Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5544/11.6TAVNG-P.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: CRIME DE BURLA TRIBUTÁRIA
REPARAÇÃO DO DANO
PAGAMENTO DA PRESTAÇÃO TRIBUTÁRIA
Nº do Documento: RP201604075544/11.6TAVNG-P.P1
Data do Acordão: 04/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Entre as normais do Código Penal e as do RGIT existe uma especialidade em função da matéria regulada e entre normas, que releva quer para o preenchimento dos tipos de ilícito quer para as causas de extinção do procedimento criminal.
II - O RGIT nos artºs 22 e 44º regulou de forma expressa, e substancialmente diversa da prevista no art.º 206º Código Penal, os efeitos do pagamento da prestação tributária e a respectiva relevância juridico-processual penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 5544/11.6TAVNG-P.P1
1ª secção

I – RELATÓRIO

Relatora: Eduarda Lobo
Adjunto: Des. Castela Rio

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Coletivo que corre termos na 3ª Secção Criminal – J1 da Instância Central de Vila Nova de Gaia. Comarca do Porto, com o nº 5544/11.6TAVNG, no decurso da audiência de julgamento, o Tribunal julgou extinto o procedimento criminal contra a arguida B… e consequente arquivamento dos autos nessa parte.
Inconformado, o Mº Público interpôs o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1 - O Ministério Público discorda da decisão que determinou a extinção do procedimento criminal contra a arguida B… e o consequente arquivamento dos autos por força da aplicação do disposto no artº 206º do Código Penal aos crimes de burla tributária, p. e p. pelos artºs. 87º nº 1 e 2 do Regime Geral das Infrações Tributárias, de que vinha acusada, por força da aplicação subsidiária àquele diploma legal avulso das disposições legais enunciadas no Código Penal, conforme artº 3º a) do RGIT;
2 - O Ministério Público defende que o disposto no artº 206º do Código Penal não é aplicável aos ilícitos criminais tipificados no Regime Geral das Infrações Tributárias porquanto sendo uma lei especial a mesma não contempla a possibilidade de aplicação do mencionado normativo, tipificado no Código Penal apenas para crimes contra o património e propriedade, e sem remissão da sua aplicação a crimes tipificados em legislação avulsa, ainda que de natureza análoga aos tipificados na legislação comum;
3 - A remissão realizada pelo artº 3º a) do RGIT contempla apenas uma remissão para as normas gerais do Código Penal passíveis de aplicação a qualquer ilícito criminal, ainda que tipificados em legislação avulsa, e não para normas específicas, como é o caso do artº 206º do Código Penal, aplicável a um núcleo restrito de ilícitos comuns;
4 - O bem jurídico protegido no crime de burla tributária à Segurança Social de que a arguida se encontra acusada, p. e p. pelo artº 87º do RGIT, não visa apenas a proteção do património do Estado, como parece ter sido o entendimento perfilhado no despacho recorrido, e, por isso, passível de ter um tratamento idêntico ao património e propriedade dos particulares afetados pelo ato criminoso, mas antes a proteção do erário público enquanto interesse da pessoa ou da comunidade na manutenção ou integridade de um certo Estado, a quebra da relação de confiança em que assenta a relação fiscal entre o beneficiário e o Estado, não se limitando o legislador a criminalizar o recebimento indevido de um benefício, para o qual a lei prevê a utilização dos cabais mecanismos em sede de execução fiscal, mas sobretudo o sancionamento criminal de comportamentos dolosos dos contribuintes que atentem contra a lealdade e cooperação para com o Estado;
5 - A reparação dos prejuízos causados pelos arguidos à Segurança Social pela sua atuação apenas poderia ter sido objeto de valoração no âmbito do regime consagrado pelos artºs. 22º e 44º do RGIT que prevêem expressamente a possibilidade de uma aplicação aos arguidos do instituto da dispensa de pena, ou porventura, a atenuação especial da mesma ou o arquivamento com dispensa de pena;
6 - Se fosse intenção do legislador permitir a extinção do procedimento criminal nos ilícitos de natureza fiscal tipificados no RGIT e, mormente no caso em apreço, da burla tributária, por força da aplicação do artº 206º do Código Penal, expressamente o teria feito consignar no corpo do artº 87º do RGIT acrescentando um novo número àquele normativo ou introduzindo no corpo daquele artº 206º do Código Penal um número que permitisse a sua aplicação subsidiária aos crimes nele tipificados em legislação avulsa de natureza análoga;
7 - A aplicação do disposto no artº 206º do Código Penal há-de resultar de factos que inequivocamente exprimam um sentimento espontâneo, livre e não pressionado ou determinado por condicionalismos exógenos e restituição ou de reparação, como sucedeu, no caso da arguida em que subjacente à aludida reparação esteve sobretudo procurar obter a regularização da sua carreira contributiva junto da Segurança Social em ordem a que no futuro continuasse a poder beneficiar do pagamento de prestações contributivas e não a expiação da sua culpa pela reparação do mal causado e reconhecimento do desvalor da sua ação;
8 - Ainda que porventura fosse passível de aplicação o disposto no art. 206º do Código Penal aos crimes de burla qualificada tributária de que a arguida se encontrava acusada, o que só por mera hipótese se pode considerar, sempre se nos afiguraria ser indispensável a realização quanto à mesma de julgamento pelos factos de que aquela se encontrava acusada porquanto sempre a atuação da mesma seria passível punição pelo eventual crime de falsificação de documento consubstanciado no envio de declarações de remunerações falsas ao Instituto de Segurança Social, do qual poderia vir a resultar, em sede de uma alteração da qualificação jurídica a operar nos termos do art. 358º do Código de Processo Penal, a condenação daquela, tal como previsto pelo artº 87º nº 4 do RGIT;
9 - Violaram pois os Mmos. Juízes as normas tipificadas nos artºs. 3º a); 22º; 44º e 87º nº 1, 2, 3 e 4 do RGIT; artº 206º do Código Penal e 358º do Código de Processo Penal ao interpretarem as mencionadas normas no sentido de que a reparação dos prejuízos causados à Segurança Social pelo arguido conduziria, por força da aplicação subsidiária das normas do Código Penal enunciadas no artº 3º a) do RGIT e do disposto no artº 206º do Código Penal, à extinção do procedimento criminal pelo crime de burla tributária de que a arguida vinha acusada, nos termos do artº 87º nº 1, 2 e 3 do RGIT e, consequentemente, não daria lugar à aplicação, no caso em apreço, do disposto no artº 22º do RGIT, mas de imediato à extinção do procedimento criminal contra a mesma, sem a possibilidade daquela ser julgada com eventual alteração da qualificação jurídica do ilícito de que vinha acusada, nos termos do artº 358º do CPP;
10 - O sentido com que os Mmos. Juízes interpretaram aqueles normativos no entender do Ministério Público contraria a vontade do legislador sendo que a única interpretação que se nos afigura consentânea com o texto daquelas normas a de que a aplicação subsidiária das normas enunciadas no Código Penal e Processual Penal, a que alude o artº 3º a) do RGIT, refere-se apenas e tão só às normas gerais enunciadas naqueles normativos, aplicáveis a todos os crimes quer tipificados em legislação avulsa quer crimes comuns, e, por isso, não seria passível a aplicação do disposto no artº 206º do Código Penal ao crime de burla tributária de que a arguida vinha acusada, tipificados no artº 87º do RGIT, por se tratar de uma norma aplicável apenas aos crimes nela enunciados e aos crimes onde a mesma se encontra expressamente prevista, sem a possibilidade da sua remissão para os crimes de natureza fiscal tipificados no RGIT, que pela natureza do seu bem jurídico não permitem a aplicação daquele normativo com a consequente extinção do procedimento criminal, mas apenas e tão só, havendo lugar a uma reparação do prejuízo, a possibilidade de aplicação do instituto da dispensa de pena ou de atenuação especial da pena ou do arquivamento por dispensa de pena, conforme previsto nos artºs. 22º e 44º do RGIT;
11 - A decisão proferida no sentido da extinção da responsabilidade criminal da arguida violou ainda o disposto no artº 358º do CPP ao considerar que estando os factos pelos quais a arguida vinha acusada apenas tipificados no crime de burla tributária não poderiam os Mmos. Juízes conhecer dos factos que lhes eram imputados em sede de audiência de julgamento, o que, a nosso ver, contraria o disposto no artº 358º do CPP, considerando que sempre teriam os Mmos. Juízes que, em face dos factos imputados, procederem à realização da audiência de julgamento e dando-se como provados os factos ali descritos, imputados à arguida, procederem à eventual alteração da qualificação jurídica para um crime de menor gravidade, como seria o de falsificação de documento, por força do disposto no artº 358º do CPP e artº 87º nº 4 do RGIT;
12 - Importa ainda mencionar que, nos termos e para os efeitos do disposto no artº 412º nº 5 do CPP, que foram já interpostos anteriormente recursos por idêntica decisão proferida nos autos declarando extinto o procedimento criminal nos mesmos moldes em relação aos arguidos C…, D…, E…, F…, G…, H…, I…, J…, K…, L…, M…, N… e O… recursos estes que foram retidos e em relação aos quais o Ministério Público continua a ter interesse na sua apreciação, sendo que em relação ao modo de subida desses recursos foi já interposta reclamação.
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Na 1ª instância a arguida B… respondeu às motivações de recurso, concluindo que o mesmo não merece provimento.
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer suscitando a questão prévia da pendência de outros recursos nesta Relação, igualmente interpostos pelo Mº Público e em que são iguais os respetivos fundamentos, pelo que, em sua opinião, deveriam ser juntos ao recurso que entrou em primeiro lugar.
Quanto ao mérito do recurso, o Sr. PGA pronuncia-se no sentido da sua procedência e da substituição do despacho recorrido por outro que determine o prosseguimento do processo com vista ao julgamento da arguida B….
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO:
O despacho sob recurso é do seguinte teor: [transcrição]
«Face à posição de concordância hoje assumida pela Assistente Instituto de Segurança Social e ao disposto nos artº. 206º, 217º e 218º do C.Penal, aplicáveis ao caso, no entender do Tribunal, por força do disposto no artº 3º al. a) do RGIT, verificando-se a reparação integral dos prejuízos causados, e a concordância da ofendida Instituto de Segurança Social, o Tribunal Coletivo delibera declarar extinta a responsabilidade criminal da arguida, B… (23), pela prática do crime de burla tributária de que vinha pronunciada.
Sem custas por não serem devidas.
Notifique.»
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
Das conclusões de recurso resulta que o recorrente delimita o respetivo objeto à questão de saber se o artº 206º do Cód. Penal é aplicável ao caso em apreço, em que à arguida foi imputada a prática de um crime de burla tributária p. e p. no artº 87º nºs 1 e 2 do RGIT.
Como resulta dos autos, em 23.11.2015 a arguida B… juntou aos autos documento comprovativo de que nada deve à Segurança Social, requerendo a extinção do procedimento criminal [cfr. fls. 20772].
Na sessão da audiência de julgamento de 24.11.2015 o assistente Instituto da Segurança Social, IP. confirmou o pagamento constante dos documentos juntos pela arguida, concordando com a extinção do procedimento criminal relativamente à mesma.
Sustenta o Mº Público recorrente que o disposto no artº 206º do Cód. Penal não é aplicável aos ilícitos criminais tipificados no RGIT pois que, sendo uma lei especial, não contempla a possibilidade de aplicação do mencionado normativo, tipificado no Código Penal apenas para crimes contra o património e propriedade, e sem remissão da sua aplicação a crimes tipificados em legislação avulsa, ainda que de natureza análoga aos tipificados na legislação comum.
Vejamos:
Sob a epígrafe “restituição ou reparação” dispõe o artº 206º do Cód. Penal:
1. Nos casos previstos nas alíneas a), b) e e) do nº 1 e na alínea a) do nº 2 do artº 204º e no nº 4 do artº 205º, extingue-se a responsabilidade criminal, mediante a concordância do ofendido e do arguido, sem dano ilegítimo de terceiro, até à publicação da sentença da 1ª instância, desde que tenha havido restituição da coisa furtada ou ilegitimamente apropriada ou reparação integral dos prejuízos causados.
O disposto neste preceito é ainda aplicável aos seguintes crimes:
- crime de apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada (artº 209º nº 3);
- crime de dano (artº 212º nº 4);
- crime de dano qualificado em função do valor (artº 213º nº 4);
- crime de alteração de marcos (artº 216º nº 3);
- crime de burla (artº 217º nº 4);
- crime de burla qualificada em função do valor ou do aproveitamento da especial vulnerabilidade da vítima (artº 218º nº 4);
- crime de burla relativa a seguros (artº 219º nº 5);
- crime de burla para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços (artº 220º nº 3)
- crime de burla informática e nas comunicações (artº 221º nº 6);
- crime de abuso de cartão de garantia ou de crédito (artº 225º nºs. 4 e 6);
- crime de recetação (artº 231º nº 3 al. a).
Não obstante a ausência de remissão expressa dos crimes tributários para o artº 206º do Cód. Penal, o tribunal a quo entendeu, no despacho sob recurso, que aquela disposição legal era aplicável ao caso, por força do disposto no artº 3º al. a) do RGIT.
Dispõe este preceito que são aplicáveis subsidiariamente, quanto aos crimes e seu processamento, as disposições do Código Penal, do Código de Processo Penal e respetiva legislação complementar.
A questão que se coloca consiste, assim, em saber se o RGIT regula de forma exaustiva e suficiente a matéria relativa à relevância e consequências jurídico-penais do pagamento integral do prejuízo causado [ou da reposição da verdade tributária] ou se, pelo contrário, contém uma lacuna a esse respeito, que deverá ser preenchida por recurso ao direito penal comum, em conformidade com a previsão do artº 3º al. a) do RGIT.
Como salienta o Prof. Germano Marques da Silva[3] é o próprio diploma (RGIT) que afirma expressamente o princípio da especialidade das normas sobre infrações tributárias, ao estabelecer no artº 10º que “aos responsáveis pelas infrações previstas nesta lei são somente aplicáveis as sanções cominadas nas respetivas normas, desde que não tenham sido efetivamente cometidas infrações de outra natureza".
Tem também a doutrina entendido que existe uma relação de especialidade num duplo sentido: "Por um lado, existe uma especialidade em função da matéria regulada, que no caso concreto se traduz na regulação de uma zona específica do ordenamento fiscal que leva à autonomização de um ramo de Direito "o Direito Penal Fiscal”. Por outro, existe uma relação de especialidade entre normas ... em que uma delas (a norma especial) contém os elementos da outra (norma geral) mas, para além dessa zona comum, se identificam elementos específicos que apenas existem na norma considerada especial... que acrescentam uma individualidade própria à norma especial..."[4].
Ora, esta relação de especialidade releva quer para o preenchimento dos tipos de ilícito, quer para as causas de extinção do procedimento criminal.
Entendemos, por isso, que tal como defendido pelo recorrente, a circunstância de a lei especial não aludir à extinção do procedimento criminal, quando o agente procede à reparação integral dos prejuízos, até à publicação da sentença em 1ª instância, não constitui uma lacuna a preencher por aplicação subsidiária do Código Penal (art.º 3.º do RGIT), mas antes uma derrogação da lei geral (lex speciallis derogat legi generali).
Com efeito, o RGIT regulou nos artºs. 22º e 44º, de forma expressa, os efeitos do pagamento da prestação tributária e a respetiva relevância jurídico-processual-penal. E regulou de forma substancialmente diversa da prevista no direito penal comum ou direito penal de justiça.
O artº 22º nº 1 dispõe que a pena pode ser dispensada se o agente proceder ao pagamento da prestação tributária e demais acréscimos legais, e à restituição dos benefícios injustificadamente obtidos, desde que verificadas as demais condições exigidas por lei, isto é, desde que o crime seja punível com pena de prisão igual ou inferior a dois anos[5], a ilicitude do facto e a culpa do agente não forem muito graves e à dispensa da pena se não opuserem razões de prevenção.
No nº 2 do mesmo preceito atribui-se ao juiz um poder vinculado de atenuação especial da pena se o agente repuser a verdade fiscal e pagar a prestação tributária e demais acréscimos legais até à decisão final ou no prazo nela fixado.
Por outro lado, nos termos do artº 44º pode o processo ser arquivado pelo Ministério Público na fase de inquérito [se o processo for por crime relativamente ao qual se encontre expressamente prevista na lei a possibilidade de dispensa de pena, ouvida a administração tributária ou da segurança social, obtida a concordância do juiz, se se verificarem os pressupostos da dispensa], ou pelo Juiz na fase de instrução [se a acusação tiver sido deduzida, ouvida a administração tributária ou da segurança social, obtida a concordância do Mº Público e do arguido, se se verificarem os pressupostos da dispensa].
Enquanto que no direito penal comum, relativamente aos ilícitos especialmente previstos, aos quais é aplicável o disposto no artº 206º do C.Penal, desde que haja restituição da coisa ou reparação integral dos prejuízos causados sem dano ilegítimo de terceiro até à publicação da sentença em 1ª instância, e a concordância do ofendido e do arguido, a extinção da responsabilidade criminal ocorre ope legis, no direito penal tributário o legislador apenas previu a possibilidade de arquivamento com dispensa de pena (na fase de inquérito ou de instrução), e a atenuação especial da pena (na fase de julgamento) se, para além dos demais requisitos legais, na respetiva fase processual, o agente efetuar o pagamento da prestação tributária e legais acréscimos ou tiver restituído os benefícios injustificadamente obtidos.
Para além da dispensa e atenuação especial da pena previstas com carácter geral, havia ainda um outro mecanismo apto a favorecer o ressarcimento do dano derivado do crime, de aplicação exclusiva ao “abuso de confiança, fiscal e da segurança social” e que constava do nº 6 do artº 105º do RGIT. Este preceito, entretanto revogado pela Lei nº 64-A/2008 de 31.12, previa a extinção da responsabilidade criminal por efeito do pagamento da prestação omitida, juros respetivos e valor mínimo da coima aplicável à contra-ordenação de falta de entrega da prestação tributária, no prazo de trinta dias após notificação para o efeito pela administração tributária, desde que o valor da prestação em falta não excedesse os € 2.000,00.
Com a revogação do nº 6 do artº 105º do RGIT, não existe hoje nenhuma disposição na lei penal tributária que determine a extinção do procedimento criminal como mecanismo premial apto a favorecer o ressarcimento do dano resultante de infrações tributárias.
O regime previsto no direito penal tributário, em caso de reposição da verdade tributária e de pagamento da prestação tributária e demais acréscimos, só aparentemente é mais benéfico que o estabelecido no Código Penal.
Com efeito, enquanto no direito penal comum a dispensa de pena só é possível quando o crime for punível com pena de prisão não superior a seis meses, no direito penal tributário a dispensa é permitida relativamente a crimes puníveis com pena de prisão até dois anos. Por outro lado, enquanto no artº 74º do Cód. Penal, a ilicitude do facto e a culpa do agente devem ser diminutas, no direito tributário basta que a ilicitude do facto e a culpa do agente não sejam muito graves.
Mas essa diversidade de regimes é, como dissemos, só aparentemente mais benéfico ao agente. Na verdade, o regime previsto no RGIT acaba por ser mais exigente do que o previsto no Código Penal.
Como se extrai das considerações acima referidas, em caso de reparação integral do prejuízo, o Código Penal apenas exige o acordo entre ofendido e arguido para a extinção da responsabilidade criminal, independentemente até da moldura abstrata da pena, desde que respeite a um dos ilícitos acima aludidos. Enquanto que o RGIT só admite o arquivamento do processo desde que se verifiquem os pressupostos da dispensa de pena previstos no artº 22º, entre os quais se realçam a medida da pena igual ou inferior a dois anos, a ponderação da ilicitude do facto e da culpa do agente, bem como das razões de prevenção.
Como realça Germano Marques da Silva[6] “se o pagamento (da prestação tributária) constituísse condição automática de dispensa da pena ou extinção da responsabilidade constituiria um modelo perverso, impondo as agruras do direito penal apenas àqueles que não podem suportar o ónus da dívida tributária. Para os senhores do crime haveria sempre o perdão ao alcance do talão de cheques. Isso seria uma invasão do direito penal pelo direito tributário, usando promiscuamente o direito penal ao serviço do direito tributário, mostrando que a conduta do agente só é reprovável socialmente até ao momento do pagamento do crédito tributário”.
No seguimento do já decidido em acórdão desta mesma secção no Recurso nº 5544/11.6TAVNG-L.P1 proferido pela Srª. Desembargadora Élia São Pedro e publicitado em 16.03.2016, “A diferença de regimes e sua razão de ser são suficientemente reveladores de que não estamos perante uma qualquer lacuna de regulamentação do RGIT (a preencher pela aplicação subsidiária do Código Penal), mas sim perante uma regulamentação expressa, diferente e enquanto tal justificada.
Existem assim razões para se concluir que o legislador quis regular exaustivamente no RGIT os efeitos decorrentes do pagamento da dívida tributária ou da restituição do benefício ilegitimamente obtido, uma vez que (i) regulou expressamente a relevância de tal comportamento em todas as fases do procedimento (inquérito, instrução até ao julgamento, decisão final ou prazo nela fixado); (ii) fez essa regulamentação de modo diverso do previsto no Código Penal (iii) a justificação dessas diferenças adequa-se à natureza pública do bem jurídico protegido pela incriminação e pelas especiais razões de prevenção”.
A decisão recorrida violou assim a opção do legislador contida no art. 22.º do RGIT, criando para os crimes de burla tributária uma causa extintiva do procedimento criminal com requisitos menos exigentes do que aqueles que o legislador impôs para a atenuação ou dispensa de pena, o que, para além do mais já exposto, se traduz em solução manifestamente ilegal, impondo-se por isso a sua revogação.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogam a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos relativamente à arguida B….
Sem tributação.
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Porto, 07 de Abril de 2016
(Elaborado pela relatora e revisto pelos signatários)
Eduarda Lobo
Castela Rio
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] In Direito Penal Tributário, Sobre as responsabilidades das sociedades e dos seus administradores conexas com o crime tributário, Universidade Católica Editora, 2009, pág. 44.
[4] Cfr. Teresa Beleza, citada no AFJ nº 3/2003, publicado no DR. I S-A, nº 157, de 10.07.2003.
[5] Alteração introduzida pela Lei nº83-C/2013, de 31.12, sendo que anteriormente correspondia a prisão igual ou inferior a três anos.
[6] Ob. cit., pág. 129.