Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9717/17.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RITA ROMEIRA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA
AUSÊNCIA DE CAUSA JUSTIFICATIVA
Nº do Documento: RP202105179717/17.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 05/17/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE; REVOGADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I – É temerária e sem justificação a conduta do sinistrado, que utiliza produtos químicos sem fazer uso das botas de protecção isolante que a empregadora lhe disponibilizou e lhe transmitiu que não devia utilizar aqueles produtos sem fazer uso daquelas botas de protecção.
II – O seu comportamento, enquadra-se na situação prevista no art. 14º, nº 1, al a) da Lei nº 98/2009 de 04.09, por incumprimento de condições de segurança estabelecidas pela empregadora e, por isso, esta, não está obrigada a reparar os danos decorrentes das queimaduras químicas de 3º grau que sofreu, causadas por aqueles produtos, dado ter deixado de usar as botas de protecção e a partir de determinada altura, fê-lo com as botas que costuma usar.
III – A entidade responsável não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que provier de acto ou omissão do sinistrado que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador.
IV - A descaracterização do acidente de trabalho, prevista na alínea a) do nº 1 daquele art. 14º, exige a conjunção cumulativa dos seguintes requisitos: a existência, por um lado, de condições de segurança e o seu desrespeito por parte do destinatário/trabalhador; em actuação voluntária, embora não intencional, por acção ou omissão, e sem causa justificativa; por outro lado, impõe-se que o acidente seja consequência, em termos de causalidade adequada, dessa conduta.
V - A ausência de “causa justificativa” não comporta um juízo de “negligência grosseira”, bastando, para a sua conformação, a violação consciente, por parte do trabalhador, das condições de segurança específicas da empresa e/ou decorrentes da lei.
VI - Sabendo o A./sinistrado que não devia utilizar produtos químicos sem fazer uso das botas de protecção fornecidas pela empregadora, tendo sofrido lesões e sequelas determinativas de uma IPP, por não usar aquelas, durante a utilização daqueles, é de considerar descaracterizado o acidente de trabalho sofrido, por violação por parte do mesmo das regras de segurança estabelecidas pela empregadora e legalmente impostas.
VII – Em matéria de acidentes de trabalho a lei consagra a exclusão da responsabilidade do empregador em determinadas situações, estatuindo expressamente que aquele não tem de reparar os danos decorrentes do acidente sempre que se verifiquem as circunstâncias enunciadas no nº 1, do art. 14º, da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 9717/17.0T8PRT.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Porto -Juízo do Trabalho- Juiz 3
Recorrente: B…
Recorrida: C… – Sucursal em Portugal, S.A.
Centro Distrital da Segurança Social do Porto.
D…, S.A

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
Após, a não conciliação das partes, como decorre do “Auto de Não Conciliação”, junto aos autos, o A., B…, contribuinte n° ………, residente na Rua …, Bloco ., Entrada .., Casa .., Porto, com o patrocínio do Ministério Público, intentou acção emergente de acidente de trabalho, contra a RR., “C… – Sucursal em Portugal, S.A.”, com sede na Rua …, n.º .., Lisboa e “D…, S.A.”, com sede na Rua …, Porto, pedindo que esta seja julgada procedente e, em consequência, tendo em conta o vencimento auferido à data do acidente, aos períodos de incapacidade temporária e à IPP de 12%, sejam as rés condenadas a pagar-lhe:
1 – A pensão anual e vitalícia de 736,51, a partir de 21/12/2017;
2 – A quantia de 5.097,95, a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária;
3 – A quantia gasta em transportes no montante de 18,00;
4 – Juros de mora à taxa legal, desde o vencimento das quantias até efetivo pagamento.
Fundamenta o seu pedido alegando, em síntese, que a R., “D…” é uma empresa de restauração que explora vários restaurantes e o autor vem-lhe prestando trabalho como despenseiro, ocupando-se da manutenção de equipamentos, fazendo serviços de pintura e limpeza e carregamento de objectos.
Mais, alega que, no dia 24 de Fevereiro de 2017, quando se encontrava no armazém da entidade patronal, cumprindo o horário de trabalho e procedia à remoção da gordura do fogão, utilizando líquidos fornecidos pela empregadora, na execução dessa tarefa começou por utilizar botas de borracha, mas a partir de determinada altura os pés começaram a doer-lhe, pois é diabético, e começou a usar as botas que costuma utilizar e realizou o trabalho de limpeza. Após, o dia de trabalho regressou à residência e tomou banho, tendo verificado que os pés estavam vermelhos, o que é normal nos diabéticos. Na manhã seguinte viu que os pés estavam pretos, queimados e foi procurar tratamento ao SAZU, organismo que o encaminhou para o hospital …, onde foi submetido a três cirurgias e continuou os tratamentos, tanto em internamento, como em ambulatório.
Alega, ainda, que, em consequência do contacto com os produtos de limpeza, sofreu queimaduras químicas de 3º grau, o que lhe determinou um período de ITA e sequelas valorizáveis em termos de IPP em 12%, a partir de 20.12.2017.
Por fim, alega que o uso de botas de borracha não impediria o contacto com a humidade, uma vez que atento o uso de jactos de água sempre iria molhar os pés e que, por outro lado, não conhecia o efeito que o contacto da humidade poderia causar.
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Citadas as Rés e o Instituto de Segurança Social, IP, veio este, nos termos que constam a fls. 144 vº e ss., deduzir pedido de reembolso, contra as primeiras, peticionando a condenação daquelas a pagar-lhe a quantia de € 3.364,49, a título de subsídio de doença e a quantia de € 263,28, a título de prestação compensatória de subsídio de Natal de 2017, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo pagamento.
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Após, apenas a Ré/seguradora contestou, nos termos que constam a fls. 155 e ss., desde logo, referindo que apenas se encontrava para si transferido o vencimento de € 557,00x14, o que perfaz o montante anual de € 7.798,00.
Alega que o acidente sofrido pelo autor não pode ser caracterizado como laboral, uma vez que resultou do facto de o sinistrado não ter cumprido as normas de segurança estabelecidas pela empregadora e previstas pela lei, as quais não podia ignorar. Com efeito, aquando do alegado sinistro, o autor fazia uso de um produto químico perigoso, pois era apto a provocar queimaduras na pele, o que exigia especiais cuidados de manuseamento.
Mais, alega que, face ao disposto no artigo 148.º da Portaria 53/71, de 3 de Fevereiro e Portaria 998/93, de 6 de Outubro, o autor encontrava-se obrigado a usar umas botas de protecção isolante, que a empregadora lhe havia disponibilizado, mas que optou por não fazer uso.
E, continua alegando que, o uso correto das botas de protecção isolante teria evitado as queimaduras alegadamente sofridas pelo autor, sendo certo que o mesmo sabia que não podia utilizar os produtos químicos para lavar o fogão sem fazer uso das botas de protecção isolante, o que lhe havia sido transmitido pela sua entidade patronal e constava do próprio rótulo do produto, o qual continha a informação “PERIGO” e uma ilustração que alerta para o perigo de queimaduras, bem como a seguinte informação: “provoca queimaduras na pele e lesões oculares graves”.
Conclui, assim, que o sinistro ocorreu por causa da violação de regras de segurança no trabalho, mostrando-se descaracterizado e, nesses termos, a acção improcede.
Requereu a realização de exame por junta médica e juntou quesitos.
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A fls. 194 vº e ss., a co-ré/seguradora contestou o pedido do ISS concluindo, também, pela improcedência deste.
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Na sequência de convite que lhe foi endereçado, o sinistrado veio esclarecer que o acidente ocorreu no dia 24 de Fevereiro de 2017, pelo que o facto de se contabilizar o período de ITA desde 22 de Fevereiro de 2017 é mero lapso.
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Nos termos que constam do despacho, de fls. 209 e ss., fixou-se o valor da causa em € 17.511,00, foi proferido saneador tabelar, fixados os factos assentes e base instrutória e ordenado o desdobramento do processo.
Organizado o apenso, foi realizado exame por junta médica e proferida decisão, nos termos que constam a fls. 15 daquele, que considerou o A., por força do sinistro sofrido, ficou afectado de ITA de 24.02.2017 a 20.12.2017 e de IPP de 9% a partir do dia 20.12.2017.
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Realizada a audiência de discussão e julgamento, nos termos documentados na acta de fls. 235 e 251, foi ordenada a conclusão dos autos para prolação de sentença que, proferida em 20.11.2020, terminou com a seguinte Decisão:
“Por tudo o exposto, julga-se parcialmente procedente, por provada, a presente ação e, em consequência, reconhecendo-se que o sinistrado B… foi vítima de um acidente de trabalho do qual lhe resultou uma incapacidade permanente parcial de 9% desde 20 de dezembro de 2017 condena-se:
A – “C… – Sucursal em Portugal, S.A.” a pagar ao sinistrado:
1) o capital de remição da pensão anual de € 559,88, devido desde 21 de dezembro de 2017, acrescido de juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, desde tal data e até entrega efetiva.
2) a quantia de € 4.473,25, a título de indemnização pelo período de incapacidade temporária, acrescida dos respetivos juros de mora, à mesma taxa legal, desde o fim do mês em que cada uma das parcelas deveria ter sido liquidada e até efetivo e integral pagamento, devendo-se levar em consideração o montante a liquidar ao ISSS a título de subsídio de doença, da responsabilidade da seguradora, no valor de € 3.183,180, sob pena de se incorrer numa situação de enriquecimento sem causa do autor.
B – “D…, S.A.” a pagar ao sinistrado:
3) o capital de remição da pensão anual de € 68,61, devido desde 21 de dezembro de 2017, acrescido de juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, desde tal data e até entrega efetiva.
4) a quantia de € 624,70, a título de indemnização pelo período de incapacidade temporária, acrescida dos respetivos juros de mora, à mesma taxa legal, desde o fim do mês em que cada uma das parcelas deveria ter sido liquidada e até efetivo e integral pagamento, devendo-se levar em consideração o montante a liquidar ao ISSS a título de subsídio de doença, da responsabilidade da seguradora, no valor de € 444,54, sob pena de se incorrer numa situação de enriquecimento sem causa do autor.
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Julga-se procedente o pedido de reembolso e, em consequência, condena-se a ré seguradora a pagar ao ISSS a quantia de € 3.183,18 e a ré entidade patronal a pagar ao mesmo instituto a quantia de € 444,54, acrescidas de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, desde a data da data de notificação do pedido de reembolso e até efetivo e integral pagamento.
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Fixo o valor de processo em € 12.483,90 - artigo 120.º do Código de Processo do Trabalho.
Custas, da ação e do pedido de reembolso, pelas entidades responsáveis, na proporção de € 87,75% para a seguradora e 12,25 para a entidade empregadora.
Registe e notifique.”.
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Inconformada a R./seguradora interpôs recurso, nos termos das alegações juntas a fls. 266 e ss., terminando com as seguintes “C O N C L U S Õ E S:
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O A., com o patrocínio oficioso do Ministério Público, veio apresentar resposta, nos termos que constam das contra-alegações, a fls. 282 e ss., formulando as seguintes “Conclusões:
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Nos termos que constam a fls. 289 e 292 foi admitida a apelação, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo e ordenada a remessa dos autos a esta Relação.
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O Ministério Público teve vista nos autos, nos termos do art. 87º nº3, do CPT, não tendo emitido parecer por o mesmo lhe estar vedado nestes autos.
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Cumpridos os vistos legais, há que apreciar e decidir.
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O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, cfr. art.s 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, aplicável “ex vi” do art. 87º, nº 1, do Código de Processo do Trabalho, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado.
Assim a questão a decidir e apreciar consiste em saber, se o Tribunal “a quo” errou ao não considerar que o acidente, sofrido pelo A., ocorreu por violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei.
Ou seja, saber se não estamos, perante uma situação de descaracterização do acidente que vitimou o A., ou sim, como defende a recorrente.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
O Tribunal a quo considerou:
A – Factos provados
1) A ré empregadora é uma empresa de restauração que explora vários restaurantes de comida indiana na cidade do Porto, Vila Nova de Gaia e dois restaurantes em Braga (a).
2) O autor vinha prestando trabalho sob as ordens, direção e fiscalização da ré empregadora (b).
3) A responsabilidade por acidentes de trabalho encontrava-se transferida para a ré seguradora (c).
4) O autor prestou trabalho ao serviço da ré empregadora como despenseiro, ocupando-se da manutenção de equipamentos, fazendo serviços de pintura e limpeza, carregamento de objetos (1º).
5) O autor, em 2017, cumpria um horário de trabalho das 09h 30m às 12h 30m e das 13h 30 m às 18h 30m, de segunda a sexta-feira (2º).
6) A ré empregadora retribuía o trabalho do autor com o vencimento mensal de € 557,00x14 + € 4,50x22x11 (3º).
7) No dia 24 de fevereiro de 2017, cerca das 10h, quando se encontrava no armazém da ré empregadora, o autor procedia à limpeza de um fogão (4º).
8) Para proceder à remoção da gordura do fogão, o autor utilizava líquidos químicos fornecidos pela entidade empregadora (5º).
9) O autor, ao limpar o fogão, começou por utilizar botas de borracha (galochas), mas a partir de determinada altura os pés começaram a doer-lhe, pois é diabético, e calçou as botas que costuma utilizar (6º).
10) Após o dia de trabalho, o autor regressou à residência e tomou banho, verificando que os pés estavam vermelhos, o que é normal quando tem os diabetes altos (7º).
11) Na manhã seguinte, o autor viu que os pés se encontravam pretos, queimados, e foi procurar tratamento ao SAZU, organismo que o encaminhou para o Hospital … (8º).
12) A entidade empregadora participou o evento à seguradora, que convocou o autor para o hospital E…, onde fez curativos durante oito dias (9º).
13) A ré seguradora considerou não ter responsabilidade e o autor foi encaminhado para o Hospital F…, em Vila Nova de Gaia (10º).
14) No Hospital F…, o autor foi submetido a três cirurgias e continuou os tratamentos, tanto em internamento, como em ambulatório (11º).
15) O autor tem continuado a receber tratamento às lesões no USF de …, … (12º).
16) Em consequência do contacto com os produtos de limpeza, o autor sofreu queimaduras químicas de 3º grau (13º).
17) O autor esteve na situação de ITA desde 24 de fevereiro de 2017 a 20-12- de 2017 e apresenta IPP de 9% a partir de 20 de dezembro de 2017 (14º).
18) O autor não conhecia o efeito que o contacto da humidade poderia causar (18º).
19) O Instituto de Segurança Social, por força do referenciado evento, pagou ao autor a título de subsídio de doença respeitante ao período de 9 de março de 2017 a 20 de dezembro de 2017 a quantia de € 3.364,49 e pagou-lhe a prestação compensatória de subsídio de Natal de 2017 no valor de € 263,28 (19º).
20) A ré empregadora disponibilizou ao autor umas botas de protecção isolante em borracha (21º).
21) O uso das botas de proteção teria, pelo menos, diminuído o risco de queimaduras nos pés do sinistrado, uma vez que teria também diminuído o risco de contacto do agente químico com a pele dos pés (22º).
22) O sinistrado sabia que não devia utilizar os produtos químicos para lavar o fogão sem fazer uso das botas de proteção isolante, o que lhe foi transmitido pela ré empregadora (23º).
23) O rótulo do produto utilizado pelo autor contem a informação “PERIGO”, bem como uma ilustração que alerta para o perigo de queimaduras (24º).
24) E do mesmo rótulo consta a seguinte informação: “provoca queimaduras na pele e lesões oculares graves” (25º).
B – Factos não provados
a) O autor não se encontra apto para trabalhar e desempenhar as funções que vinha prestando até à data do aludido evento (15º).
b) O autor gastou a quantia de € 18,00 com deslocações a tribunal (16º).
c) O uso pelo autor de botas de borracha não impediria o contacto daquele com a humidade, uma vez que com os jatos de água o sinistrado sempre iria molhar os pés (17º).
d) O vencimento transferido para a ré seguradora era apenas de € 557 x 14 meses (20º).”.
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B) O DIREITO
Como decorre do supra exposto, está em causa, apenas, a questão de saber se o acidente de trabalho, sofrido pelo A., resultou, ou não, da violação por parte dele das regras de segurança estabelecidas pela sua empregadora ou previstas na lei. Ou seja, saber se estamos perante uma situação de descaracterização do acidente, como defende a recorrente.
Pois, também, decorre do exposto que, as partes estão de acordo que o acidente é de trabalho, nos termos do art. 8º, nº 1, da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro, (a seguir designada LAT e a que pertencerão os demais artigos referidos sem outra indicação de origem) dado ter ocorrido no local e no tempo de trabalho e ter produzido directamente lesão corporal de que resultou redução na capacidade de trabalho do Autor.
A discordância reside no facto de a Ré/Seguradora, ora Recorrente, entender que o mesmo ocorreu devido a um acto voluntário do sinistrado violador, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas por lei e pela própria empregadora, o que conduz à referida descaracterização do sinistro.
Entendimento, diferente do que se considerou na decisão recorrida e, contra o qual, se manifesta o Autor/recorrido defendendo a manutenção daquela e, em sua defesa, sustentando que o seu comportamento, se enquadra numa normal habituação ao risco, não é de maneira nenhuma doloso, nem um comportamento temerário e tem uma justificação, pois foi o facto de os pés lhe começarem a doer que o fez tirar as botas e calçar os sapatos que costumava usar.
Por isso, defende que não ocorreu descaracterização e, ainda, que competia à ré seguradora demonstrar que o uso de botas de borracha afastaria o risco de acidente, o que a recorrente não conseguiu provar.
O Tribunal “a quo” decidiu nos termos defendidos pelo Autor de não descaracterização do acidente, o que merece a total discordância da Ré/Recorrente, como já dissemos.
Que dizer, então.
Comecemos por analisar, o circunstancialismo fáctico em que ocorreu o acidente de trabalho, em causa. Apurou-se que: “7) No dia 24 de fevereiro de 2017, cerca das 10h, quando se encontrava no armazém da ré empregadora, o autor procedia à limpeza de um fogão (4º). 8) Para proceder à remoção da gordura do fogão, o autor utilizava líquidos químicos fornecidos pela entidade empregadora (5º). 9) O autor, ao limpar o fogão, começou por utilizar botas de borracha (galochas), mas a partir de determinada altura os pés começaram a doer-lhe, pois é diabético, e calçou as botas que costuma utilizar (6º). 10) Após o dia de trabalho, o autor regressou à residência e tomou banho, verificando que os pés estavam vermelhos, o que é normal quando tem os diabetes altos (7º). 11) Na manhã seguinte, o autor viu que os pés se encontravam pretos, queimados, e foi procurar tratamento ao SAZU, organismo que o encaminhou para o Hospital … (8º). 16) Em consequência do contacto com os produtos de limpeza, o autor sofreu queimaduras químicas de 3º grau (13º). 20) A ré empregadora disponibilizou ao autor umas botas de protecção isolante em borracha (21º). 22) O sinistrado sabia que não devia utilizar os produtos químicos para lavar o fogão sem fazer uso das botas de proteção isolante, o que lhe foi transmitido pela ré empregadora (23º)”.
Ora, atenta esta factualidade, podemos adiantar, desde já, que tem fundamento a discordância da recorrente.
Sem dúvida, concordamos que o acidente de trabalho sofrido pelo A. proveio de omissão, por parte do mesmo, violadora, sem causa justificativa, das condições de segurança previstas na lei e estabelecidas pela empregadora.
Senão, vejamos.
Dispõe o art. 14°, da LAT, sob a epígrafe "Descaracterização do acidente" o seguinte:
“1 - O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal provação derivar da própria prestação de trabalho, for independente da vontade do sinistrado, ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.
2 - Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.
3 - Entende-se por negligência grosseira, o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.”.
A propósito dos requisitos previstos na al. a) deste dispositivo, aplicável no caso, como bem o defende a recorrente, vem o STJ, como entre outros (Acórdãos de 19.11.2014, Proc. 177/10.7TTBJA.E1.S1, de 15.04.2015, Proc. 1716/11.1TTPNF.P1.S1 e de 16.06.2016, Proc. 134/12.9TTMAI.P1.S1, todos in www.dgsi.pt – local da internet onde se encontrarão os demais acórdãos que se citem, sem outra indicação), seguindo o entendimento, que perfilhamos, de que: “A descaracterização do acidente (de trabalho) prevista na alínea a) do nº1 do artº14º da NLAT (Lei nº98/2009, de 4 de Setembro), exige a conjugação cumulativa dos seguintes requisitos: a existência, por um lado, de condições de segurança e o seu desrespeito por parte do destinatário/trabalhador; em actuação voluntária, embora não intencional, por acção ou omissão, e sem causa justificativa; por outro lado, impõe-se que o acidente seja consequência, em termos de causalidade adequada, dessa conduta”.
Anterior, mas em idêntico sentido, veja-se o (Ac. do STJ de 13.01.1993, Proc. 003383), em cujo sumário se consignou o seguinte: «I - Para que se verifique a descaracterização do acidente de trabalho por violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal, nos termos da alínea a) do n. 1 da Base VI da Lei n. 2127, é imprescindível que ocorram, cumulativamente, os seguintes requisitos: a) existência de condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal; b) violação dessas condições de segurança pela vítima, através de acto ou omissão; c) que a conduta da vítima seja voluntária, embora não intencional e sem causa justificativa; d) que o acidente seja consequência dessa conduta.
II - A descaracterização do acidente de trabalho constitui facto impeditivo do direito invocado pelo sinistrado, cabendo à entidade responsável o ónus da prova dos factos integrantes de tal descaracterização (artigo 342 n. 2 do Código Civil).».
A nível doutrinal, no mesmo sentido, ainda que a propósito da Lei nº 100/97, mas com inteira aplicação à actual legislação, neste caso, (Pedro Romano Martinez in “Direito do Trabalho”, 3.ª Edição, Almedina, 2006, págs. 851 e 852), refere que, “o legislador exige somente que a violação careça de «causa justificativa», pelo que está fora de questão o requisito da negligência grosseira da vítima; a exigência dessa culpa grave encontra-se na alínea seguinte do mesmo preceito. A diferença de formulação constante das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 7.º da LAT (correspondentes às mesmas alíneas do n.º 1 do art. 290.º do CT) tem de acarretar uma interpretação distinta. Por outro lado, há motivos para que o legislador tenha estabelecido regras diversas. Na alínea a) só se exige a falta de causa justificativa, porque atende-se à violação das condições de segurança específicas daquela empresa; por isso, basta que o trabalhador conscientemente viole essas regras.
(...).
Se o trabalhador, conhecendo as condições de segurança vigentes na empresa, as viola conscientemente e, por força disso, sofre um acidente de trabalho, não é de exigir a negligência grosseira do sinistrado nessa violação para excluir a responsabilidade do empregador.”.
Sendo deste modo, parece-nos, não se suscitarem dúvidas, ter a recorrente demonstrado e verificarem-se, no caso, os requisitos exigíveis, na al. a) do referido art. 14º para que ocorra a descaracterização do acidente de trabalho sofrido pelo autor, ao contrário do que decidiu o Tribunal “a quo” e considera o A./recorrido.
Pois, ao contrário do que se considerou na sentença recorrida e defende aquele, para que se mostre descaracterizado o acidente, nos termos da al. a), 2ª parte, daquele art. 14º, não se exige a negligência grosseira do sinistrado na violação cometida, basta que a sua conduta seja temerária e sem causa justificativa. O que, cremos não se suscitam dúvidas ocorreu, como o próprio aceita na sua alegação.
Verifica-se que, o autor não usou as botas isolantes que lhe haviam sido fornecidas e destinadas pela empregadora à sua protecção e segurança para, como a mesma lhe havia transmitido, colocar quando utilizasse produtos químicos, como era o caso da tarefa que levava a cabo, remoção da gordura de um fogão, quando sofreu as queimaduras químicas de 3º grau, conforme decorre dos factos provados nos pontos 7, 8, 9, 16, 20 e 22. Ou seja, como se refere naquele (Ac. de 13.01.1993) citado, a entidade patronal, como lhe competia fez prova de que estabelecera condições de segurança, de que o trabalhador as violou e de que a lesão se ficou a dever a esse incumprimento.
E verifica-se, também, que o A. não logrou provar qualquer causa justificativa, para não ter usado, como assumiu, a partir de determinada altura as botas de borracha e ter passado a usar as botas que costuma utilizar sendo, totalmente, irrelevantes para o efeito, em nosso entender, os argumentos que veio invocar e sintetiza na conclusão 7, alegando, sem qualquer suporte fáctico, de que “As botas de borracha, fornecidas pela entidade empregadora, são as normais botas de borracha designadas como galochas e não o calçado isolante que impeça o contacto do corpo com a humidade, pois são abertas no cimo” e, o que se apurou, em concreto, terem começado a doer-lhe os pés e não conhecer o efeito que o contacto da humidade poderia causar conforme decorre dos factos provados nos pontos 9 e 18,.
Justificando.
Referem-se na sentença recorrida e referimos nós, como sendo aplicável ao caso o disposto na Lei nº 102/2009, de 10 de Setembro, a qual (transpondo para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 89/391/CEE, do Conselho, de 12 de junho, relativa à aplicação de medidas destinadas a promover a melhoria da segurança e da saúde dos trabalhadores no trabalho, alterada pelo Regulamento (CE) n.º 1882/2003, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de setembro, pela Diretiva n.º 2007/30/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho, e pelo Regulamento (CE) n.º 1137/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro) estabelece o Regime jurídico da promoção da segurança e saúde no trabalho, em concreto, no CAPÍTULO II, sob a epígrafe “Obrigações gerais do empregador e do trabalhador”, no art. 17º, sobre as “Obrigações do trabalhador”, dispõe que:
“1 - Constituem obrigações do trabalhador:
a) Cumprir as prescrições de segurança e de saúde no trabalho estabelecidas nas disposições legais e em instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho, bem como as instruções determinadas com esse fim pelo empregador;
b) Zelar pela sua segurança (...);
c) Utilizar corretamente e de acordo com as instruções transmitidas pelo empregador, máquinas, aparelhos, instrumentos, substâncias perigosas e outros equipamentos e meios postos à sua disposição, designadamente os equipamentos de proteção coletiva e individual, bem como cumprir os procedimentos de trabalho estabelecidos;
(...).”.
De igual modo, estabelece o nº 1, al. e), do art. 128º do Código do Trabalho, no nº 1 que, “Sem prejuízo de outras obrigações, o trabalhador deve:”, al. e) “Cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes a execução ou disciplina do trabalho, bem como a segurança e saúde no trabalho, que não sejam contrárias aos seus direitos ou garantias;”.
Por sua vez, o Regulamento Geral de Segurança e Higiene do Trabalho nos Estabelecimentos Industriais (Portaria nº53/71 de 03.02, alterada pela Portaria nº702/80 de 22.09), que tem por objectivo, nos termos definidos no seu art. 1º, “a prevenção técnica dos riscos profissionais e a higiene nos estabelecimentos industriais”.
Na Secção II, sobre “Deveres das partes”, dispõe no art. 3º, sob a epígrafe “Deveres da entidade patronal”, que:
“São obrigações gerais da entidade patronal:
(...)
b) Adoptar as medidas necessárias, de forma a obter uma correcta organização e uma eficaz prevenção dos riscos que podem afectar a vida, integridade física e saúde dos trabalhadores ao seu serviço;
(...)
f) Fornecer gratuitamente aos trabalhadores os dispositivos de protecção individual e outros necessários aos trabalhos a realizar, assegurando a sua higienização, conservação e utilização;
g) Informar os trabalhadores dos riscos a que podem estar sujeitos e das precauções a tomar, dando especial atenção aos casos admitidos pela primeira vez ou mudados de posto de trabalho;
(...).”.
O art. 4º, sob a epígrafe, “Deveres dos trabalhadores”, dispõe que:
“São obrigações dos trabalhadores:
a) Cooperar na prevenção de riscos profissionais e na manutenção da higiene dos locais de trabalho, cumprindo as disposições do presente Regulamento e demais preceitos aplicáveis, bem como as instruções dadas pela entidade que os dirigir;
(...).
c) Usar correctamente os dispositivos de protecção individual que lhes forem fornecidos...
d) Tomar as precauções necessárias para a segurança própria ou alheia e abster-se de quaisquer actos que possam originar situações de perigo,
(...).”
E, no art. 148.º sob a epígrafe: “Protecção dos pés e das pernas” dispõe que:
“1. Nos trabalhos que apresentem risco de queimadura, corrosão, ou perfuração ou esmagamento dos pés, os trabalhadores devem dispor de calçado de segurança resistente e adequado à natureza do risco.
(…)”.
Por último, face à publicação do Decreto-Lei n.º 348/93, de 1 de Outubro, que transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 89/656/CEE, do Conselho, de 30 de Novembro, relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde dos trabalhadores na utilização de equipamento de protecção individual, prevê, no seu artigo 7.º, que a descrição técnica do equipamento de protecção individual, bem como das actividades e sectores de actividade para os quais aquele pode ser necessário, se analisarmos a Portaria n.º 988/93 de 6 de Outubro, publicada na sequência daquele, verificamos que a entidade patronal não só cumpriu com os seus deveres, como forneceu ao trabalhador os equipamentos adequados a proteger a sua saúde e integridade física, atenta a actividade em causa, “o que, no caso presente, seriam botas de protecção isolante”, como bem se refere na decisão recorrida.
Pois, ficou provado que: “20) A ré empregadora disponibilizou ao autor umas botas de protecção isolante em borracha (21º) e 22) O sinistrado sabia que não devia utilizar os produtos químicos para lavar o fogão sem fazer uso das botas de proteção isolante, o que lhe foi transmitido pela ré empregadora (23º)”.
E, não se apurou, qualquer alegação e ou indicação de uma violação dos deveres (art.º 127º do CT/2009) e ou das regras de segurança a que a entidade empregadora está obrigada (art. 281º do CT/2009 e art.s 73º e 98º da Lei nº 102/2009), ou, de todo o modo, uma actuação culposa do empregador (art. 18º da LAT).
Antes, decorre dos factos apurados que, apesar do que foi transmitido ao A. pela empregadora e o sinistrado sabia, conforme (ponto 22 dos factos provados), o acidente ocorre devido ao A., a partir de determinada altura ter deixado de usar as botas que lhe foram fornecidas e calçado as botas que costuma utilizar, enquanto limpava o fogão, utilizando químicos. Pese embora, os alertas constantes destes, como decorre do supra exposto e dos pontos “23) O rótulo do produto utilizado pelo autor contem a informação “PERIGO”, bem como uma ilustração que alerta para o perigo de queimaduras (24º) - 24) E do mesmo rótulo consta a seguinte informação: “provoca queimaduras na pele e lesões oculares graves” (25º)”.
Ou seja, o que decorre da factualidade apurada, é que havia norma de segurança instituída pela empregadora do sinistrado/Autor e este sabia que não devia utilizar produtos químicos sem fazer uso das botas de protecção isolante. No entanto, não obstante, ter esse conhecimento de que não devia utilizar aqueles produtos químicos sem fazer uso das botas de protecção isolante, o A., a partir de determinada altura, fê-lo com as botas que costuma utilizar, desrespeitando o que lhe era devido observar, como lhe foi transmitido pela empregadora, de que “não devia utilizar os produtos químicos para lavar o fogão sem fazer uso das botas de protecção isolante”.
Só podemos, assim, concluir que o Autor agiu temerariamente, não respeitando, com o seu comportamento, as normas de segurança que eram do seu conhecimento e, fê-lo sem causa justificativa.
Ou seja, para a conduta do A., para a omissão cometida, de que tinha conhecimento e haviam dispositivos a alertar para a perigosidade dos produtos em causa, como bem defende a recorrente, não se vislumbra “causa justificativa”, não lhe era exigível nem lhe foi imposto que assim procedesse, utilizando aqueles produtos sem as botas de protecção, fazendo-o com as botas que costuma utilizar, fê-lo em desrespeito das normas de segurança que não podia ignorar.
Sabendo o A. que não devia utilizar os produtos químicos sem fazer uso das botas de protecção, falece qualquer possibilidade de justificação com apelo ao facto, de que, “18) O autor não conhecia o efeito que o contacto da humidade poderia causar (18º)” ou de que “os pés começaram a doer-lhe, pois é diabético,...”.
Diferente foi o entendido, na decisão recorrida onde se considerou: «No caso em apreço, importa não esquecer que quando o autor substitui as botas de borracha que usava, em obediência ao estabelecido na lei e ao determinado pela entidade patronal, fá-lo porque sentisse dores nos pés. Depois, igualmente não ficou provado que o autor soubesse que não “podia” executar a tarefa que executava sem fazer uso das botas isolantes, mas antes que o mesmo sabia que assim não “devia” proceder, o que são coisas distintas.
Ora, da conjugação destes factos, temos para nós que não é possível retirar que o sinistrado adotou um comportamento iluminado pelo intento de desrespeito de quaisquer regras de segurança. Na verdade, e por um lado, os factos apurados permitem-nos perceber a razão pela qual o autor, que usava o equipamento de proteção adequado, decidiu abandoná-lo e voltar a calçar o seu calçado habitual. E, por outro lado, tais factos não são suficientes para que possamos concluir que o sinistrado tivesse plena consciência do risco que corria ao atuar pela forma que atuou, isto mesmo tendo consciência da perigosidade do produto que manuseava (note-se que o mesmo não prescindiu nem momento algum do uso de luvas, mas já, perante as dores que sentiu nos pés, substituiu o calçado que era suposto usar pelo seu calçado).
Parece-nos, pois, não ser possível afirmar que o sinistrado atuou voluntária e conscientemente, desprezando as instruções de segurança estabelecidas na lei ou pela empregadora.
Ora, o certo é que impedia sobre a seguradora o ónus de alegar e provar os factos conducentes à descaracterização do acidente de trabalho, por serem impeditivos do direito à reparação que a lei confere ao sinistrado – artigo 342.º/2 do Código Civil.
Não tendo tal ónus sido cumprido, mostra-se afastada a aplicabilidade do disposto na alínea a) do n.º1 do artigo 14.º do RRATDP.».
No entanto, como já referimos, não concordamos que assim seja.
Não pode ser, como dissemos, de modo algum justificação o sentir dores nos pés.
Aliás, diga-se, que não se entende de todo, o referido na decisão recorrida quando diz que “Depois, igualmente não ficou provado que o autor soubesse que não “podia” executar a tarefa que executava sem fazer uso das botas isolantes, mas antes que o mesmo sabia que assim não “devia” proceder,” e afirma “o que são coisas distintas.”.
Sempre com o devido respeito, no contexto, a referida afirmação carece de sentido. Não se entende como é que se pode afirmar para justificar a sua actuação que “não ficou provado que o autor soubesse que não “podia”, face à afirmação que se segue de que, “mas antes que o mesmo sabia que assim não “devia” proceder”.
Para nós, se o A. sabia que “não devia”, o mesmo sabia que “não podia”, sob pena de estar a violar as instruções de segurança estabelecidas na lei e, no caso, pela empregadora, como violou.
Em suma, face a tudo o que deixámos exposto e, a matéria de facto que resultou provada, podemos afirmar que o acidente de trabalho sofrido pelo A. se ficou a dever a omissão por parte deste, sem causa justificativa, das condições de segurança previstas na lei e exigidas pela sua empregadora. O sinistrado não respeitou e cumpriu as ordens e instruções do empregador respeitantes à execução ou disciplina do trabalho, bem como a segurança e saúde no trabalho na medida em que procedeu à lavagem do forno utilizando produtos químicos (dos quais constava a informação de Perigo e de provocar queimaduras na pele – cfr. factos 23 e 24) sem usar as botas de borracha que lhe foram entregues para esse efeito e transmitido pela Ré/empregadora, sabendo que não o devia fazer, por isso ocorrendo as queimaduras químicas de 3º grau que sofreu.
Provou-se, assim, também o nexo de causalidade entre a violação daquelas condições de segurança e o acidente, conforme ponto 16 da matéria de facto.
Sendo, sem dúvida, a conduta do A./sinistrado enquadrável no disposto, na segunda parte da alínea a), do nº 1, daquele art. 14º, da LAT, que como é sabido, não exige que tenha existido da parte do sinistrado/Autor qualquer conduta dolosa, para que se verifique o fundamento de descaracterização ali estabelecido. E, consequentemente, mostrando-se preenchida aquela situação, há que concluir que a seguradora não está obrigada a reparar os danos decorrentes do acidente dos autos.
A Ré/recorrente, contrariamente ao que se entendeu na sentença recorrida, logrou provar que o A. sofreu o acidente por não ter usado botas de protecção, que lhe foram entregues pela empregadora, para a execução de tarefas com utilização de produtos químicos, sendo a falta daquele causal da ocorrência do evento lesivo, ou seja, da queimadura referida. E, mais, provou aquela, que a empregadora, aquando da disponibilização daquelas, lhe transmitiu que não devia lavar o fogão utilizando aqueles produtos sem fazer uso daquelas botas. Donde só se pode concluir que existiam condições de segurança estabelecidas pela empregadora, que foram violadas pelo A., sem que o mesmo lograsse provar qualquer causa justificativa da sua omissão.
Em conclusão, o acidente sofrido pelo A. encontra-se descaracterizado, com a consequente desobrigação da recorrente o indemnizar pelos danos sofridos em consequência do mesmo e, desse modo, a decisão recorrida não pode manter-se.
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III - DECISÃO
Em conformidade, com o exposto, acordam os Juízes desta Secção em julgar, procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, pelo que se julga a acção improcedente e se absolve a Ré dos pedidos.

Custas pelo A./recorrido, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
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Porto, 17 de Maio de 2021
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O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos,
Rita Romeira
Teresa Sá Lopes
António Luís Carvalhão