Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1170/09.8JAPRT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ELSA PAIXÃO
Descritores: NULIDADE
DILIGÊNCIAS DE PROVA
FUNDAMENTAÇÃO
CRIME DE ACESSO ILEGÍTIMO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
ELEMENTOS DO TIPO
CRIME DE DEVASSA POR MEIO DE INFORMÁTICA
Nº do Documento: RP201401081170/09.8JAPRT.P2
Data do Acordão: 01/08/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A alínea d) do n.º 2 do art.º 120º do CPP abrange a omissão de actos ou diligências processuais na fase de julgamento e de recurso, que se reputem essenciais à descoberta da verdade.
II – O juízo sobre a essencialidade ou indispensabilidade da diligência de prova cabe ao tribunal e deve basear-se em critérios objectivos, independentes das convicções pessoais dos intervenientes processuais.
III – A sentença é nula quando a fundamentação da convicção for insuficiente para efectuar uma reconstituição do iter que conduziu a considerar cada facto provado ou não provado.
IV – O crime de acesso ilegítimo, previsto no art.º 6º da Lei n.º 109/2009, de 15/9, (Lei do Cibercrime), estruturalmente acolhe o crime anterior, previsto no art.º 7º da Lei 109/91, de 17/8, com alterações decorrentes dos compromissos internacionais que Portugal assumiu e, em particular, da Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa.
V – A factualidade incriminada é exactamente a mesma que era antes, não se exigindo, agora, qualquer intenção específica, por exemplo, a de causar prejuízo ou a de obter qualquer benefício ilegítimo pois que apenas se exige o dolo genérico.
V - O bem jurídico protegido é a segurança do sistema informático.
VI - O crime de acesso ilegítimo é praticado por quem actue de forma não autorizada, concretizando-se por qualquer modo normalmente idóneo de aceder a um sistema ou rede informáticos.
VII – O crime de devassa por meio de informática, previsto no art.º 193º do C. Penal, decorre do art.º 35º, n.º 3, da CRP, e visa proteger a reserva da vida privada contra possíveis actos de discriminação, que a utilização de meios informáticos torna exponencialmente perigosos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 1170/09.8JAPRT.P2
2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Paredes

Acordam, em Conferência, as Juízas desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO
No 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Paredes, no processo comum singular nº 1170/09.8JAPRT, em que é arguido B…, com os demais sinais dos autos, na sequência do acórdão desta Relação proferido em 06.03.2013, que declarou a nulidade da sentença e ordenou a reabertura da audiência com prolação de nova sentença, foi reaberta a audiência, no decurso da qual foi proferido o despacho de fls. 727 a 729 (que ordenou o cumprimento do disposto no artigo 358º, nº 1 do Código de Processo Penal), bem como o despacho de fls. 729 e 730 (que indeferiu a reinquirição da assistente e da testemunha C…, bem como a junção de documentos, requeridos pelo arguido, e relativamente ao qual este veio arguiu a sua nulidade), tendo sido proferida nova sentença.
A nova sentença, proferido a 31 de Maio de 2013 e depositada no mesmo dia, tem o seguinte dispositivo:
Pelo exposto decide-se:
a) Absolver o arguido B… da prática de um crime de sabotagem informática;
b) Condenar o arguido C… pela prática de um crime de acesso ilegítimo p. e p. pelo artigo 7º, nº 1 e 2 da Lei nº 109/91, de 17/8, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 8,00 (oito euros);
c) Condenar o arguido C… pela prática de um crime de devassa por meio informático p. e p. pelo artigo 193º, nº 1 do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de € 8,00 (oito euros);
d) Operando o cúmulo jurídico destas penas, e considerando conjuntamente os factos provados e o que se apurou acerca da personalidade do arguido, nos termos do artigo 77º, nº 1 e 2 do Código Penal, condena-se o arguido na pena única de 210 (duzentos e dez) dias de multa, à taxa diária de € 8.00 (oito euros) o que perfaz a multa de € 1.680,00 (mil seiscentos e oitenta euros);
e) Condenar o arguido C… a pagar à demandante a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos morais, acrescida de juros desde a data da notificação do pedido de indemnização civil (art.º 805º nº 3 e 806º nº 1 do Código Civil), à taxa legal de 4% e até efectivo e integral pagamento.
Custas
Parte criminal:
Vai o arguido condenado nos termos dos artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal no pagamento das custas do processo, fixando-se em 4 unidades de conta a taxa de justiça, nos termos do artigo 8º, nº 5 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa.
Parte civil:
As custas do pedido de indemnização civil serão suportadas pela demandante e pelo demandado na proporção do respectivo decaimento (artigo 446º, nº 1 do Código de Processo Civil).
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Remeta boletins à D.S.I.C.C..
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Notifique.
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Por despacho, também proferido a 31 de Maio de 2013, foi julgada improcedente a nulidade arguida.
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Inconformado com a decisão condenatória, bem como com o despacho proferido em 31.05.2013, o arguido B… veio deles interpor recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1. Como decorre de fls. 2 a 7 da presente motivação, no intervalo que mediou as duas sentenças, foi conhecido acervo probatório documental que foi junto aos autos, que merecia ser ponderado, tal qual do seu cotejo com os demais elementos e documentos dos autos, se revelava necessária a inquirição requerida da assistente e da ex-mulher do arguido/recorrente.
2. O Tribunal, pelas razões que lá estão expostas, ao negar as inquirições pretendidas, cometeu a nulidade decorrente da violação da al. a) do nº 3 e e da al. d) do nº 2 do artigo 120 do CPP, que devem ser declaradas.
3. Por outro lado, pelas razões também naquela argumentação evidenciadas, deviam ter sido dados como não provados os factos 3 e 22 dos levados à sentença como provados.
Por outro lado e sem prescindir,
4. Encontram-se erradamente julgados os pontos 4 a 13 da matéria de facto dada como provada, que ficam impugnados.
5. As concretas provas gravadas e discriminadas de fls. 18 a 71 desta motivação, designadamente as declarações transcritas, da assistente do recorrente e do proprietário do café, (com as referências legais e exigíveis, no início de cada) acrescentadas do depoimento da assistente no processo 1302/09.6JAPRT, incorporado em 09/09/2009 no supra referido processo 682/09.8GAPFR do dado como provado neste quanto à duração do namoro, do que consta da declaração da própria assistente de fls. 49 desta motivação, - acedeu ela própria ao perfil, sabia a password -, impõem necessariamente que aqueles se dêem como não provados.
6. Acresce que, na decisão de dar como provados estes factos ou não, tem de estar presente materialidade concreta, fundamentação que a sustente.
7. Do vertido nos autos, resulta verdadeira insuficiência da matéria de facto para sustentar aqueles factos como provados em violação do artigo 410, nº 2 al. a) do CPP.
8. Efectivamente, no caso dos autos, temos efectivamente duas versões contrárias, a do arguido e a da assistente, agora emolduradas pelas contradições de depoimentos e documentais resultantes do processo 682/09.8GAPFR, que impunham a aplicação do principio basilar in dúbio por reo, a desconsideração como provados desses factos e a consequente absolvição.
9. Pois, não obstante a justificativa do tribunal recorrido de transformar s indícios em prova, o que se verifica é que a assistente omitiu deliberadamente ao tribunal os factos constantes dos documentos entretanto juntos, referentes ao conhecimento das fotos e comentários sobre elas, documentados por SMSs e participação da ex-mulher do recorrente, em contactos com a mãe dela assistente.
10. O que tinha que transportar o tribunal, necessariamente, para a hipótese que pretendeu ultrapassar, de ter sido esta ou esta em conluio com o ex-marido da assistente quem procedeu à divulgação das fotos, porque as conhecia, além de que, conhecia também os contactos da assistente, e não está provado que não fosse capaz de por si, ou com recurso a terceiros mais habilitados, obter as palavras passe e criar os perfis de que o recorrente vem acusado.
11. Ou pelo menos, o obrigaria a afastar definitivamente que pudessem ter sido estes, o que não ocorre.
12. Até porque, tendo o ex-marido da assistente, em 2006, no dia do seu aniversário, tido conhecimento das fotos, também não está demonstrado nem seria impossível que tratassem um e outro (ex-esposos traídos) de maquinar uma vingança que passasse pela obtenção de outras fotos no mesmo local, p.ex., com recurso a meios ocultos, e de as vir a divulgar como o foram.
13. E também porque, como sustenta o tribunal, não é tão difícil aceder às palavras passe, matéria em que o depoimento transcrito da assistente é verdadeiramente contraditório, e criar perfis do Hotmail ou do HI5 é consabidamente acessível a qualquer cidadão, ou mesmo a crianças.
14. Portanto, manifestamente, os indícios doa autos contra o recorrente, se tivessem sido calibrados devidamente por verdadeiro exame crítico da prova e se designadamente, tivesse sido possível ao recorrente, levar à discussão os factos consignados na pag. 66 desta motivação e constantes do doc. 1 que ora se junta, necessariamente, não podiam ser considerados como capazes de ultrapassar a presunção de inocência e o resultado teria sido o da absolvição, como deve ser.
Sem prescindir,
15. Na medida do exposto e ora concluído, os princípios in dúbio pro reo e da presunção de inocência estão feridos de morte com a ora atacada decisão condenatória.
16. Pela mesma ordem de ideias, é manifesto que o tribunal não se ancorou a uma cabal fundamentação da condenação, não valorando ou criticando de forma eficaz os indícios a que teve acesso, assim violando o nº 2 do art. 374º CPP.
17. Mostram-se ainda violados os artigos 125º e 127º do CP e 32º da CRP, nos precisos termos em que se alegou, designadamente na parte final de C supra.
18. A sentença padece também de erro notório na apreciação da prova, em violação do art. 410º/2, c) CPP, de acordo com o alegado em D supra desta motivação.
19. Manifestamente, por não estar dada como provada qualquer vantagem ou benefício, nunca o recorrente podia ser condenado pelo crime de acesso ilegítimo, conforme se alegou em E supra, porque se encontra violado o art. 7º da Lei 109/91 de 17 de Agosto.
20. Também pelas razões aduzidas em F supra, nunca o recorrente podia ser condenado pelo crime de devassa por meio informático, mostrando-se assim violado o art. 193º/1 CP.
21. Pelas razões aduzidas em G, que por economia se reproduzem, foram larga e infundadamente ultrapassados, quer os limites pecuniários diários razoáveis das multas aplicadas, quer os dias de multa razoáveis em que o arguido poderia ser condenado, se se verificassem os pressupostos da condenação, em qualquer dos crimes, pelo que tais quantitativos devem ser reduzidos ao mínimo legal, encontrando-se violadas as normas já evidenciadas na referida parte G da motivação.
22. Por consequência, o PIC deve soçobrar.
Termos em que, V/Exas. Venerandos Desembargadores, considerando as conclusões que antecedem, acolhendo-as, e revogando o decidido em conformidade, farão a costumada JUSTIÇA
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Os recursos foram admitidos (cfr. despacho de fls. 861).
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Em resposta aos recursos do arguido a assistente pugnou pelo indeferimento da nulidade arguida pelo recorrente e ainda que seja negado provimento ao recurso da sentença, confirmando-se a decisão recorrida.
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Nesta Relação, a Ex.ma Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.
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Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, tendo a assistente deduzido resposta ao parecer, aderindo ao mesmo e concluindo que os crimes pelos quais o arguido foi condenado, bem como o pedido de indemnização cível, devem manter-se.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
Passemos agora ao conhecimento das questões alegadas no recurso interposto do despacho proferido em 31.05.2013 e da decisão final proferida pelo tribunal singular.
Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo do referido despacho e da decisão recorrida (transcrição):
“Requerimento de fls. 730: Notificado que foi do despacho de fls. 729 a 730 que indeferiu as diligências de prova requeridas, na sequência da notificação a que alude o artigo 358º, nº 1 do Código de Processo Penal, veio o arguido arguir a nulidade de tal despacho por entender que o mesmo consubstancia a omissão posterior de diligências que se reputam essenciais para a descoberta da verdade, assim violando o disposto no artigo 120º, nº 2, al. d), 2º segmento do Código de Processo Penal.
Decidindo.
Constitui nulidade dependente de arguição “A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade” (artigo 120º, nº 2, al. d) do Código de Processo Penal).
A segunda parte da norma, que aqui nos interessa, resulta das alterações ao Código de Processo Penal introduzidas pela Lei nº 48/2007, de 29/08, e abrange a omissão de actos processuais na fase de julgamento e de recurso.
Nos autos em apreço caberá ter presente que o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 583 e ss. enuncia as seguintes questões ali a decidir (fls. 603):
- Nulidade da sentença por condenar por factos diversos dos descritos na acusação;
- Erro notório da apreciação da prova;
- Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto; e
- Violação do princípio in dubio pro reu.
E o acórdão proferido queda-se pela primeira das questões suscitadas pelo recorrente, entendendo assistir-lhe razão, concluindo que a sentença é nula por o Tribunal não ter efectuado, como lhe competia, a comunicação a que se refere o artigo 358º, nº 1 do Código de Processo Penal, e determinado a reabertura da audiência a fim de ser suprida a apontada nulidade, e mais considerou prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas.
Ora, a isto se pode e deve cingir a actuação do Tribunal, e a defesa que o arguido pretendesse produzir nesta fase apenas poderia incidir sobre a matéria de facto constante da alteração comunicada. Por essa razão, se indeferiu as diligências de prova requeridas, que, a serem atendidas, poderiam até levar a incongruências jurídicas e processuais relevantes. O que o arguido pretendia, julgamos nós, era ver, pelo menos em parte, produzida prova sobre factos que vão para além daqueles que lhe foram comunicados.
Em síntese, entendemos que nenhuma diligência essencial e indispensável foi preterida e, nessa medida, julgamos improcedente a nulidade arguida.
Notifique.”
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E também o conteúdo decisão recorrida (transcrição):
Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respectiva motivação, constantes da sentença recorrida:
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Factos provados
Da acusação pública:
1. O arguido B…, à data da prática dos factos, era técnico na área da informática tendo particulares conhecimentos nessa área;
2. O arguido B…, entre o mês de Novembro de 2005 e inícios de 2007 manteve um relacionamento com a ofendida D…, sendo que durante esse relacionamento, com o seu telemóvel tirou várias fotografias à ofendida que exibiam a sua nudez e intimidade;
3. Entretanto, em Julho de 2009 o arguido pretendeu reatar o relacionamento com a assistente, ao que aquela não acedeu;
4. O arguido decidiu, então, divulgar, através da internet, e com recurso ao endereço electrónico da ofendida, as fotografias daquela que ainda guardava consigo de forma a expor publicamente a sua nudez;
5. Assim, no dia 30 de Julho de 2009, o arguido, dado os seus conhecimentos informáticos, por forma não concretamente determinada, conseguiu obter o endereço electrónico da ofendida D… – “D1...@hotmail.com” - e, na posse do mesmo, entrou na página do respectivo endereço electrónico e através de várias tentativas conseguiu aceder à respectiva palavra-passe;
6. Desta forma, o arguido na posse da respectiva palavra passe conseguiu introduzir-se na conta de correio electrónico da ofendida e aproveitando-se dos contactos da ofendida D… bem como dos sucessivos contactos desta, enviou e divulgou as fotografias da ofendida acima descritas e que constam de fls. 19 dos autos;
7. Acresce que no dia 18 de Agosto de 2009, o arguido voltou a colocar-se “on line” e criou um perfil na página da internet www.hi5.com utilizando o endereço electrónico D1…@hotmail.com., que criou contra a vontade e desconhecimento da ofendida, e voltou a revelar dados pessoais da ofendida e as fotografias daquela que o mesmo tinha consigo, de forma a divulgá-las por um grande número de pessoas.
8. No dia 21 de Março de 2009, o arguido, acedeu à internet e criou uma nova página da internet no “Windows Live” no site: …, onde voltou a divulgar as aludidas fotografias pessoais da ofendida, bem como dados pessoais relativamente à mesma;
9. O arguido acedeu ao endereço de correio electrónico da ofendida bem como aos perfis entretanto por ele criados na página do “hi5” e “Windows Live” com recurso à conta de correio electrónico da ofendida, e outra por ele criada, em vários locais, tais como, na sociedade “E…, Ld.ª, sita no …, …, Paços de Ferreira; local onde o arguido trabalhava aquando dos factos, bem como na sua residência sita no …, 1.º Direito, Felgueiras, e ainda num café sito na …, .., em Paços de Ferreira;
10. O arguido agiu, com o intuito alcançado de aceder indevidamente ao endereço electrónico no “hotmail” da ofendida D…a contra a vontade desta, acedendo, à palavra de acesso ao mesmo email, e apenas por D… definida, e por essa forma se apresentado perante terceiros como se fosse a indicada ofendida;
11. O arguido ao aceder ao endereço electrónico da ofendida pela forma descrita bem como ao criar perfis em pagina da internet, fazendo-se passar pela ofendida agiu, ainda, com o intuito, concretizado, de revelar, através de meios informáticos, de forma a facilitar a sua divulgação, as fotografias da ofendida, designadamente, as que revelavam a sua nudez, apesar de saber que não se encontrava autorizado pela mesma a agir como descrito, e que actuava contra a sua vontade;
12. O arguido agiu com o propósito concretizado de devassar a vida privada da ofendida e de violar o direito deste à reserva sobre a intimidade da vida privada, utilizando para o efeito meios informáticos, divulgando, desta forma, factos de natureza privada e pessoal, respeitantes ao seu corpo, bem sabendo que o fazia contra a vontade e sem o consentimento daquela;
13. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e sancionadas por lei.
Do pedido de indemnização civil:
14. À data dos factos a demandante era secretária da Administração da empresa “E…, Lda.”, sita no …, em …, onde também trabalhava o arguido;
15. A demandante sentiu-se vexada e humilhada por ver a sua vida privada devassada;
16. E sentiu vergonha por o sucedido ser do conhecimento dos seus colegas de trabalho;
17. Por o arguido ter revelado os seus dados pessoais com os dizeres “procura conhecer homens” a demandante viu-se confrontada com mensagens e telefonemas que pretendiam dar resposta a esse apelo;
18. A demandante é mãe de um menor com 9 anos de idade e é uma pessoa educada, sensível e respeitada;
19. Todos os factos que viveu obrigaram-na a tomar medicação;
20. Os comportamentos do arguido perturbaram o equilíbrio nas relações laborais e sociais, bem como o próprio equilíbrio emocional da demandante, já que esta sentia-se mal e envergonhada dentro do seu posto de trabalho, perante os seus amigos e familiares, em virtude dos comentários que a situação ocasionava.
Mais se provou que:
21. Do certificado do registo criminal do arguido nada consta;
22. O arguido encontra-se acusado pela prática do crime de homicídio qualificado, na pessoa da mãe da assistente, estando o processo pendente no Tribunal Judicial de Paços de Ferreira;
23. O arguido vive sozinho em casa arrendada, pagando a renda mensal de € 200. Actualmente trabalha em part-time no talho do supermercado F…, em Felgueiras, auferindo o vencimento mensal de € 350. Tem um veículo automóvel da marca Citröen, modelo …, do ano de 2000;
24. O arguido tem 3 filhas, uma com 10 anos e duas gémeas com 6, que vivem com a mãe. O arguido contribui com a quantia mensal de € 150 a título de pensão de alimentos. Conta com o apoio económico dos seus pais.
25. O arguido tem como habilitações literárias o bacharelato em Informática que obteve na Universidade …, no pólo universitário de ….
26. O arguido registou um processo de socialização convencional e beneficiou de estabilidade económica e profissional e de uma integração social e familiar ajustada até à constituição como arguido, altura em que perdeu estes factores de protecção;
27. Actualmente, encontra-se numa situação de sub emprego e os rendimentos de que beneficia são insuficientes para assumir os encargos que tem, registando uma dependência face aos pais, que funcionam como seu único suporte a nível familiar.

2. Factos não provados
Com relevância para a decisão da causa não se provou:
Da acusação pública:
1. Que o perfil criado em www.hi5.com o tenha sido através do endereço electrónico D1…@hotmail.com;
2. Que o arguido tenha criado outros dois perfis hi5, para além do que consta do ponto 7 dos factos provados.
Do pedido de indemnização civil:
3. Que a demandante se furtava ao convívio com os colegas e amigos e pouco convivia com a sua família;
4. Que a demandante, com vergonha, isolava-se em casa, onde passava os fins-de-semana fechada;
5. Que a demandante devido aos factos em causa sente grande insegurança em iniciar um novo relacionamento.
3. A convicção do tribunal
A convicção do tribunal fundou-se no conjunto da prova produzida a qual se encontra integralmente documentada.
Nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal, que consagra o princípio da livre apreciação da prova, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Uma breve nota para referir que “é clássica a distinção entre prova directa e prova indiciária. Aquela refere-se aos factos probandos, ao tema da prova, enquanto a prova indirecta ou indiciária se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras de experiência, uma ilação quanto ao tema da prova” (Ac. RC de 06/03/1996, CJ, ano XXI – 1996, tomo II, pág. 44 a 46).
E como exemplarmente sumaria o acórdão citado a prova indiciária assenta em dois elementos: a) o indício que será todo o facto certo e provado com a virtualidade para dar a conhecer outro facto que com ele estará relacionado; b) a existência de presunção que é a inferência que, obtida do indício, permite demonstrar um facto distinto.
Ao contrário do que por vezes se pensa e se ouve a todo o tempo, a prova indiciária, devidamente valorada, permite fundamentar uma condenação (v. com grande desenvolvimento sobre a questão o Ac. RG de 19/01/2009, relatado pelo Desembargador Cruz Bucho).
Nada impede na lei que devidamente valorada a prova indiciária, a mesma por si, na conjugação dos indícios permita fundamentar uma condenação.
Uma vez feitas estas notas, com as quais se pretende justificar os motivos pelos quais se valorou a prova produzida nos termos em que o foi, passemos então à exposição da mesma.
O arguido B… negou a prática dos factos que lhe são imputados, afirmando nada ter a ver com a divulgação das fotografias da assistente que constam de fls. 19.
Admitiu que as fotografias foram tiradas por si, durante um relacionamento extraconjugal que o arguido e a assistente mantiveram.
O arguido desempenhava funções de técnico de informática na empresa “E…, Lda”, sita em …, Paços de Ferreira e a assistente era secretária da Direcção da mesma empresa.
Nessa empresa trabalhavam, para além dos demais, o ex marido da assistente e o seu pai.
O arguido e a assistente mantiveram um relacionamento extraconjugal entre os anos de 2005 e 2007, sendo frequente os encontros de cariz sexual ocorrerem na casa do arguido. Como ambos admitiram, as fotografias de fls. 19, em que a assistente surge nua ou semi-nua, foram obtidas no seu quarto do arguido, e através do seu telemóvel.
No ano de 2007 a assistente decidiu por fim ao relacionamento, o que não foi bem aceite pelo arguido, e por essa mesma ocasião estas fotografias foram divulgadas por colegas de trabalho, amigos e familiares da assistente, através de telemóvel (MMS).
Quando a assistente, em 2007, confrontou o arguido com o sucedido, o mesmo referiu que tinha perdido o cartão de memória do seu telefone e alguém teria procedido ao envio das fotografias.
Esta justificação já em 2007 não convenceu a assistente, que não a considerou credível, bem como não convence o Tribunal.
Na verdade, a alegada circunstância de perder o cartão de memória do telemóvel (apenas, e não o telemóvel), no momento temporal em que assistente pôs fim ao relacionamento, merece as maiores reservas, e seria ainda necessário que a pessoa que “encontrou” o cartão de memória soubesse a que contactos enviar as fotografias.
Sucede que, à data (2007), a assistente acabou por não denunciar criminalmente o sucedido e após uma conversa com o arguido a situação estabilizou e as fotografias deixaram de ser divulgadas.
Após este fim formal da relação, o arguido continuou a abordar a assistente e a tentar relacionar-se sexualmente com a mesma, o que acabou por suceder diversas vezes. A assistente não escamoteou que era sua expectativa ficar definitivamente com o arguido, o que nunca veio a suceder, apesar de a mesma ter dado início ao seu processo de divórcio em Março de 2009 e ter ficado divorciada em Junho desse mesmo ano, embora refira que acabou por decidir divorciar-se não por causa do seu relacionamento com o arguido mas por outras razões que não revelou.
Já depois de estar divorciada, o arguido B… surge com novas abordagens à assistente, que a mesma declina. E é precisamente no dia seguinte a uma “conversa atribulada” entre ambos que a assistente é informada por uma amiga (L…) de que recebeu as fotografias em causa no seu e-mail.
A assistente foi tendo conhecimento da colocação das fotografias na internet, seja por e-mail, seja no hi5, seja no Windows Live, através de pessoas amigas que lhe deram conta do que recebiam e visualizavam na Internet.
O arguido referiu que quando a assistente teve conhecimento das fotografias em 2007, lhe enviou uma cópia das mesmas, o que a assistente nega corresponder à verdade. Com isto pretende o arguido alegar que a assistente também tinha as fotografias em seu poder para as divulgar como e por quem entendesse, até porque na E... também tinha acesso à Internet.
Adiante veremos, se esta alegação poderá proceder.
Do que fica exposto até aqui, podemos concluir que o arguido foi o autor das fotografias, com intuitos que se desconhecem.
Por outro lado, o arguido tinha um motivo para proceder à divulgação das fotografias e que se prendia com a pretensão da assistente de não prosseguir com o seu relacionamento, e usar a sua divulgação como modo de manipular a assistente, pois foi assim que a mesma se sentiu quando depois de 2007, ainda acedeu a relacionar-se com o arguido. E quando a assistente deu conta ao arguido de que tinha ido apresentar uma queixa na Polícia Judiciária contra o mesmo, exibindo-lhe a declaração de presença na Polícia para que o mesmo acreditasse, o arguido não disse uma única palavra, na expressão da assistente, “não abriu a boca”, e depois disso não mais falaram sobre as fotografias.
O arguido tinha também os conhecimentos técnicos para actuar da forma descrita. O arguido é técnico informático com frequência do ensino superior (bacharelato de informática, segundo declarou, apesar de o relatório social fazer menção a licenciatura), pelo que facilmente se poderia introduzir no e-mail da assistente, ou através de tentativas de alcançar a password, uma vez que se tratava uma pessoa que lhe era próxima, e, por isso, poderia tentar fazê-lo mediante a introdução de datas, palavras ou expressões que fossem próximas da assistente. Ou ainda, através de programas informáticos que permitem aceder à password dos utilizadores, mediante programas com recurso a algoritmos. Seguramente que para o arguido, por força da sua actividade profissional, nada disto terá segredos ou dificuldades. O que já não sucederá com a assistente, secretária da direcção, ou para a sua ex-mulher, educadora de infância. E muito menos dificuldades teve o arguido em criar um novo endereço electrónico da assistente (D2…@hotmail.com.) e através do mesmo criar um perfil de hi5.
Da matéria de facto assente, e que resulta de prova directa, temos que para a prática destes factos se acedeu à internet através da conta hotmail D1…@hotmail.com. Esses contactos foram através de três IP`s diversos e respectivos grupos data/hora. Os números de IP pertencem a diversos operadores, a saber:
● G…:
..........198 – em 29/07/2009, pelas 06:17:49 PM (PDT - Pacific Daylight Time);
..........198 – em 29/07/2009, pelas 06:44:49 PM (PDT);
..........198 – em 29/07/2009, pelas 06:49:37 PM (PDT);
..........83 – em 29/07/2009, pelas 11:40:30 PM (PDT);
cujo utilizador está registado em nome de “E…, Lda.”, …, Paços de Ferreira (fls. 107).
● H…:
...........127 – em 30/07/2009, pelas 03:54:43 AM (PDT);
...........127 – em 30/07/2009, pelas 05:47:33 AM (PDT);
...........127 – em 30/07/2009, pelas 06:09:30 AM (PDT);
cujo utilizador está registado em nome de C…, com morada em …, .º dto, em Felgueiras, ex-mulher do arguido, tratando-se de um IP associado a um serviço de internet sem fios (G1…) (fls. 111); e
● Microsoft Corporation, junto de quem não foi possível identificar os computadores associados aos números de IP em causa.
Relativamente ao perfil da página www.hi5.com obteve-se a identificação do nº de IP ………..60 como associado ao último login do perfil em causa ocorrido em 18/08/2009, pelas 00.53.37 horas (PST - Pacific Standard Time – que corresponde às 08:53:37, hora de Lisboa). Associado a este perfil surge o endereço electrónico D2…@hotmail.com.
O nº de IP pertence à H… e está registado em nome de J…, com morada na …, nº .., em Paços de Ferreira (fls. 139).
Mais se verificou a existência de um perfil “D3…” cujo URL (Universal Resource Locator) é http://... em que estavam expostas as mesmas fotografias da assistente, a que corresponde o IP ...........14, em 21 de Março de 2009, pelas 09:48:26 AM (PDT) (fls. 149), cujo utilizador está registado em nome de C…, com morada em …, .º dto, em Felgueiras, ex-mulher do arguido, tratando-se de um IP associado a um serviço de internet sem fios (G1…) (fls. 173).
Relativamente a este acesso, e que consta do ponto 8 dos factos provados, o Tribunal limitou-se a concretizar o que a douta acusação nos pontos 8 e 9 da acusação faz de uma forma vaga e genérica, acabado, na verdade por concretizar uma data que não consta da acusação que situa a divulgação das imagens em data posterior a 29 de Julho de 2009 (ponto 5 da acusação).
Uma vez que os elementos fornecidos pelas operadoras, concretamente os diversos IP`s e respectivos grupos data/hora surgem no padrão horário PDT- Pacific Daylight Time, a fls. 425 e 426 encontra-se a conversão horária para o padrão UCT (Universal Time Zone), efectuada pelo Inspector da Policia Judiciária, K…, na sequência da sua inquirição em sede de audiência de discussão e julgamento a todos os títulos muito esclarecedora para o tribunal, até do ponto de vista técnico.
Ou seja, os acessos à internet foram efectuados a partir da “E…, Lda.”, de um IP associado a um serviço de internet sem fios (G1…) registado em nome de C…, com morada em …, .º dto, em Felgueiras, esposa do arguido, e ainda de um café pertencente a J…, com morada na …, nº .., em Paços de Ferreira.
Os horários em que se acedeu à internet na E… são compatíveis com o horário de trabalho do arguido, sendo certo que o mesmo por força das funções que desempenhava poderia aceder à empresa a qualquer hora.
O acesso efectuado no café de Paços de Ferreira foi concretizado pelas 08:53:37 (hora de Lisboa), o que era perfeitamente possível uma vez que se trata de dia de semana (terça-feira) e o café abria às 8 horas da manhã, como referiu o seu proprietário.
Os acessos efectuados através do serviço de internet sem fios (G1…), registado em nome da ex-mulher do arguido, são efectuados dentro de horários que nada saem de padrões de normalidade.
Daqui podemos concluir que a pessoa que acedeu à Internet destes três locais teria de estar em condições de o fazer em todos eles.
A assistente D… poderia estar em condições de o fazer da E… e do café, posto que acedia à Internet no seu local de trabalho e poderia deslocar-se ao café, mas já não da residência do arguido, nem da prova produzida resulta que fizesse uso da pen G1…, e daqui resulta a inutilidade da alegação do arguido de que a assistente tinha as fotografias em seu poder.
A ex-mulher do arguido poderia estar em condições de fazê-lo de casa, através da internet sem fios e poderia deslocar-se ao café, mas já não da E….
Contudo, não se nos afigura que nenhuma delas tivesse conhecimentos para criar um e-mail e por via dele um perfil hi5 com vista a divulgar as fotografias em causa.
Em face de critérios de razoabilidade e bom senso, não se nos afigura que uma mulher se expusesse publicamente divulgando fotografias como as que estão nos autos. Que interesse poderia ter em fazê-lo? Nenhum se vislumbra. Até porque o grave acontecimento que poderia fazer convencer o Tribunal do desejo de vingança da assistente perante o arguido, ocorre em momento posterior, no dia 25 de Agosto de 2009, quando o arguido com o seu veículo automóvel atropela mortalmente a mãe da assistente, dolosamente, acusa o Ministério Público de Paços de Ferreira, sem culpa, sustenta a defesa.
Podemos ainda avançar até ao ex-marido da assistente, que à data já estava divorciado da mesma, e trata-se da pessoa de quem tem um filho e com quem a assistente afirmou manter relações cordiais. A não ser que se tratasse de uma pessoa com uma mente perversa, não vemos que pretendesse expor publicamente a mãe do seu filho nestes termos, e mesmo que o quisesse, nunca lhe seria possível aceder, pelo menos à internet sem fios da ex-mulher do arguido, e não se nos afigura que o lograsse fazer na E…, uma vez que desempenhava funções no cais de descargas de mercadorias e sem acesso directo à Internet.
Obviamente que estamos cientes de que o dono do café de Paços de Ferreira, o Sr. J… não foi capaz de identificar o arguido e não se recorda de o mesmo estar presente no seu café, mas também não é de esperar que quem ali vai para praticar um acto ilícito faça questão de se destacar entre os clientes, muito pelo contrário. A testemunha confirmou, como, de resto, está documentado, que tem acesso à Internet no seu estabelecimento que disponibiliza aos clientes, não fazendo qualquer registo de quem ali se desloca. Concretizou o horário de funcionamento do estabelecimento que, à semana, estava aberto das 8 horas às 2 da manhã.
A ex-mulher do arguido, C…, porque casada com o mesmo à data da prática dos factos, optou pelo seu direito ao silêncio.
A ponderação lógica de todos os elementos probatórios disponíveis permite-nos excluir qualquer outra explicação lógica e plausível, que o arguido não chega a ter o atrevimento de apresentar, embora tente insinuar algumas delas.
Apenas o arguido tinha o domínio total e perfeito dos três locais em simultâneo. Tinha o motivo, tinha os necessários conhecimentos técnicos e tinha as fotografias, e apenas em si confluem todos estes factores.
De resto, não se fazendo uma indagação racional e sensata sobre os factos, crimes como estes, cometidos com recurso aos meios informáticos, sempre ficariam impunes a coberto de uma dúvida absurda, meramente concebível ou conjectural.
Avancemos agora de encontro o que nos trouxeram as demais testemunhas.
O Inspector K…, explicou todas as diligências efectuadas ao longo do processo, e que o mesmo documenta. Esclareceu que por regra as respostas obtidas não fazem as transferências de fusos horários, pelo que lhe foi solicitada a conversão a que já se aludiu (fls. 452 a 426).
A amiga da assistente L…, esclareceu que frequentou com a mesma um curso em horário pós laboral de manicure/pedicure/massagista entre Fevereiro de 2008 e Março de 2011.
Explicou que foi surpreendida pelas fotos da assistente no seu e-mail e de imediato lhe telefonou a dar conta do sucedido. Na Polícia Judiciária facultou o seu e-mail e respectiva password para visualizarem o conteúdo em causa. Soube que todos os contactos da assistente, que esta referiu serem mais de 100, receberam as fotografias em causa, o que a deixou muito abalada e envergonhada.
De igual modo, a amiga da assistente, M…, de modo credível, relatou que quando saíam, ia buscar a assistente a casa e a seu pedido, porque esta lhe afirmava ter medo de sair, por razões que não lhe explicitava. Apenas, mais tarde, a assistente lhe deu conta do que se passava, chegando a pedir-lhe para entrar num site em que estavam as fotografias em causa e, a seu pedido fez uma denúncia de abuso e algumas horas depois a página foi retirada.
Entende que a assistente era uma pessoa bem considerada, nunca ouvindo nada em seu desabono.
A testemunha N…, foi ama do filho da assistente até aos 3 anos e manteve contacto com a assistente após esse relacionamento, até porque efectuava trabalhos de costura.
Entende ser uma pessoa educada e respeitada e que ficou arrasada com o sucedido. Ouviu comentários sobre fotografias ou filmes da assistente, até porque o seu marido trabalhava na E…, mas nunca os viu, nem mostrou interesse nisso.
As declarações desta testemunha afigura-se-nos que misturaram num todo, os factos ocorridos em 2007, com os que ocorreram em 2009.
Referiu que recebeu no seu telemóvel uma mensagem para consultar um site na Internet para ver umas fotografias, o que não fez porque não teve qualquer interesse. Ora esta situação, tal como explicou a assistente, ocorreu em 2007, uma vez que as pessoas que não tinham telemóveis para receber imagens, como foi o caso dos seus pais, recebiam uma mensagem para ir vê-las na internet, situação a que a assistente consegui obviar em 2007, no que diz respeitos aos seus progenitores.
Do depoimento das testemunhas de defesa resultou que o arguido era um bom profissional de informática.
Contudo, em abono do seu carácter nada de relevante foi afirmado pelas testemunhas de defesa. O Director O…, que a assistente secretariava, referiu que recebeu as fotografias em Fevereiro de 2007, mas apenas aquelas em que não se via o rosto da assistente e em 2009 já não voltou a recebê-las. Pode atestar que a imagem da assistente na empresa ficou prejudicada e chegou a proibir o arguido de se dirigir ao gabinete da assistente na sequência de uma queixa que esta fez relativamente ao seu comportamento.
A sua opinião sobre a assistente é de uma pessoa correcta, simpática e cumpridora.
Algumas das coisas que referiu relativamente a danos morais reportam-se aos factos ocorridos em 2007.
A testemunha P…, chefe dos serviços de informática, e a quem o arguido se reportava, explicou que existia um computador com acesso à internet na sala de informática e ao qual acediam o depoente e o arguido e que estava permanentemente ligado, sendo certo que para aceder à sala da informática existia um código de acesso. Demonstrou-se contido nos elogios ao arguido (Era profissional, fazia o trabalho dele).
Ainda relativamente aos danos de natureza não patrimonial o Tribunal atendeu às declarações da própria assistente, que explicou que tudo fez para resguardar o seu filho destes acontecimentos e julga tê-lo conseguido. Porque todos os seus contactos foram disponibilizados a par das fotografias a assistente colocou um cadeado na porta de sua casa por ter receio que alguém dissimulasse dirigir-se a sua casa a coberto de um fim lícito e que apenas a pretendesse importunar. Recebeu telefonemas e mensagens em resposta à sua suposta “procura de homens” e trocou de número de telemóvel. Tudo lhe causou desgaste psicológico e a necessidade de fazer medicação.
No que concerne à matéria de facto não provada entendemos que não foi feita prova documental da criação de outros dois perfis hi5 para além do que foi dado como provado e a assistente não logrou fazer prova de alguns dos danos que alega.
Relativamente à situação pessoal do arguido o Tribunal atendeu às suas próprias declarações, bem como ao teor do relatório social para determinação da sanção junto a fls. 394 a 398.
Mais se atendeu, como já se foi expondo ao longo da fundamentação no conjunto de toda a prova documental, nomeadamente fls. 13 a 19, 22, 43 a 47, 62, 63, 64, 78, 103, 107, 111, 129 a 133, 134, 139, 141 a 146, 167, 173 e 392.
***
Enunciação das questões a decidir no recurso em apreciação.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal [Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal” III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada]. [Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95].
Assim, face às conclusões apresentadas pelo recorrente, importa decidir as seguintes questões:
- Nulidade decorrente da violação da alínea a) do nº 3 do artigo 120º do Código de Processo Penal;
- Violação do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal;
- Vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c) do Código de Processo Penal: Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova;
- Impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto provada;
- Violação dos princípios in dubio pro reo e da presunção de inocência;
- Subsunção jurídica da conduta do arguido;
- Medida da pena (número de dias de multa aplicados e quantitativo diário da pena de multa).
Passemos à análise da primeira questão elencada e que contende com a arguida nulidade decorrente da violação da alínea a) do nº 3 do artigo 120º do Código de Processo Penal.
Argumenta o recorrente no sentido de que o tribunal a quo ao negar as diligências de prova por ele requeridas cometeu a nulidade decorrente da violação da alínea a) do nº 3 do artigo 120º do Código de Processo Penal.
Vejamos.
Dispõe o artigo 120º do Código de Processo Penal que:
“1 - Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte.
2 - Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais:
a) O emprego de uma forma de processo quando a lei determinar a utilização de outra, sem prejuízo do disposto na alínea f) do artigo anterior;
b) A ausência, por falta de notificação, do assistente e das partes civis, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;
c) A falta de nomeação de intérprete, nos casos em que a lei a considerar obrigatória;
d) A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.
(…)”
A referida alínea d) abrange a omissão de actos ou diligências processuais na fase de julgamento e de recurso. Esse é o sentido do adjectivo “posterior”. Verifica-se esta nulidade quando se omite a prática de actos processuais probatórios que a lei classifica como prova “essencial”, “indispensável”, “absolutamente indispensável” e “estritamente indispensável” na fase de julgamento e de recurso.
O juízo sobre a essencialidade ou indispensabilidade de diligência de prova cabe ao tribunal e deve basear-se em critérios objectivos, não podendo, por isso, avaliar-se em função de convicções pessoais dos intervenientes processuais.
In casu, o tribunal a quo, por entender que nenhuma diligência essencial e indispensável foi preterida, julgou improcedente a arguida nulidade.
Concordamos com tal decisão. Vejamos porquê.
Comecemos por enquadrar a situação.
Este tribunal da Relação, por acórdão proferido em 06 de Março de 2013, decidiu conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido B…, e nos termos do disposto no art. 379º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, declarar a nulidade da sentença recorrida (uma vez que o tribunal não efectuou, como lhe competia, a comunicação a que se refere o art. 358º, nº 1, do mesmo código). E perante a declaração de nulidade do acórdão, entendeu que ficava prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso do arguido.
O Recorrente por requerimento de 03/04/2013, veio requerer a junção aos autos dos seguintes documentos:
a) Acórdão proferido no processo nº 682/09.8GAPFR - Comum Colectivo-, que corre termos pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial de Paços de Ferreira – cfr. doc. 1.
b) Certidão das declarações prestadas pela queixosa no processo referido em a) – cfr. doc. 2.
c) Protestou juntar CD e transcrição integral das declarações da queixosa D…, proferidas na audiência de julgamento daqueles autos supra referidos.
Baixaram os autos e, aberta a audiência, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho (vd. acta de 28.05.2013):
“O arguido B… encontra-se acusado da prática um crime de sabotagem informática em concurso aparente com um crime de acesso indevido, p. e p. pelos artigos 5º e 6º da Lei nº 109/2009, de 15/09 (à data da prática dos factos p. e p. pelos artigos 6º e 7º da Lei nº 109/91, de 17/8); e um crime de devassa por meio informático, p. e p. pelo artigo 193º, nº 1 do Código Penal.
Na sentença proferida a fls. 440 e ss. foi dado como provado que:
“8. No dia 21 de Março de 2009, o arguido, acedeu à internet e criou uma nova página da internet no “Windows Live” no site: http://..., onde voltou a divulgar as aludidas fotografias pessoais da ofendida, bem como dados pessoais relativamente à mesma;
9. O arguido acedeu ao endereço de correio electrónico da ofendida bem como aos perfis entretanto por ele criados na página do “hi5” e “Windows Live” com recurso à conta de correio electrónico da ofendida, e outra por ele criada, em vários locais, tais como, na sociedade “E…, Ld.ª, sita no …, …, Paços de Ferreira; local onde o arguido trabalhava aquando dos factos, bem como na sua residência sita no …, ..º Direito, Felgueiras, e ainda num café sito na …, .., em Paços de Ferreira”.
Relativamente a estes factos entendeu o Tribunal da Relação do Porto, no douto acórdão de fls. 583 e ss., que os mesmos integram uma alteração não substancial dos factos nos termos do artigo 358º do Código de Processo Penal, que cumpre dar a conhecer ao arguido.
Assim, e ao abrigo do disposto no artigo 358º, nº 1 do Código de Processo Penal, comunica-se ao arguido os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:
“No dia 21 de Março de 2009, o arguido, acedeu à internet e criou uma nova página da internet no “Windows Live” no site: http://..., onde voltou a divulgar as aludidas fotografias pessoais da ofendida, bem como dados pessoais relativamente à mesma;
O arguido acedeu ao endereço de correio electrónico da ofendida bem como aos perfis entretanto por ele criados na página do “hi5” e “Windows Live” com recurso à conta de correio electrónico da ofendida, e outra por ele criada, em vários locais, tais como, na sociedade “E…, Ld.ª, sita no …, …, Paços de Ferreira; local onde o arguido trabalhava aquando dos factos, bem como na sua residência sita no …, ..º Direito, Felgueiras, e ainda num café sito na …, .., em Paços de Ferreira”.
Notifique.”
Na sequência da notificação aludida no nº 1 do artigo 358º do Código de Processo Penal o arguido formulou o seguinte requerimento ditado para a acta:
“Dos documentos já juntos pelo arguido aos autos, quer na instrução do recurso que subiu ao Tribunal da Relação, quer posteriormente e após proferida decisão do processo 682/09.8GAPFR, do 2º Juízo de Paços de Ferreira que não foi objecto de recurso, tendo transitado, donde resultam versões antagónicas dos factos, ou de parte deles, nos dois relatos da assistente em sede de julgamento nos presentes autos e naqueles outros, não apenas, mas designadamente quanto à duração da relação de namoro com o arguido que em audiência, neste processo, limitou a 2007 e lá levou até Julho de 2009, facto aliás dado como provado, mas também relativamente à alegada falta de conhecimento que a ex-mulher do arguido tivesse dos factos aqui julgados e dos telefones da assistente e da sua falecida mãe.
Neste contexto, porque o processo penal tem como fim último a justiça material, e porque salvo devido respeito por opinião contrária, a decisão do Tribunal da Relação não limita os trabalhos deste Tribunal à mera prolação de nova sentença, em ordem a esclarecer tais contradições, relevantíssimas na condenação do arguido, requer-se que seja re-inquirida a assistente, bem como a ex-mulher do arguido, ambas identificadas nos autos, a fim do cabal esclarecimento desses pontos essenciais, sem prejuízo de outros que se revelem conexos.
Naturalmente que tal pressupõe como requerido anteriormente, que também os documentos juntos sejam levados em conta.”
Na sequência de tal requerimento o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
“Na sequência da notificação a que alude o art. 358º, nº 1, do C.P.P., veio o Ilustre Mandatário do arguido, com os fundamentos explanados no requerimento que antecede, requerer, por um lado, a admissão dos documentos juntos a fls.615 e ss e, por outro lado, que se proceda à reinquirição da assistente D…, bem como da ex-mulher do arguido C….
Sucede que a possibilidade de defesa do arguido nesta fase dos autos se cinge, estritamente, aos factos ora comunicados.
Ora, salvo devido respeito, tais factos assentam no essencial nos documentos que já instruíam o processo (desde data anterior à prolação da acusação) e, apurar se o relacionamento extra-conjugal do arguido e da assistente, durou até 2009 ou até 2007, como foi dado como provado nestes autos (ponto 2 da matéria de facto assente) é matéria que não contende com os factos ora comunicados.
Assim, e sem necessidade de outras considerações, decide-se indeferir a requerida re-inquirição da assistente e da testemunha, bem como se determina que, após o trânsito em julgado do presente despacho, seja desentranhado e devolvido ao apresentante o expediente de fls.615 e ss, assim como a resposta dada aos mesmos pela assistente.
Notifique.”
Em reacção a este despacho o recorrente invocou nulidade nos seguintes termos:
“O arguido entende que o douto despacho ora proferido, não obstante a sua douta fundamentação é passível de integrar o 2º segmento da al.d), do nº 2, do art. 120º, do C.P.P., consubstanciado na "omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade" na medida em que, no seu entender a prova das contradições apontadas, levado ao contrário do que foi dado como provado nestes autos, e porque a prova deve ser considerada no seu conjunto e não por meros trechos.
É dito que designadamente que se provasse nos presentes autos que a relação entre o arguido e a assistente, atenta a fundamentação global e o modo como o Tribunal fundamentou a sua convicção, é susceptível de abalar esta e alterar aquela (fundamentação).
Assim, ao abrigo do disposto nas als.a) do nº 3 e al.d) do nº 2, por referência ao nº 1, todos do art. 120º, do C.P.P., fica arguida a nulidade que, salvo melhor opinião e respeito, o douto despacho ora proferido integra.”
Na sequência da arguição desta nulidade o Tribunal a quo, em 31/05/2013, proferiu o despacho recorrido e acima transcrito na íntegra.
Enquadrada a situação reiteramos que concordamos com o despacho recorrido e passamos a explicar porquê, sem olvidar as considerações já expostas e respetivo enquadramento legal.
Tal como o tribunal a quo, entendemos que a defesa do arguido, perante a decisão proferida por este tribunal da Relação, deve/devia cingir-se ou incidir sobre a matéria de facto objecto da alteração comunicada. Sendo que, conforme se refere no despacho recorrido, “o que o arguido pretendia, julgamos nós, era ver, pelo menos em parte, produzida prova sobre factos que vão para além daqueles que lhe foram comunicados”.
Com efeito a audiência de julgamento foi reaberta a fim de ser dado cumprimento ao disposto no nº 1 do artigo 358º do Código de Processo Penal, como já se disse, em cumprimento do ordenado por este tribunal, pelo que a prova a produzir, a requerimento do arguido, nos termos do mesmo preceito legal, é a relacionada com a defesa da alteração dos factos descritos na acusação, e que lhe foi comunicada.
Pelo que bem andou o tribunal a quo em indeferir as diligências de prova requeridas pelo arguido. E ao fazê-lo não incorreu em qualquer nulidade, mormente a arguida pelo recorrente.
Sempre se dirá que, ainda que se entendesse que, nesta fase, poderia ser produzida nova prova (o que não é o caso), ao abrigo do disposto no artigo 340º do Código de Processo Penal, que não foi invocado pelo arguido, ainda assim, tais diligências não seriam de admitir, por não se reputarem essenciais à descoberta da verdade.
Efectivamente, conforme constata a Sra. Procuradora-Geral Adjunta “a assistente já prestou declarações na audiência de discussão e julgamento e não se vislumbra que os documentos juntos infirmem ou acrescentem alguma coisa de relevante ao que a mesma já referiu”.
Acresce que o tribunal a quo já teve em consideração, como se refere na fundamentação da sentença (na “convicção do tribunal” – fls. 11) que, após o fim da relação entre o arguido e assistente, ocorrido no ano de 2007, os dois se relacionaram sexualmente por diversas vezes e que, após o divórcio desta última, que teve lugar em Junho de 2009, esta declinou as novas abordagens do arguido, pelo que o tribunal já teve em consideração que o relacionamento sexual entre ambos continuou para além do ano de 2007.
Por outro lado, não se pode escamotear que o tribunal a quo também considerou a hipótese de ter sido a ex-mulher do arguido a praticar os factos a este imputados, hipótese que afastou pelos fundamentos que constam da sentença (na “convicção do tribunal” – fls. 16) e que nada têm a ver com o facto daquela não estar a par do relacionamento do seu marido com a assistente, ou de não ter conhecimento dos números de telefone desta e da sua falecida mãe. Pelo que não se vislumbra qual a relevância do apuramento destes factos para a decisão da causa.
A referir ainda que a ex-mulher do arguido foi arrolada como testemunha e, na audiência de julgamento, tendo sido advertida nos termos do artigo 134º, nº 1 do Código de Processo Penal, disse não pretender prestar declarações (cfr. acta de fls. 416 a 420).
Pelo que, face a todo o exposto, como já se disse, sempre tais diligências não seriam de admitir, por não se reputarem essenciais à descoberta da verdade.
Assim, por todas as razões expostas, nenhuma censura merece o despacho recorrido.
***
Passemos à análise da segunda questão suscitada e que contende com a invocada violação do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal.
Argumenta o recorrente que o tribunal a quo “não se ancorou a uma eficaz fundamentação da condenação, não valorando ou criticando de forma eficaz os indícios a que teve acesso”.
Que dizer?
Dispõe o nº2 do artigo 374º do Código de Processo Penal: «Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”, sendo a inobservância total ou parcial de qualquer desses segmentos cominada com a nulidade [art. 379º n.º 1 a)].
Esta exigência de fundamentação pode dizer-se que constitui, de modo mediato, um corolário do princípio do estado de direito democrático e, de modo imediato, um corolário da exigência constitucional nos termos da qual as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei [Artigo 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa]
O processo penal de um Estado de Direito tem que ser um processo equitativo e leal (a due process of law, a fair process), no qual o Estado, quando faz valer o seu ius puniendi, actue com respeito pela pessoa do arguido (assegurando-lhe todas as garantias de defesa), de molde, designadamente, a evitarem-se condenações injustas.
A fundamentação da decisão constitui uma exigência com vista à realização de uma tríplice finalidade: seja lograr a legitimação democrática do exercício da iuris dictio e, por via dela, uma maior confiança do cidadão na justiça; seja, permitir o autocontrolo à própria autoridade judiciária que profere a decisão; seja garantir o exercício do direito de defesa na dedução do recurso.
Uma decisão fundamentada ajuda, desde logo, à compreensão e, depois, à aceitação e à convicção por parte dos destinatários, sejam estes os imediatos – as partes, os sujeitos processuais -, seja, mediatamente, a comunidade social.
Já o autocontrolo – dizer também, a necessidade de justificar a decisão – pelo esforço em garantir e demonstrar a apreciação racional da prova, garantirá, à outrance, que a convicção não se formou a partir de meras conjecturas ou suspeitas. Ao motivar a decisão, o julgador indica, desde logo, os meios probatórios e, por via deles, consente o juízo da legalidade da prova produzida, que o mesmo é dizer consente a avaliação quanto a ter sido produzida ou não valoração ilícita de prova ou ter sido utilizado ou não meio de prova proibido.
Mas para além da indicação dos meios de prova compete-lhe tornar claro o iter formativo da convicção, de modo a que a sentença revele os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, levaram a que os valorasse de determinada forma.
O segmento final do n° 2 do artigo 374° do Código de Processo Penal, acima transcrito, exige a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Indicação das provas, desde logo, de modo a que, como se deixou já referido, o destinatário imediato da decisão, como o tribunal de recurso, possam aferir da conformidade legal dos meios de prova utilizados e/ou das provas produzidas em sede de julgamento, seja no sentido de obviar à valoração de prova proibida, seja no sentido de obviar à valoração ilícita de prova.
À indicação das provas, acresce a exigência do «exame crítico das provas», exame crítico que deverá consistir “Na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.” (Ac. do S.T.J. de 30.01.2002, proferido no Proc. n° 3063/01).
Como bem se compreende, o exame crítico da prova reveste especial relevo já que é aí que o tribunal explica a convicção adquirida e qual o caminho percorrido para a atingir.
Para tanto, não necessita de realizar exposições doutrinárias, citações jurisprudenciais ou sequer descrever (por súmula ou desenvolvidamente) o teor de cada uma das provas produzidas. Basta que exprima com clareza e rigor as circunstâncias que determinaram a opção efectuada, tornando perceptível aos intervenientes processuais e aos cidadãos em geral, as razões da sua íntima convicção.
Obviamente, tal explicitação será mais fácil em caso de confissão ou quando o arguido negue os factos, mas toda a demais prova seja unânime em sentido contrário.
Porém, havendo versões contraditórias impõe-se fundamentação especialmente cuidadosa da convicção, para ser possível perceber qual a credibilidade atribuída a cada uma delas, os meios probatórios considerados para o efeito e os motivos que lhe presidiram, bem como as circunstâncias a que se lançou mão para ultrapassar (ou não) as divergências detectadas e optar por qualquer delas. E o exame crítico só será suficiente quando exteriorize cabalmente o percurso lógico-dedutivo que presidiu à convicção firmada, não se confundindo com a simples enumeração dos meios probatórios ou sequer com a descrição – mais ou menos alargada - do seu conteúdo.
Deste modo, haverá nulidade, quando a fundamentação da convicção do tribunal for insuficiente para efectuar uma reconstituição do iter que conduziu a considerar cada facto provado ou não provado, ou seja para se perceber as razões que sustentam tal decisão.
Dizer, então: sendo certo, como é, que o rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, torna-se fundamental que a decisão explicite, ela mesma, as razões e/ou o processo lógico que a suportam, de modo a permitir que o tribunal superior, fazendo intervir as indicações extraídas das regras da experiência e perante os critérios lógicos decorrentes da decisão sob apreço, a reexamine para verificar, nomeadamente, da (in)existência dos vícios da matéria de facto a que se refere o artigo 410°, n° 2 do Código de Processo Penal.
O exame crítico das provas deverá, em síntese, permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão, do processo lógico que lhe serviu de suporte de modo a poder o mesmo tribunal de recurso concluir se sim ou não, na decisão posta em causa, se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, se a decisão sobre a matéria de facto não foi arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência.
«Não sendo naturalmente uniformes as exigências constitucionais de fundamentação relativamente a todo o tipo de decisões judiciais,…, algumas destas hão-de ser objeto de um dever de fundamentar de especial intensidade. Entre elas, facilmente se convirá estarem as decisões finais em matéria penal, mormente as condenatórias, em primeira linha.»
«…a fundamentação das sentenças penais – especialmente das sentenças condenatórias, pela repercussão que podem ter na esfera dos direitos, liberdades e garantias das pessoas – deve ser suscetível de revelar os motivos que levaram a dar como provados certos factos e não outros, sobretudo tendo em conta que o princípio geral em matéria de avaliação das provas é o da sua livre apreciação pelo julgador…» (Ac. T. Constitucional Nº680/98 de 2.12.1998 (Processo Nº456/95 – 2ªSec. Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza).
Citando Paulo Pinto de Albuquerque, “o dever de fundamentação da sentença exige a indicação dos motivos de credibilidade em testemunhas, documentos ou exames (Ac. STJ 30.01.2002 in SASTJ nº57, 69) e, designadamente, a indicação dos motivos por que não se atende a provas de sentido contrário (….) ou, dito de outro modo, a indicação dos motivos por que se preferiu uma versão dos factos em detrimento de outra (Ac. TEDH Gul v. Turquia, de 14.12.2000)”(Ob. cit. Pág. 9467).
Vejamos o caso concreto.
E diga-se desde já que, não pode concordar-se como o recorrente quando defende que o tribunal a quo não valorou ou criticou de forma eficaz os indícios a que teve acesso.
É certo que há versões contraditórias, uma apresentada pelo arguido e outra pela assistente e também é certo que, apenas podem ser consideradas para efeitos de formação de convicção do tribunal, as provas que tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência de julgamento (cfr. artigo 355º do Código de Processo Penal).
Ora, na motivação o tribunal a quo explicou, de forma concisa, a credibilidade atribuída a cada uma das pessoas ouvidas (arguido, assistente e testemunhas), os meios de prova considerados para o efeito e os motivos que lhe presidiram, bem como as circunstâncias que teve em conta para ultrapassar as divergências detectadas e optar por uma delas. O tribunal recorrido exteriorizou satisfatoriamente o percurso lógico-dedutivo que presidiu à convicção firmada.
Pelo que se entende, ao contrário do defendido pelo recorrente, que o acórdão recorrido logrou oferecer uma motivação da decisão de facto com uma apreciação crítica da prova satisfatoriamente esclarecedora das razões subjacentes à deliberação tomada.
Não ocorre, pois, a invocada violação do disposto no nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal.
Improcede, pois, também este fundamento do recurso.
Aqui chegados atentemos na terceira questão supra elencada e que contende com os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c) do Código de Processo Penal, sendo que o recorrente invocou os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova.
É sabido que a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do Código de Processo Penal, no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, de conhecimento oficioso, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.).
No segundo caso, da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do Código de Processo Penal, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do Código de Processo Penal, como sejam o de especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e o de especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, além da indicação das provas a renovar, se for caso disso.
O recorrente argumenta que “do vertido dos autos resulta verdadeira insuficiência da matéria de facto para sustentar aqueles factos como provados (pontos 4 a 13 da matéria de facto dada como provada) em violação do artigo 410º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal”, além de que a sentença “padece também de erro notório na apreciação da prova, em violação do artigo 410º, nº 2, alínea c) do Código de Processo Penal”.
Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
Como já referimos estão em causa vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
Tais vícios não se confundem com errada apreciação e valoração das provas. Embora em ambos se esteja no domínio da sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências.
O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz.
A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal, ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.
Como bem acentua o Supremo Tribunal de Justiça, o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena (entre outros, cf. Acórdão de 4/10/2006, Proc. n.º 06P2678 - 3.ª Secção, em www.dgsi.pt; Acórdão de 05-09-2007, Proc. n.º 2078/07 - 3.ª Secção e Acórdão de 14-11-2007, Proc. n.º 3249/07 - 3.ª Secção, sumariados em Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça -Secções Criminais).
O erro notório na apreciação da prova ocorre respectivamente quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida - Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740; e ainda quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.
Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Em matéria de vícios previstos no art. 410.º n.º 2 do Código de Processo Penal cumprirá dizer que muitas vezes se confunde o da al. a) (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) com problemas de insuficiência de prova e o da al. c) - (erro notório da apreciação da prova) - com o problema da livre convicção do tribunal na apreciação das provas a tal sujeitas ou com o da errada ou insuficiente apreciação do valor delas.
In casu o recorrente alega, como já dissemos, que “do vertido dos autos resulta verdadeira insuficiência da matéria de facto para sustentar aqueles factos como provados (pontos 4 a 13 da matéria de facto dada como provada) em violação do artigo 410º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal” e que “o Tribunal não logrou provar que a intenção do arguido fosse denegrir a imagem pública da assistente…”. E perante tal alegação do recorrente o que ressalta é a insuficiência da prova para a matéria de facto provada, relacionada com problemas de insuficiência de prova, ou seja, segundo a versão do arguido recorrente, a prova produzida não é suficiente para o tribunal a quo considerar a factualidade em causa como provada.
E que é distinta da situação de os factos apurados e constantes da decisão recorrida serem insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem (absolvição ou condenação) ou com o facto de o tribunal ter deixado de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda não ter investigado factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão.
Ora, do texto da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência, constam os factos suficientes para a decisão de direito, sendo que tribunal apurou e pronunciou-se sobre os factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, e investigou os factos relevantes para a decisão.
Pelo que, ao contrário do defendido pelo recorrente, não padece a sentença recorrida do invocado vício aludido na alínea a) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
Argumenta ainda o recorrente no sentido de que “ao dar preferência à versão do assistente, sem mais prova que a sustente, não prevenindo, nem excluindo os indícios no sentido de versão diferente e mesmo no sentido da versão da recorrente de não participação nos factos, o Tribunal incorreu em erro notório na apreciação da prova, previsto no citado artigo 410º, nº 2, al. c) do CPP, violando também por este lado, o artigo 127º do CPP, bem como o principio in dubio pro reo e da presunção de inocência previsto no artigo 32º da CRP e na CEDH.”
Vejamos.
Quanto ao vício aludido na alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal – erro notório na apreciação da prova -, reiteramos que o mesmo não se verifica se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Ora, o que recorrente pretende é contrapor a convicção que ele próprio alcançou sobre os factos (que é irrelevante) à convicção que o tribunal de 1.ª instância teve sobre os mesmos factos, livremente apreciada segundo as regras da experiência, e invoca o vício do erro notório na apreciação da prova. No entendimento do recorrente, a sua versão dos factos é que é merecedora de credibilidade, e não a versão oposta que veio a ser acolhida na sentença recorrida. Ou seja, o que o recorrente pretende é substituir a convicção alcançada pelo tribunal recorrido com base na valoração que fez sobre determinados meios de prova, à sua própria convicção fundada, obviamente, na valoração que fez dos mesmos meios de prova.
O modo de valoração das provas, e o juízo resultante dessa mesma valoração, efectuado pelo “tribunal a quo”, ao não coincidir com a perspectiva do recorrente nos termos em que este as analisa, e consequências que daí derivam, não traduz qualquer vício da decisão e não é sindicável por este tribunal.
Não descortinamos, pois, o invocado erro notório na apreciação da prova
Bem pelo contrário, nada permite afirmar que do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, decorra a existência de tal erro. O que se evidencia é a falta de notoriedade de qualquer erro da sentença.
Do que resulta que, ao contrário do defendido pelo recorrente, não padece a sentença recorrida do invocado vício aludido na alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
Aqui chegados, cumpre debruçarmo-nos sobre a impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto provada propugnada pelo recorrente.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (Sobre estas questões, v. os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, disponíveis em www.dgsi.pt.).
Temos, pois, que o recurso em matéria de facto não implica uma reapreciação, pelo tribunal de recurso, da globalidade dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida.
Duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa direito a novo (a segundo) julgamento no tribunal de recurso.
Mas se o recurso que incide sobre matéria de facto implica a reponderação, pelo Tribunal da Relação, de factos pontuais incorrectamente julgados, essa reponderação não é realizada se este tribunal se limitar a ratificar ou “homologar” o julgado (por exemplo, com a simples constatação, a partir do acolhimento da fundamentação, da correcção do factualmente decidido), em vez de fazer um verdadeiro exercício de julgamento, embora de amplitude menor.
Como faz notar o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 30.11.2006 (www.dgsi.pt/jstj), “em sede de conhecimento do recurso da matéria de facto, impõe-se que a Relação se posicione como tribunal efectivamente interveniente no processo de formação da convicção, assumindo um reclamado «exercício crítico substitutivo», que implica a sobreposição, ou mesmo, se for caso disso, a substituição, com assento nas provas indicadas pelos recorrentes, da convicção adquirida em 1.ª instância pela do tribunal de recurso, sobre todos e cada um daqueles factos impugnados, individualmente considerados, em vez de se ficar por uma mera atitude de observação aparentemente externa ao julgamento” [No mesmo sentido, o acórdão do STJ de 15.10.2008 (www.dgsi.pt/jstj; Relator: Cons. Henriques Gaspar) em que se escreveu que “a reapreciação da matéria de facto, se não impõe uma avaliação global e muito menos um novo julgamento da causa, também se não poderá bastar com declarações e afirmações gerais quanto à razoabilidade do julgamento da decisão recorrida, requerendo sempre, nos limites traçados pelo objecto do recurso, a reponderação especificada (ou, melhor, uma nova ponderação), em juízo autónomo, da força e da compatibilidade probatória das provas que serviram de suporte à convicção em relação aos factos impugnados, para, por esse modo, confirmar ou divergir da decisão recorrida (cf. Ac. n.º 116/07 do TC, de 16-02-2007, DR, II série, de 23-04-2007, que julgou inconstitucional a norma do art. 428.º, n.º, 1 do CPP «quando interpretada no sentido de que, tendo o tribunal de 1.ª instância apreciado livremente a prova perante ele produzida, basta para julgar o recurso interposto da decisão de facto que o tribunal de 2.ª instância se limite a afirmar que os dados objectivos indicados na fundamentação da sentença objecto de recurso foram colhidos da prova produzida.]
É esse exercício que procuraremos fazer de seguida, mas não pode olvidar-se que uma das grandes limitações do tribunal de recurso quando é chamado a pronunciar-se sobre uma impugnação de decisão relativa a matéria de facto, sobretudo quando tem que se debruçar sobre a valoração, efectuada na primeira instância, da prova testemunhal, decorre da falta do contacto directo com essa prova, da ausência de oralidade e, particularmente, de imediação.
Também não se pode esquecer que o julgador pode recorrer a presunções naturais ou hominis no processo de formação da sua convicção, uma vez que se trata de um meio de prova admitido na lei (cf. art. 125º do Código de Processo Penal), sendo que de acordo com o disposto no art. 349º Código Civil, presunções são as ilações que a lei ou julgador extrai de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido. Consistem, pois, em raciocínios lógico-dedutivos, ou demonstrativos, que o julgador elabora, a partir da prova indiciária, para alcançar a verificação dos “factos juridicamente relevantes”.
Está consolidado o entendimento de que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indirecta (Cfr., entre muitos outros, os acórdãos do TRP, de 28.01.2009, do TRC, de 30.03.2010 e do STJ, de 11.07.2007 (todos disponíveis em www.dgsi.pt), também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial.
Quer a prova directa, quer a prova indirecta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum: pela primeira via ou método, “a percepção dá imediatamente um juízo sobre um facto principal”, ao passo que na segunda “a percepção é racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo, e que podem ser regras jurídicas ou máximas da experiência. A esta sequência de proposição em proposição chama-se presunção” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, 79).
A condenação pode dispensar a prova directa, basear-se em indícios, eventualmente só num, mas estes devem revelar a possibilidade de uma convicção indubitável. É necessária a existência de um indício “para além da presunção da inocência” – cfr. Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, em anotação ao art. 127. Não se trata de uma derrogação do princípio da livre apreciação da prova, mas da formulação do juízo pela relação de que os elementos de prova considerados na decisão não permitem as conclusões a que o tribunal chegou.
Para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.
O duplo grau de jurisdição na apreciação da decisão da matéria de facto não tem, portanto, a virtualidade de abalar o princípio da livre apreciação da prova que está conferido ao julgador de primeira instância.
O nosso poder de cognição está confinado aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados, com as especificações estatuídas no art. 412º n.º 3 e 4 do Código Processo Penal.
E diga-se que o recorrente cumpriu minimamente o ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do Código de Processo Penal.
O recorrente argumenta que foram incorrectamente julgados os pontos 4º a 13º da matéria de facto dada como provada. Para além de defender que “deviam ter sido dados como não provados os factos 3 e 22 dos levados à sentença como provados”.
Atentemos no que se fez constar na Motivação da Matéria de Facto da sentença recorrida.
E atentemos também nos argumentos invocados pelo recorrente.
O Tribunal da Relação procedeu à audição integral da prova testemunhal, tal como das declarações do arguido e assistente, produzidas em audiência de julgamento, tal como analisou os documentos juntos aos autos (aludidos na sentença recorrida).
Comecemos pelas declarações do arguido, passando depois para as declarações da assistente D… e depoimento da testemunha J…, cujas transcrições constam da motivação de recurso.
O arguido, que prestou declarações, negou a prática dos factos que lhe são imputados, afirmando nada ter a ver com a divulgação das fotografias da assistente que constam de fls. 19. Referiu que teve um relacionamento extra-conjugal com a assistente até 2009 e admitiu ter tirado algumas das fotografias em causa nos presentes autos (aquelas em que a assistente está nua – fls. 8 e 19), com o consentimento da mesma, durante tal período. Esclareceu que desempenhava funções de técnico de informática na empresa “E…, Lda”, sita em …, Paços de Ferreira e a assistente também lá trabalhava, assim como alguns familiares dela, sendo que na empresa, no departamento de informática, existia um computador de acesso livre/generalizado à internet, embora nem todos os funcionários tivessem acesso à internet. Adiantou que não conhece o café na Rua …, sendo que em sua casa tinha um computador com internet e vivia lá com a esposa na altura, que em 2007 soube do seu relacionamento extra-conjugal (embora não soubesse que continuou a mantê-lo). Perguntado sobre quem, em sua casa, poderia ter feito isto, respondeu não fazer a mínima ideia. Confirmou que tirou todas as referidas fotografias com o seu telemóvel, na casa onde vivia na altura, as quais ficaram guardadas no cartão de memória do seu telemóvel e copiou-as para o telemóvel da assistente (e para mais lado nenhum). Acrescentou que também fez uma filmagem. Referiu que o seu computador não tinha acesso à internet, ao contrário do computador da assistente, sendo que só existiam meia dúzia de computadores na E… com acesso à internet. Referiu que a assistente nunca lhe deu a palavra-passe e que em 2007 as fotografias (estas e outras) foram divulgadas para os telemóveis de dezenas de pessoas, inclusive para o seu, desconhecendo como tal aconteceu. Referiu ainda que no dia 16.09.2009 se encontrava de baixa e desconhecia o email D2…, embora confirme que conhecia o perfil D3… (o tal D2…@hotmail.com. Pronunciou-se quanto aos acessos com o perfil D3…, entre eles nos dias 16 e 30 de Julho, confirmando que nessa data ainda trabalhava na E… (que laborava continuamente, inclusive aos fins de semana), tinha um serviço de permanência, com o telemóvel sempre ligado, e as suas entradas e saídas eram registadas na portaria. Apesar de ter um horário fixo foi várias vezes à empresa fora desse horário.
A assistente D… referiu que trabalhou junto com o arguido na E… e durante algum tempo houve um relacionamento amoroso entre eles, sendo que numa das situações se apercebeu que o arguido lhe tirou algumas fotografias, sem consentimento dela, tendo-lhe mostrado meia dúzia de fotos, na qual estava numa posição decente (vestida). Só mais tarde, em 2007, quando ela decidiu pôr fim ao relacionamento, o que não foi bem aceite pelo arguido, é que teve conhecimento das outras fotografias (as de fls. 19 onde está nua), que foram divulgadas a colegas de trabalho, amigos e familiares da assistente, através de telemóvel (MMS). Adiantou ainda que, em 2007, quando confrontou o arguido com o sucedido, o mesmo admitiu que tinha tirado as fotografias mas referiu que tinha perdido o cartão de memória do seu telefone e alguém, que não ele, teria procedido ao envio das fotografias. Esta justificação já em 2007 não a convenceu a assistente, embora ela tenha acabado por não denunciar criminalmente o sucedido e, após uma conversa com o arguido, a situação estabilizou e as fotografias deixaram de ser divulgadas. Referiu que após o fim da relação, o arguido continuou a abordá-la e a tentar relacionar-se sexualmente com ela, o que acabou por suceder diversas vezes, como forma de evitar que as fotografias continuassem. Deu início ao seu processo de divórcio em Março de 2009 e ficou divorciada em Junho desse mesmo ano. Já depois de estar divorciada, o arguido B… surgiu com novas abordagens, que a mesma rejeitou. E foi precisamente no dia seguinte a uma “conversa um bocado atribulada” entre ambos que ela foi informada por uma amiga (L…) de que recebeu as fotografias em causa no seu e-mail enviadas do endereço D1…@gmail.com ou Hotmail, e-mail que ela pensa que o arguido conhece, embora não lhe tenha facultado a palavra-passe (e que ela sabia). Adiantou que o contacto do D1… (esse endereço de e-mail) estava nos contactos do arguido. Referiu que foi tendo conhecimento da colocação das fotografias na internet, seja por e-mail, seja no hi5, seja no Windows Live, através de pessoas amigas que lhe deram conta do que recebiam e visualizavam na Internet. Referiu que confrontou o arguido com o facto de ter apresentado queixa na polícia contra ele e pouco tempo depois o arguido meteu baixa. Negou que o arguido lhe tenha enviado uma cópia das fotografias que lhe tirou. Confirmou que a empresa laborava 24 horas e que o arguido tinha que estar contactável, sendo que este chegava a ir lá fora do seu horário normal de trabalho. Referiu que o seu ex-marido não tem conhecimentos de informática nem de comunicações electrónicas. Admitiu que a ex-mulher do arguido chegou a mandar mensagens para o telemóvel da sua mãe e também para o dela. Referiu que após a situação das fotografias ocorrida em 2007 o arguido lhe ofereceu um telemóvel exclusivo para os contactos entre eles, sendo que nos contactos que tiveram entre 2007 e 2009 utilizaram esse telemóvel. Confirmou que nunca criou nenhum perfil no hi5 e quando foi à polícia pela primeira vez foi por causa do e-mail dela ter sido utilizado por outra pessoa e terem sido divulgadas as fotografias para os endereços. Só depois, em Julho ou Agosto de 2009, teve conhecimento desses perfis de hi5 e Windows live. Confirmou ainda que o seu marido (tal como o seu pai) trabalhava na E… como carregador, e não tinha acesso aos contactos telefónicos dos colaboradores e funcionários da empresa, ao contrário do que acontecia com ela e com o arguido. Adiantou que o seu marido teve conhecimento que existia alguma coisa entre ela e o arguido aquando das fotografias de 2007 nos telemóveis.
Ora, conforme resulta da súmula das declarações do arguido e da assistente, ressaltam duas versões contrárias, a da primeiro e a da segunda. No entanto, diga-se que ambos admitiram que as fotografias de fls. 19, em que a assistente surge nua ou semi-nua, foram tiradas pelo arguido, com o seu telemóvel, em sua casa. Estão, portanto, em causa as fotografias tiradas pelo arguido com o seu telemóvel à assistente e que exibiam a sua nudez e intimidade (tal como se refere no ponto 2 dos factos provados). Fotografias que a assistente nega ter uma cópia, adiantando que só teve conhecimento delas após a sua divulgação. Esta versão, contrária à do arguido, é a que se apresenta mais lógica, tendo em conta os acontecimentos posteriores, ou seja, a divulgação dessas fotografias completamente estranhas para ela (quer dizer, o comportamento de quem tira fotografias sem autorização do outro, para quem sabe um dia utilizá-las é mais consentâneo com o facto de não as dar a conhecer, de as esconder, pois de outra forma a outra parte poderia dissuadi-lo de fazê-lo, procurando até destruir as mesmas).
E concordamos com o tribunal a quo quando refere que “a alegada circunstância de o arguido perder o cartão de memória do telemóvel (apenas, e não o telemóvel), no momento temporal em que assistente pôs fim ao relacionamento, merece as maiores reservas, e seria ainda necessário que a pessoa que “encontrou” o cartão de memória soubesse a que contactos enviar as fotografias”. Esta justificação também não nos convence. Tal como não convenceu a assistente que, explicou que continuou a relacionar-se com o arguido para que terminasse a divulgação das fotografias, até porque ambos eram casados e tinham filhos (e quiçá, também, porque tinha sentimentos por este, como defende o recorrente, até porque a assistente não escamoteou que era sua expectativa ficar definitivamente com o arguido). E, assim se compreende que a assistente, naquela data, tenha acabado por não denunciar criminalmente o sucedido, sendo que a situação estabilizou e as fotografias deixaram de ser divulgadas.
E concordamos ainda com o seguinte excerto da sentença recorrida:
“(…) o arguido tinha um motivo para proceder à divulgação das fotografias e que se prendia com a pretensão da assistente de não prosseguir com o seu relacionamento, e usar a sua divulgação como modo de manipular a assistente, pois foi assim que a mesma se sentiu quando depois de 2007, ainda acedeu a relacionar-se com o arguido. E quando a assistente deu conta ao arguido de que tinha ido apresentar uma queixa na Polícia Judiciária contra o mesmo, exibindo-lhe a declaração de presença na Polícia para que o mesmo acreditasse, o arguido não disse uma única palavra, na expressão da assistente, “não abriu a boca”, e depois disso não mais falaram sobre as fotografias.
O arguido tinha também os conhecimentos técnicos para actuar da forma descrita. O arguido é técnico informático com frequência do ensino superior (bacharelato de informática, segundo declarou, apesar de o relatório social fazer menção a licenciatura), pelo que facilmente se poderia introduzir no e-mail da assistente, ou através de tentativas de alcançar a password, uma vez que se tratava uma pessoa que lhe era próxima, e, por isso, poderia tentar fazê-lo mediante a introdução de datas, palavras ou expressões que fossem próximas da assistente. Ou ainda, através de programas informáticos que permitem aceder à password dos utilizadores, mediante programas com recurso a algoritmos. Seguramente que para o arguido, por força da sua actividade profissional, nada disto terá segredos ou dificuldades. O que já não sucederá com a assistente, secretária da direcção, ou para a sua ex-mulher, educadora de infância. E muito menos dificuldades teve o arguido em criar um novo endereço electrónico da assistente (D2…@hotmail.com.) e através do mesmo criar um perfil de hi5”.
Efectivamente, atento o circunstancialismo em que os factos ocorreram, sendo o arguido quem tinha tirado as fotografias em causa e as tinha guardado no cartão do seu telemóvel, atentas as regras da experiência e da lógica do acontecer, era a única pessoa que podia proceder à divulgação dessas fotografias e tinha um motivo para tal, relacionado com o facto de a assistente querer pôr termo ao relacionamento entre ambos, e usar a sua divulgação como modo de a manipular.
Também não se podem escamotear os conhecimentos do arguido na área da informática e tudo o que lhe respeite, não sendo de aceitar, como defende o recorrente, que qualquer pessoa pode descobrir a password de outra ou aceder a programas informáticos que permitem aceder à mesma. E não é qualquer pessoa que tem conhecimentos para ter conta no Hi5 ou Facebook ou que cria um endereço electrónico ou um perfil de Hi5.
Por outro lado, resulta dos documentos juntos aos autos (prova directa) que para a prática dos referidos factos se acedeu à internet através da conta hotmail D1…@hotmail.com. Esses contactos foram através de três IP`s diversos e respectivos grupos data/hora. Os números de IP pertencem a diversos operadores:
● G…:
..........198 – em 29/07/2009, pelas 06:17:49 PM (PDT - Pacific Daylight Time);
..........198 – em 29/07/2009, pelas 06:44:49 PM (PDT);
..........198 – em 29/07/2009, pelas 06:49:37 PM (PDT);
...........83 – em 29/07/2009, pelas 11:40:30 PM (PDT);
cujo utilizador está registado em nome de “E…, Lda.”, …, Paços de Ferreira (fls. 107).
● H…:
...........127 – em 30/07/2009, pelas 03:54:43 AM (PDT);
...........127 – em 30/07/2009, pelas 05:47:33 AM (PDT);
...........127 – em 30/07/2009, pelas 06:09:30 AM (PDT);
cujo utilizador está registado em nome de C…, com morada em …, .º dto, em Felgueiras, ex-mulher do arguido, tratando-se de um IP associado a um serviço de internet sem fios (G1…) (fls. 111); e
● Microsoft Corporation, junto de quem não foi possível identificar os computadores associados aos números de IP em causa.
Relativamente ao perfil da página www.hi5.com obteve-se a identificação do nº de IP ………..60 como associado ao último login do perfil em causa ocorrido em 18/08/2009, pelas 00.53.37 horas (PST - Pacific Standard Time – que corresponde às 08:53:37, hora de Lisboa). Associado a este perfil surge o endereço electrónico D2…@hotmail.com.
O nº de IP pertence à H… e está registado em nome de J…, com morada na …, nº .., em Paços de Ferreira (fls. 139).
Mais se verificou a existência de um perfil “D3…” cujo URL (Universal Resource Locator) é http://... em que estavam expostas as mesmas fotografias da assistente, a que corresponde o IP ..........14, em 21 de Março de 2009, pelas 09:48:26 AM (PDT) (fls. 149), cujo utilizador está registado em nome de C…, com morada em …, .º dto, em Felgueiras, ex-mulher do arguido, tratando-se de um IP associado a um serviço de internet sem fios (G1…) (fls. 173).
Os elementos fornecidos pelas operadoras, concretamente os diversos IP`s e respectivos grupos data/hora surgem no padrão horário PDT- Pacific Daylight Time, sendo que a fls. 425 e 426 encontra-se a conversão horária para o padrão UCT (Universal Time Zone), efectuada pelo Inspector da Policia Judiciária, K…, devidamente explicada na sua inquirição em sede de audiência de discussão e julgamento.
Do que resulta que os acessos à internet foram efectuados a partir da “E…, Lda.”, de um IP associado a um serviço de internet sem fios (G1…) registado em nome de C…, com morada em …, .º dto, em Felgueiras, esposa do arguido, e ainda de um café pertencente a J…, com morada na …, nº .., em Paços de Ferreira.
Os horários em que se acedeu à internet na E… são compatíveis com o horário de trabalho do arguido, pois como o mesmo referiu, por força das funções que desempenhava, poderia aceder à empresa a qualquer hora.
O acesso efectuado no café de Paços de Ferreira (sendo que a empresa também se localiza em Paços de Ferreira - …) foi concretizado pelas 08:53:37 (hora de Lisboa), o que era também perfeitamente possível para o arguido, uma vez que se trata de dia de semana (terça-feira) e o café abria às 8 horas da manhã, como referiu o seu proprietário (sendo que o arguido confirmou que nessa altura entrava das 9h às 18.30h e a assistente confirmou que o horário do arguido era das 9h às 12h e das 14h às 18.30h).
Os acessos efectuados através do serviço de internet sem fios (G1…), registado em nome da ex-mulher do arguido, são efectuados dentro de horários que nada saem de padrões de normalidade.
Do que resulta a conclusão que a pessoa que acedeu à Internet destes três locais teria de estar em condições de o fazer em todos eles.
E se é certo que, como defende o arguido, quanto ao acesso na E… qualquer dos colegas de trabalho da assistente, inclusive a própria (à excepção do seu ex-marido, que era carregador e nada sabe de informática), o poderia ter feito, uma vez que tinham acesso à Internet e receberam as fotos em 2007, tal raciocínio já não poderá ser feito no que respeita à utilização da pen (internet sem fios) registada em nome da ex-mulher do arguido.
E como se refere na sentença recorrida “A assistente D… poderia estar em condições de o fazer da E… e do café, posto que acedia à Internet no seu local de trabalho e poderia deslocar-se ao café, mas já não da residência do arguido, nem da prova produzida resulta que fizesse uso da pen G1…, e daqui resulta a inutilidade da alegação do arguido de que a assistente tinha as fotografias em seu poder.
A ex-mulher do arguido, C…, poderia estar em condições de fazê-lo de casa, através da internet sem fios e poderia deslocar-se ao café, mas já não da E…e, muito embora se reconheça que poderia estar magoada com a relação extra-conjugal do então seu marido, como alega o recorrente. No entanto, a mesma, porque casada com o arguido à data da prática dos factos, optou pelo seu direito ao silêncio.
Contudo, não se nos afigura que nenhuma delas tivesse conhecimentos para criar um e-mail e por via dele um perfil hi5 com vista a divulgar as fotografias em causa.”
Pelo que, atentas as regras da experiência comum, em face de critérios de razoabilidade e bom senso, não se nos afigura que uma mulher se expusesse publicamente divulgando fotografias como as que estão nos autos. Que interesse poderia ter em fazê-lo? Nenhum se vislumbra, até porque é mãe de uma criança.
E no que se refere ao ex-marido da assistente, que, como já dissemos era carregador e nada percebe de informática, à data já estava divorciado da mesma, mãe do seu filho e com quem a assistente afirmou manter relações cordiais. O que leva a considerar que, sendo uma pessoa normal, não quereria expor publicamente a mãe do seu filho nestes termos, e mesmo que o quisesse, nunca lhe seria possível aceder, pelo menos à internet sem fios da ex-mulher do arguido, ainda que o lograsse fazer na E…, o que não é o caso, pois desempenhava funções no cais de descargas de mercadorias e sem acesso directo à Internet.
Aqui chegados, não podemos escamotear que o dono do café de Paços de Ferreira, o Sr. J… não foi capaz de identificar o arguido e não se recorda de o mesmo estar presente no seu café. O que não se estranha, pois quem tem uma porta aberta não pode recordar-se de todos os clientes que ali se deslocam, além de que está em causa (apenas) uma deslocação no dia 18/08/2009, pelas 08:53:37, ou seja, pouco antes da hora da maior parte das pessoas começar a trabalhar e altura em que, normalmente se encontra mais gente nos cafés. Para além de que, conforme se refere na sentença recorrida “também não é de esperar que quem ali vai para praticar um acto ilícito faça questão de se destacar entre os clientes, muito pelo contrário.”
A testemunha em causa, dono do referido café confirmou, como, de resto, está documentado, que tem acesso à Internet no seu estabelecimento que disponibiliza aos clientes, não fazendo qualquer registo de quem ali se desloca. Concretizou o horário de funcionamento do estabelecimento que, à semana, estava aberto das 8 horas às 2 da manhã.
Ora do exposto resulta, pois, que apenas o arguido tinha o domínio total e perfeito dos três locais em simultâneo. Tinha o motivo, tinha os necessários conhecimentos técnicos e tinha as fotografias, e apenas em si confluem todos estes factores.
Sabemos que as provas não podem ser apreciadas uma a uma, isoladamente, de forma segmentada, devendo ser analisadas e valoradas concatenadamente, conjugando-as e estabelecendo correlações internas entre elas, confrontando-as de forma a que, ainda que de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear, fazendo inferências ou deduções de factos conhecidos desde que tal se justifique e tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência.
Assim, aqui chegados, importa atentar na demais prova produzida.
A testemunha K…, inspector, explicou todas as diligências efectuadas ao longo do processo, e que o mesmo documenta. Esclareceu que por regra as respostas obtidas não fazem as transferências de fusos horários, pelo que lhe foi solicitada a conversão a que já se aludiu (fls. 452 a 426).
A testemunha L…, amiga da assistente e por ela referida, esclareceu que frequentou com a mesma um curso em horário pós laboral de manicure/pedicure/massagista entre Fevereiro de 2008 e Março de 2011. Referiu que foi surpreendida pelas fotos da assistente no seu e-mail e de imediato lhe telefonou a dar conta do sucedido. Na Polícia Judiciária facultou o seu e-mail e respectiva password para visualizarem o conteúdo em causa. Soube que todos os contactos da assistente, que esta referiu serem mais de 100, receberam as fotografias em causa, o que a deixou muito abalada e envergonhada.
A testemunha M…, que referiu ser amiga da assistente, relatou que quando saíam, ia buscar a assistente a casa e a seu pedido, porque esta lhe afirmava ter medo de sair, por razões que não lhe explicitava. Apenas, mais tarde, a assistente lhe deu conta do que se passava, chegando a pedir-lhe para entrar num site em que estavam as fotografias em causa e, a seu pedido, fez uma denúncia de abuso e algumas horas depois a página foi retirada. Adiantou que a assistente era uma pessoa bem considerada, nunca ouvindo nada em seu desabono.
A testemunha N… foi ama do filho da assistente até aos 3 anos e manteve contacto com a assistente após esse relacionamento, até porque efectuava trabalhos de costura. Referiu que tem a assistente como uma pessoa educada e respeitada e que ficou arrasada com o sucedido. Ouviu comentários sobre fotografias ou filmes da assistente, até porque o seu marido trabalhava na E…, mas nunca os viu, nem mostrou interesse nisso.
Do depoimento das testemunhas de defesa resultou que o arguido era um bom profissional de informática.
A testemunha O…, director da E…, que a assistente secretariava, referiu que recebeu as fotografias em Fevereiro de 2007, mas apenas aquelas em que não se via o rosto da assistente e em 2009 já não voltou a recebê-las. Pode atestar que a imagem da assistente na empresa ficou prejudicada e chegou a proibir o arguido de se dirigir ao gabinete da assistente na sequência de uma queixa que esta fez relativamente ao seu comportamento. A sua opinião sobre a assistente é de uma pessoa correcta, simpática e cumpridora.
A testemunha P…, chefe dos serviços de informática, e a quem o arguido se reportava, explicou que existia um computador com acesso à internet na sala de informática e ao qual acediam o depoente e o arguido e que estava permanentemente ligado, sendo certo que para aceder à sala da informática existia um código de acesso.
Acrescente-se ainda que, conforme resulta da motivação da decisão recorrida (dos factos provados e não provados) o tribunal a quo teve em conta os depoimentos do arguido, da assistente e da testemunha J…, cujos depoimentos se encontram transcritos na motivação de recurso (para além da restante prova produzida) e explicou por que motivo não atendeu à versão apresentada em julgamento pelo arguido.
E diga-se que tais transcrições não são susceptíveis de abalar a credibilidade que o depoimento da assistente D… mereceu ao tribunal recorrido, conforme pretende o recorrente.
Por outro lado, não existe qualquer obstáculo processual a que, no confronto entre as declarações prestadas pelo arguido e pela assistente, o tribunal atribua maior credibilidade a uma do que a outra, na medida em que se encontram ambas sujeitas à livre apreciação do julgador.
É que se afigura indubitável que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
Argumenta o recorrente que “vista a ausência de confissão e de qualquer outra prova no sentido da verificação daqueles concretos factos como provados, além das declarações do assistente, não podia o Tribunal concluir nesse sentido de dar tais factos como praticados ou como provados em relação ao recorrente, pois, as simples declarações da assistente, - única prova a que se resume o assento motivacional do Tribunal não são aptas a ultrapassar a fase indiciária”.
Não podemos concordar com tal alegação, pois para além de o arguido e a assistente se terem pronunciado no sentido supra exposto, o certo é que não foram apenas as declarações da assistente a única prova tida em conta pelo tribunal a quo, que, para além de todos os cuidados que tomou no que respeita a tais declarações, considerou o conjunto da prova produzida, quer a directa, quer a indirecta (indiciária). E dessa conjugação brotou a convicção do tribunal, conforme já explicitado.
Acresce que, no conjunto da prova produzida, o depoimento da assistente se revelou merecedor de credibilidade, imparcial e isento, não obstante a mesma ser demandante do pedido cível, para além de demonstrar coerência na exposição dos factos, denotando conhecimento sobre os factos sobre que depôs e apenas relatando os que tinha conhecimento. Bem andou, pois, o tribunal a quo em considerá-lo.
Assim, analisada e avaliada em conjunto toda a prova produzida, na ponderação lógica e racional de todos os elementos probatórios, face às regras da experiência comum, não pode senão concluir-se que tal prova não impõe decisão diversa, não havendo qualquer razão para alterar o decidido pelo Tribunal a quo quanto aos pontos 4º a 13º dos “Factos Provados”.
O mesmo se dirá no que se refere aos pontos 3 e 22 dos “Factos Provados” considerando que nos decidimos pelo acerto da decisão do tribunal recorrido quanto à improcedência da nulidade arguida.
Sempre se dirá que o tribunal a quo teve em consideração, como se refere na fundamentação da sentença (na “convicção do tribunal” – fls. 11) que, após o fim formal da relação entre o arguido e assistente, ocorrido no ano de 2007, os dois se relacionaram sexualmente por diversas vezes. Pelo que o tribunal a quo não escamoteou que o relacionamento sexual entre ambos continuou para além do ano de 2007.
E o facto de o arguido, segundo alega o recorrente, ter sido condenado por homicídio por negligência (em convolação do crime de homicídio qualificado, dizemos nós), não invalida o ponto 22 dos “Factos Provados”, ou seja, que o mesmo se encontrava acusado da prática do crime de homicídio qualificado.
Acresce que, como é sabido, os recursos de decisões judiciais destinam-se a possibilitar a reapreciação por um órgão superior da decisão proferida por um órgão inferior, dentro dos mesmos pressupostos em que este decidiu.
E tem sido nosso entendimento e tal como anotado pelo STJ, “…o tribunal superior não pode, em recurso, conhecer de questão nova não conhecida na decisão recorrida, com base em documento junto posteriormente, uma vez que os recursos se destinam exclusivamente ao reexame das questões decididas na decisão recorrida” - Citação do ponto IV do sumário Ac. do STJ, datado de 27/10/2010, in http://www.dgsi.pt. Tal jurisprudência tem sido seguida neste TRP, podendo ver-se, a título de exemplo, o Acórdão datado de 26/05/2010, relator Dr. Álvaro Melo, publicado no mesmo site, no qual se sustentou, além do mais, que “III- Ao tribunal de recurso não compete proferir decisões que não tenham sido colocadas ao tribunal recorrido, mas sim analisar as decisões por este proferidas e aferir da sua conformidade com a lei e com as provas a que o tribunal teve acesso”. No mesmo sentido, o acórdão desta mesma Relação e relator de 2011-02-09, in http://www.dgsi.pt.
Assim sendo, o que temos como pacífico, não serão atendidos nem apreciados nesta instância os documentos juntos pelo recorrente em 03.04.2013.
Pelo exposto mantém-se também o decidido pelo Tribunal a quo quanto aos pontos 3º e 22º dos “Factos Provados”.
Assim, considerando que se mantém a decisão proferida sobre matéria de facto provada, necessária é a conclusão de que entendemos que o tribunal a quo não violou o princípio da livre apreciação da prova (plasmado no artigo 127º do Código de Processo Penal), nem o disposto no artigo 125º do mesmo Código que respeita à legalidade da prova, ao contrário do defendido pelo recorrente.
Como já dissemos, o recorrente impugna a decisão sobre matéria de facto, que considera incorrectamente julgada porque o tribunal teria apreciado e valorado mal a prova produzida em audiência, argumentando que perante a ausência de provas e havendo duas versões contrárias, restava ao tribunal apenas e tão só lançar mão do princípio in dubio pro reo e absolver o arguido. Defende, pois, que o tribunal a quo ao dar preferência à versão da assistente, sem mais prova que a sustente, violou o princípio in dubio pro reo e da presunção de inocência previsto no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
Vejamos se lhe assiste razão.
O princípio da presunção de inocência é um princípio fundamental num Estado de Direito democrático, cuja função é, sobretudo (mas não só), a de reger a valoração da prova pela autoridade judiciária, ou seja, o processo de formação da convicção com base nos meios de prova Nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4.ª edição revista, 519), “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”.
Ensina o Prof. Figueiredo Dias, sobre o princípio in dúbio pro reo: «À luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do tribunal, também não possam considerar-se como provados. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova — não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão (...) — tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dúbio pro reo» (Direito Processual Penal, reimpressão, 1984 p. 213).
Como se tem dito repetidas vezes, a violação do princípio in dubio pro reo ocorre quando, após a produção e a apreciação dos meios de prova relevantes, o julgador se defronte com a existência de uma dúvida razoável sobre a verificação dos factos e, perante ela, decide “contra” o arguido. Não se trata, pois, de uma dúvida hipotética, abstracta ou de uma mera hipótese sugerida pela apreciação da prova feita pelo recorrente, mas de uma dúvida assumida pelo próprio julgador.
Temos, pois, que a dúvida que fundamenta o apelo ao princípio in dúbio pro reo não é qualquer dúvida, devendo ser insanável, razoável e objectivável.
Em primeiro lugar, deverá ser insanável, pressupondo, por conseguinte, que houve todo o empenho no esclarecimento dos factos, sem que tenha sido possível ultrapassar o estado de incerteza.
Deverá ser razoável, ou seja, impõe-se que se trate de uma dúvida racional e argumentada. Não é razoável, porque meramente subjectiva, a dúvida que brota como efeito de uma consciência indefinidamente hesitante ou exasperadamente escrupulosa, ou até de um deficiente estudo do material probatório.
Finalmente, deverá ser objectivável, ou seja, é necessário que possa ser justificada perante terceiros, o que exclui dúvidas arbitrárias ou fundadas em meras conjecturas e suposições.
Não se trata aqui de “dúvidas” que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve e devia ter tido, pois o “in dubio” não se aplica quando o tribunal não tem dúvidas. Ou seja, o princípio “in dubio pro reo” não serve para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto.
Haverá violação do princípio in dubio pro reo se for manifesto que o julgador, perante essa dúvida relevante, decidiu contra o arguido, acolhendo a versão que o desfavorece [Ac. STJ de 27.5.2010 e de 15-07-2008; e Ac. RP de 22.6.2011, 17.11.2010, 2.12.2009, 9.9.2009 e de 11.1.2006, todos disponíveis em www.dgsi.pt].
Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual que conduziu à decisão condenatória, e resultando esse juízo do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o artigo 355.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, subordinadas ao princípio do contraditório (art.º 32.º, n.º 1, da Constituição da República), fica afastado o princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência (acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj).
Por último, tal como acontece com os vícios da sentença a que alude o n.º 2 do art.º 410.º do Código de Processo Penal, a eventual violação do princípio em causa deve resultar, claramente, do texto da decisão recorrida, ou seja, quando se puder constatar que o tribunal decidiu contra o arguido apesar de tal decisão não ter suporte probatório bastante, o que há-de decorrer, inequivocamente, da motivação da convicção do tribunal explanada naquele texto (Neste sentido, o acórdão do STJ de 29.05.2008 (Relator: Cons. Rodrigues da Costa), www.dgsi.pt/jstj).
Como já anteriormente tivemos oportunidade de esclarecer, a prova foi apreciada segundo as regras do artigo 127º do Código de Processo Penal, com respeito pelos limites ali impostos à livre convicção, não só de motivação objectiva segundo as regras da vida e da experiência, e sem que se vislumbre que na apreciação da prova o tribunal tenha incorrido em qualquer erro lógico, grosseiro ou ostensivo.
Parece-nos claro em face do que o tribunal deixou extravasado na sentença, que logrou convencer-se e convencer-nos da verdade dos factos, que deu como provados “para além de toda a dúvida razoável”.
A decisão em apreço baseia-se num juízo de certeza (independentemente do sentido da mesma), não em qualquer juízo dubitativo. É o que dela resulta com clareza.
Ou seja, em momento algum a decisão impugnada revela que o tribunal recorrido tenha experimentado uma hesitação ou indecisão em relação a qualquer facto. Bem pelo contrário, afirma convictamente a matéria dada como provada. E do conhecimento que sobre tal decisão tomámos, igualmente concluímos que a mesma é linear e objectiva, cumpre os pressupostos decorrentes do princípio da livre apreciação da prova [artigo 127.º, do Código de Processo Penal] e não acolhe espaço para dúvidas ou incertezas relevantes.
Nada há, pois, a censurar no processo lógico e racional que subjaz à formação da convicção do tribunal, sendo patente a inexistência de quaisquer motivos para se falar em violação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
Improcede, pois, também, este fundamento do recurso.
Passemos a analisar a subsunção jurídica dos factos praticados pelo arguido.
O recorrente foi condenado como autor pela prática de um crime de acesso ilegítimo previsto e punível pelo artigo 7º, nº 1 e 2 da Lei nº 109/91, de 17/8.
Argumenta o mesmo que “o benefício ou vantagem ilegítimo não existiu, nem tal foi dado como provado, faltando assim uma das condições objectivas de punibilidade, e nessa medida, deverá o arguido ser absolvido do crime de acesso ilegítimo. De facto, o bem jurídico que o legislador quis proteger ao legislar sobre esta matéria foi o património do lesado e não a sua vida privada.”
Revertendo, uma vez mais, para a sentença recorrida:
“Estabelecia o nº 1 do artigo 7º da Lei da Criminalidade Informática (Lei nº 109/91, de 17/08) que “Quem, não estando para tanto autorizado e com a intenção de alcançar, para si ou para outrem, um benefício ou vantagem ilegítimos, de qualquer modo acede a um sistema ou rede informáticos será punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.
Nos termos do nº 2 a pena será a de prisão até 3 anos ou multa se o acesso for conseguido através de violação de regras de segurança.
O crime de acesso ilegítimo veio, no essencial cobrir a área do que se vem denominando de “hacking informático”. Em geral, tratava-se de cobrir as condutas que se traduziam na mera entrada ou acesso a sistemas informáticos por «mero prazer» ou «gozo» em superar as medidas ou barreiras de segurança, isto é, sem qualquer (outra) intenção ou finalidade alguma de manipular, defraudar, sabotar ou espionar (Benjamim Silva Rodrigues, ob. cit., pág. 159), situação que veio a suscitar dúvidas sobre a necessidade ou não de criminalizar tais condutas.
Com a norma tutela-se a «integridade do sistema informático lesado», a partir de uma ideia nova de «inviolabilidade do domicílio informático».
“A construção deste tipo legal de crime assenta na noção de ilegitimidade, consubstanciada na falta de autorização para aceder a um sistema ou rede informáticos ou interceptar comunicações que se processam numa rede ou sistema informático”.
“O legislador português acrescentou um outro elemento subjectivo da ilicitude (…), trata-se da necessidade da existência de um acto intencional que tenha como objectivo a obtenção de um benefício ou vantagem ilegítimos para o agente”, que há-se ser entendido mais num sentido “jurídico” do que “económico-patrimonial” (Benjamim Silva Rodrigues, ob. cit.)
Em face da matéria de facto assente dúvidas não há de que o arguido, sem autorização da assistente, acedeu ao seu e-mail D1…@hotmail.com, com violação das regras de segurança, uma vez que conseguiu transpor a respectiva password, e fê-lo com a intenção de alcançar um benefício ilegítimo, que consistiu em denegrir a imagem pública da assistente, sendo a sua conduta punida com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa (artigo 7º, nº 1 e 2).
Foi, entretanto publicada a Lei nº 109/2009, de 15/9, passando o crime de acesso ilegítimo a estar tutelado pelo artigo 6º do diploma.
No que ao caso interessa, e com relevância, verificamos que a norma não exige agora a intenção de alcançar para si ou para outrem benefício ou vantagem ilegítimos.”
Vejamos.
O crime de acesso ilegítimo encontrava-se previsto no artigo 7º, nº 1 e 2 da Lei nº 109/91, de 17/8.
O bem jurídico protegido pelo artigo 7º é a segurança do sistema informático.
O crime de acesso ilegítimo é praticado por quem actue de forma não autorizada.
O acesso ilegítimo tem como elemento subjectivo do tipo a “intenção de alcançar, para si ou para outrem, um benefício ou vantagem ilegítimos”, devendo estes ser entendidos mais num sentido “jurídico” do que “económico-patrimonial” (cfr. Benjamim Silva Rodrigues, Da Prova Penal, tomo IV, pág. 159). Portanto há que saber qual a verdadeira intenção do autor do acesso.
Não se prevê, porém, a intenção de causar um prejuízo, elemento que não faz parte do tipo (cfr. Garcia Marques e Lourenço Martins, Direito da Informática, pág. 529).
Concretiza-se o delito por qualquer modo normalmente idóneo de aceder a um sistema ou rede informáticos.
As penas serão mais graves se tiver havido violação de regras de segurança, se se tomar conhecimento de segredo comercial ou industrial, ou de dados confidenciais, e ainda se o benefício ou vantagem patrimonial forem de valor consideravelmente elevado – v. definição na alínea h) do artigo 2º da Lei nº 109/91, de 17/8.
Este tipo de crime (acesso ilegítimo), agora descrito no artigo 6º da Lei nº 109/2009, de 15/9, estruturalmente acolhe o crime anterior, mas incorpora também algumas actualizações, sobretudo decorrentes dos compromissos internacionais que Portugal assumiu a esse propósito e, em particular, da Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa. Além disso, foram feitos ajustamentos à redacção da norma legal, que traduziram alguma alteração na descrição do tipo de crime. Não obstante, a factualidade incriminada é exactamente a mesma que era antes (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque e José Branco, Comentário das Leis Penais Extravagantes, Vol. I, pág. 515 e segs.)
Quanto às inovações, por comparação com o texto da Lei nº 109/91, as mesmas foram inseridas no inovador nº 2 do artigo 6º, clara e assumidamente inspirado no artigo 6º da Convenção sobre Cibercrime. Consagra um novo tipo de ilícito, idêntico a outros novos tipos de ilícito consagrados nos artigos referentes aos crimes de falsidade informática, dano relativo a programas ou outros dados informáticos, sabotagem informática e intercepção ilegítima.
O tipo subjectivo de crime de acesso ilegítimo, previsto no nº 1 do artigo 6º da Lei nº 109/2009, de 15/9, não exige qualquer intenção específica, por exemplo a de causar prejuízo ou a de obter qualquer benefício ilegítimo. Apenas se exige o dolo genérico, como resulta da expressão “sem permissão legal ou sem para tanto estar autorizado pelo proprietário, por outro titular do direito do sistema ou de parte dele”.
Foi eliminada da redacção a parcela que previa a exigência de específica intenção de “obter benefício ou vantagem ilegítimos”.
Reiteramos que, no que ao caso interessa, e com relevância, verificamos que a norma não exige agora a intenção de alcançar para si ou para outrem benefício ou vantagem ilegítimos.
Tenhamos em conta a factualidade assente.
E considerada tal factualidade, temos de concordar com o recorrente, pois, não obstante entendermos que o referido artigo 7º exige um benefício ou vantagem ilegítimos”, entendidos mais num sentido “jurídico” do que “económico-patrimonial, a verdade é que daquela factualidade não resulta ou consta qualquer benefício ou vantagem para o arguido ou para outrem, sendo que estes (benefício ou vantagem) não podem ser confundidos com a intenção de causar um prejuízo, elemento que não faz parte do tipo de crime em causa.
Efectivamente, atenta a factualidade assente verifica-se que não resultou provado qualquer benefício ou vantagem (patrimonial ou outro, para o arguido ou para outrem), mas apenas que:
- O arguido agiu, com o intuito alcançado de aceder indevidamente ao endereço electrónico no “hotmail” da ofendida D… contra a vontade desta, acedendo, à palavra de acesso ao mesmo email, e apenas por D… definida, e por essa forma se apresentado perante terceiros como se fosse a indicada ofendida;
- O arguido ao aceder ao endereço electrónico da ofendida pela forma descrita bem como ao criar perfis em pagina da internet, fazendo-se passar pela ofendida agiu, ainda, com o intuito, concretizado, de revelar, através de meios informáticos, de forma a facilitar a sua divulgação, as fotografias da ofendida, designadamente, as que revelavam a sua nudez, apesar de saber que não se encontrava autorizado pela mesma a agir como descrito, e que actuava contra a sua vontade;
- O arguido agiu com o propósito concretizado de devassar a vida privada da ofendida e de violar o direito deste à reserva sobre a intimidade da vida privada, utilizando para o efeito meios informáticos, divulgando, desta forma, factos de natureza privada e pessoal, respeitantes ao seu corpo, bem sabendo que o fazia contra a vontade e sem o consentimento daquela;
- O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e sancionadas por lei.
Ora, perante a factualidade descrita, temos de concordar com o recorrente quando refere que “o benefício ou vantagem ilegítimo não foi dado como provado”.
E não podemos concordar com o tribunal recorrido quando refere que “Em face da matéria de facto assente dúvidas não há de que o arguido, sem autorização da assistente, acedeu ao seu e-mail D1…@hotmail.com, com violação das regras de segurança, uma vez que conseguiu transpor a respectiva password, e fê-lo com a intenção de alcançar um benefício ilegítimo, que consistiu em denegrir a imagem pública da assistente”.
Quer dizer, provou-se a intenção do arguido no sentido de devassar a vida privada da ofendida e de violar o direito desta à reserva sobre a intimidade da vida privada (bem como o intuito, concretizado, de revelar, através de meios informáticos, de forma a facilitar a sua divulgação, as fotografias da ofendida, designadamente, as que revelavam a sua nudez), mas não resulta provada a intenção do arguido no sentido de alcançar, para si ou para outrem, um benefício ou vantagem ilegítimos (elemento subjectivo do tipo). E reiteramos que a intenção de causar um prejuízo, elemento que não faz parte do tipo, não se confunde com a intenção de alcançar, para si ou para outrem, um benefício ou vantagem ilegítimos, elemento subjectivo do tipo.
Assim, face a todo o exposto, verifica-se que se não se encontra preenchido o elemento subjectivo do tipo do crime de acesso ilegítimo, previsto e punível pelo artigo 7º, nº 1 e 2 da Lei nº 109/91, de 17/8, pelo que mais não resta do que absolver o recorrente da prática do mesmo.
Procede, nesta parte, o recurso.
E que dizer quanto ao crime de devassa por meio informático previsto e punível pelo artigo 193º, nº 1 do Código Penal?
Defende o arguido que “nunca poderia ser condenado por este crime, além do mais, porque não se podem dar, como supra exposto, como provados os factos atinentes.”.
Já nos pronunciámos abundantemente quanto à decisão proferida sobre matéria de facto provada, que não alterámos, pelas razões já expostas, ao contrário do propugnado pelo arguido.
Ora, a absolvição pretendida pelo recorrente quanto a este crime tem ínsita a requerida alteração da matéria de facto provada, que não se verificou.
E atenta a factualidade apurada não restam dúvidas de que estão preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo do crime em causa, pelo que a conduta do arguido é de subsumir à prática de um crime de devassa por meio informático previsto e punível pelo artigo 193º, nº 1 do Código Penal.
Se não vejamos.
Estabelece o artigo 193º, nº 1 do Código Penal que “Quem criar, mantiver ou utilizar ficheiro automatizado de dados individualmente identificáveis e referentes a convicções políticas, religiosas ou filosóficas, à filiação partidária ou sindical, à vida privada, ou à origem étnica, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias”.
A criminalização destas práticas decorre do artigo 35º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa, e visa proteger a reserva da vida privada contra possíveis actos de discriminação, que a utilização de meios informáticos torna exponencialmente perigosos.
“As condutas que o tipo legal descreve são de modo a abranger qualquer tipo de condutas através das quais se tenha acesso a conteúdos de dados pessoais. Isto significa que tanto comete o crime aquele que, por si, cria um daqueles ficheiros automatizados, como aquele que mantém um ficheiro automatizado daquele tipo, mesmo que não por ele criado, ou ainda o que utiliza um qualquer ficheiro informático, tendo acedido a ele por qualquer forma” (J. Damião Cunha, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pág. 746).
Ao nível subjectivo o tipo legal supõe o dolo, bastando o dolo eventual.
Da matéria de facto assente resulta que o arguido não só criou um e-mail através do qual difundiu as fotografias da assistente, como utilizou de forma indevida aquele que a mesma possuía, e fê-lo com a manifesta intenção de atentar contra a vida privada da assistente, o que conseguiu, pelo que provados estão os elementos típicos do crime em causa.
Improcede, nesta parte, o recurso.
Aqui chegados importa analisar a última das questões suscitadas e que contende com a medida da pena.
Argumenta o recorrente que “foram larga e infundadamente ultrapassados, quer os limites pecuniários diários razoáveis das multas aplicadas, quer os dias de multa razoáveis em que o arguido poderia ser condenado, se se verificassem os pressupostos da condenação, em qualquer dos crimes, pelo que tais quantitativos devem ser reduzidos ao mínimo legal, encontrando-se violadas as normas constantes dos artigos 40º, 70º e 71º do Código Penal”.
Vejamos.
Dispõe o artigo 40º, nº 1, do Código Penal que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.
E segundo o disposto no artigo 70º, do mesmo diploma “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
Quer dizer, a escolha da pena depende de critérios de prevenção geral e especial, pelo que o julgador, perante um caso concreto, tem que os valorar para depois optar por aplicar uma pena detentiva ou não detentiva.
A medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos face ao caso concreto, assumindo a protecção de bens jurídicos um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade, na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade das normas infringidas (prevenção geral positiva ou de integração que decorre do princípio político criminal básico da necessidade da pena – art. 18.°, n.° 2 da Constituição da Republica Portuguesa).
É a prevenção geral positiva ou de integração que fornece um “espaço de liberdade ou de indeterminação”, mais precisamente “uma moldura de prevenção”, (Prof. Figueiredo Dias, in ‘’Consequências Jurídicas do crime”, Direito Penal 2, Parte Geral, pág. 283).
Na referida “moldura de prevenção” a função da culpa é a de estabelecer o limite máximo da pena concreto e como tal a pena nunca a pode ultrapassar, uma vez que a culpa constitui o pressuposto e limite da pena. O limite mínimo resulta do quantum de pena imprescindível, no caso concreto, e ainda comunitariamente suportável de medida da tutela de bens jurídicos e de estabilização das expectativas comunitárias da validade das normas violadas.
Na determinação da pena deve ter-se em conta, nos termos do art. 71º do Código Penal, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, fixando-se o limite máximo daquela de acordo com a culpa do mesmo; o limite mínimo, de acordo com as exigências de prevenção geral; e a pena a aplicar, dentro da moldura penal assim conseguida, de acordo com as exigências de prevenção especial que ao caso convenham.
Assim, a determinação das penas concretas far-se-á em função da culpa do agente, atendendo às necessidades de prevenção de futuros crimes e a todos os elementos exteriores ao tipo legal que deponham a favor ou contra o arguido, nos termos do disposto art.º. 71º do Código Penal.
Desta norma se retira o critério norteador da tarefa de que nos ocupamos, e que se pode sintetizar da seguinte forma: a medida concreta da pena deverá ser encontrada, entre o ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos da comunidade e o limiar mínimo em que essa tutela ainda é eficaz (“moldura de prevenção”), através do recurso a considerações de prevenção especial de socialização, não podendo a pena, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa do arguido. Aquela “moldura de prevenção” é fornecida pela prevenção geral positiva ou de integração, que, tal como já foi aflorado, se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade e vigência da norma infringida.
Os fins das penas encontram-se estabelecidos no já citado artigo 40.º do Código Penal.
O requisito da culpa traduz a vertente pessoal do crime entendido como um juízo de censura pela personalidade manifestada no facto, fixando-se através dela o limite máximo da pena, sendo pressuposto da mesma, limitando de forma inultrapassável as exigências da prevenção (Neste sentido, Figueiredo Dias, “Direito Penal, Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 255 e ss).
Como já se disse, complementarmente à medida da culpa - dentro da margem de variação por esta consentida - intervêm as necessidades de prevenção.
Assim mesmo se têm pronunciado a doutrina, maxime: Figueiredo Dias in “Direito Penal Português”, pag. 227/228; Robalo Cordeiro In “Jornadas de Direito Criminal”, CEJ, vol. I, pag. 265/270; Maia Gonçalves in “Cod. Penal Português” em anotação ao art.º. 71º e Leal Henriques e Simas Santos in “Cod. Penal”, vol. I, pag. 550/558) e a jurisprudência do STJ (maxime Ac. de 21/9/94, proc. 46290/3ªsec e de 20/5/95, proc. 47386/3ªsec).
A individualização da pena concreta aplicada pelo tribunal em cada caso não depende de uma qualquer opção discricionária por um qualquer número. Tem, pois, o tribunal de fixar o quantum da pena dentro das regras postuladas pelo legislador, impondo-se-lhe que objective os critérios que utilizou e que fundamente a quantificação que decidiu -vd. artigo 71º n.º 3 do Código Penal.
Certamente que não se pode pensar em critérios de quantificação matemática. O direito não é uma ciência exacta. No entanto, os critérios legais, funcionando comparativamente, podem permitir estabelecer relações quantitativas de grandeza (maior/menor).
Assim, na graduação da pena atender-se-á aos critérios fornecidos pelos artigos 40° e 71° do Código Penal.
Analisemos o caso concreto (e apenas no que respeita ao crime de devassa por meio informático, previsto e punível pelo artigo 193º, nº 1 do Código Penal, pois, conforme decidimos, o recorrente vai absolvido pela prática do crime de acesso ilegítimo, previsto e punível pelo artigo 7º, nº 1 e 2 da Lei nº 109/91, de 17/8).
A moldura penal aplicável ao crime de devassa por meio informático é a de pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias - cfr. artigo 193º, nº 1 do Código Penal.
Revertendo, mais uma vez, para a sentença recorrida dela consta:
“Importa assim ponderar que o arguido actuou com dolo directo.
É elevada a ilicitude da conduta do arguido, tendo em consideração as graves consequências que decorreram da sua actuação para a vida pessoal, profissional e social da assistente.
O arguido não tem antecedentes criminais, e é uma pessoa socialmente inserida.
Não demonstrou qualquer arrependimento dos factos cometidos.
Tudo ponderado consideramos justa e suficiente, pelas exigências de prevenção geral e especial e pelo princípio da necessidade da pena, à luz dos critérios estabelecidos no artigo 71º e tendo em consideração o disposto no artigo 47º, nº 1 do Código Penal a aplicação de uma pena de 150 dias de multa relativamente ao crime de acesso ilegítimo e 120 dias de multa relativamente ao crime de devassa por meio informático.
Em face da situação económica e financeira do arguido (artigo 47º, nº 2 do Código Penal), remetendo aqui para a matéria de facto constante dos pontos 23 a 37, entendemos que a cada dia de multa corresponde a taxa diária de € 8,00.”
Ora, ponderadas todas as circunstâncias que depõem a favor e contra o recorrente elencadas na sentença em crise, tendo igualmente em conta as já referidas prevenção geral e especial, entende-se que a medida da pena de multa aplicada (número de dias de multa) se mostra adequada e proporcional.
Se não vejamos.
Importa considerar que o arguido/recorrente actuou com a modalidade mais intensa de dolo, que se mostra directo, situando-se o grau de ilicitude no nível elevado, tendo em conta que se trata de uma pessoa com quem o arguido havia mantido um relacionamento amoroso, não obstante ser casada, tal como o arguido, e que tinha um filho pequeno, para além de trabalharem (arguido e assistente) na mesma empresa. Acresce que o arguido não revelou qualquer arrependimento.
A favor do arguido, o facto de não ter antecedentes criminais à data da prática dos factos, bem como o facto de estar familiar, social e profissionalmente inserida.
As exigências de prevenção geral revestem-se de particular acuidade, atendendo ao bem jurídico em causa e à reacção da comunidade contra tais comportamentos, considerando que cada vez é mais fácil o acesso aos meios informáticos e se torna cada vez mais apetecível o seu uso para o cometimento de crimes.
As exigências de prevenção especial não se revelam tão atenuadas, pois o recorrente não tem antecedentes criminais.
Pelo que, considerando a factualidade apurada na sentença recorrida, e atendendo a todas as circunstâncias a que alude o artigo 71º do Código Penal, tudo ponderado, entende-se que a pena de 120 dias de multa, encontrada pelo tribunal recorrido, se mostra ajustada e perfeitamente adequada às necessidades de prevenção geral e especial, não excedendo a culpa.
E que dizer quanto ao “quantitativo diário da multa”?
Conforme é sabido o Código Penal (artigo 47º) utiliza o modelo escandinavo dos dias de multa segundo o qual a fixação desta pena pecuniária se faz através de duas operações sucessivas: na primeira determina-se o número de dias de multa através dos critérios gerais de fixação das penas (cfr. artigos 40º 71º, ambos do Código penal) e na segunda fixa-se o quantitativo de cada dia de multa em função da capacidade económica e financeira do agente. Fixada a pena, em caso de a precária situação económica e financeira do condenado o justificar, o tribunal decide se o pagamento da multa pode ser autorizado em alguma das modalidades que o n.º 3 facilita (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português- As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, págs. 126-127 §143, Simas Santos e Leal Henriques, Noções Elementares de Direito Penal, 2ª ed, Lisboa 2003, pág. 187, Maia Gonçalves, Código Penal Português, 17ª ed., Coimbra, 2005, pág. 194, e Ac. do S.T.J. de 3 de Novembro de 2003, proc.º n.º 3366/03-5ª).
De harmonia com o disposto no art. 47º nº 2 do Código Penal cada dia de multa corresponde a uma quantia entre € 5 e € 500 e é fixada em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.
Quanto à taxa diária da multa, ainda como refere Figueiredo Dias (in ob. cit., pág. 127), todas as considerações atinentes quer à culpa, quer à prevenção geral, quer à especial, devem exercer influência sobre a determinação da pena e, portanto sobre os dias de multa, e não sobre o quantitativo diário. Em contrapartida, tudo quanto respeite à situação económico-financeira do condenado deve ser considerado nesta fase de fixação do quantitativo diário de multa.
Como é entendimento corrente, a taxa diária da multa deve ser fixada de forma a que mesma represente um sacrifício real para o condenado, para que mantenha a sua característica de verdadeira pena, pois de outro modo não será possível, através da sua aplicação, realizar as finalidades da punição.
Na ponderação do quantitativo ajustado ao caso concreto não entram unicamente em linha de conta os rendimentos mensais, apurados ou declarados, mas também todos os outros rendimentos, bens e encargos que definem uma situação económica e que permitem avaliar a repercussão que nela vai ter a pena encontrada, de forma a poder concluir-se se a mesma é, efectivamente e como deve ser, adequada para sancionar a concreta gravidade do facto.
Logo, “o juiz graduará o quantitativo diário da multa em atenção às determinações legais, atendendo a que a finalidade da lei é eliminar ou pelo menos esbater as diferenças de sacrifício que o seu pagamento implica entre os réus possuidores de diferentes meios de a solver” – cfr. Maia Gonçalves, in Código Penal Português, 10ª ed., pág. 226.
Como se pode ler no Acórdão do STJ, proferido em 3-6-2004, no processo 04P1266, em www.dgsi.pt “A pena de multa, se não quer ser um andrajoso simulacro de punição, tem de ter como efeito o causar ao arguido, pelo menos, algum desconforto se não, mesmo, um sacrifício económico palpável”.
Ou conforme se salientou no douto Ac. do STJ de 2-10-1997 (Col. de Jur., Ano V, tomo 3, págs. 183-184) “como a multa é uma pena, o montante diário da mesma deve ser fixado em termos de tal sanção representar um sacrifício real para o condenado, sob pena de se estar a desacreditar esta pena, os tribunais e a própria justiça, gerando um sentimento de insegurança, de inutilidade de impunidade”.
Também o Prof. Taipa de Carvalho assinala em termos incisivos que “a multa enquanto sanção penal, não pode deixar de ter um efeito preventivo e, portanto, não pode deixar de ter uma natureza de pena ou sofrimento, isto é e por outras palavras, não pode o condenado a multa deixar de a ‘sentir na pele’ (As Penas no Direito Português após a Revisão de 1995, in Jornadas de Direito Criminal-Revisão do Código Penal, ed. do Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1998, vol II, pág. 24) e já antes o Prof. Figueiredo Dias, salientara que “é indispensável (…), que a aplicação concreta da pena de multa não represente uma forma disfarçada de absolvição ou o Ersatz de uma dispensa ou isenção de pena que não se tem coragem de proferir” (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, pág. 119, §123).
Mas neste domínio – como, de resto, em tudo na vida - há que ter o sentido das proporções, impondo-se critérios de razoabilidade e de exigibilidade.
Resulta da factualidade apurada que o arguido vive sozinho em casa arrendada, pagando a renda mensal de € 200; Actualmente trabalha em part-time no talho do supermercado F…, em Felgueiras, auferindo o vencimento mensal de € 350; Tem um veículo automóvel da marca Citröen, modelo …, do ano de 2000; O arguido tem 3 filhas, uma com 10 anos e duas gémeas com 6, que vivem com a mãe; O arguido contribui com a quantia mensal de € 150 a título de pensão de alimentos; Conta com o apoio económico dos seus pais; Actualmente, encontra-se numa situação de sub emprego e os rendimentos de que beneficia são insuficientes para assumir os encargos que tem, registando uma dependência face aos pais, que funcionam como seu único suporte a nível familiar.
Pelo que, tendo em conta que o mínimo por cada dia de multa corresponde a 5€, quantia que deve ser aplicada em situações limite, de praticamente nenhuns ou parcos rendimentos, designadamente àqueles que nem sequer ganham o suficiente para fazer face às necessidades mais elementares (o que é o caso do arguido, já que nem sequer ganha o suficiente para assumir os encargos básicos que tem), sob pena de se desvirtuar a essência da pena de multa e se criarem injustiças relativas entre os condenados, considerando que ao arguido foi fixada a quantia de 8€ por cada dia de multa, tudo ponderado, afigura-se-nos mais ajustada à situação económica e financeira do arguido recorrente e dos seus encargos, a taxa diária (mínima) de € 5 (cinco euros) – propugnada pelo recorrente - que, por isso, se fixa.
Procede, pois, nesta parte, o recurso.
***
III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido B… e consequentemente:
a) Absolver o arguido da prática de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punível pelo artigo 7º, nº 1 e 2 da Lei nº 109/91, de 17/8.
b) Fixar em € 5,00 (cinco euros) o quantitativo diário da pena de multa imposta ao arguido pela prática de um crime de devassa por meio informático, previsto e punível pelo artigo 193º, nº 1 do Código Penal.
c) Manter quanto ao demais a decisão recorrida.
Sem custas.
***
Porto, 08 de Janeiro de 2014
Elsa Paixão
Maria dos Prazeres Silva