Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2320/14.8JAPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MOTA RIBEIRO
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
VÍTIMA
ANOMALIA PSÍQUICA
CAPACIDADE DE TESTEMUNHAR
Nº do Documento: RP201705242320/14.8JAPRT-A.P1
Data do Acordão: 05/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 718, FLS.346-349)
Área Temática: .
Sumário: Deve ser permitida a tomada de declarações para memória futura à ofendida que padeça de anomalia psíquica e por tal seja interditada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2320/14.8JAPRT-A.P1 – 4.ª Secção
Relator: Francisco Mota Ribeiro
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
1. RELATÓRIO
1.1 Por despacho de 13/09/2016, foi indeferido o requerimento apresentado pelo Ministério Público, no qual havia sido solicitada a tomada de declarações para memória futura da ofendida B…, com fundamento no facto de tal testemunha ter sido declarada interdita e resultar de um relatório pericial junto aos autos a sua incapacidade para testemunhar.
1.2. De tal decisão interpôs recurso o Ministério Público, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões:
“a) O Mmo. Juiz a quo considerou na sua douta decisão de 13/09/2016 indeferir o requerimento formulado pelo Ministério Público que pretendia fossem tomadas declarações para memória futura à interdita por anomalia psíquica B…, estribando-se no carácter literal do disposto no art.º 131º do Código de Processo Penal, que dispõe que qualquer pessoa que se não encontrar interdita por anomalia psíquica tem capacidade de testemunhar;
b) O Ministério Público discorda de tal decisão, porquanto a mesma é ilegal e viola, entre outros, os art.ºs 67º-A, nº1, b), 271º, nº1, do Código de Processo Penal, art.º 26º e ss. da Lei nº 93/99, de 14/07 (Lei da Proteção de Testemunhas), mormente no seu art.º 28º, e ainda nos termos dos art,ºs 28º, 21º, nº2, c) e d) da Lei nº 130/2015 (Estatuto de Vítima), e os art.ºs 13.º, n.º 1, e 20.º, n.º 4, 32º, nº5, da Constituição da República Portuguesa, pelo que requer a sua revogação a sua substituição por um outro que acolha a pretensão do Ministério Público de tomada de declarações à vitima, nos termos promovidos a fls. 225-226;
c) Com efeito, a circunstância da vítima de um crime que sofra de anomalia psíquica ter sido objeto de uma medida judicial de interdição, que tem por finalidade a sua proteção, não pode servir como fundamento para lhe retirar direitos de intervenção no processo criminal;
d) A entender-se o contrário estar-se-ia a limitar o acesso ao direito, a limitar a tutela jurisdicional e a punir que, de certa forma, já assumiu, para além da restrição que comporta uma interdição, a proibição de testemunhar sobre um crime tão hediondo que sofreu, e se encontrar em condições de querer e de depor sobre o mesmo;
e) Ora, num processo de estrutura acusatória, o poder judicial está, sob pena de perder a sua imparcialidade e de «agir em causa própria», vinculado pelo pedido do MP/assistente;
f) Por conseguinte, deve o presente recurso merecer provimento, e, em consequência, deverá a decisão recorrida ser declarada nula, revogada e substituída por outra que ordena a tomada de declarações para memória futura, tal qual requerido pelo Ministério Público.”
1.3. O recurso foi admitido pelo despacho de 25/01/2017, de fls. 134.
1.4. Notificado o arguido, nos termos e para os efeitos do art.º 413º, nº 1, do CPP, pelo mesmo não foi deduzida qualquer resposta;
1.5. O Sr. Procurador-Geral-Adjunto, neste Tribunal, emitiu o parecer de fls. 156 a 158, no qual se pronunciou pela procedência do recurso.
1.6. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
1.7. Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pelo Ministério Público, a questão a resolver consiste fundamentalmente em saber se a decisão recorrida, dando aplicação ao disposto no art.º 131º, nº 1, do CPP, violou os art.ºs 13º, nº 1, e 20º, nºs 1 e 4, da Constituição da República, na medida em que interpretou aquela primeira disposição normativa no sentido de nela estar abrangida a incapacidade para testemunhar de pessoa que, tendo no processo a condição de vítima ou ofendida de um crime, está interdita por anomalia psíquica.
2. FUNDAMENTAÇÃO
Pretende o Ministério Público a revogação da decisão recorrida e que a mesma seja substituída por outra que ordene a tomada de declarações para memória futura, por entender que tal decisão deveria ter afastado a aplicação do disposto no art.º 131º, nº 1, do CPP, por inconstitucionalidade, e dado a interpretação de tal norma, seguida pelo Tribunal a quo, violar os art.ºs 13º, nº 1, e 20º, nºs 1, e 4, 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, ao ter como consequência a não admissão da prestação de depoimento testemunhal da vítima ou ofendida de um crime, que se encontre interdita por anomalia psíquica.
Sobre esta questão, embora aí estivessem em causa a obtenção de declarações de uma vítima ou ofendida que havia assumido no processo a qualidade de assistente, já se pronunciou o Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 23/11/2010[1], do qual foi tirado o seguinte sumário:
“(...)
O assistente que seja interdito por anomalia psíquica com capacidade intelectual e emocional para prestar declarações, tem o direito de vir a julgamento e narrar o que sofreu e como sofreu. Obviamente que tais declarações serão apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, concorrendo com todos os outros meios de prova, como determina o art. 127º, do CPP. O que não pode suceder é que esta vítima, só por se encontrar interdita, esteja impedida de trazer a julgamento a sua versão dos factos.
III – O art. 131º do Código de Processo Penal quando interpretado no sentido de declarar incapaz para testemunhar ou prestar declarações uma pessoa que tenha num processo a condição de vítima ou ofendido de um crime se essa pessoa estiver interdita por anomalia psíquica, é inconstitucional, por violação dos arts. 1º e 13º e 20º, nºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa.”
Tal juízo de inconstitucionalidade veio a ser confirmado mais tarde pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 359/2011, de 12 de julho de 2011[2], no qual se invocaram, entre outros, os seguintes fundamentos:
“Segundo a norma sob fiscalização, as pessoas que tenham sido interditas por sentença judicial estão absolutamente impedidas de prestar declarações, na qualidade de ofendidos constituídos assistentes, em audiência de julgamento em processo penal, relatando a sua versão sobre o modo como ocorreram os factos que integram o objeto do processo, sujeita à livre apreciação do julgador.
Cria-se, assim, um estereótipo associado ao interdito por anomalia psíquica, fazendo decorrer da sua situação uma espécie de presunção inilidível de incapacidade para relatar os factos de que tenha sido vítima.
Esta proibição traduz-se num tratamento desigual, não só relativamente aos cidadãos que não sofrem de qualquer anomalia psíquica, mas também, em comparação com aqueles que, sofrendo dessa deficiência, não se encontram interditos, por sentença judicial, os quais, na qualidade de ofendidos que se constituíram assistentes em processo penal, têm direito a relatar a sua versão dos factos em julgamento, sujeita à livre valora­ção do julgador.
E esta diferença de tratamento não resulta duma incapacidade efetiva dos interditos prestarem depoimento.
Como acima se explicou, a declaração de interdição pressupõe apenas uma constatação judicial da incapacidade do interdito governar a sua pessoa e os seus bens, devido a uma anomalia psíquica, reportando-se esse juízo sobretudo a uma incapacidade daquele atuar com autonomia no mundo dos negócios jurídicos.
Ora, a (in)capacidade para relatar determinada realidade com a qual se contactou, não só é frequentemente casuística, dependendo de múltiplos fatores como a sua complexidade, o tipo e as circunstâncias do contacto ou o tempo entretanto decorrido, sendo, no mínimo, problemática a emissão de um juízo genérico de incapacidade para testemunhar, como, sobretudo, o juízo que presidiu à prolação de uma sentença de interdição é inaproveitável para se determinar a aptidão do interdito para prestar um depoimento credível em processo penal.
Estamos perante um domínio das capacidades humanas que não assume qualquer relevância nos pressupostos da declaração de interdição, pelo que esta pouco ou nada revelará sobre a capacidade do interdito depor em tribunal.
(...)
O simples benefício da maior certeza sobre qual o universo de pessoas consideradas incapazes de prestarem declarações em processo penal, devido a sofrerem de anomalia psíquica, que pode ser invocado em favor desta solução, revela-se manifestamente desproporcionado como justificação para a adoção pelo legislador ordinário de um critério que discrimina os deficientes, por anomalia psíquica, interditos, dos demais cidadãos, incluindo as pessoas que sofrendo também de anomalia psíquica não se encontrem interditos.
As razões para as discriminações admissíveis neste domínio devem residir numa incapacidade efetiva para o exercício concreto dos direitos em causa, e não numa incapacidade ficcionada a partir de um julgamento que apura da capacidade geral da pessoa para reger a sua pessoa e os seus bens, com a finalidade de facilitar uma definição de quem tem capacidade para depor. Daí que tratar toda e qualquer pessoa que esteja interdita por anomalia psíquica como sendo inábil para depor em audiência de julgamento seja descriminá-la, sem fundamento bastante, dos demais cidadãos, pelo que esse tratamento viola o princípio constitucional da igualdade.”
E mais adiante refere-se ainda no mesmo Acórdão:
“Assim, a circunstância da vítima de um crime que sofra de anomalia psíquica ter sido objeto de uma medida judicial de interdição, que tem por finalidade a sua proteção, não pode servir como fundamento para lhe retirar direitos de intervenção no processo criminal. Seria acentuar a desproteção da vítima, que já se encontra numa situação de especial vulnerabilidade pela sua deficiência, paradoxalmente justificada por esta ter sido colocada, por decisão judicial, sob um determinado regime destinado a assegurar a sua proteção.
Daí que a limitação probatória resultante da norma sindicada se revele desproporcionada, sacrificando injustificadamente o direito à prova e o direito a um processo orientado para a justiça material.
Por esse motivo, se entende que a norma sindicada além de infringir o princípio da igualdade, na vertente da proibição de descriminação, também viola o direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, devendo, por isso ser julgado improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público.”
Ao contrário do entendimento perfilhado na decisão recorrida, não vemos maneira de afastar do caso dos autos a aplicação da doutrina judiciosamente sustentada para o caso tratado nos citados acórdãos, e já que em ambos os casos se suscita a mesma problemática da aplicação discriminatória do art.º 131º do CPP às vítimas em relação às quais haja sido decretada a interdição por anomalia psíquica, relativamente às outras que, pese embora também possam sofrer de uma tal anomalia ou incapacidade, ficariam já fora do âmbito da aplicação daquela mesma norma, sendo que tanto umas como outras veriam sacrificados injustificadamente o seu direito à prova e a um processo equitativo, um processo orientado para uma justiça material e não meramente formal.
É certo que na decisão recorrida se veio ainda invocar o resultado de um relatório pericial junto aos autos, no qual ficou expressa a conclusão de que a ofendida padece de limitações cognitivas e de grande “sugestionabilidade”, que a tornam incapaz de testemunhar e de se autodeterminar sexualmente perante as circunstâncias. Tal juízo pericial baseou-se nos factos que são descritos no mesmo relatório, e no qual é deixada a seguinte nota: “estas informações carecem de confirmação, uma vez que a examinada não tem capacidade de fazer a sua narrativa de vida e a acompanhante não conhece os pormenores da sua história biográfica”. E de seguida, no tocante ao “exame do estado mental”, diz-se no mesmo relatório que “à observação a examinada é obesa, mede 136 cm, tem perturbação da linguagem com voz muito nasalada de difícil compreensão. Está completamente desorientada no tempo, espaço e na situação, sem qualquer capacidade de entendimento do sentido desta avaliação.” Mas logo a seguir afirma-se: “Responde apenas a algumas questões simples e concretas. Tendo em conta a sua idade, o seu comportamento é regredido e infantil.” E ainda: “sofre de debilidade mental congénita de expressão moderada a grave”.
O que intriga em tal relatório, é a afirmação categórica nele contida, com uma dimensão que assume já um caráter estritamente jurídico, ou pelo menos mais jurídico do que médico-psiquiátrico, de que a pessoa visada, vítima de um crime grave, está incapacitada para testemunhar, ou seja para exercer uma função de caráter jurídico-processual, consistente em relatar factos de que possua conhecimento direto e que constituam objeto de prova, nos termos do art.º 128º, nº 1, do CPP, e quaisquer factos. O que nos leva a perguntar: terá sido isso, com essa amplitude, o que se quis dizer na conclusão tecida no relatório pericial citado, e que a decisão recorrida também invoca? Isto é, mesmo em relação a factos que, segundo o mesmo relatório, constituam “resposta a questões simples e concretas”, em relação às quais já a ofendida parece poder ser capaz de responder.
Aliás, segundo o mesmo relatório, a incapacidade da ofendida e vítima nos autos situa-se “globalmente num quadro de debilidade intelectual moderada a grave.” E como bem se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional, supra citado, o juízo sobre a incapacidade ou não de alguém para testemunhar depende de várias circunstâncias, concretamente conjugáveis, de molde a poder determinar-se, judicialmente, e de forma casuística, se um certo depoimento tem ou não credibilidade. Sendo para tal exclusivamente competente o tribunal, porquanto se trata de uma decisão de caráter jurisdicional que só a este incumbe, desde logo por força do disposto no art.º 202º nºs 1 e 2, da CRP. Ou melhor, citando novamente, com a devida vénia, tal Acórdão: Ora, a (in)capacidade para relatar determinada realidade com a qual se con­tactou, não só é frequentemente casuística, dependendo de múltiplos fatores como a sua complexidade, o tipo e as circunstâncias do contacto ou o tempo entretanto decorrido, sendo, no mínimo, problemática a emissão de um juízo genérico de incapacidade para testemunhar, como, sobretudo, o juízo que presidiu à prolação de uma sentença de interdição é inaproveitável para se determinar a aptidão do interdito para prestar um depoimento credível em processo penal.
Foi esta avaliação casuística que a decisão recorrida impediu que pudesse vir a ser feita nos autos, violando não só os direitos fundamentais da vítima, nos termos já supra referidos, mas também o dever que incumbe aos Tribunais de realização da justiça material.
Razão por que, e sem necessidade de mais considerações, deve ser revogada a decisão recorrida, concedendo-se assim provimento ao recurso.
3. DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação do Porto em:
a) Julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, devendo a mesma ser substituída por outra que, verificados que sejam os demais pressupostos legais, se determine a tomada de declarações para memória futura à vítima do crime objeto de investigação nos presentes autos, nos termos requeridos pelo Ministério Público.
Sem custas.
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Porto, 24 de maio de 2017
Francisco Mota Ribeiro
Borges Martins
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[1] Pº 5221/06.0TACSC.L1-5, in http://www.dgsi.pt/jtrl
[2] In http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos