito que o lote a criar, lote .., só tinha razão de ser se adquirido pelos adquirentes do lote n° .., no seu depoimento, o arguido refere que se esqueceu de informar quele que o poço era sua propriedade exclusiva a adquirir pela sua esposa mas solução encontrada pelo seu funcionário seria a mesma se estivesse em posse de tal informação, o que sabemos não corresponder à verdade.
31° - Perante tais contradições, o recorrente requereu a acareação entre o arguido e o Chefe de Divião e Planeamento, mas o Tribunal indeferiu tal pretensão.
32° - Se é certo que o Juiz tem o livre arbítrio na apreciação da prova, é também certo que "nem sempre a prova é directa, de percepção imediata. Infere-se muitas vezes. De resto factos há- sejam por exemplo, factos internos ou "estados de alma" a que só por revelação do próprio ou por dedução com recurso a presunção naturais e de acordo com as regras da experiência comum se pode chegar".Ac. TRP de 19/01/2011 in www.dgsi.pt.
33° - É pois evidente, na nossa humilde opinião, uma discrepância entre os factos apurados e o que deles se extraiu.
34° - Perante a prova produzida e face aos meios de prova apreciados nos autos, analisando-os criticamente, deveria o arguido ter sido pronunciado.
35° - Tanto mais que se verifica o enquadramento jurídico penal da factualidade provada, nos crimes de que o arguido vem indiciado, peculato, peculato de uso e abuso de poder.
36° - "O crime de peculato para no n°.1 do art. 375 do C.P. tutela, por um lado, bens jurídicos patrimoniais; e, por outro e predominantemente a proibidade e já dos funcionários para garantir o bom andamento, a legalidade e a imparcialidade da administração" - Ac. Rel. Porto de 26/06/13 in www.dgsi.pt
37° - In casu, trata-se de um Presidente da Câmara, no exercício de funções;
38° - No crime de peculato o dever que impede sobre o funcionário não é apenas para fundamentar a sua responsabilidade, mas antes para agravar uma vez que só a agente com essas características subjectiva relacional o pode cometer - Ac. TRP - supra citado.
39° - Assim, o crime de peculato integra dois elementos: o crime patrimonial e o abuso de uma função pública.
Estes dois elementos terão de se relacionar entre si - o agente "viola os limites intrínsecos do exercício de posse que lhe foi conferida em razão do seu ofício ou serviço" (Crespi/Stella/Zuccala - art. 314°, pág. 694 e ss.).
40° - O conceito de posse, para efeito do tipo legal em causa, deve, de facto, entender-se em sentido amplo, compreendendo-se a simples detenção, bem como a posse indirecta - disponibilidade jurídica sem detenção material, ou poder de disposição exercível mediante ordens, requisições ou mandatos.
41° - Tal como a apreciação indébita, o peculato pressupõe no agente a preexistência de legítima posse precária, ou em confiança da res mobilis de que se apropria, ou desvia do fim a que era destinada. A posse antecedente da coisa e a infidelidade do agente ao seu dever funcional são elementos tradicionalmente incluídos no conceito de peculato - Cfr. Nelson Hungria, Comentário ao Código Penal Brasileiro, vol. IX, 339, citado por Manuel Leal Henriques e Manuel Simões Santos, Código Penal Anotado, 2° Volume, 3aEdição - 2000, pág. 1618).
42° - A conduta típica traduz-se na apropriação em proveito próprio ou de terceiro de uma coisa móvel alheia que lhe foi conferida em razão das suas funções.
- Ora, o arguido era sócio de uma empresa que tinha outorgado um contrato promessa com a C.M. para a compra de um lote n°… na Zona Industrial …/…; que nunca chegou a concretizar o negócio de compra e venda.
- Em nome próprio e não enquanto sócio, levou a efeito a construção de um poço de água.
- Poço que veio a ser individualizado em lote próprio - .., através de uma operação urbanística ilegal de conhecimento do arguido, que, mesmo contra a indicação do seu Chefe de Divisão de Planeamento veio apresentar proposta de compra por sua mulher, ao invés de ser a sociedade de que era sócio a adquirir, conforme resulta do parecer do seu técnico.
- Poço construído ilegalmente, quer porque o arguido não tinha qualquer título que legitimasse a sua posse e porque não participou a sua construção às entidades competentes como sabia que era sua obrigação.
- Lote que veio a ser adquirido pela sua cônjuge, pelo valor de € 900,00/m , mesmo preço/m de um lote para construção, o que não era o caso.
- Quanto à repavimentação da via pública pela C.M. em virtude da instalação de tubagem pelo arguido e que conduzia a água do poço até à sua residência.
- O arguido estava já em funções na Câmara Municipal de … desde 2003, primeiro como vereador com o pelouro das obras públicas, depois como Presidente do executivo.
- Sabia bem, que o Município não executava obras de repavimentação aos munícipes.
- Tanto mais que chegou a pedir orçamentos para pavimentação daquela via a empresas particulares (conforme consta dos autos).
- Sabia que, nem sequer tinha participado a construção do poço, pelo que não podia justificar aos serviços da câmara a pavimentação de uma via pública por ali ter colocado tubagem para condução de águas de um poço "ilegal" para a sua residência.
- Sabia, até porque já tinha orçamentos de empresas particulares, que o preço indicado pelo "seu" funcionário era irrisório, até ridículo, face aos preços que já tinha obtido.
- Sabia que o dito orçamento não contabilizava maquinaria, mas sabia que a mesma teria que ser utilizada e salientou tal facto.
43° - O arguido tinha plena consciência de que a sua conduta não era lícita, mas actuou com o propósito de a realizar, como realizou.
44° - Preencheu-se assim o tipo subjectivo do crime de peculato como se exige, pois um dos elementos do tipo legal de crime em questão é a consciência de prejudicar ou poder prejudicar.
45° - Peculato de uso - Diz o art. 376 do C. Penal "O funcionário que fizer uso ou permitir que outra pessoa faça uso para fins alheios aqueles a que se destinem, de veículos ou de outras coisas móveis de valor apreciável, públicos ou particulares, que lhe forem entregues, e estiverem na sua posse ou lhe forem acessíveis em razão das suas funções, é punido com.".
46° - Trata-se de um crime em que o bem jurídico visa a protecção do bom andamento, legalidade e transparência de administração através da repressão de abuso do cargo ou função por parte do titular de cargo político, que em razão das suas funções tenham a posse ou a disponibilidade do bem objecto do crime, assumindo ainda uma componente patrimonial pois visa ainda penalizar a sua utilização momentânea indevida (Conceição Ferreira da Cunha, in comentário Conimbricense do Código Penal, tomo III, pág. 705).
47° - O arguido ao aceitar a utilização de maquinaria na repavimentação da via pública por parte da C.M. sem que tal lhe fosse cobrado; ao aceitar que o valor que pagou por uma obra que a Câmara lhe fez, excepcionalmente a si sabendo que o valor era irrisório e que prejudicava a autarquia cometendo este tipo de crime.
48° - Como bem referiu a Meritíssima Juiz o tipo legal de crime de peculato e o tipo legal de abuso de confiança são coincidentes nos respectivos elementos objectivos - subjectivos.
49° - Se entendermos que in casu o arguido com a sua conduta preencheu os respectivos elementos objectivos e subjectivos, também entendemos que estão por si preenchidos ambos os elementos do crime de abuso de poder.
50° - "Abusa do poder o funcionário que desrespeita as formalidades impostas por lei ou actua fora dos casos estabelecidos na lei" - Ac. TRL - 2394/2006-5 de 25/09/2007, in www.dgsi.pt
51° - E ainda no mesmo acórdão: "E, finalmente, abusa do poder (desvio do poder) aquele que faz uso dos seus poderes para fins diversos aqueles para o qual eles lhe foram conferidos, que apenas pode ter lugar estando em causa o exercício de poderes discricionários."
52° - Contudo, este tipo de crime poderá também ser preenchido através da violação de deveres por parte do funcionário estando em causa apenas os deveres funcionais, deveres estes que estão relacionados com o exercício da função e que subsistem enquanto o funcionário está em actividade.
53° - Pela matéria dada como assente pelo Ministério Público, e depois pela Meritíssima Juiz de Instrução e atrás registada, o comportamento do arguido, B…, enquanto presidente da autarquia, ultrapassa os limites de uma conduta abusiva, como a caracterizou o Ministério Público, pois a agir como agiu, abusou dos seus poderes e violou deveres inerentes às suas funções.
54° - Deve, por isso, ser acusado de abuso de poder, p. e p. pelo art. 383° do C. Penal.
55° - Como refere Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense: "de uma forma geral poder-se-á definir abuso de poder como uma instrumentalização de poderes inerentes à função para finalidades estranhas ou contrárias às permitidas pelo Direito Administrativo".
56° - Para além do que prescreve o art. 382° do C.P. o Dec.-lei 24/84 de 16 de Janeiro - Estatuto Disciplinar dos Funcionários Públicos - define no seu art. 3°, nos.3 e 4 os deveres gerais dos funcionários e agentes, referindo os deveres de isenção, de zelo, de obediência, de lealdade, de sigilo, de correcção, entre outros.
57° - Ora, o arguido na sua função de Presidente da Câmara violou os deveres de isenção, de zelo, de lealdade e de correcção a que estava obrigado.
Agindo dolosamente porque tinha conhecimento de que tudo quanto fez, não lhe era permitido e que agia contra os interesses da autarquia de que dirigia os destinos.
58° - Pelo exposto, entendemos que os autos deverão prosseguir com a prolação do despacho de pronúncia, nos moldes sobreditos.
59° - Mas, mesmo que assim não se considere, o que só por mera hipótese se admite, sempre deverão os autos prosseguir, para que, agora oficiosamente, a M. Juiz de Instrução prossiga com a avaliação de mais prova, ouvindo nomeadamente as testemunhas já referidas e aceite a acareação entre o arguido e o chefe de divisão de Planeamento da Câmara Municipal de …, conforme requerido.
Termos em que se requer seja dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser proferido despacho de prenuncia por se considerar suficientemente indiciada a prática, pelo arguido, dos crimes de abuso de poder p. e p. pelo art. 382 do C. Penal e dos crimes de peculato e peculato de uso p. e p. pelo art. 375 e 376 do C. Penal.
Caso assim não se entenda, requer o prosseguimento dos autos com a realização de todas as diligências que se reputem necessárias e adequadas à descoberta da verdade, para, em consequência, ser proferido despacho de prenuncia pelos crimes de peculato, peculato de uso e abuso de poder.

O MºPº respondeu ao recurso do assistente defendendo a sua improcedência;
O arguido não respondeu ao recurso
Nesta Relação o ilustre PGA emitiu parecer no sentido da procedência do recurso e da pronúncia do arguido pelos crimes de abuso de poder e peculato de uso (artºs 26º e 21º da Lei 34/897 de 16/7).
Foi cumprido o artº 417º2 CPP.

Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se à conferência.
Cumpre apreciar.
Consta do despacho recorrido (transcrição parcial):
“ (…)
A instrução tem como finalidade comprovar judicialmente a decisão sobre se a causa deve ou não ser submetida a julgamento (artigo 286.º do Código de Processo Penal).
Assim, será pronunciado o arguido se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança, o mesmo é dizer apurados factos suscetíveis de integrar a prática de um crime e a imputação desses factos ao agente, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 308.º do Código de Processo Penal. Caso contrário, deve o juiz proferir despacho de não pronúncia.
Nestes termos, o que se exige, quer na acusação, quer na instrução, ao contrário da fase de julgamento, é apenas um juízo de probabilidade séria, sendo que, se em sede de julgamento se mantiver uma situação de mera “possibilidade”, e tendo em conta os princípios que norteiam a apreciação da prova em processo penal, deverá o arguido ser absolvido em nome do princípio “in dubio pro reo”. Todavia, nesta fase, essa mesma possibilidade séria terá de conduzir a um despacho de pronúncia.
A lei não estabelece, nem poderia definir com rigor o que são “indícios suficientes”, sendo que como tais se devem considerar o conjunto de elementos convincentes de que o denunciado praticou os factos que lhe são imputados.
Como ensina o Professor Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, volume I, pág. 133 e seguintes, “os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação dos acusados, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”.
De resto, nos termos do disposto no artigo 283º, n.º 2 do Código de Processo Penal, para o qual remete o n.º 2 do artigo 308º, do mesmo diploma, o despacho de pronúncia depende da formulação de um juízo sobre a suficiência dos indícios: é necessário que deles resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. O Juiz só deve, assim, pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos, formar a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido.
*
À luz do supra exposto, vejamos agora o caso dos autos.
Ao arguido B… vem imputada no requerimento de abertura da instrução a prática de um crime de peculato e de um crime de peculato de uso, previstos e punidos pelos artigos 375º e 376º, n.º 2 do Código Penal, e bem ainda de um crime de abuso de poder, previsto e punido pelo artigo 382º do Código Penal.
No que concerne ao crime de peculato, dispõe o artigo 375º do Código Penal o seguinte:
“1. “O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos, se pena mais grava lhe não couber por força de outra disposição legal.
2. Se os valores ou objetos referidos no número anterior forem de diminuto valor, nos termos da alínea c) do artigo 202º, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
3. Se o funcionário der de empréstimo, empenhar ou de qualquer outra forma, onerar valores ou objetos referidos no n.º 1, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.”
Por sua vez, o conceito de funcionário a ter em conta para efeitos deste artigo é o previsto no artigo 386º do Código Penal, o qual dispõe, no que para o caso dos autos releva, o seguinte:
“1- Para efeitos da lei penal, a expressão funcionário abrange:
a) O funcionário civil;
b) O agente administrativo;
c) Os árbitros, jurados e peritos; e
d) Que, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma atividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar.
2- Ao funcionário são equiparados os gestores, titulares dos órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas, nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público e ainda de empresas concessionárias de serviços públicos.”
(…)
Ora, o crime de peculato é um crime específico, na medida em que supõe uma determinada qualidade do sujeito ativo, ou seja, supõe o exercício de funções públicas por parte do agente e o respetivo abuso de função, pondo-se em causa o bom andamento da administração pública. E crime específico impróprio, na medida em que, no caso de o agente não ser funcionário, comete o crime de abuso de confiança.
Aliás, o tipo legal de peculato e o tipo legal de abuso de confiança são coincidentes nos respetivos elementos objetivos e subjetivos, acrescendo apenas o peculato a qualidade específica do sujeito ativo, razão pela qual há entre os dois crimes uma relação de concurso aparente, na modalidade de especialidade. Como bem exprime o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Outubro de 1993 (consultado em www.dgsi.pt), “O tipo legal de crime de peculato parte de um crime base, ou primário - o crime de abuso de confiança, no qual introduz um elemento qualificante que é a qualidade de funcionário do agente. É pois um crime de abuso de confiança qualificado”.
Relativamente ao bem jurídico protegido com a incriminação, diremos que é dupla a proteção concedida pelo tipo legal do peculato, na medida em que, se por um lado tutela bens jurídicos patrimoniais, ao criminalizar a apropriação ou oneração ilegítima de bens alheios, por outro lado tutela a probidade e fidelidade dos funcionários, para garantir o bom andamento e a imparcialidade da administração, ou a intangibilidade da legalidade material da administração pública, punindo abusos de cargo ou de função.
Mas para que se esteja perante um crime de peculato, estes dois elementos terão de se relacionar entre si: assim, há abuso de função pelo facto de o agente se apropriar ou onerar bens de que tem a posse em razão as funções que exerce, violando com esse comportamento a relação pré-existente, ou seja, o agente viola os limites intrínsecos do exercício da posse que lhe foi conferida em razão do seu ofício ou serviço.
Já no que concerne ao crime de peculato de uso, o mesmo encontra previsão no artigo 376º do Código Penal, disponde concretamente o seu n.º 2 que “Se o funcionário, sem que especiais razões de interesse público o justifiquem, der a dinheiro público destino para uso público diferente daquele a que está legalmente afetado, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.”
Trata-se de um crime específico próprio, pois que o simples abuso do uso não é punível. A punibilidade desta conduta supõe a qualidade de funcionário do respetivo sujeito ativo. Está essencialmente em causa, tal como no tipo legal do peculato, a proteção do bom andamento, legalidade e transparência da administração, através da repressão de abusos de cargo (função) por parte de funcionários que, em razão das suas funções, têm a posse de determinados bens.
No que respeita ao elemento subjetivo do crime, trata-se de crimes dolosos, exigindo-se para o seu preenchimento um específico “animus apropriandi”. Assim o agente terá de ter conhecimento da factualidade típica, nomeadamente ter consciência de que se trata de bem alheio de que tem a posse em razão as suas funções, e terá ainda de ter a consciência e a vontade de fazer seu o bem, para seu próprio benefício ou de terceiro. Concretamente quanto ao crime de peculato de uso, dir-se-á que a intenção do agente não é a de fazer seu o bem, mas a de o usar temporariamente, ou de permitir o seu uso, tendo que existir ab initio a intenção de restituição. Com efeito, se o agente tinha intenção de apropriação quando praticou a conduta e posteriormente resolve restituir o bem, preencher-se-á o tipo legal do peculato e não o de peculato de uso.

Por sua vez, a respeito do crime de abuso de poder, dispõe o artigo 382º do Código Penal que “O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”.
Integrando-se no Capítulo IV, dos crimes cometidos no exercício de funções públicas, e, dentro deste, na Secção III, do abuso de autoridade, bem jurídico protegido pela norma incriminatória em apreço é a autoridade e credibilidade da administração do Estado ao ser afetada a imparcialidade e eficácia dos seus serviços.
Esta exigência corresponde a um princípio fundamental da organização do Estado, consagrado constitucionalmente nos artigos 266º, 268º e 269º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, sobretudo ao plasmado no n.º 2, do citado artigo 266º, nos termos do qual “os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade”.
Também o artigo 3º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 28/84, de 16 de Janeiro, relativo ao Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, refere o dever geral dos funcionários e agentes de atuar no sentido de criar no público confiança na ação da Administração Pública, em especial no que à sua imparcialidade diz respeito.
No que diz respeito ao tipo objetivo, o preenchimento do tipo legal de crime poderá ter lugar através do abuso de poderes ou da violação de deveres pelo funcionário, sendo certo que em ambos os casos terá que se tratar de poderes ou deveres inerentes à sua função.
Por abuso de poderes deve entender-se a instrumentalização de poderes para finalidades estranhas ou contrárias às permitidas pelo direito administrativo, ou seja, ilegítimas, por uma das seguintes formas: i) quer excedendo os limites da sua competência, em razão do grau hierárquico, em razão do lugar e em razão do tempo (incompetência relativa), ii) quer desrespeitando formalidades impostas por lei ou atuando fora dos casos previstos na lei (violação da lei); iii) quer fazendo uso dos seus poderes para um fim diverso daquele para o qual lhe foram conferidos (desvio de poder, que apenas pode ter lugar estando em causa o exercício de poderes discricionários), interessando, para efeitos de criminalização, a modalidade do desvio de poder em que o interesse público é preterido em nome de fins ou interesses de natureza meramente particular.
Está excluída do tipo legal em análise a incompetência absoluta, ou seja, o caso em que o poder ilegitimamente exercido é um poder da esfera administrativa, bem como a usurpação de poderes, em que o órgão administrativo usurpa poderes pertencentes a um outro poder do Estado.
Por violação de deveres deve entender-se uma violação de poderes funcionais relacionados com o exercício da função e que só subsistem enquanto o funcionário está em atividade, neles se incluindo: i) deveres funcionais específicos impostos por normas jurídicas ou por instruções de serviço e relativos a uma função em particular; ii) deveres funcionais genéricos que se referem a toda a atividade desenvolvida no âmbito da administração do Estado (assim, o dever de obediência, o dever de sigilo, o dever de isenção e o dever de lealdade, entre outros).
Não se exige que o abuso de poderes ou a violação de deveres sejam referidos a um ato administrativo, apenas se exigindo que os poderes ou deveres em causa sejam inerentes às funções exercidas pelo agente. Parte-se aqui de um conceito amplo de função pública, abrangendo atos simples e complexos, informações, atos orais, atividades técnicas e todos aqueles atos que em ligação com outros constituam um todo juridicamente relevante pela sua referência ao aparelho do Estado.
Numa outra perspetiva, o tipo legal de crime tanto pode ser exercido por ação como por omissão, na medida em que também neste último caso tem lugar a violação de deveres impostos ao agente, uma vez que este recusa indevidamente ou atrasa a prática de um ato que por razões de justiça, saúde pública, ordem ou segurança públicas deve ser praticado pontualmente.
Um outro elemento constitutivo do tipo legal de crime reconduz-se à atuação com intenção de obter para si ou para terceiro benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa.
Por benefício deve entender-se toda a vantagem que o sujeito ativo pretende retirar da sua atuação e que, em concreto, poderá assumir natureza patrimonial ou não patrimonial.
O carácter ilegítimo deste benefício significa que não basta o abuso de funções ou violação de deveres por parte do funcionário, sendo necessário que tal abuso se manifeste exteriormente através da lesão do bom andamento e da imparcialidade da administração, não se esgotando ou encerrando em si mesmo.
O elemento traduzido na intenção de causar prejuízo a outra pessoa não exige, outrossim, o carácter patrimonial do mesmo, traduzindo a efetiva instrumentalização de poderes por parte do funcionário em nome de interesses de natureza particular, independentemente dos motivos subjacentes à conduta.
Sujeito ativo do tipo de crime em apreço deve ser um “funcionário”, no sentido utilizado pelo artigo 386º do Código Penal, já acima referido.
Por fim, ainda no âmbito do tipo objetivo, importa referir que o crime se consuma com a comissão do ato ou facto abusivo por parte do funcionário, sendo irrelevante sob este ponto de vista a efetiva verificação do dano ou vantagem para o agente ou para terceiro (trata-se, pois, de crime formal ou de mera atividade).
No que especificamente concerne ao tipo subjetivo, o crime em causa é inegavelmente doloso.
Porque entendemos que o legislador penal optou por colocar o abuso de funções como núcleo central da ilicitude do comportamento, sem que tenha afastado a consideração da natureza ilegítima da finalidade prosseguida como elemento adicional para apurar a responsabilidade do agente, aderimos à tese que sustenta que este dolo deve ser encarado como “dolo específico”, uma vez que assumem relevância típica os fins particulares prosseguidos no caso concreto pelo funcionário.
Desta feita, afasta-se a possibilidade de dolo eventual, uma vez que não é suficiente a conformação da vontade com um resultado possível, exigindo-se a orientação da conduta em ordem a atingir esse mesmo resultado.
*
Analisemos agora se da prova carreada para os autos resulta suficientemente indiciado ter o arguido praticado os factos descritos no requerimento de abertura de instrução.
Em sede de inquérito foram realizadas diversas diligências probatórias, tendo os autos iniciado com a participação efetuada por C…, ora assistente, constante de fls. 1 a 30, dando conta de que a zona industrial …/…, inicialmente criada com 32 lotes, a dada altura, passou a ter mais lotes, um deles com a área de 18m2 e sem acesso; que esse lote, com o n.º.., tinha edificado um poço, supostamente efectuado por funcionários da autarquia e apresentou-se como interessada na sua aquisição P…, esposa do, na altura, Presidente da Câmara; que, há cerca de 2 anos o Presidente da Câmara pediu a proprietários de alguns terrenos permissão para a passagem de tubagem para transporte de água, obra concluída um dia antes da reunião de Câmara e que consistiu na colocação de tubos por caminhos e arruamentos públicos e propriedades privadas numa extensão de 1500/2000m; e que nos dias 8 e 9 de Setembro de 2011, meios materiais e humanos da autarquia estiveram a trabalhar na vala aberta para colocação da tubagem.
Com a sua participação, o denunciante fez juntar diversos documentos, a saber: cópia da ata da reunião da Câmara Municipal de 26.07.2011 (fls. 6 a 10) aí se aludindo à aprovação da venda dos lotes .. e .. por P… e respetiva ordem de trabalhos (fls. 12 a 14), cópia de informação sobre a apresentação de proposta de aquisição dos lotes .. e .. por P…, cópia da ata da reunião da Câmara Municipal de 28.12.2009 (fls. 15 a 19), cópia da ata da reunião da Câmara Municipal de 09.08.2011 e ordem de trabalhos (fls. 20 a 24), fotografias do poço (fls. 25) e artigo de opinião em jornal (fls. 29).
Posteriormente inquirido, C… confirmou integralmente o teor da participação criminal apresentada.
Foram solicitados e juntos aos autos outros elementos documentais, concretamente cópia do regulamento de operação de loteamento da zona industrial …-… presente à reunião de 25.05.2009, e respetiva memória descritiva (fls. 63 a 80), cópia do regulamento de operação de loteamento da zona industrial …-… presente à reunião de 22.06.2009 (fls. 82 a 110), cópia do contrato-promessa de compra e venda do lote 4 pela sociedade E…, Lda, cópia do título de compra e venda por P… do lote .. (fls. 113 a 116), cópia das plantas relativas à operação de loteamento da zona industrial …-…, certidão permanente da sociedade E…, Lda (fls. 136 a 142), certidão do prédio inscrito na matriz sob o artigo 314, loteamento municipal (fls. 67 e seguintes); recibo do pagamento do valor pago pelo lote .. e cópia do cheque (fls. 225 e 227), cópia do processo n.º 17/2011 relativo à passagem do tubo de abastecimento de água (fls. 253 a 265), orçamentos de empresas privadas para pavimentação (fls. 268 a 270, 275 a 276, 280).
Efetuaram-se diligências externas, tendo a Polícia Judiciária efetuado deslocações à zona industrial e ao lote em causa verificando que não possui acesso próprio, mas apenas através dos lotes contíguos, nele existindo um poço, ai tendo sido verificado o percurso da tubagem até à casa do Presidente da Câmara, apurando-se ainda que um dos lotes subjacentes foi adquirido por uma sociedade denominada E…, Lda, da qual o Presidente da Câmara é sócio (fls. 39 e seguintes); à Câmara Municipal consultando projeto relativo à criação da zona industrial de …/… (fls. 60 e seguintes); e à sede da sociedade E…, Lda, moradia devoluta, desconhecendo os residentes o funcionamento naquele local de qualquer empresa de construção ou imobiliária (fls. 145).
Foi solicitada informação à Q… (fls. 192 e 193), da qual decorre que foi submetido um pedido em nome de B… para emissão de título de utilização de recursos hídricos datada de 19.09.2012 para pesquisa/captação de água subterrânea, processo cuja cópia consta de fls. 195 e seguintes, tratando-se de poço construído em prédio inscrito na matriz sob o artigo 1413 e não o poço do lote (artigo 2306.º).
Foi solicitado às autarquias limítrofes orçamento para repavimentação nas condições semelhantes às constantes dos autos, tendo sido obtidas as informações de fls. 347, 512, 513, 516
A Inspeção-Geral de Finanças juntou a fls. 348 e seguintes cópia do relatório final de inspeção ao Município de … efetuada em 2012.
A Agência portuguesa do Ambiente informou a fls. 514 que não existe qualquer comunicação prévia ou pedido de utilização de recursos hídricos nos prédios com os artigos 814 e 2304, mas um título de utilização de recursos hídricos para prédio inscrito na matriz sob o artigo 1483.
Foram ainda inquiridas as seguintes testemunhas: O…, Chefe da Divisão de Planeamento da Câmara Municipal de …, S… e T…, sócios da sociedade E…, Lda, P…, cônjuge de B…, Presidente da Câmara Municipal de …, aquando dos factos em investigação, U…, Chefe da Divisão Jurídica da Câmara Municipal de …, V…, Chefe da Divisão de Obras Públicas, e M…, coordenador da Divisão de Obras Municipais e Manutenção da Câmara Municipal de ….
Foram também tomadas declarações ao denunciado B….
Da análise dos elementos probatórios recolhidos em sede de inquérito, o Ministério Público concluiu que se encontravam indiciados os seguintes factos:
- foi efetuada operação de loteamento da zona industrial …-… cujo regulamento e memória descritiva foi presente à reunião de 25.05.2009;
- foi celebrado contrato-promessa do lote 4 dessa operação (posteriormente denominado lote 5) com a sociedade E…, Lda, mas nunca realizado o contrato definitivo;
- no ano de 2009 por destruição das infraestruturas na sequência das chuvas, a autarquia decidiu alterar o limite do loteamento a poente construindo um talude tendo deparado com a construção de um poço nesse espaço na zona que correspondia ao limite do lote …;
- o poço foi edificado por B… que também licenciou a passagem subterrânea de tubagem desde a sua residência até àquele lote;
- B…, na altura Presidente da Câmara Municipal de …, é sócio da sociedade E…, Lda;
- Em 22.06.2009 a operação de loteamento da zona industrial …-… foi alterada passando, entre outras alterações, a prever um lote .. situado na zona de … e, de acordo com a memória descritiva, contem um poço existente que integraria a área de proteção à zona industrial com 18 m2 de dimensão.
- o lote .. foi adquirido por P…, esposa de B…;
- o lote .. não tem qualquer acesso a não ser pelo lote ..;
- os trabalhos de reposição do pavimento foram efetuados pela Câmara Municipal tendo B… pago à autarquia o preço de €300,00.

Analisando tais factos, o Ministério Público concluiu que os mesmos não são suscetíveis e integrar a prática de qualquer crime de peculato, de peculato de uso, ou de abuso de poder, ou de qualquer outro crime, em consequência do que proferiu um despacho de arquivamento.
Importa agora aquilatar da prova produzida em sede de instrução.
Nesta sede, e tal como requerido pelo assistente, o tribunal procedeu à inquirição e testemunhas a analisou os elementos documentais trazidos aos autos pelo assistente e juntos pela Câmara Municipal de ….
Assim, foi inquirida a testemunha F…, Vereadora da Câmara Municipal de …, a qual referiu que participou na reunião de Câmara de 26 de Julho de 2011, na qual foi deliberada a venda do lote n.º .. à esposa do então Presidente da Câmara, o ora arguido B…, tendo explicado a este propósito que se suscitaram dúvidas quanto à legalidade da alienação, e bem ainda que foi nessa reunião que tomaram conhecimento da existência de um poço construído nesse lote, facto que motivou ainda maiores desconfianças, desde logo considerando o preço a que ia ser vendido o terreno, pois ia ser ao mesmo preço por metro quadrado dos demais lotes, e era entendimento que a existência desse poço devia ser tida em conta na fixação do preço. Em face de tais dúvidas, a testemunha absteve-se na deliberação, tendo ainda sido lavrada declaração de voto dos Vereadores do G…, nos quais se inclui.
Mais declarou desconhecer as circunstâncias em que ocorreu a alteração ao loteamento que determinou a autonomização do lote n.º .. em relação ao lote n.º …, e bem ainda desconhecer em que circunstâncias foram realizadas obras na via pública que liga o lote n.º … à residência do ora arguido.
Foi também inquirido I…, engenheiro mecânico, que foi Vereador da Câmara Municipal de … no mandato anterior, entre 2009 e 2013, tendo igualmente participado na reunião de Câmara de 26 de Julho de 2011, na qual foi deliberada a venda do lote n.º .. à esposa do então Presidente da Câmara, o ora arguido B…. Pelo mesmo foram expostas as dúvidas que suscitou na referida reunião de Câmara, na sequência do que pediu a planta do loteamento e constatou a existência do dito poço, bem como as respostas que obteve e a posição que assumiu de se abster na votação do negócio em causa, remetendo aliás para a declaração e voto que ficou lavrada em ata. Afirmou ainda desconhecer em que circunstâncias foi alterado o loteamento no qual se incluem o lote n.º … e o lote n.º …, e também desconhecer a existência de ligação do poço à casa do arguido.
Foram ainda tomadas declarações à testemunha K…, engenheiro técnico e também Vereador da Câmara Municipal de … no mandato de 2009 a 2013, que referiu que constatou a existência de um poço construído no terreno que integra o lote n.º … do Loteamento da Zona Industrial, desconhecendo quando o mesmo foi construído, assim como constatou que desde este local até à residência do então Presidente da Câmara de … há sinais de abertura de valas e de repavimentação, tudo levando a crer que foi colocado um tubo a ligar aquele poço à dita residência. Mais acrescentou que se consta que as obras de colocação do tubo e de repavimentação foram efetuadas pela autarquia, embora de tais factos não tenha conhecimento direto.
De um modo geral, o depoimento das testemunhas inquiridas em sede de instrução mostrou-se sério, isento e objetivo, tendo sido notório o esforço das testemunhas de se cingir aos factos de que tinham conhecimento direto e assinalando sempre os factos de que tinham conhecimento por “ouvir dizer”, pelo que mereceram ao tribunal inteira credibilidade.
Não vieram, no entanto, acrescentar nada de novo ao que já resultava do inquérito, tendo-se limitado a descrever a forma como decorreu a reunião de Câmara de 26 de Julho de 2011, na qual estiveram presentes (quanto às testemunhas F… e I…), ou a descrever o que constataram no lote em causa e na via pública adjacente (quanto à testemunha K…).
Assim sendo, entendemos que os factos que resultaram indiciados no termo do inquérito são exatamente os mesmos que resultam indiciados no termo da presente instrução, importando agora proceder ao respetivo enquadramento jurídico.
Diga-se desde logo que não se encontra indiciada a prática de factos suscetíveis de integrar crime de peculato de uso, porquanto apesar do teor da participação, não foi minimamente demonstrado que qualquer funcionário ou máquina da Câmara Municipal tenha sido usada para construção do poço e instalação da tubagem, nem em sede de inquérito nem em sede de instrução.
Tanto assim é que, embora o assistente C… num primeiro momento o refira, acaba por concluir que viu funcionários camarários próximos do local mas não é capaz de afirmar se se encontrariam a realizar aqueles trabalhos ou outros relacionados com problemas de saneamento naquela Zona Industrial.
Ademais, o arguido B… juntou recibos comprovativos do pagamento daqueles serviços, tendo sido inquiridos no inquérito os funcionários das respetivas empresas e que confirmaram a sua realização.
Por outro lado, no que respeita à repavimentação da via pública que liga o loteamento da Zona Industrial à casa do arguido, embora tenha sido efetuada pela Câmara Municipal, foi-o na sequência de pedido próprio, acessível a qualquer munícipe (embora tal já não constitua a prática desde o ano de 2009, tendo a exceção aqui sido justificada por um critério de celeridade na reposição para benefício dos utilizadores da via) mediante o pagamento do preço que a Câmara entendeu por justo. Foi o que sucedeu nesta situação, tendo a testemunha M… esclarecido os critérios e modo de cálculo do valor a pagar e que, de acordo com o que disse e não se tendo demonstrado coisa diversa nos autos, quer em inquérito quer em instrução, seria o mesmo para qualquer outro munícipe que apresentasse pedido idêntico.
É certo que se apurou que o preço fixado pela autarquia para a obra realizada ao cidadão B… é manifestamente inferior aos orçamentos apresentados por entidades privadas (cujos critérios de procura de lucro, tal como assinalado, diferem dos usados por uma autarquia), mas também por comparação com os preços fixados pelas autarquias limítrofes. No entanto, desta bonomia da autarquia em relação aos seus munícipes, e concretamente ao munícipe que é também, à data dos factos, o seu Presidente, não pode retirar-se a conclusão de um ato intencional de prejuízo para a Câmara ou benefício ilegítimo para o munícipe, muito menos para um munícipe em concreto.
Entendemos também que os factos que resultam indiciados não são suscetíveis de integrar a prática de um crime de abuso de poder.
A este propósito encontra-se suficientemente indiciado que o ora arguido B… procedeu à construção de um poço em terreno que não lhe pertencia e cuja falta de titularidade suficiente não lhe era, nem podia ser, desconhecida, que sabia que apenas tinha sido celebrado contrato-promessa do lote, não por ele próprio, mas por uma empresa de que é sócio, que sabia que não tinha existido transmissão de propriedade e, com esse conhecimento, constrói um poço e instala até ele 2 km de tubagem ainda antes, quer de ser adquirido o lote .., quer o lote ...
Mais se encontra indiciado que o arguido não comunicou a construção do poço às autoridades competentes, designadamente à Câmara Municipal, nem à Q….
Não podemos, no entanto, extrair deste conduta abusiva, por um lado, e omissiva por outro, que tenha ocorrido uma violação dos deveres inerentes às suas funções.
Note-se que para que ocorra abuso de poder torna-se necessário que esta violação de deveres ou poderes consubstancie uma violação de poderes funcionais relacionados com o exercício da função e que só subsistem enquanto o funcionário está em atividade, neles se incluindo.
Neste caso, os deveres que são violados pelo ora arguido (de falta de comunicação e de determinada obra do domínio hídrico) não são inerentes à sua função de Presidente da Câmara, nem com esta relacionados, antes são deveres de um normal cidadão, cuja violação, aliás, é em último termo suscetível de gerar responsabilidade contra-ordenacional (vide Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de Maio, e Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto).
Por outro lado, também não se encontra minimamente demonstrada qualquer interferência do ora arguido, quer na atuação dos demais funcionários que acabaram por intervir nesta situação, quer na própria deliberação que aprovou a concretização da venda do lote n.º .. à sua esposa.
Da própria inquirição do Chefe da Divisão de Planeamento da Câmara Municipal de …, a testemunha O…, retira-se que foi por iniciativa deste, e não por qualquer pressão de terceiros, designadamente o arguido, que foi alterado o loteamento em causa, autonomizando o lote n.º .., como uma solução para a minimização dos efeitos das chuvas quês e fizeram sentir em 2009 e que destruíram infraestruturas já construídas na zona industrial ao nível dos taludes, a poente, e que, quando se deparou com a existência de um poço, que presumiu ser propriedade da sociedade promitente compradora do lote n.º 5, resolveu criar aquele lote n.º .., que se destinava a ser adquirido pelo proprietário do lote 5, por se encontrar encravado, sem quaisquer acessos. A violação urbanística foi aqui cometida pelo Chefe da Divisão de Planeamento com a autonomização do lote n.º .., sem que tenha sido determinada pela atuação do Presidente da Câmara, ou por este sugerida, e sem qualquer intuito de o beneficiar, visto que o Chefe da Divisão de Planeamento desconhecia que o poço era propriedade do ora arguido.
Ademais, o Presidente da Câmara retirou-se da reunião de Câmara ocorrida a 26 de Julho de 2011, na qual foi deliberada a venda do lote n.º .. à sua esposa, não tendo votado nem deliberado o que quer que seja quanto a este negócio, assim acautelando a verificação de conflito de interesses.
Em face do exposto, impõe-se concluir que nesta operação nada há a apontar do ponto de vista da sua legalidade, como bem resulta do teor da respetiva ata (cfr. fls. 6 a 10), e nem se constata qualquer atuação ou omissão do Presidente da Câmara violadora dos seus poderes-deveres funcionais.
De tudo o que supra ficou exposto, conclui-se que inexiste nos autos qualquer prova indiciária de que o arguido tenha praticado os factos descritos no requerimento de abertura de instrução, suscetíveis de integrar a prática de um crime de peculato, de um crime de peculato de uso e de um crime de abuso de poder, impondo-se assim a sua não pronúncia.
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DECISÃO:
Termos em que, por todo o exposto, e ao abrigo do disposto nos artigos 308º, n.º 1 e 287.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal, decido não pronunciar o arguido B… pela prática do crime de abuso de poder e do crime de peculato de uso, previstos e punidos, respetivamente, pelo artigo 382º e pelo artigo 376º, n.º 2, ambos do Código Penal.
*
Custas a cargo do assistente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal (artigos 515.º, nº 1, alínea a) e 517.º, a contrario, ambos do Código de Processo Penal e artigo 8º do Regulamento das Custas Processuais).”
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É a seguinte a questão suscitada:
Se existem indícios suficientes da pratica pelo arguido dos crimes de peculato, peculato de uso e abuso de poder
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O recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e que o tribunal de recurso tem de apreciar (artºs 412º, nº1, e 424º, nº2 CPP, Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335).
No caso não há que chamar a atenção para o vícios do erro notório na apreciação da prova e da contradição insanável da fundamentação que o recorrente nomeia, não apenas porque são vícios da sentença não do despacho de não pronuncia / pronuncia, mas porque a apreciação da prova que deve levar ao despacho final de pronuncia ou não pronuncia se traduz na apreciação dos indícios dos crimes e em resultado da sua existência ou da sua inexistência em termos de suficiência, pelo que é esta a grande questão que os autos colocam.
Para isso há que ter presente o conceito penal de indícios suficientes (“… sempre que deles resultar uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança”) - artº 283º2 CPP e consequentemente se em face dos meios de prova carreados para o processo é de “… considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável que a absolvição” segundo a lição comummente citada do Prof. Figueiredo Dias.
Para que surja uma decisão de pronúncia, a lei não exige a prova no sentido da certeza - convicção da existência do crime; antes se basta com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, tanto mais que a prova recolhida na fase instrutória não constitui pressuposto da decisão de mérito final; trata-se de uma mera decisão processual relativa ao prosseguimento do processo até à fase do julgamento.
Todavia, como a simples sujeição de alguém a julgamento não é um acto em si mesmo neutro, acarretando sempre, além dos incómodos e independentemente de a decisão final ser de absolvição, consequências, quer do ponto de vista moral, quer do ponto de vista jurídico, entendeu o legislador que tal só deveria ocorrer quando existissem indícios suficientes da prática pelo arguido do crime que lhe é imputado.
Assim sendo, para fundar uma decisão de pronúncia não é necessária uma certeza da infracção, mas serem bastantes os factos indiciários, por forma a que, da sua lógica conjugação e relacionação, se conclua pela culpabilidade do arguido, formando-se um juízo de probabilidade da ocorrência dos factos que lhe são imputados e bem assim da sua integração jurídico-criminal.
Os indícios são, pois, suficientes, quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou pelo menos, quando se verifique uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
Fixadas as directrizes, que de acordo com a lei, nos devem orientar na prolação da decisão instrutória, de pronúncia ou não pronúncia, interessa agora, apurar se, em fase de inquérito e instrução, foram recolhidos indícios suficientes para submeter o arguido a julgamento, sendo que e independentemente do merecimento das partes no litígio, é pelo menos evidenciado que tudo foi congeminado e querido pelo arguido enquanto Presidente da Camara Municipal.
Todavia, questões prévias se equacionam que podem inviabilizar desde já uma tomada de posição segura por este Tribunal da Relação, para além de o despacho recorrido seguindo erradamente o despacho de arquivamento se reportar a factos vagos e não localizados temporal e sequencialmente como podem e devem, e de que é exemplo evidenciado o parecer do ilustre PGA junto desta Relação.
Assim a questão previa que se suscita em face do despacho recorrido é o da sua fundamentação, a qual se revela insuficiente em face do seu objecto (o RAI) e do seu objectivo.

Quanto à sua fundamentação.
O dever de fundamentar as decisões judiciais é imposto pela CRP - artº 205º CRP - e surge no processo penal também como decorrência das garantias de defesa do arguido expressas no artº 32º1 CRP, e encontra consagração legislativa no artº 97º CPP quanto aos despachos (os quais nos termos do nº 5 devem especificar “os motivos de facto e de direito da decisão” e no artº 374º CPP quanto às sentenças (sendo a sua omissão cominada com a nulidade - artº 379º1 CPP) e existe para cumprir as seguintes finalidades: de conhecer e convencer os destinatários (as partes) da decisão e a sociedade em geral sobre a correcção e a justiça do caso; permitir ao tribunal de recurso conhecer do processo logico-racional subjacente à decisão e aos destinatários da mesma exercer o direito ao recurso de modo consciente e de posse de todos os dados necessários para o efeito, e de permitir o auto controlo e a ponderação por parte do tribunal que decide, sobre a apreciação das provas (pensar duas vezes antes de decidir), e por estas vias assegurar o respeito pelo principio da legalidade da e na sentença (e do decidido) e assegurar e demonstrar a independência e imparcialidade dos juízes e das suas decisões, como factores que são de credibilidade e de legitimidade - Cf. Ac STJ 18/12/91 BMJ 412º, 383, e ac TC 59/2006 http://www.tribunalconstitucional.pt/., e ac. R.C. 3/3/2010 www.dgsi.pt ), e neste sentido se expressou o Ac da RG de 11/01/2016, CJ, XLI, I, pg. 295 “I - O dever de fundamentação das decisões susceptíveis de afectarem direitos e interesses relevantes dos cidadãos, além de constituir uma das fontes de legitimidade em geral, constitui um direito e garantia fundamental do cidadão contra a arbitrariedade no exercício do poder público.”

Se quanto ao dever de fundamentação do despacho de não pronúncia ocorre unanimidade na jurisprudência (para além das normas citadas a impor a fundamentação tal exigência é ainda expressa no artº 307º1 CPP), já quanto ao conhecimento de tal falta e às suas consequências as decisões divergem.
Desde a nulidade insanável e de conhecimento oficioso, à nulidade sanável até à irregularidade é possível argumentar num sentido ou noutro, como tem feito a jurisprudência.
Defendem entre outros:
- a nulidade insanável entre outros: ac. 23/4/2008 Mª Leonor Esteves www.dgsi.pt, os ac.s R P 27/2/2013; R Ev. 22/4/2014, 17/6/2014; R Lx 7/5/2013; RC 13/11/2013; Paulo Albuquerque; ac. TRP 17/2/2010 Eduarda Lobo www.dgsi.pt, ac. TRP 31/1/2015 Ligia Figueiredo www.dgsi.pt
- a nulidade sanável dependente de arguição: o ac. R P 7/7/2010 www.dgsi.pt (Jorge Gonçalves); Ac. 27/2/2013 Elsa Paixão www.dgsi.pt; ac. RP 1/7/2015 www.dgsi.pt Neto de Moura; RG de 2/11/2015, proc.44/14.5GAMSF.G1, www.dgsi.pt
- a irregularidade: ac TRP 16/12/2009 Francisco Marcolino www.dgsi.pt; TRP 5/1/2011 (Joaquim Gomes) www.dgsi.pt; TRP 10/12/2014 Luísa Arantes www.dgsi.pt; TRP 15/4/2015 Mª Deolinda Dionisio www.dgsi.pt, de conhecimento oficioso, a sanar porque afecta o valor do acto praticado;
Posições essas sintetizadas sumariamente no ac. 25/2/2015 (Moreira Ramos) www.dgsi.pt “I – O despacho de não pronúncia há-de conter, além do mais, a enumeração dos factos tidos como indiciados, pelo menos, com vista a possibilitar apreender e sindicar o raciocínio seguido pelo tribunal. II – A falta ou insuficiência de tal despacho não constitui a nulidade insanável a que alude o artigo 379º, nº 1, al. a), pois aqui impera o artigo 97º, nºs. 1, al. b) e 5, e não o artigo 374º, nº 2, todos do CPP, inexistindo fundamento legal para que se equipare um tal despacho a uma sentença. III – O que constitui para uns, a nulidade a que alude o artigo 283º, nº 3, por força da remissão contida no artigo 308º, nº 2, para outros, a mera irregularidade vertida no artigo 123º, nº 1, todos do CPP.”

Para nós temos como boa a orientação de que estamos perante numa situação de irregularidade, que pode afectar o valor do acto praticado e se assim for de conhecimento oficioso e a sanar em face disso, dependendo do conteúdo no despacho de não pronuncia e dos termos em que é requerida em recurso a apreciação de tal despacho, e no que ao caso respeita seguimos o ac RP de 6/01/2016, CJ, XLI, I, pg. 187 “I - O despacho de não pronúncia deve descrever os factos constantes do requerimento de abertura de instrução que considera suficientemente indiciados e aqueles que considera não suficientemente indiciados. II - A falta dessa descrição constitui irregularidade que influi na decisão da causa.”

Quanto ao seu objecto.
Objecto do despacho final de instrução, é desde logo e em primeira linha o RAI (requerimento de abertura da instrução) e não o despacho final do MºPº findo o inquérito (embora também o possa ter subjacente) e em especial no caso de a instrução ser requerida, pelo assistente na sequência da prolação de um despacho de arquivamento por parte do MºPº, em face do que dispõe ao artº 283º 3, al. b) e c) CPP por força do artº 287º 2 CPP, pois o requerimento de abertura da Instrução (RAI) deve traduzir-se materialmente numa acusação.
E é essa acusação inserta no RAI que vai ser objecto de apreciaçao pelo Mº Juiz e sobre que vão incidir se for o caso os actos de instrução (artº 290º 1 e 286º CPP)
Objecto de apreciação por parte do juiz de instrução serão os factos do RAI,, e apenas a esses se pode ater pois que uma alteração substancial ou não substancial dos factos descritos no RAI, só por via do artº 303º CPP pode ser ponderada, sendo que no processo em curso apenas a alteração não substancial pode ser ponderada (nº 1) e a alteração substancial não pode ser atendida (equivalendo a denuncia – artº 303º 3 4 CPP) sob pena de nulidade da decisão instrutória (artº 309º1 CPP).
Assim, o juiz de instrução no final desta tem de se pronunciar sobre os factos (e completando-os os não) que o assistente haja apresentado no RAI, pois são estes o objecto de conhecimento, o objecto do processo.
Como expressa o ac.RG de 11/01/2016, CJ, XLI, I, pg. 268 “I - O requerimento do assistente para a abertura da instrução tem de configurar substancialmente uma acusação, com a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis.
II - Quando o Ministério Público arquiva o inquérito, é aquele requerimento que fixa o objecto do processo, traçando os limites dentro dos quais se há-de desenvolver a actividade investigatória e cognitiva do juiz de instrução.”

A jurisprudência, nomeadamente a supra citada, é concordante que a fundamentação no caso da instrução e do despacho final influi essencialmente sobre a descrição dos factos indiciados e dos factos não indiciados.
E compreende-se que assim seja, pois são estes que delimitam o objecto de apreciação (de julgamento em caso de pronuncia, e de recurso em caso de não pronuncia), sendo que a necessidade de descrição dos factos indiciados e não indiciados (é corolário do dever de fundamentação das decisões judiciais e imposto quer pela CRP quer pela lei ordinária – artº 97º CPP como mencionado) tem o mesmo efeito que na sentença a descrição dos factos provados e não provados: dar a certeza de que o tribunal sobre eles se debruçou especificamente, como imposição não apenas do princípio da imparcialidade do juiz mas da necessidade da transparência das suas decisões e da sua clareza e percetibilidade pelos destinatários com efeito legitimador da actividade jurisdicional em nome do povo), para além de delimitando o objecto de apreciação tem o efeito processual e extra processual de relevantíssimo valor, que se traduz na relevância do caso julgado.
Como expressa o ac RP 1/7/2015 www.dgsi.pt Neto de Moura “I-O JIC pronunciando-se sobre a ausência de indícios de crime, profere uma decisão de mérito que tem força vinculativa dentro e fora do processo onde foi proferida, constituindo caso julgado res judicata e só mediante recurso de revisão pode ser reaberta a discussão sobre esses factos;” daí a delimitação através dos factos indiciados e não indiciados tradutores e delimitadores do objecto de apreciação, que irão possibilitar ou não uma posterior revisão da decisão, como indicadores de que a questão já foi apreciada jurisdicionalmente e não foi encontrado fundamento criminal, assim reforçando por esta via a segurança e a certeza jurídicas.
Razão pelas quais como ali se expressa “I- …o despacho de não pronúncia tem de especificar os factos em relação aos quais existe prova indiciária suficiente e aqueles em relação aos quais não existem indícios suficientes;”
No mesmo sentido era já o expresso no Ac TRP 7/7/2010 Jorge Gonçalves, www.dgsi.pt “I- A vinculação temática da instrução é fixada pelo requerimento para a abertura da instrução [RAI]: a investigação do juiz de instrução criminal é autónoma, mas no quadro do tema factual delimitado pelo referido requerimento.”
Assim podemos concluir que o juiz de instrução ao proferir o despacho final deve mover-se nos factos indicados pelo RAI e não em quaisquer outros, donde o Mº Juiz ao proferir o despacho de não pronúncia deve indicar de entre os factos elencados no RAI pelo assistente aqueles que julga indiciados e aqueles que julga não indiciados e no final extrair a consequência jurídica que se impõe: pronuncia ou não pronuncia, vg por os factos indiciados constituírem crime ou não constituírem crime;.

Ora no nosso caso, afigura-se-nos que para além de uma deficiente leitura dos indícios que se extraem das provas apresentadas devidamente analisadas e criticadas, como o comprova o parecer do ilustre PGA nesta Relação, faltando a sua ponderação e essa analise critica à luz das regras da experiência, o certo é que em lado algum do despacho em causa se enunciam os factos indiciados e os não indiciados e a sua razão de ser.
A única referencia aos factos indiciados é feita por remissão (fls 864) para os constantes do despacho de arquivamento (que também não contem nenhum encadeamento cronológico e devia tal como se evidencia no citado parecer do ilustre PGA) e nunca por referência aos factos constantes do RAI (e seu aditamento), que foi completamente esquecido, e quanto aos factos não indiciados nenhum referencia lhes é feita, e devia sê-lo, nos termos e pelas razões enunciadas, devendo quanto a cada facto ou seu conjunto, ser ponderada a sua razão de decidir (indiciado ou não indiciado), pois só assim podemos estar perante um verdadeiro recurso impugnativo de uma decisão.
Não tendo assim procedido e nem fazendo referência aos factos do RAI, ocorre insuficiente fundamentação do despacho de não pronuncia, que tratando-se (a nosso ver, como já explicitamos) de uma irregularidade, que porque impede no caso concreto uma correcta apreciação do recurso, que incide sobre a existência ou não de indícios dos imputados crimes, influi na decisão da causa, a impor a sua sanação, seguindo por essa via o decidido no Ac RP 10/12/2014 www.dgsi.pt (Luísa Arantes) “ I – Padece de irregularidade, que pode ser conhecida oficiosamente [art. 123.º, n.º 2, do CPP], o despacho de não pronúncia que não enumera os factos alegados no RAI considerados suficientemente indiciados e os considerados não suficientemente indiciados.
II – O cumprimento da exigência de especificação dos factos (do RAI) indiciados e não indiciados decorre do dever de fundamentação dos atos decisórios e da vinculação temática do juiz de instrução criminal e é essencial para a fixação dos efeitos de caso julgado da decisão de não pronúncia.”
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Pelo exposto, o Tribunal da Relação do Porto, decide:
Ao abrigo do artº 123º nºs 1 e 2 CPP julgar invalida a decisão recorrida e determina a reparação da irregularidade consistente na insuficiente fundamentação por falta da enumeração dos factos indiciados e dos não indiciados por referência ao requerimento de abertura da instrução e respectiva analise critica das provas à luz das regras da experiencia;
Sem custas.
Notifique.
Dn
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Porto , 12/10/2016
José Carreto
Paula Guerreiro