Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
674/16.0T8OVR-Q.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: WILLIAM THEMUDO GILMAN
Descritores: LEI DE SAÚDE MENTAL
INTERNANDO
DIREITO A SER OUVIDO
Nº do Documento: RP20190626674/16.0T8OVR-Q.P1
Data do Acordão: 06/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 804, FLS 348-351)
Área Temática: .
Sumário: I – O internando, no âmbito da Lei de Saúde Mental, goza do direito a ser ouvido pelo juiz sempre que uma decisão possa vir a ser tomada que pessoalmente o afecte
II – O direito a ser ouvido é excluído sempre que o estado de saúde do internando tornar a audição inútil ou inviável.
II – Pretende a lei que o doente esteja fisicamente presente na audição mas apenas se o seu estado de saúde lhe permitir acompanhar os actos processuais, excluindo-se as situações em que o estado de saúde do internando torne a sua audição “inútil ou inviável”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 674/6.0T8OVR-Q.P1
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Acordam em conferência na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
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1-RELATÓRIO
No âmbito do processo de internamento compulsivo n.º 674/16.0T8OVR, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Local Criminal de Ovar, do qual foi extraída a certidão que constitui os presentes autos, em que é requerido B…, pela Mma. Juíza do processo foi proferido, em 14.03.2019, despacho a indeferir a tomada declarações ao internando por este requerida.
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Não se conformando com esta decisão, o requerido recorreu para este Tribunal da Relação, concluindo a sua motivação com a s seguintes conclusões (transcrição):
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O Ministério Público, na sua resposta, pronunciou-se no sentido de ser negado provimento ao recurso confirmando-se o despacho recorrido.
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Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, pronunciou-se no sentido do não provimento do recurso.
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A Mma. Juíza a quo, antes de ordenar a subida dos autos, ao abrigo do disposto no artigo 414º-4 do CPP, manteve o despacho recorrido.
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Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, n.º 2 do CPP.
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Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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2-FUNDAMENTAÇÃO
2.1-QUESTÕES A DECIDIR
Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, a questão a apreciar e decidir é a de saber se o despacho recorrido deve ser substituído por outro que determine a audição do internando.
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2.2-A DECISÃO RECORRIDA E CIRCUNSTÂNCIAS RELEVANTES EXTRAÍDAS DOS AUTOS.
Com relevo para a resolução da questão colocada importa, desde logo, considerar como pertinentes o despacho recorrido e as circunstâncias que a seguir se descrevem.
2.2.1- O despacho recorrido.
O teor do despacho recorrido, proferido em 14.03.2019 (Ref. 106101916), é o seguinte:
«Fls. 716 e ref.8 8415041:
O Internando B… a fls. 716, por intermédio do seu Ilustre Defensor, requerer "prestar declarações".
Notificado para fundamentar legalmente o requerido, veio mesmo, transcreve- se, "esclarecer que a razão da sua inquirição fundamenta-se no direito que o internando tem de intervir nos actos que lhe dizem respeito e por ser útil no sentido da verificação do seu estado de compreensão e normalidade".
Prosseguindo os autos com vista, promove a Digna Procuradora Adjunta o indeferimento do requerido com os doutos fundamentos exarados a fls. 720/721.
Revertendo ao caso em sujeito, desde logo resulta que o II. Defensor do Requerido, não obstante ter sido notificado para o efeito, não fez qualquer indicação da fundamentação legal correspondente à pretensão que apresentou a fls. 716.
Preceitua o art. 10.° da Lei de Saúde Mental, aprovada pela Lei n.° 36/98, de 24/07, sob a epígrafe "Direitos e deveres processuais do internando" - aplicável ao caso uma vez que o Requerido encontra-se em regime ambulatório [e não em regime de internamento] no seu n.° 1, que "O internando goza, em especial, do direito de:
a) Ser informado dos direitos que lhe assistem;
b) Estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito, excepto se o seu estado de saúde o impedir;
c) Ser ouvido pelo juiz sempre que possa ser tomada uma decisão que pessoalmente o afecte, excepto se o seu estado de saúde tornar a audição inútil ou inviável;
d) Ser assistido por defensor, constituído ou nomeado, em todos os actos processuais em que participar e ainda nos actos processuais que directamente lhe disserem respeito e em que não esteja presente;
e) Oferecer provas e requerer as diligências que se lhe afigurem necessárias."
Não obstante a falta de indicação da fundamentação legal correspondente, considerando que o Requerido se encontra em regime ambulatório, como mencionado, será com base num destes direitos que o II. Defensor do Requerido terá baseado o requerimento de fls. 716, por via do qual veio requerer que este "preste declarações".
Ora, acompanhando a douta promoção que antecede, cujo teor reproduzimos para todos os efeitos legais, que resulta dos autos e melhor esclarecido até, pelo Sr Perito Médico Psiquiatra aquando da realização da sessão conjunta de prova, que o Internando padece de doença do foro psiquiátrico - psicose esquizofrênica paranóide particularmente grave, não apresentando qualquer juízo crítico para a doença.
Acresce que, tendo sido oportunamente solicitado parecer a respeito do estado de saúde do Internando no sentido de, em consequência do mesmo, ser adequado ou, pelo contrário, contraproducente, a notificação daquele, na sua própria pessoa, para se pronunciar a respeito da revisão do tratamento compulsivo em regime ambulatório, pela Ex.ma Médica Psiquiatra que o acompanha, foi esclarecido que, sic, "as características da doença psicótica de que padece e a ausência sustentada de sentido crítico para a doença e para a necessidade de manter tratamento, tornam contraproducente a notificação do Internando" - cfr. fls. 712.
Daqui resulta que uma tal pretensão - "prestar declarações" não só não se mostra possibilitada pelo estado de saúde do Requerido, que na verdade não o permite, como até tornará inútil essa diligência.
É que, como bem se refere na douta promoção vinda de acompanhar, a concreta doença de que padece o Requerido e a ausência de juízo crítico para a mesma, tornam até prejudicial a mera notificação, na sua pessoa, do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica. O que, por maioria de razão, inviabiliza que o mesmo se apresente em juízo, para prestar declarações.
Por seu lado, igualmente certo é que sempre se questionaria a utilidade dessas declarações e que se destinariam, segundo o Il. Defensor, à "verificação do estado de compreensão e normalidade" do internando, pois que, segundo assim cremos, esse estado de compreensão e normalidade" apenas poderá relevar e ser aferido, em termos clínicos, dado que apenas os Médicos Psiquiatras que vêm acompanhando o Internando e que, periodicamente, elaboram os relatórios de avaliação clinico-psiquátrica, poderão fundadamente avaliar o estado de saúde daquele e aferir se o mesmo revela afastamento, ou não, dos padrões de "normalidade" com vista à manutenção, ou não, do tratamento.
Em suma, resulta evidente nos presentes autos, mormente tomando em conta o resultado da tramitação operada até ao momento, e ressalvado o devido respeito, que o estado de saúde do internando impede o deferimento da pretensão de "prestar declarações" de fls. 716, cfr. art° 10° n° 1 al, b) e c) Lei 36/98 de 24/7, ao que acresce ainda, por outro lado, que a pretendida tomada de declarações para "verificação do seu estado de compreensão e normalidade" se afigura inútil visto que tal aferição se circunscreve ao foro da medicina psiquiátrica, configurando-se como avaliação médica e, consequentemente, subtraída a qualquer intervenção do Juiz.
Termos em que se indefere o requerido.
Notifique.
d.s.»
2.2.2- Circunstâncias extraídas dos autos
1-O recorrente B… encontra-se sujeito a tratamento compulsivo em regime ambulatório, nos termos do artigo 33º da Lei de Saúde Mental – Lei n.º 36/98, de 24 de Julho.
2-Em 11.01.2019 (Ref. 8180089) foi junto ao processo relatório de avaliação clínico-psiquiátrica para efeitos da revisão da medida, tal como previsto no artigo 35º, n.º 2 da Lei 36/98.
3-Face a dúvidas colocadas pelo defensor do internando foi proferido despacho (Ref. 105347009) a determinar, em suma, que os Exmos. Peritos Médicos Psiquiatras subscritores do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica esclarecessem se o estado de saúde do Requerido permite a sua notificação, na sua própria pessoa, e dando-se-lhe conhecimento do teor do aludido relatório de avaliação de clínico-psiquiátrica, ou se tal notificação é contraproducente ao seu estado de saúde e, desse modo, inútil ou inviável.
4- Em 5.02.2019 (Ref. 8293221) foi junto ao processo o solicitado esclarecimento, onde se refere, além do mais, que «…as características da doença psicótica de que padece e a ausência sustentada de sentido crítico para a doença e para a necessidade de manter tratamento, tornam contraproducente a notificação do internando.»
5-Notificado do relatório e dos esclarecimentos o Defensor do internando, foi requerida (Ref. 31567928) a prestação de declarações do internando.
6- Por despacho (Ref. 105744658) foi ordenada a notificação do Defensor do internando foi notificado para fundamentar legalmente o requerido.
7- O Defensor do internando veio por requerimento (Ref. 31732408) esclarecer que a razão da inquirição do internando fundamenta-se no direito que o internando tem de intervir nos atos que lhe dizem respeito e por ser útil no sentido da verificação do seu estado de compreensão e normalidade.
8- Sobre este requerimento incidiu o despacho recorrido.
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2.3.- APRECIAÇÃO DO RECURSO.
O recorrente encontra-se sujeito a tratamento compulsivo em regime ambulatório, nos termos do artigo 33º da Lei de Saúde Mental – Lei n.º 36/98, de 24 de Julho.
É-lhe por isso aplicável o disposto no artigo 10º da Lei n.º 36/98, o qual dispõe, sob a epígrafe “Direitos e deveres processuais do internando”, o seguinte:
«1 - O internando goza, em especial, do direito de:
a) Ser informado dos direitos que lhe assistem;
b) Estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito, excepto se o seu estado de saúde o impedir;
c) Ser ouvido pelo juiz sempre que possa ser tomada uma decisão que pessoalmente o afecte, excepto se o seu estado de saúde tornar a audição inútil ou inviável;
d) Ser assistido por defensor, constituído ou nomeado, em todos os actos processuais em que participar e ainda nos actos processuais que directamente lhe disserem respeito e em que não esteja presente;
e) Oferecer provas e requerer as diligências que se lhe afigurem necessárias.
2 - Recai sobre o internando o especial dever de se submeter às medidas e diligências previstas nos artigos 17.º, 21.º, 23.º, 24.º e 27.º»
Para o caso em apreciação importa, essencialmente, atentar no direito a ser ouvido pelo juiz.
Com efeito, o direito do internando a estar presente nos atos processuais que diretamente lhe digam respeito e a ser ouvido visa assegurar o princípio do contraditório e o direito a participar na definição da sua situação, constituindo elementos fundamentais do direito a um processo justo e equitativo.
Mas também é importante ter em conta que o legislador com a ressalva da segunda parte da alínea b) do citado artigo 10º - “exceto se o seu estado de saúde o impedir” -, não só pretende que o doente se encontre de fisicamente presente, mas ainda que o estado de saúde do internando lhe permita acompanhar os atos processuais, compreendendo o seu sentido e alcance. Acresce que, conforme consta da alínea c) do mesmo artigo, ressalvadas ficaram também pelo legislador as situações em que o estado de saúde do internando torne a sua audição “inútil ou inviável”.
Quer isto dizer que nos casos em que o estado de saúde não o permita, torne inútil ou inviável a audição do internando, este não deve ser convocado para os atos processuais que lhe digam respeito, nem ser ouvido.
Claro que, nestas situações será representado pelo seu defensor que assegurará o contraditório e o direito a participar na definição da situação jurídica, ficando assim garantido o direito a um processo justo e equitativo.
Conforme consta do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica acima referido, o internando sofre de psicose esquizofrénica paranóide, com risco de deterioração de forma acentuada do seu estado e não possui o discernimento necessário para avaliar o sentido e o alcance do consentimento. E, tal como esclareceram os Peritos médicos, as características da doença psicótica de que padece e a ausência sustentada de sentido crítico para a doença e para a necessidade de manter tratamento, tornam contraproducente a notificação do internando.
Mas se na perícia se conclui nestes termos sobre a doença e os efeitos desta no internando, não vemos como poderemos afirmar a utilidade ou sequer a viabilidade da sua audição pessoal. Resta, assim, a sua representação pelo Ilustre defensor.
Como bem se referiu na decisão recorrida «Daqui resulta que uma tal pretensão - "prestar declarações" não só não se mostra possibilitada pelo estado de saúde do Requerido, que na verdade não o permite, como até tornará inútil essa diligência. É que, como bem se refere na douta promoção vinda de acompanhar, a concreta doença de que padece o Requerido e a ausência de juízo crítico para a mesma, tornam até prejudicial a mera notificação, na sua pessoa, do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica. O que, por maioria de razão, inviabiliza que o mesmo se apresente em juízo, para prestar declarações.»
Mas se assim é, não vemos como a decisão recorrida ao indeferir o requerimento de audição/prestação de declarações do internando violou o disposto em qualquer das alíneas do artigo 10° da Lei n.º 36/98, nem tão pouco que tenha violado o dever/direito de informação ou o disposto nos artigos 32° n° 1 (Garantias de processo criminal), 20° n° 2 (Acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva), e 37° n° 1 (Liberdade de expressão e informação) da CRP, pois não só tem acesso ao Tribunal para a defesa dos seus direitos, com também a sua defesa técnica se encontra assegurada pelo seu defensor e a sua liberdade de expressão e informação não se encontra limitada para além das incapacidades próprias da doença de que padece.
Pelo exposto, não merece qualquer censura a decisão recorrida, improcedendo, pois, o recurso.
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3- DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
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Sem custas – artigo 37º da Lei n.º 36/98, de 24 de Julho.
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Notifique.
(Elaborado e revisto pelo relator – art. 94º n.º 2, do CPP)

Porto, 26 de Junho de 2019
William Themudo Gilman
António Luís Carvalhão