Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
20967/18.1T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MÁRCIA PORTELA
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
DEFEITOS
RESOLUÇÃO
RESTITUIÇÃO DO RECIBO
Nº do Documento: RP2021052120967/18.1T8PRT.P1
Data do Acordão: 05/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O mau funcionamento da embraiagem de um veículo constitui um vício que desvaloriza a coisa e impede o uso normal a que a coisa se destina.
II - Não podendo o comprador que resolveu o contrato restituir o veículo no estado que se encontrava à data da venda, há-de entregar o veículo e o montante correspondente à desvalorização que sofreu durante o tempo que foi utilizado, que corresponde à diferença entre o valor à data da venda anulada e o valor à data do trânsito em julgado da sentença.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 20967/18.1T8PRT.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório
B… e C… o intentaram acção declarativa, com processo comum, contra D…, S.A., e Banco E1…, S.A., pedindo:

a) a declaração de resolução do contrato de compra e venda do veículo automóvel de marca Kia, modelo …, matrícula ..-OE-.., com as legais consequências;

b) a condenação da 1.ª R. na devolução das quantias pagas pelos AA., aquando da celebração do contrato de compra e venda, nomeadamente o valor do veículo entregue por estes para retoma, a que corresponde a quantia de €3.300 (três mil e trezentos euros) e a entrega em dinheiro de €200,00 (duzentos euros), acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos desde a citação e até integral pagamento;

c) a declaração de resolução do contrato coligado de crédito n.º ………....., através do qual a 2.ª R. concedeu um crédito aos AA. para aquisição do veículo supra identificado;

d) a condenação da 2.ª R. na restituição aos AA. da quantia referente à totalidade das prestações pagas, desde Junho de 2017 até à última prestação efectivamente paga por estes, as quais totalizam, até à data de entrada da ação em juízo a quantia de €3.808,00, bem como de todas e quaisquer quantias pagas à 2.ª R. por via do contrato de financiamento coligado, designadamente do montante pago a título do seguro de vida contraído no valor de €1.140,00, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos desde a citação e até integral pagamento;

e) a condenação da 1.ª R. no pagamento de uma indemnização, a título de danos não patrimoniais, aos AA., no valor de €2.500,00, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos desde a citação e até integral pagamento.

Os RR. contestaram impugnando parcialmente os factos alegados.

A 1.ª R. invoca, além do mais e em síntese, que o número de quilómetros anunciados foi o correcto; não foi vendida qualquer viatura defeituosa; a embraiagem é uma peça de desgaste; os AA. não aceitaram condições especiais para substituição da embraiagem, pelo que a presente ação constitui um abuso do direito; tanto mais que os AA. continuaram a usar a viatura, e a viatura que entregaram na retoma tinha defeitos mais avultados; acresce que o veículo já sofreu uma desvalorização e já foi usado o que sempre deverá ser compensado.

A 2.ª R. aceita a celebração do contrato de financiamento, mas impugna, genericamente, toda a demais matéria alegada. Mesmo a existir avaria, considera que sempre se impunha, em primeiro lugar a reparação ou substituição do bem. Caso se entenda que o contrato deva ser resolvido, há que atender que os AA. usaram o veículo designadamente em viagens longas, pelo que as prestações pagas pagaram o uso do bem, nada havendo a restituir. A devolução integral das prestações sempre constituiria um enriquecimento sem causa dos AA..

Realizou-se a audiência prévia, tendo sido fixados o objecto do litígio e os temas da prova.

Procedeu-se a julgamento, tendo sido proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, decidiu:

- considerar resolvido o contrato de compra e venda do veículo automóvel de marca Kia, modelo …, matricula .. – OE - .., condenando a 1.ª R. nos pedidos formulados nas alíneas a) e b) supra, a saber:

a) a declaração de resolução do contrato de compra e venda do veículo automóvel de marca Kia, modelo …, matricula .. – OE - …
38, com as legais consequências;

b) a condenação da 1.ª R. na devolução das quantias pagas pelos AA., aquando da celebração do contrato de compra e venda, nomeadamente o valor do veículo entregue por estes para retoma, a que corresponde a quantia de €3.300 (três mil e trezentos euros) e a entrega em dinheiro de €200,00 (duzentos euros), acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos desde a citação e até integral pagamento;

- considerar resolvido o contrato coligado de crédito n.º ……………, através do qual a 2.ª R. concedeu um crédito aos AA. para aquisição do veículo supra identificado, condenando a 2.ª R. nos pedidos formulados nas alíneas c) e d) supra, a saber:
c) a declaração de resolução do contrato coligado de crédito n.º ………....., através do qual a 2.ª R. concedeu um crédito aos AA. para aquisição do veículo supra identificado;

d) a condenação da 2.ª R. na restituição aos AA. da quantia referente à totalidade das prestações pagas, desde Junho de 2017 até à última prestação efetivamente paga por estes, as quais totalizam, até à data de entrada da ação em juízo a quantia de €3.808,00, bem como de todas e quaisquer quantias pagas à 2.ª R. por via do contrato de financiamento coligado, designadamente do montante pago a título do seguro de vida contraído no valor de €1.140,00, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos desde a citação e até integral pagamento;

- condenar a 1.ª R. a pagar a cada um dos AA. a quantia de €500,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, bem como juros de mora à taxa legal, aplicável aos juros civis, desde a presente decisão, até efetivo e integral pagamento.

Inconformada, apelou a 1.ª R., apresentando as seguintes conclusões:
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2. Fundamentos de facto
A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:

A)- Os AA. são casados entre si, desde 17.09.1994 no regime supletivo de comunhão de adquiridos (artigo 1.º da petição inicial e assento de nascimento a fls. 27-verso).

B)- Na pendência desse matrimónio, a 1.ª R. vendeu-lhes, no dia 31.05.2017, o veículo de marca Kia, modelo …, de cor preta e matricula ..-OE-.. (artigo 2.º da petição inicial).

C)- A 1.ª R. dedica-se à atividade, além do mais, de compra e venda de veículos automóveis (artigo 4.º da petição inicial).

D)- Por seu turno, a 2.º R. dedica-se, além do mais, à actividadede concessão de crédito ao consumo (artigo 5.º da petição inicial).

E)- No dia 31.05.2017, a 1.ª R. entregou aos AA. o veículo automóvel de marca Kia, modelo …, …, de cor preta e matricula .. – OE - .., contra a entrega de €19.450.00 (cfr. fatura a fls. 18-verso e artigo 6.º da petição inicial).

F)- Para aquisição do referido veículo, os AA. fizeram uma primeira entrega de €200.00, a título de sinal, bem como entregaram à 1.ª R., para retoma, uma viatura marca Renault … 5 portas, matricula .. – LH - .., sendo que, após o pagamento do crédito contraído para a sua compra, foi apurado o valor remanescente de €3.300,00 (que foi utilizado para “abater” no preço final da viatura em questão) (doc. 19 verso e artigo 8.º da petição inicial).

G)- Para entrega do valor remanescente da referida compra e venda, no montante de € 16.150,00 a 1.ª R. tratou de todos os procedimentos necessários, junto da 2.º R., para que esta emprestasse aos AA. esta quantia (artigo 9.º da petição inicial).

H)- No dia 19.05.2017, os AA. subscreveram com a 2.ª R., um “contrato de financiamento para aquisição a crédito n.º ……….....”, no qual esta entregou a quantia de €16.150,00 à 1.ª R. para aquisição do veículo pelos AA. (doc. de fls. 20-verso e ss. e artigo 10.º da petição inicial- admitido).

I)- Por força deste contrato de financiamento, os AA. ajustaram com a 2.ª R. entregar-lhe a quantia de €16.150,00, acrescido do montante de €1.568,50 a título de “encargos financiados”, bem como de uma compensação à taxa nominal fixa de 7,367%, a pagar em 120 prestações mensais e sucessivas no valor de €238,00, e ainda tiveram de contratar um seguro de vida no valor de € 1.140,50 (artigo 11.º da petição inicial - admitido).

J)- No exercício da sua actividade a 2.ª R. celebrou em 19.05.2017, com os AA. o contrato de financiamento para aquisição a crédito n.º ………..... (artigo 2.º da contestação da 2.ª R.).

L)- O referido financiamento no montante de €17.718,50 teve como destino a aquisição por parte dos mutuários do veículo automóvel da marca Kia …, matrícula .. – OE - .. (artigo 3.º da contestação da 2.ª R.).

M)- O montante total com encargos ascendeu a €25.909,40 a pagar em 120 prestações mensais de €238,31, com início em 19.05.017 e termo a 28.03.2017 (artigo 4.º da contestação da 2.ª R.).

N)- A quantia de €16.150,00 foi creditada pela 2.ª R. numa conta do 1.º R. e destinava-se a completar o valor em falta referente ao preço de venda da viatura em questão (€19.450,00) (artigo 12.º da petição inicial).

O)- Os AA. encontram-se a pagar as prestações referentes ao mencionado contrato de crédito, tendo já pago, pelo menos, 16 prestações das 120 aludidas supra (artigo 13.º da petição inicial).

P)- O veículo foi adquirido pelos AA. para o seu uso pessoal, designadamente para levarem e irem buscar os seus filhos à escola, para realizarem passeios de fim-de-semana, para irem de férias, para irem ao supermercado (artigo 14.º da petição inicial).

Q)- A fatura do preço do veículo pago – que contém a descrição do veículo – indica precisamente 89.464 Kms. – cfr. documento de fls. 18 - verso (artigo 16.º da petição inicial).

R)- Acontece que, cerca de 5 dias após a entrega do veículo aos AA., estes foram à oficina da 1.º R. no sentido de ser colocado o logótipo monograma “sportage” (doc. fls. 25-verso e artigo 17.º da petição inicial).

S)- Os AA. viram que a fatura apresentava 107.728 kms como sendo os Kms atribuídos à viatura em questão (cfr. doc. fls. 25-verso e artigo 18.º da petição inicial).

T)- Logo nos primeiros dias de utilização, pelos AA., do veículo em questão, os mesmos constataram, nomeadamente ao realizar manobras de estacionamento, que a embraiagem não funcionava corretamente, demonstrando dificuldades no engate das velocidades (artigo 24.º da petição inicial).

U)- Sendo que esses problemas com a embraiagem surgem, de forma mais acentuada, quando se pretende colocar a primeira mudança (portanto, para arranque do veículo em causa) e, ainda com maior dificuldade, na colocação da marcha-atrás (designadamente ao efetuar manobras de estacionamento), sendo mais notórias as anomalias da embraiagem nos pequenos percursos realizados com a viatura em causa (artigo 28.º da petição inicial).

V)- A 1.ª R. não reparou a anomalia da embraiagem, no prazo de 30 dias (nem em qualquer outro prazo) (artigo 32.º da petição inicial).

X)- Mas também os pneus do carro apresentavam erro nas medidas, o que motivou a competente comunicação deste facto à 1.º R. (tendo esta resolvido tal questão) (artigo 33.º da petição inicial).

Z)- Bem como voltaram a reclamar dos problemas da embraiagem revelava solicitando que a voltassem a analisar (artigo 35.º da petição inicial).

A)’- Em resposta foi apresentado aos AA. um orçamento para substituição da embraiagem, a expensas suas (artigo 36.º da petição inicial).

B)’- O que motivou os AA. a confrontar de imediato o atual funcionário da 1.ª R. responsável pelo departamento de carros usados – Sr. F… - acerca dessa incoerência (artigo 38.º da petição inicial).

C)’- Tendo-lhes sido transmitido por esse funcionário que a embraiagem, para os kms que já apresentava, precisava de ser substituída (artigo 39.º da petição inicial).

D)’- Ao invés disso, a proposta sugerida pela 1.ª R. aos AA. consistia em a G… – e não a 1.ª R. - através do serviço G1… -, suportar parte dos custos de substituição da embraiagem (devido ao facto dos AA. efetuarem com regularidade as manutenções do veículo na marca), - cfr email enviado a 27.06.2018, pelo Sr. F… ao A.) (artigo 45.º da petição inicial).

E)’- Disse H… que o processo respeitante aos AA. estaria já no departamento de contencioso, - cfr email enviado pela Sr.ª H…, a 03.07.2018, ao A. (documento fls. 28 verso e artigo 51.º da petição inicial).

F)’- Sendo que as sucessivas visitas, telefonemas e emails para a 1.ª R., com vista à resolução de problemas supra referidos agastaram os AA. (artigo 57.º da petição inicial).

G)’- O carro que os AA. deram para retoma à 1.º R., foi um Renault … 5 portas, matricula .. – LH - 17 (artigo 61.º da petição inicial).

H)’- No mercado de automóveis usados, trata-se de um item (a quilometragem) que assume especial importância, uma vez que se espera um desempenho e uma durabilidade diferentes num e noutro caso, com implicações óbvias na determinação e aceitação do preço (artigo 74.º da petição inicial).

I)’- No Email de fls. 27 verso o Eng. F…, director dos usados da R. D…, diz analisar todas as reclamações que os AA. lhe tinham exposto na véspera - dia 26 de Junho de 2018 – e onde não constava a tal diferença de quilómetros (artigo 13.º da contestação da 1.ª R.).

J)’- Na venda de um Jaguar ..-ST-.. ao cliente I…, este entregou em 28 de abril de 2017, como retoma, o veiculo KIA .. – OE - .. com 106.000 Km (doc. de fls. 64 e artigo 16.º da contestação da 1.ª R.).

L)’- Esta viatura KIA fazia alguma assistência na R. D…, constando do sistema informático o valor de 89.464Km, que não foi actualizado e que, por mero erro na elaboração da factura de venda, foi colocado o valor que constava ainda sem actualização no dito sistema informático (artigo 19.º da contestação da 1.ª R.).

M)’- No acordo de fls. 65 não refere que o carro tem 89.464Km (artigo 27.º da contestação da 1.ª R.).

N)’- O veículo em causa foi vendido ainda com a primeira garantia de fábrica, como se de novo se tratasse, porque dando a KIA uma garantia voluntária de 7 anos desde a data da 1ª matrícula, e sendo esta de 2013.11.29, a garantia inicial só termina em 2020.11.29 (doc. de fls. 65 verso e artigo 28.º da contestação da 1.ª R.).

O)’- Mesmo assim, a R. D… conseguiu junto da KIA que fosse concedida uma cortesia comercial voluntária, no sentido de ser autorizada a substituição da embraiagem, liquidando os AA. a quantia de €299 + IVA (artigo 44.º da contestação da 1.ª R.).

P)’- Assim, quando a R. D… lhes transmitiu que a embraiagem era uma peça de desgaste não abrangida pela garantia, mas que mesmo assim se tinha conseguido uma comparticipação para uma substituição da embraiagem a título de mera cortesia comercial, os AA. não aceitaram (artigo 51.º da contestação da 1.ª R.).

Q)’- Recorrendo ao site de avaliações e leilões de carros na Internet da J… https://www.J....com/pt-pt/pt, o veiculo KIA valia em 02.01.2019 - € 11.000 (doc. fls. 66 e 66 verso, artigo 61.º da contestação da 1.ª R.).

R)’ Aquando da avaliação pericial ao veículo foi constatado que «o engate das mudanças apresenta dificuldades no seu funcionamento; em todas as velocidades ou marchas, existe dificuldade de engrenamento, em ensaio estático (veículo imobilizado) e também em ensaio dinâmico, sendo neste caso uma particular dificuldade nas marchas ou velocidade 3.ª, 4.ª e 5.ª; em ensaio estático todas as marchas ou velocidades apresentam dificuldades de funcionamento, e em ensaio dinâmico também, com particular evidência nas 3.ª, 4.ª e 5.ª; a embraiagem está bem montada, mas com funcionamento deficiente; a causa mais provável do deficiente funcionamento da embraiagem é a prensa e as suas molas ou diafragma ou empeno; a viatura tinha já 136.434 km. A avaria não tem a ver com o desgaste e o circular não deverá amplificar o problema» (v. fls. 142 e 142-verso).
2.2- Factos não provados:
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3. Do mérito do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigos 608.º, n.º 2, in fine, e 635.º, n.º 5, CPC ), consubstancia-se na seguintes questões:

- questão prévia: pedido de rejeição da apreciação da impugnação matéria de facto;
- apreciação da impugnação matéria de facto;
- direito à resolução do contrato;
- alegado abuso do direito de resolução;
- não consideração do uso do veículo nas consequências da resolução;
- danos não patrimoniais.
3.1. Questão prévia: pedido de rejeição da apreciação da impugnação matéria de facto
Pretendem os apelados que não se tome conhecimento do recurso da apelante, nos termos do artigo 641.º, n.º 2, alínea b), CPC, com fundamento em que as suas conclusões foram integralmente decalcadas do conteúdo das alegações, construindo assim uma réplica fiel destas, tendo excluído apenas a reprodução integral dos depoimentos das testemunhas e do perito.
Conclui que, equivalendo essa reprodução à falta total de conclusões, deve o recurso ser rejeitado, não sendo de admitir despacho de aperfeiçoamento.
Apreciando:
O recorrente tem o ónus de finalizar a motivação do recurso com as conclusões, em que sintetize os fundamentos da sua discordância (artigo 639.º), sob pena de rejeição do recurso, sem possibilidade de convite ao aperfeiçoamento (artigo 642.º, n.º 1, alínea b), CPC.
As conclusões desempenham a relevante função de delimitação do recurso (artigo 635.º, n.º 4, CPC).
As normas preclusivas devem ser interpretadas com algumas cautelas, por forma a evitar-se restrições desproporcionadas aos direitos das partes, sobretudo quando está em causa um direito tão relevante como o direito ao recurso.
Embora as conclusões das alegações possam não ser exemplares, também não constituem uma reprodução integral da motivação.
Entendemos, por isso, que as conclusões contém os requisitos mínimos que permitem o conhecimento do recurso.
Termos em que improcede a questão prévia.
3.2. Da impugnação da matéria de facto
São os seguintes os pontos da matéria de facto impugnados e a respectiva proposta de alteração da apelante:
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Termos em que se altera a redacção das alíneas A)’ e C)’ da matéria de facto provada nos termos seguintes:
A)’- Cerca de 13 meses após a compra, na sequência de uma reclamação agora apresentada pelos AA. e depois de conversa com o funcionário da 1.ª R., responsável pelo departamento de carros usados Sr. F…, foi apresentado aos autores um orçamento para substituição da embraiagem.
C)’- Tendo-lhes sido transmitido por esse funcionário que, em Julho de 2018, a embraiagem, para os kms que já apresentava, precisava de ser substituída.
3.3. Do direito à resolução do contrato
Escreveu-se na sentença recorrida:
Contrato de compra e venda é «o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço» (v. artigo 874.º do Código Civil). Há na compra e venda, a transmissão correspetiva de duas prestações: por um lado, o direito de propriedade ou outro direito; por outro lado, o preço.
Da factualidade apurada, não restam dúvidas resulta que o negócio jurídico celebrado entre os autores e a 1.ª ré é de qualificar como contrato de compra e venda.
Os autores invocaram o cumprimento defeituoso da obrigação.
Importa, desde logo, apreciar se estamos na presença de uma situação de cumprimento defeituoso do aludido contrato de compra e venda, tendo em conta a definição de coisa defeituosa que é dada pelo artigo 913.º do Código Civil.
Existe cumprimento defeituoso em todos os casos em que o defeito ou irregularidade da prestação causa danos ao credor ou pode desvalorizar a prestação, impedir ou dificultar o fim a que este objetivamente se encontra afetado (v. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 6.ª ed. pág.128). Em idêntico sentido, diz Baptista Machado (apud Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-11-2000, CJ, T. III, pág. 151) que «por cumprimento inexato deve entender-se todo aquele em que a prestação efetuada não tem requisitos idóneos, a fazê-la coincidir com o conteúdo obrigacional, tal como este resulta do contrato e do princípio geral da correção e da boa-fé, considerando que: «a inexatidão pode ser quantitativa (prestação parcial a que se seguem os efeitos de não cumprimento no que respeita apenas à parte da prestação não executada: a mora ou incumprimento definitivo) e qualitativa (traduz-se numa diversidade da prestação, como numa deformidade, num vício ou falta de qualidade da mesma ou na existência de direitos de terceiro sobre o seu objeto), aplicando-se o regime de cumprimento inexato ao caso de inexatidão qualitativa (in Pressupostos da Resolução por incumprimento, Obras Dispersas, vol. I, pág. 169).
Como também explicita Calvão da Silva «a coisa entregue pelo vendedor pode estar afetada de vícios materiais ou vícios físicos, vale dizer, defeitos intrínsecos, inerentes ao seu estado material, e não ser, portanto, conforme ao contrato, dada a sua não correspondência às características acordadas ou legitimamente esperadas pelo comprador» (v. Compra e Venda de Coisas Defeituosas – Conformidade e Segurança, Almedina, pág. 40 e 41).
Para proteger o comprador de coisas defeituosas, o artigo 913.º n.º 1 do Código Civil, manda observar, com as devidas adaptações, o prescrito na secção relativa aos vícios jurídicos (artigos 905.º e seguintes do mesmo diploma).
A lei concede ao comprador os seguintes direitos:
a)- direito a anulação do contrato por erro ou dolo, verificados os respetivos requisitos de relevância exigidos pelo artigo 251.º (erro sobre o objeto) e 254.º (dolo);
b)- direito à redução do preço, quando as circunstâncias do contrato mostrarem que, sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente adquiridos os bens, mas por preço inferior- artigo 911.º. Este direito surge quando o comprador não tem direito de anulação por não essencialidade do erro ou do dolo e não se tratar de erro ou dolo indiferente ou irrelevante (é aquele sem o qual o contrato teria sido concluído nos mesmos termos em que o foi - Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, pág. 238, Monta Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, pág. 509), mas sim de erro incidental ou dolo incidental;
c)- indemnização do interesse contratual negativo (prejuízo que o comprador sofreu pelo facto de ter celebrado o contrato), cumulável com a anulação do contrato e com a redução ou minoração do preço - artigos 908.º, 909.º e 911.º, ex vi artigo 913.º;
d)- direito de exigir do vendedor a reparação da coisa ou, se necessário e esta tiver natureza fungível, a substituição dela (artigo 914.º, n.º 1, 1.ª parte) independentemente de culpa do vendedor, se este estiver obrigado a garantir o bom funcionamento da coisa vendida-convenção das partes ou por força dos usos (artigo 921.º, n.º 1) (v. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-02-2014, www.dgsi.pt, processo 231/12.0TBCHV. P1).
Dentro da garantia edilícia é necessário que esteja demonstrado que o defeito de que a coisa padece é anterior ou contemporâneo em relação à sua entrega.
Nos termos gerais, incumbe ao comprador a prova do defeito (arteito 342.º, n.º l Código Civil) e presume-se a culpa do vendedor, se a coisa entregue padecer de defeito (artigo 799.º, nº l, Código Civil)”.
Mas, para além do regime codificado no Código Civil, importa ainda ter em consideração outras disposições legais que visam proteger o consumidor e que lhe confere um regime mais favorável e, por isso, prevalece sobre as demais disposições. O adquirente de coisa defeituosa beneficia ainda da proteção conferida pela Lei de Defesa do Consumidor, bem como do regime de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores, instituído pelo Dec. Lei n.º 67/2003, de 8 de abril. De acordo como o art.º 2/1 da LDC “Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com caráter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.” O Decreto-Lei 67/2003, de 8 de abril, aplica-se apenas às pessoas que exerçam com caráter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios, e cujo fornecimento de bens ou serviços ocorra nesse âmbito e sejam destinados a uso não profissional pelo adquirente, como é o caso dos autos.
O consumidor tem direito, entre outros, à qualidade dos bens e serviços, e os bens e
serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a
produzir os efeitos que se lhes atribuem (artigos 3.º e 4.º da LDC).
O vendedor é responsável perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento da entrega do bem. E, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato – art.ºs 3 e 4/1.º do Dec. Lei n.º 67/2003 de 8 de abril.
Com este diploma legal pretendeu-se proteger o consumidor relativamente à aquisição de bens de consumo (móveis ou imóveis), em que o bem entregue padece de desconformidade face ao contrato de compra e venda, presumindo-se as seguintes situações em que ocorre desconformidade com o contrato, a saber: a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo; b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado; c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo; d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem - (seu art.º2.º/1 e 2).
No caso vertente, não restam dúvidas que o problema verificado na embraiagem (v. alíneas T), U) e R)’ supra), configura uma desconformidade face ao contrato de compra e venda, ou um vício da coisa ou coisa defeituosa, tanto mais que o mau funcionamento da embraiagem constitui um vício que desvaloriza a coisa e impede o uso normal a que a coisa se destina.
Como vem explicitado no Acórdão do tribunal da relação de Lisboa de 26-09-2019 (www.dgsi.pt) «Não sendo cumprida a obrigação, por parte do vendedor de reparação ou substituição da coisa imposta expressamente pelo artigo 914.º e 921.º do Código Civil, “não há qualquer razão séria que impeça o comprador de invocar o disposto no artigo 808.º, mostrando que perdeu objetivamente o interesse na prestação ou lançando mão da interpelação admonitória, para converter o incumprimento imperfeito e a mora na sua retificação em incumprimento definitivo (total ou parcial). Assim poderá resolver o contrato, segundo as regras gerais (artigos 801.º e 802.º, 793º), por facto posterior à sua conclusão – violação contratual suficientemente grave e inadimplemento definitivo, desde que esteja em condições de restituir a coisa em contrapartida do reembolso do preço ou prove que a impossibilidade de restituição se imputa ao vendedor” (Calvão da Silva in obra citada, págs. 68). Se assim é relativamente ao regime civilístico que regula a venda de coisa defeituosa, O Dec. Lei n.º 67/2003, no seu artigo 5.º, não impõe qualquer hierarquização dos diversos direitos que assistem ao consumidor (assumindo um nível de proteção mínima, tendo em conta o teor da Diretiva 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio), de onde resulta que, no caso de negócio de bem de consumo, não se impõe ao comprador que, em primeiro lugar, peticione a reparação/substituição e, só na ausência dessa reparação ou substituição do bem, possa vir peticionar a resolução/anulação do contrato.»
Não há dúvida que os autores podem peticionar a resolução do contrato, mas importa apurar, neste momento, se tal exigência cumpre os ditames da boa-fé ou se constitui um abuso do direito.

Questionou a apelante o direito à resolução do contrato, com o fundamento em que os apelados não provaram como lhes competia, que à data da venda do veículo existia um defeito na embraiagem.
A sentença recorrida deixou bem claro que ao caso não se aplicavam as regras do Código Civil, mas sim o regime do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08 de Abril.
E sobre isto a apelante nada disse, pelo que improcede a este segmento do recurso, sem necessidade de quaisquer outras considerações.
3.4. Do alegado abuso do direito de resolução
O artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08 de Abril, que transpõe para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, sobre certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, prevê os direitos que assistem aos consumidores no caso de compra e venda de bens defeituosos.
Assim, o n.º 1 do artigo 4.º reconhece-lhes, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, os seguintes direitos:
- a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição;
- à redução adequada do preço, ou
- à resolução do contrato.
O n.º 5 do mesmo artigo estabelece que o consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais.
Escreveu-se na sentença recorrida:
Não há dúvida que os autores podem peticionar a resolução do contrato, mas importa apurar, neste momento, se tal exigência cumpre os ditames da boa-fé ou se constitui um abuso do direito.
Ora, desde logo o problema da embraiagem não constitui um defeito menor ou irrelevante do veículo; acresce que não resultou que o dito defeito decorra de alegado desgaste; a 2.ª ré não ofereceu a reparação sem custos; de igual modo não resultou apurado, como alegado, que a viatura entregue para retoma tinha defeitos, designadamente, mais vultuosos do que o montante a gastar na substituição/reparação da embraiagem. É certo que os autores circularam com o veículo, mas tal não é suficiente para qualificar de abuso do direito o exercício do direito de resolução, porquanto também, como referi, não foi oferecida, sem custos, a substituição da embraiagem. Ninguém compra um veículo para estar parado, tanto mais que os autores continuaram a cumprir o pagamento das prestações.

Insurge-se a apelante contra este entendimento, entendendo que a resolução do contrato de compra e venda constitui abuso do direito, na modalidade de desequilíbrio no exercício.
Argumentam que, sendo a embraiagem um material de desgaste, os apelados não permitiram que se substituísse esse material, por mera cortesia comercial, pela módica quantia de €299,00 + IVA, pretendendo, antes, a resolução dos contratos.
E que, em qualquer caso, era absolutamente possível corrigir por valores muito inferiores à resolução, pois se está a falar de um valor de €299,00 +IVA, em contraponto com o valor de €19.000,00 da resolução contratual.
Acrescenta que, entretanto, beneficiaram e continuam a beneficiar no actual momento da utilização da viatura que, segundo as palavras do apelado, já fez 40.000 km.
Invoca em abono da sua pretensão o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.06.2013, nos termos do qual,
II. Na formulação genérica dedo art. 334 do CC cabem diversas categorias doutrinárias do abuso do direito, como por exemplo…e) Exercício em desequilíbrio traduz-se no exercício de um direito causando dano desnecessário a outrem, ou causando dano superior ao que era necessário.
Tem na sua base o princípio do dano mínimo.
E ainda o acórdão da Relação do Porto, de 29.05.2014, onde se diz:
O autor abusa do seu direito por pretender o desmantelamento radical da compra e venda em dois mil e quatro como se nunca tivesse usado o automóvel em seu próprio benefício e como se aquele desmantelamento jurídico ocorresse naquele dia da compra. O fim económico da compra e venda foi o uso do automóvel pelo autor sendo o próprio uso insuscetível de restituição, pelo que o autor excedeu manifestamente o fim económico do seu direito à resolução do contrato de compra e venda ao pretender a abstração do uso que deu ao automóvel e a abstração do tempo em que durou esse uso, cerca de três anos.
Apreciando:
A questão da utilização do veículo, mais concretamente se deve ser descontado o valor de utilização enquanto vigorou o contrato -, será abordada no ponto seguinte.
Neste momento importa determinar se a resolução do contrato se apresenta como demasiado gravosa, comprometendo de forma excessiva os interesses da apelante.
Segundo Menezes Cordeiro, Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas, ROA, 2005, II,
O desequilíbrio no exercício das posições jurídicas constitui um tipo extenso e residual de actuações contrárias à boa fé. Ele comporta diversos subtipos; podemos apontar três:
- o exercício danoso inútil;

- dolo agit qui petit quod statim redditurus est;
- desproporção grave entre o benefício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem.
II. Em todas estas hipóteses, podemos considerar que o titular, exercendo embora um direito formal, fá-lo em moldes que atentam contra vectores fundamentais do sistema, com relevo para a materialidade subjacente. O desequilíbrio está na origem do abuso (..).
A primeira observação que se impõe é que não se pode fazer o contraponto entre a quantia de €299,00 + IVA, e o valor de €19.000,00, por os efeitos da resolução não importarem tal solução, como se verá.
A segunda observação prende-se com a “módica quantia de €299,00 +IVA”.
Recorde-se que esta quantia, na proposta da apelante, deveria ser suportada pelos apelados, conforme alínea O’ da matéria de facto provada (Mesmo assim, a R. D… conseguiu junto da KIA que fosse concedida uma cortesia comercial voluntária, no sentido de ser autorizada a substituição da embraiagem, liquidando os AA. a quantia de €299 + IVA).
Ora, os apelantes tinham o direito que a embraiagem fosse reparada sem qualquer custo para si (artigo 4.º n.º 1, do Decreto-Lei n.º º 67/2003, de 08 de Abril).
Assim, se a apelante se queria pôr a salvo de uma resolução deveria ter suportado o custo da reparação da embraiagem não assumido pela marca.
Não o tendo feito, não pode agora invocar exercício abusivo para paralisar o direito dos apelados.
Não se verifica, pois, exercício abusivo do direito à resolução.
3.5. Da não consideração do uso do veículo nas consequências da resolução
Lê-se na sentença recorrida:
Vejamos, agora, se na restituição a que está obrigada cada uma das partes, deverá ser atendido o valor do uso e desvalorização que os autores deram ao veículo desde a sua aquisição.
Por um lado, não se pode entender que o facto de os compradores ter usado a viatura, enquanto proprietários, constitua um enriquecimento sem causa. Os autores foram cumprindo as prestações, mesmo existindo desconformidade com o contrato (que denunciaram à vendedora). Por outro lado, o referido uso não foi um uso normal mas um uso deficiente atento o defeito constatado na embraiagem, nem a desvalorização do veículo pode ser imputável aos autores.
Como vem explanado no Ac. da Relação de Lisboa de 18.10.2018 (processo 169/15.0T8VLS.L1-2): «Assim, em regra e ressalvadas situações de patente desequilíbrio que urja corrigir, nomeadamente emergentes de anormal utilização do veículo pelo comprador, a ele imputável e não, por exemplo, à desconformidade em si, o efeito retroativo da resolução do contrato de aquisição de bem de consumo, causa extintiva do contrato normalmente imputável ao incumprimento do contrato pelo vendedor, não abarca a exigibilidade, ao consumidor, de qualquer valor pela utilização do bem (neste sentido, cfr. Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, cit., p. 292)» (www.dgsi.pt).
Assim, não estão verificados os pressupostos de qualquer enriquecimento sem causa, que urja ou que deva ser corrigido ou qualquer valor que deva ser compensado.
Afirma a apelante que os apelados pretendem anular um negócio mais de 16 meses depois da sua conclusão (o veículo foi vendido em 31.05.2017 e a acção instaurada em 09.10.2018) e, simultaneamente, ficar com o carro, receber o valor liquidado há três anos e todas as prestações do empréstimo que fizeram, sem se tomar em consideração a utilização, por todo este tempo, do veiculo, com a consequente desvalorização que o tempo e os quilómetros percorridos causaram.
A decisão da 1.ª instância cita Jorge Morais Carvalho que, efectivamente, sustenta que o consumidor nada tem de pagar pela utilização do bem, porque a resolução tem efeitos retractivos e a falta de conformidade presume-se existente no momento da entrega (artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 67/2003), remetendo para o acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 17.04.2008.
Este acórdão, no entanto versa uma situação distinta da prevista nestes autos.
O reenvio prejudicial foi efectuado por um Tribunal alemão, por dúvidas sobre a compatibilidade da legislação alemã - em que o vendedor tinha direito, em caso de substituição de um bem não conforme, a uma indemnização pelas vantagens que o comprador obteve com o uso desse bem até à sua substituição por um novo bem - com a Directiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, cujo artigo 3.º, n.º 2, estabelece que:
Em caso de falta de conformidade, o consumidor tem direito a que a conformidade do bem seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, nos termos do n.°3, a uma redução adequada do preço, ou à rescisão do contrato no que respeita a esse bem, nos termos dos n.os 5 e 6.
Tratava-se da substituição de um fogão defeituoso por um fogão novo, por impossibilidade de reparação, em que o vendedor exigiu que o consumidor lhe pagasse um determinado montante a título de indemnização pelas vantagens que tinha obtido com o uso do aparelho que inicialmente lhe tinha sido entregue.
Naquele acórdão, o TJUE declarou que:
O artigo 3.° da Directiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio de 1999, relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que permite que o vendedor, no caso de ter vendido um bem de consumo não conforme, exija ao consumidor uma indemnização pelo uso do bem não conforme até à sua substituição por um novo bem.
E explicou, no ponto 41 que:
Nos casos em que o vendedor entrega um bem não conforme, não executa correctamente a obrigação à qual se tinha comprometido através do contrato de venda e deve, assim, assumir as consequências dessa má execução do contrato. Ao receber um novo bem em substituição do bem não conforme, o consumidor, que, por sua vez, pagou o preço de venda e, portanto, executou correctamente a sua obrigação contratual, não beneficia de um enriquecimento sem causa. O consumidor recebe apenas, com atraso, um bem conforme às estipulações do contrato, tal como o deveria ter recebido desde o início. (negrito nosso).
Assim, a doutrina do acórdão em causa não é transponível para a resolução.
A solução deve ser encontrada nos quadros da resolução do contrato.
Num recurso em que se alegava ser absolutamente desproporcionado que o comprador, depois de circular com o veículo durante 6 anos consecutivos, o possa agora entregar ao vendedor no estado manifestamente desgastado em que se encontra, e ainda por cima receber de volta o valor que pagou por esse veículo, decidiu-se no acórdão do STJ, de 03.09.2010, Maria dos Prazeres Beleza, www.dgsi.pt.jtsj, proc. n.º 822/06.9TBVCT.G1.S1:

A desproporção só existiria se o regime aplicável aos efeitos da resolução do contrato não permitisse respeitar o “princípio da justiça comutativa subjacente a todos os contratos onerosos, em geral, e à compra e venda, em especial” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4ª ed., Coimbra, 1997, pág. 206), princípio manifestamente prosseguido pelas regras aplicáveis à venda de bens defeituosos.
E a verdade é que a regra de que a resolução tem eficácia retroactiva (nº 1 do artigo 434º), sendo equiparada, quanto aos efeitos, à nulidade ou anulabilidade (artigo 433º), tem de ser conjugada com diversos preceitos que se destinam justamente a evitar que, por essa via, uma das partes enriqueça, injustificadamente, à custa da outra; e, note-se, não impede que, sendo caso disso, a parte que a invoca tenha o direito a ser indemnizada pelos prejuízos sofridos (pelo menos, pelos que não teria sofrido se não tivesse celebrado o contrato).
Assim resulta, por exemplo, do disposto no nº 2 do artigo 432º, do nº 2 do artigo 434º (cujo espírito, segundo Calvão da Silva – op. cit., pág. 85 – pode justificar a redução do valor a restituir por força da resolução, em caso de utilização do bem pelo consumidor) ou nos nºs 1 e 3 do artigo 289º e no artigo 290º.
(…)
No entanto, não sendo possível ao autor restituir o automóvel tal como lhe foi entregue (nº 1 do artigo 289º do Código Civil), a recorrente só pode ser condenada a restituir o valor que o veículo tiver à data do trânsito em julgado desta decisão, cuja determinação igualmente se remete para liquidação, conforme o disposto no nº 2 do artigo 661º do Código de Processo Civil, até ao limite dos €12.5000,00 pedidos, acrescido dos juros, à taxa legal, que se vencerem até efectivo e integral pagamento.
Refira-se, ainda, o acórdão do mesmo Tribunal e da mesma Relatora, de 24.03.2011, www.dgsi.pt.jtsj, proc. n.º 52/06.0TVPRT.P1.S1.
Regressando ao caso dos autos, a resolução do contrato de compra e venda celebrado entre apelante e apelados tem como consequência a restituição do que foi prestado.
A questão a resolver consiste em determinar os termos da obrigação de restituir que impende sobre os apelados.
É inquestionável que o veículo tem de ser restituído, uma vez que os apelados não podem receber o que pagaram e manter o veículo em seu poder.
Não podendo restituir o veículo no estado que se encontrava à data da venda, há-de entregar o veículo e o montante correspondente à desvalorização que sofreu durante o tempo que foi utilizado, o que corresponde à diferença entre o seu valor à data da venda anulada e o valor que o mesmo tiver à data do trânsito em julgado desta decisão.
3.6. Dos danos não patrimoniais
A apelante afirma que, por tudo o que ficou dito, não assiste aos apelados qualquer direito à indemnização por danos não patrimoniais.
Tendo decaído na sua pretensão de demonstrar que não havia fundamento para a resolução do contrato, e nada mais tendo alegado, improcede necessariamente este segmento do recurso.
4. Decisão
Termos em que, julgando a apelação parcialmente procedente, condena-se os apelados a entregar à apelante o veículo da marca Kia, modelo …, matricula .. – OE - .., bem como a quantia equivalente à diferença entre o valor de aquisição do veículo e o seu valor à data do trânsito da sentença, a liquidar nos termos do artigo 609.º, n.º 2, CPC, no mais se mantendo a decisão recorrida.
Custas pela apelante, provisoriamente, na proporção de 50%, atento o apoio judiciário de que beneficiam os apelantes (artigo 527.º CPC).

Porto, 25 de Maio de 2021
Márcia Portela
Carlos Querido
José Igreja Matos