Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2020/13.6TAPVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DONAS BOTTO
Descritores: CRIME
FALSO TESTEMUNHO
ASSISTENTE
BURLA PROCESSUAL
Nº do Documento: RP201701112020/13.6TAPVZ.P1
Data do Acordão: 01/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS N.º2/2017, FLS.124-132)
Área Temática: .
Sumário: I - No artº 360º CP é protegido não apenas um interesse de ordem publica mas também pode ser imediatamente protegido um interesse susceptivel de ser corporizado num concreto interesse individual, pelo que é admissível a constituição de assistente.
II - O crime de burla, integra no seu conceito a chamada “burla processual”, como forma de cometimento de tal ilícito, sujeita aos mesmos requisitos do crime de burla.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc.nº 2020/13.6TAPVZ.P1

Acordam em Conferência no Tribunal da Relação do Porto

Relatório

Nos presentes autos, o MP determinou o arquivamento dos mesmos, por inexistência de indícios suficientes da prática pelos arguidos dos denunciados crimes de falsidade de testemunho, falsificação de documento e burla qualificada.
Veio então B… requerer a abertura de instrução, mas que também não foi admitida.
Por isso, o B…, inconformado, interpôs recurso para esta Relação, pretendendo que seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra que o admita como assistente em relação aos crimes de falso depoimento e burla, declarando-se, consequentemente, a abertura da instrução.
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É do seguinte teor a decisão recorrida:

Registe e autue como instrução.
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O assistente B…, notificado do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público findo o inquérito, veio requerer a abertura de instrução com vista à pronúncia de:
I – C… pela prática de:
- Três crimes de burla qualificada na forma tentada p. e p. pelos art. 22º, 23º, 217º, nº 1 e 2 e 218º, nº 1 e nº 2, al. a) do Código Penal;
- Um crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º, nº 1 e nº 3 e 258º do Código Penal, em co-autoria com a arguida D…;
- Um crime de falsidade de testemunho p. e p. pelos art. 360º, nº 1 e 3 e 361º, nº 1, al. a) do Código Penal;
II – E… e D… pela prática cada uma delas de:
- Dois crimes de burla qualificada na forma tentada p. e p. pelos art. 22º, 23º, 217º, nº 1 e 2 e 218º, nº 1 e nº 2, al. a) do Código Penal;
- Dois crimes de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º, nº 1 e nº 3 e 258º do Código Penal (cf. fls. 756 e art. 58º do RAI);
- Dois crimes de falsidade de testemunho p. e p. pelos art. 360º, nº 1 e 3 e 361º, nº 1, al. a) do Código Penal;
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O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da hierarquia, do território e da matéria e o requerimento formulado está em tempo (art. 287º, nº 1 do Código de Processo Penal).
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Da admissibilidade legal da instrução:
I - Quanto aos crimes de falsificação de documento:
Como resulta dos autos o assistente veio requerer a abertura da instrução, entre o mais, com vista à pronúncia dos arguidos pela prática do crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º, nº 1 e nº 3 e 258º do Código Penal.
Dos factos alegados no requerimento de abertura da instrução – cf. art. 27º a 58º - resulta que o assistente imputa aos arguidos terem forjado documentos contabilísticos da sociedade F… Lda. referentes aos anos de 1998, 1999 e 2000, designadamente, documentos intitulados “entradas de caixa” e o relatório de gestão relativo ao exercício de 1998, que foram redigidos conjuntamente pelas duas arguidas e assinados pelo arguido C…, sem que tivessem qualquer correspondência com a real contabilidade da empresa, para assim justificarem a existência de falsos suprimentos a favor do arguido C… entrados na contabilidade naqueles anos de 1998 a 2000.
Mais alega que tais documentos foram forjados para instruir, como instruíram, a acção ordinária nº 79/08.7TYVNG que correu termos pelo 3º Juízo do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia, instaurada pelo arguido C… contra a sociedade “F…, Lda.”, em 4 de Fevereiro de 2008, com vista à condenação desta a pagar-lhe €1.610.000,00 a título de suprimentos.
E bem assim que, na sequência da sentença ali proferida, o arguido instaurou acção executiva para pagamento dessa quantia.
Dos factos alegados pelo requerente da instrução resulta portanto que, caso tenham sido forjados e usados tais documentos, foram-no a 4 de Fevereiro de 2008, data em que foi instaurada a acção ordinária acima referida, ou em data anterior.
O art. 256º do Código Penal pune a falsificação de documento com pena de prisão até três anos ou com pena de multa, no seu nº 1.
Mas, de acordo com o seu nº 3 “se os factos referidos no n.º 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267.º, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias”.
A pena será, portanto, agravada se os factos disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267º.
No caso não foi alegado pelo assistente no requerimento de abertura da instrução que esteja em causa testamento cerrado, vale do correio, letra de câmbio, cheque ou outro documento comercial transmissível por endosso ou qualquer outro título de crédito. Assim, considerando os factos alegados, verificamos que a conduta dos arguidos apenas poderia cair na previsão daquele nº 3 se se indiciasse que forjaram documento autêntico ou com igual força.
Documentos autênticos são documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividade que lhe é atribuído, pelo notário ou por outro oficial público provido de fé pública; todos os outros documentos são particulares – art. 363º, nº 2 do Código Civil. Um documento só é autêntico quando a autoridade ou o oficial público que o exara foi competente, em razão da matéria e do lugar, e não estiver legalmente impedido de o lavrar – art. 369º, nº 1 do Código Civil.
Documentos com igual força dos documentos autênticos são os documentos autenticados, ou seja, documentos particulares autenticados nos termos da lei notarial – art. 377º do Código Civil.
Ora, os elementos contabilísticos enunciados pelo requerente da instrução como tendo sido forjados pelos arguidos não são nem documento autêntico nem com igual força probatória, são antes meros documentos particulares e, como tal, a conduta descrita no requerimento de abertura da instrução nunca seria susceptível de integrar a previsão do nº 3 do art. 256º do Código Penal.
A ser assim apuramos que os crimes de falsificação de documento denunciados, caso tivessem sido praticados, o foram no dia 4 de Fevereiro de 2008 ou em data anterior.
Tendo presente que o crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º, nº 1 do Código Penal é punido com pena de prisão até 3 anos, verificamos que o seu prazo de prescrição é, nos termos do disposto pelo art. 118º, nº 1, al. c) do Código Penal, de cinco anos contados desde a data da sua prática, o que significa que o procedimento criminal relativamente aos denunciados crimes de falsificação de documento prescreveu, senão antes, a 4 de Fevereiro de 2013, ou seja em data anterior à instauração do presente procedimento criminal, o que sucedeu a 23/11/13.
Por outro lado, ainda que se considerasse que os factos alegados pelo assistente seriam susceptíveis de integrarem a previsão do art. 258º do Código Penal (crime de falsificação de notação técnica), por ele também referido no RAI, impunha-se a mesma conclusão, pois tal ilícito é também punido com pena de prisão até três anos, pelo que também estaria prescrito.
Decisão:
Face ao exposto, declaro prescrito o procedimento criminal relativamente aos crimes de falsificação de documento que o assistente pretende ver imputados aos arguidos C…, E… e D… e, em consequência, ao abrigo do disposto pelo art. 287º, nº 3 do Código de Processo Penal, por legalmente inadmissível, não admito, nessa parte, a instrução por ele requerida e determino, nessa parte o oportuno arquivamento dos autos.
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II - Quanto aos crimes de falso testemunho:
O assistente pretende ver:
- O arguido C… pronunciado pela prática de um crime de falsidade de testemunho p. e p. pelos art. 360º, nº 1 e 3 e 361º, nº 1, al. a) do Código Penal, pelas declarações que, enquanto testemunha prestou, a 5/11/12, no processo nº 2107/11.0TBPVZ;
- Cada uma das arguidas E… e D… pronunciadas pela prática de dois crimes de falsidade de testemunho p. e p. pelos art. 360º, nº 1 e 3 e 361º, nº 1, al. a) do Código Penal pelas declarações que prestaram nos processos nº 2531/06.0TBPVZ e nº 2107/11.0TBPVZ.
Quanto ao arguido C… o assistente invoca, para fundar, a prática de tal ilícito os factos que descreve nos art. 215º a 239º do RAI. Em suma, refere que, tendo prestado depoimento na acção ordinária nº 2017/11.0TBPVZ que correu termos pelo 3º Juízo Cível da Póvoa de Varzim instaurada por “F… Lda.” contra “G… Lda.” com vista à condenação desta a pagar à primeira a quantia de cerca de €80.000 relativa a fornecimento de areia, prestou depoimento falso, por ter atestado que facturas forjadas (falsas) titulavam verdadeiros fornecimentos.
Quanto às arguidas E… e D… invoca os factos que descreve nos art. 104º a 214º (cf. fls. 743), terem prestado falsos depoimentos enquanto testemunhas no âmbito de dois processos:
- No processo nº 2531/06.0TBPVZ do 3º Juízo Cível da Póvoa de Varzim instaurado pela sociedade “F…, Lda.” contra o ora assistente B… e mulher pedindo a condenação destes a pagarem àquela a quantia de cerca de €550.000 correspondente a fornecimentos de areia não pagos, por terem falsamente atestado a existência de fornecimentos titulados por facturas falsas;
- No processo nº 2017/11.0TBPVZ do 3º Juízo Cível da Póvoa de Varzim que correu termos pelo 3º Juízo Cível da Póvoa de Varzim instaurado por “F… Lda.” contra “G…, Lda.” com vista à condenação desta a pagar à primeira a quantia de cerca de €80.000 relativa a fornecimento de areia, por terem atestado falsamente que facturas forjadas (falsas) titulavam verdadeiros fornecimentos.
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Diz o art. 68º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal que se podem constituir assistentes no processo penal os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. Esse conceito de ofendido, estrito ou imediato, está também plasmado no art. 113º do Código Penal.
Ora, no que se reporta aos depoimentos prestados pelos arguidos C…, E… e D… no processo nº 2017/11.0TBPVZ do 3º Juízo Cível da Póvoa de Varzim em que era autor “F…, Lda.” e ré “G…, Lda.” (cf. documentos nº 33, 34, 35, 37, 38, 42 e sentença junta como documento nº 43 do anexo 6), constata-se que, a existir um ofendido particular passível de se constituir assistente (o que, como veremos adiante, entendemos não ser possível) este nunca seria o denunciante B….
Efectivamente, nesse processo se houve um prejudicado com o depoimento alegadamente falso prestado, esse prejudicado foi a sociedade demandada, a “G…, Lda.”, ali condenada a pagar à massa insolvente da “F…, Lda.” determinada quantia monetária, e não o denunciante B….
Podemos, por isso, concluir que qualquer prejuízo que tivesse decorrido da eventual prestação de depoimentos falsos por parte dos arguidos C…, E… ou D… nesse processo se reflectiu directamente na própria pessoa colectiva e no seu património, pois foi ela quem foi condenada a pagar à autora determinada quantia pecuniária. Por isso, ainda que se entendesse que o crime de falsidade de testemunho protege também interesses de particulares, o que não se concede, nunca poderíamos considerar o ora assistente como titular desse interesse, precisamente porque a parte prejudicada não é ele mas sim a sociedade G…. É certo que o assistente é o legal representante dessa sociedade, mas esse facto não lhe confere legitimidade para, em nome próprio, intervir nos autos como assistente relativamente a factos em que aquela é ofendida.
Neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30/6/15, publicado em www.dgsi.pt onde se decidiu que as pessoas dos sócios, mesmo que representantes legais (administradores ou gerentes) são realidades distintas das sociedades para efeitos de legitimidade para intervir na qualidade de assistente.
O que significa que, apesar de ter sido admitido a intervir na qualidade de assistente B…, a verdade é que não o poderia ter sido relativamente aos crimes de falsidade de testemunho que denunciou praticados no âmbito do processo nº 2107/11.0TBPVZ e, como tal, está-lhe vedada a possibilidade de requerer a abertura da instrução relativamente ao crime de falsidade de testemunho que imputa ao arguido C… e a um dos crimes de falsidade de testemunho que imputa a cada uma das arguidas D… e E… decorrentes dos depoimentos que cada um deles prestou nesse processo.
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Já quanto à prática no âmbito do processo nº 2531/06.0TBPVZ por cada uma das arguidas E… e D… de um crime de falsidade de testemunho e tendo presente que o denunciante assume ali a qualidade de lesado, porque a acção foi também contra si instaurada, a questão que se coloca é a de determinar se será o titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com esta incriminação. Pois, caso não o seja, não poderia ser admitido a intervir como assistente relativamente a este tipo de ilícito e, consequentemente careceria de legitimidade para requerer a abertura da instrução.
Sobre tal questão permitimo-nos seguir, de perto, pela sua clareza, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/12/06 relatado pelo Sr. Desembargador, Dr. Cruz Bucho e publicado em www.dgsi.pt.
Segundo dispõe a alínea a) do nº 1 do artigo 68º do Código de Processo Penal “Podem constituir-se assistentes em processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de dezasseis anos".
«O texto legal em vigor é idêntico ao artigo 4º, do DL. n.º 35 0007 que por seu turno reproduzia o artigo 11º do Código de Processo Penal de 1929, que acolhia os ensinamentos de Beleza dos Santos (“Partes particularmente ofendidas em processo criminal”, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 57º, pág. 3).
E a mesma noção transparece claramente no artigo 113º do Código Penal, ao definir os titulares do direito de queixa, quando no seu n.º1 estatui: “Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.”
Consagra-se deste modo, o conceito estrito, imediato ou típico de assistente.
Não é ofendido, para este efeito, qualquer pessoa prejudicada com a prática do crime, mas somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime.
O objecto jurídico mediato do crime é sempre de natureza pública.
O imediato pode ter por titular um particular.
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, ofendido/assistente é “a pessoa que, segundo o critério que se retira do tipo preenchido pela conduta criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico-penal por aquela violada ou posto em perigo” (Direito Processual Penal, 1, 505).
Já em 1955 Cavaleiro Ferreira sublinhava que “Não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com a perpetração da infracção; ofendido é somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato da infracção (…) Nem todos os crimes têm, por isso, ‘ofendido’ particular. Só o têm aqueles em que o objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular” (Curso de Processo Penal, Lisboa, 1955, vol. I, págs. 129-130).
Também Germano Marques da Silva salienta que “Não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com o crime: ofendido é somente o titular do interesse que constitui objecto da tutela imediata pela incriminação do comportamento que o afecta. O interesse jurídico mediato é sempre o interesse público, o imediato é que pode ter por titular um particular. Nem todos os crimes têm ofendido particular. Só o têm aqueles em que o objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular (Curso de Processo Penal, vol. I, 4ª ed., Lisboa S/Paulo, 2000, pág. 264, cf. também, pág. 335).
Esta distinção entre lesado e ofendido é, de resto, claramente perfilhada pelo artigo 74, nº 1 do Código de Processo Penal ao definir lesado como “a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente” (enfatizando este ponto cf. Gil Moreira dos Santos, Noções de Processo Penal, Porto, 1987, págs. 117-118).»
«É pela norma incriminadora que se vê qual o interesse que a lei quis proteger ao tipificar determinado comportamento humano como criminosos.
Um primeiro indício resultará da própria sistematização da parte especial do Código penal que está organizada de acordo com um critério que tem a ver com os interesses especialmente protegidos.
Depois de definido o interesse há que determinar o titular desse interesse. Se for um particular individualmente considerado só ele poderá intervir como assistente no processo. Se for o Estado enquanto colectividade, não há titular de interesse a quem a lei especialmente quis proteger, pelo que não é admissível a constituição de assistente (cf. Simas Santos, Leal Henriques e Borges de Pinho, Código de Processo Penal Anotado, 1ºvol, Lisboa, 1996, pág. 317, aqui seguido de perto).
O crime de falso testemunho, p. e p., pelo art. 360° do Código Penal assim como o crime de falsas declarações, p. e p. pelo artigo 359°, do mesmo Código, encontra-se inserido no Capítulo III “Dos Crimes contra a realização da justiça” do Título V “Dos Crimes contra o Estado”.
O interesse directa e imediatamente protegido é um interesse público, o interesse do Estado na realização ou administração da justiça.
O falso testemunho, apesar de poder prejudicar pessoas singulares e colectivas diferentes do Estado, foi incriminado para defender especialmente interesses do Estado, designadamente o de que a administração da justiça não seja prejudicada.
Como salienta Medina de Seiça “O bem jurídico protegido pelo crime de falso testemunho, falsa perícia, falsas declarações, etc., é essencialmente a realização ou administração da justiça como função do Estado. Quer dizer: o interesse público na obtenção de declarações conformes à verdade no âmbito de processos judiciais ou análogos, na medida em que constituem suporte para a decisão» (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Coimbra Editora, 2001, Tomo III, pág. 460 §2.)».
Deste modo não podemos deixar de concluir que, também relativamente a cada um dos crimes de falsidade de testemunho imputados às arguidas E… e D… praticados no âmbito dos depoimentos que prestaram no processo nº 2531/06.0TBPVZ, carece o assistente de legitimidade para se constituir como tal.
No sentido da posição que defendemos, da inadmissibilidade da constituição como assistente no crime de falso testemunho, pronuncia-se Maia Gonçalves (Código de Processo Penal 15ªed., pág. 191), Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, vol 1º, cit. pág. 513) e José António Barreiros (Sistema e Estrutura do Processo Penal português, vol. II, Lisboa, 1997, pág. 168) e, na jurisprudência, podem citar-se, entre outros, os seguintes acórdãos: do STJ de 14-11-2002, CJ STJ, tomo 3, pág. 227, do STJ de 17-06-1987, proc. 038911, in www.dgsi.pt, do STJ de 29-02-1984, BMJ n.º 334, pág. 383, da Rel. do Porto de 15-06-2005, proc. n.º 0447397, www.dgsi.pt, da Rel. do Porto de 23-10-2002, proc.º 0240502, in www.dgsi.pt, da Rel. do Porto de 09-02-2000, proc.º 9911165, in www.dgsi.pt, da Rel. do Porto de 26-10-1988, CJ, tomo 4, pág. 223, da Rel. do Porto de 19-10-1983,BMJ n.º 330, pág. 538, da Rel. de Lisboa de 18-05-2005, proc. n.º 1967/05-3ª, in www.pgdlisboa, da Rel. de Coimbra de 09-01-1990, BMJ n.º 393, pág. 672, da Rel. de Coimbra de 29-11-1989, BMJ n.º 391, pág. 709, da Rel. de Coimbra de 26-10-1988, CJ, tomo 4, pág. 223, da Rel. de Coimbra de 03-10-1986, CJ tomo 4, pág. 100, do TRE de 10/12/09 e do TRC de 27/11/02, publicados em www.dgsi.pt.
É certo que o STJ, no Acórdão nº 8/2006 de 12 de Outubro, fixou jurisprudência a conferir legitimidade no crime de denúncia caluniosa p. e p. pelo artigo 365º do Código penal, ao caluniado para se constituir assistente no procedimento criminal instaurado contra o caluniador, mas a verdade é que este entendimento não pode ser aplicável ao crime de falsidade de testemunho.
Mas, como se refere no Acórdão do TRG de 18/12/06, a que vimos fazendo referência, “não é possível estabelecer qualquer paralelismo entre os dois tipos legais de crime, para efeitos de constituição de assistente, pois enquanto a esfera de protecção da incriminação da denúncia não se esgota na realização da justiça, já que com ela também se protege igualmente o bom nome, a honra e a consideração do caluniado, no falso testemunho o bem jurídico protegido é apenas a realização ou administração da justiça, enquanto função do Estado”.
Em suma podemos concluir que, estando em causa um crime de falso testemunho, não obstante o denunciante possa ser lesado relativamente aos depoimentos prestados pelas arguidas E… e D… no processo nº 2531/06.0TBPVZ por eventualmente ter sofrido prejuízos com os factos denunciados e que no seu entender constituem crime, dado ser ali demandado, não é ofendido para efeitos do disposto pelo art. 68º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal, por não ser o titular do interesse que constitui o objecto imediato da infracção, o qual, como vimos é o Estado, na realização ou administração da justiça.
Apesar de ter sido admitido a intervir na qualidade de assistente B…, a verdade é que, do que fica exposto, não o poderia ter sido relativamente aos crimes de falso testemunho que denunciou.
Ora, essa admissão apenas faz caso julgado rebus sic stantibus, sendo alterável caso se verifique uma alteração do objecto do processo. Neste sentido veja-se, por exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29/5/13, publicado em www.dgsi.pt ao afirmar que a justificação da possibilidade de alteração desse despacho radica, pois, no facto de nessa altura ainda não se encontrar fixado o objecto do processo e de poderem ocorrer alterações que contendam com o estatuto do assistente já admitido.
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Decisão:
Face ao exposto, por ilegitimidade do assistente, não admito o requerimento de abertura da instrução por ele formulado no que aos crimes de falsidade de testemunho concerne.
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III – Quanto aos crimes de burla processual:
O assistente pretende ainda ver imputada a prática ao arguido C… de três crimes de burla qualificada na forma tentada p. e p. pelos art. 22º, 23º, 217º, nº 1 e 2 e 218º, nº 1 e nº 2, al. a) do Código Penal e a cada uma das arguidas E… e D… a prática de dois crimes de burla qualificada na forma tentada p. e p. pelos art. 22º, 23º, 217º, nº 1 e 2 e 218º, nº 1 e nº 2, al. a) do Código Penal.
Alega, em suma, que:
1 - ao instaurar contra “F…, Lda.” a acção que correu termos sob o nº 79/08.7TYVNG pedindo a condenação desta a pagar-lhe, a título de suprimentos, a quantia de €1.610.000 com base em documentos contabilísticos forjados, o arguido C… logrou enganar o tribunal e leva-lo a proferir sentença que condenou aquela sociedade no pedido, quando essa quantia não lhe era efectivamente devida;
2 - ao instaurar contra “G… Lda.” a acção que correu termos sob o nº 2107/11.0TBPVZ pedindo a condenação desta a pagar à sociedade “F…, Lda.” a quantia de cerca de €80.000 relativa a fornecimento de areia por ela efectuado com base em facturas forjadas, emitidas por esta última para outros fins que não o pagamento, o arguido C… logrou, através da apresentação de tais documentos e conluiado com as testemunhas E… e D…, que ali prestaram depoimentos falsos, enganar o tribunal e leva-lo a proferir sentença que condenou aquela sociedade (G…) no pedido, quando essa quantia não era efectivamente devida;
3 - ao instaurar contra o ora assistente B… e mulher a acção que correu termos sob o nº 2531/06.0TBPVZ pedindo a condenação destes a pagarem à sociedade “F…, Lda.” a quantia de cerca de €550.000 correspondente a fornecimentos de areia não pagos, com base em facturas forjadas, emitidas por esta última para outros fins que não o pagamento, o arguido C… logrou, através da apresentação de tais documentos e conluiado com as testemunhas E… e D…, que ali prestaram depoimentos falsos, enganar o tribunal e leva-lo a proferir sentença que condenou o ora assistente e mulher no pedido, quando essa quantia não era efectivamente devida.
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Antes de analisar a questão da burla processual cumpre referir que, não obstante o denunciante tivesse sido genericamente admitido a intervir nos autos como assistente, o mesmo não assume a qualidade de ofendido relativamente aos crimes de burla referidos em 1) e 2) alegadamente cometidos nos processos nº 79/08.7TYVNG em que era demandada a sociedade “F…, Lda.” e nº 2107/11.0TBPVZ em que foi demandada “G…, Lda.”.
Efectivamente, como acima já tivemos oportunidade de referir, o art. 68º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal possibilita aos ofendidos constituírem-se assistentes e considera como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. Porém, não é ofendido, para efeitos da referida disposição legal, qualquer pessoa prejudicada com o crime, é somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime.
A jurisprudência de forma abundante, como refere o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30/6/15 já citado, tem também defendido que as pessoas dos sócios, mesmo que representantes legais (administradores ou gerentes), são realidades distintas das sociedades para efeitos de legitimidade para intervir na qualidade de assistente e cita, entre outros o acórdão da Relação de Lisboa de 03/06/08, Proc. 3185/08, disponível in www.pgdlisboa.pt, que decidiu o seguinte: I- Num processo penal por factos susceptíveis de integrar o crime de burla, será ofendido, para efeitos de constituição de assistente, o titular do património que foi directamente prejudicado pela acção delituosa. II. O recorrente é gerente de sociedade cujo património, de acordo com os factos denunciados e os que constam do requerimento de abertura de instrução, foi directamente prejudicado pela acção do arguido pois de tal património saíram carne e derivados que foram enriquecer uma outra sociedade. III. Assim, sendo uma sociedade pessoa jurídica, o património social pertence-lhe e não aos sócios ou gerentes, sendo que a estes cabe apenas a administração e a representação da sociedade pelo que, ainda que o recorrente haja invocado prejuízos materiais indirectos e prejuízos não patrimoniais, tais prejuízos, embora confiram ao recorrente o estatuto de lesado, não o credenciam para entrar no círculo dos ofendidos, tal como são delimitados pela alínea a) do n°.1 do art. 68°. do C.P.P. IV. Os prejuízos invocados pelo recorrente legitimariam apenas a dedução de pedido de indemnização cível, tendo presente o seu estatuto de lesado e o estatuído no art.74°., n°.1 do CPP.V. Pelo exposto, não merece reparo a decisão que não admitiu o recorrente a intervir nos autos como assistente e, em consequência, falece também legitimidade ao recorrente para reagir contra o despacho de arquivamento através de abertura de instrução.
No mesmo sentido o Ac. da Relação de Lisboa de 20/06/07, Proc. 4721/07, consultável in www.dgsi.pt decidiu que "Os sócios de uma sociedade comercial não têm legitimidade para se constituírem assistentes nos processos penais em que é ofendida a sociedade”.
Há, portanto, que concluir que, para que alguém possa considerar-se ofendido, no sentido restrito consagrado nos artigos 68º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal e art. 113º, nº 1, do Código Penal, é necessário demonstrar-se que é da sua titularidade o bem ou património, directamente visado e atingido pelas condutas delituosas, não bastando que os prejuízos sofridos, em virtude das mesmas condutas, se apresentem como um resultado indirecto, mediato e reflexo.
Tendo presente que, no processo nº 79/08.7TYVNG, era demandada e foi condenada a pagar ao ora arguido a sociedade “F…, Lda.” e que, no processo nº 2107/11.0TBPVZ, foi demandada e condenada a pagar a “F…, Lda.” a “G… Lda.”, tal como resulta expressamente alegado no requerimento de abertura da instrução e dos documentos que o assistente anexou aos autos, não podemos deixar de concluir serem essas sociedades quem viu o seu património afectado pela conduta que o assistente imputa aos arguidos, pelo que será em cada uma delas que radica a legitimidade para intervir, como ofendidas, na qualidade de assistentes, como titulares do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação em causa, o crime de burla, cuja prática teria directamente atingido, ou tentado atingir, o património de cada uma delas.
As pessoas colectivas, como já tivemos oportunidade de salientar não se confundem com as pessoas singulares, nem os seus sócios com elas, já que aquelas, como centros autónomos de imputação de direitos e deveres que são, possuem personalidade jurídica e judiciária. E, se assim é, há que concluir que o património social de uma sociedade pertence a esta e não aos sócios ou gerentes, a quem cabe apenas a administração e a representação da sociedade, não se repercutindo, na esfera jurídica de cada um deles, a violação dos bens jurídicos operada na esfera da pessoa colectiva.
Deste modo, impõe-se concluir que o ora assistente não tem legitimidade para requerer a abertura da instrução no que se reporta aos alegados crimes de burla qualificada praticados nos processos 79/08.7TYVNG e 2107/11.0TBPVZ, porque não tem legitimidade para relativamente a eles intervir nos autos como assistente e, por isso, é a instrução nessa parte legalmente inadmissível.
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Cumpre, por fim, apreciar se os factos alegados pelo assistente no que se reporta à prática do crime de burla processual, tentada, alegadamente praticado contra si através da instauração do processo nº 2531/06.0TBPVZ por sociedade da “F…, Lda.” são susceptíveis de integrarem a previsão do art. 217º do Código Penal.
Segundo dispõe o nº 1 deste preceito “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Como refere Almeida Costa, Comentário Conimbricense ao Código Penal, II, pág. 275, a burla abarca situações em que o agente, com intenção de conseguir um enriquecimento ilegítimo (próprio ou alheio) induz outra pessoa em erro, fazendo com que a última, por esse motivo, pratique actos que causam a si mesma ou a terceiro prejuízos de carácter patrimonial.
O bem jurídico aqui protegido consiste no património globalmente considerado, trata-se de um crime de dano que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro.
Por outro lado, a burla integra um delito de execução vinculada em que a lesão do bem jurídico se traduz na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios. Tem, portanto, que se afirmar um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) e, depois, entre estes últimos e efectiva verificação do prejuízo patrimonial.
Porém, para que se configure o crime de burla não basta o simples emprego de um meio enganoso, é necessário que ele consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que em que se encontra o indivíduo e que esse erro, astuciosamente provocado, seja causa da prática por quem foi burlado dos actos que causam prejuízo patrimonial. Sendo certo que a pura mentira, a mera declaração desconforme com a verdade não basta para preencher o conceito.
A nível subjectivo, trata-se de um crime doloso. Todavia, o preenchimento subjectivo do tipo não se basta com o dolo de causar um prejuízo patrimonial à vítima ou a terceiro, exigindo-se um “dolo específico” que se traduz na intenção do agente, através a sua conduta, obter para si, ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo.
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No caso está em causa saber se o crime de burla pode ser cometido através de uma acção judicial.
Sobre esta questão pronunciaram-se, em sentido negativo, Maia Gonçalves, no “Código Penal Português Anotado”, 16.ª edição, 2004, a pág. 729, ao escrever que “A chamada burla processual continua a não ser aqui incriminada, mantendo-se, a este respeito, inteiramente válidas as razões que aduzimos na anot. 5 ao art.º 451.º do Código de 1886, no nosso Código Penal Português. Trata-se de uma burla consumada através de expedientes processuais, para a qual as leis processuais contêm sanções adequadas, e cujo enquadramento criminal foi recusado por acórdãos do STJ (...)”.
A anotação mencionada era a seguinte: Esta figura jurídica consiste em defraudação mediante actividade judicial. Entende-se geralmente que não é incriminável, pois que a lei processual e o Estatuto Judiciário contêm as providências específicas e adequadas para obstar a tais práticas ou para as reprimir.
Também José António Barreiros, em “Crimes contra o património”, 1996, pág. 149, escreveu, aderindo aos fundamentos invocados por Maia Gonçalves, “quanto à denominada burla processual ela não pode considerar-se integrada na figura que estamos a tratar” (o crime de burla).
Segundo conseguimos apurar a jurisprudência maioritária dos tribunais superiores vai no sentido de que o crime de burla não poder ser cometido por meio de uma acção judicial. Na verdade, defendendo o inverso encontramos apenas o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4/10/07, publicado em www.dgsi.pt.
Efectivamente, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/6/53, in BMJ nº 37, pág. 121, de 6/10/60, in BMJ, nº 100, pág. 441, de 3/10/62, in BMJ nº 120, pág. 207 e de 16/1/74, in BMJ, nº 233, pág. 67 pronunciaram-se todos no sentido de o Código Penal não prever a incriminação da burla processual, aquela que é cometida através da instauração de um processo judicial e mediante o engano do juiz.
Já o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça publicado no BMJ n.º 5, pág. 150, tinha o entendimento que “a actividade processual desenvolvida pelas partes, com o fim de obter a entrega da coisa ou valores, não constitui artifício fraudulento ainda que as suas petições façam declarações incompletas ou falsas”. Passando a concretizar esta ideia, a pág.157: esses bens não estavam à disposição do juiz, mas este podia ordenar a sua entrega, como ordenou, em consequência do reconhecimento dum direito, que entrava no âmbito da suas atribuições, e dependia da sua convicção e obediência à lei.
Com o recebimento resultante efectivou-se esse direito, cujo reconhecimento judicial não importa discutir. As decisões judiciais, enquanto subsistem, devem ser consideradas como a expressão da verdade legal.
(...) Quando as partes se servem do processo para praticarem um acto simulado ou para conseguirem um fim proibido por lei, o Código de Processo Civil providencia no art.º 665º, sem invocar as sanções do Código Penal (...) Doutra forma, o receio constante da repressão penal dificultaria até a liberdade de defesa, nos termos que a lei reconhece.
O Acórdão do STJ. de 6/10/60 acima citado referiu expressamente que “A actividade judicial não pode ser considerada meio idóneo para o cometimento do crime de burla”. Dando conta de outros acórdãos, acrescenta: E essa orientação é inteiramente de manter. Na verdade, se outra pudesse ser a solução, muitos processos terminariam pela incriminação duma das partes pelo menos a título de culpa(...) Uma afirmação falsa não constitui o artifício fraudulento exigido para a burla em geral, ou para qualquer burla processual. A entender-se de outra forma, em cada processo contraditório uma das partes seria sempre passível de incriminação, porque das duas verdades em discussão, uma seria falsa.
E não se pretenda que o artifício fraudulento pode ser anterior à actividade processual, estudado e posto em execução antes de se recorrer ao tribunal. É que o artifício fraudulento teria de ser causa idónea do erro do tribunal, e, por isso, só o poderia ser quando nele utilizado”.
Por fim, saliente-se o Acórdão do STJ, de 16.1.1974 (BMJ n.º 233, págs. 67- 73), que também conclui: A actividade processual não é meio idóneo para a prática do crime de burla previsto no art.º 451.º do CP. É entendimento pacífico da nossa jurisprudência que não considera a actividade judicial um meio idóneo para a prática de crimes de burla, reprimindo os abusos que os desmandos dessa actividade possam assumir com sanções específicas e adequadas.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/4/07, publicado em www.dgsi.pt, “na burla processual falta o acto de disposição patrimonial, o juiz não exerce um poder de disposição relativamente ao património das partes e não preenche nenhum acto de substituição do titular prejudicado pelo acto dispositivo, o juiz não exerce nenhum poder de disposição, mas apenas um poder jurisdicional eminentemente publicístico.
Por outro lado, a genuinidade da aquisição dos meios de prova é garantida no âmbito dos delitos contra a administração da justiça (falso testemunho, simulação de crime formal e material, calúnia, etc.) (...) e não emerge dos trabalhos preparatórios vontade alguma de imputar uma reacção penal a outras possíveis fraudes processuais em actos já por si puníveis; não está em discussão a lacuna normativa, mas a vontade do legislador que deixa pouco espaço aos argumentos que sustentam a tese da burla processual”.
Em suma têm estes arestos entendido que a actividade judicial não é o meio idóneo para a prática de crimes de burla, dado a lei processual civil conter já as sanções específicas e adequadas para esse fim.
É este também o entendimento por nós perfilhado.
Deste modo, conclui-se que, porque o crime de burla a que se reportam os factos referentes ao processo nº 2531/06.0TBPVZ, não pode ser cometido através de uma acção judicial, os factos descritos no requerimento de abertura da instrução a ele relativos não constituem crime e, como tal, a instrução é, também nessa parte, legalmente inadmissível.
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Decisão:
Em face de todo o exposto, por inadmissibilidade legal, ao abrigo do disposto pelo art. 287º, nº 3 do Código de Processo Penal, rejeito o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente.
Sem custas, por não serem devidas atento o disposto pelo art. 515º, à contrario, do Código de Processo Penal e por não estarmos em presença de um incidente anómalo (neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, pág. 756, anotação 16 ao art. 287º do CPP).
Notifique.
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Como já referimos, o recorrente pretende com o seu recurso que seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra que o admita como assistente em relação aos crimes de falso depoimento e burla, declarando-se, consequentemente, a abertura da instrução.
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O MP em 1ª Instância entende que o recurso deve improceder.
Nesta Relação, o Sr. PGA é de parecer que o recurso deve proceder parcialmente, na parte em que não se admitiu os factos alegados no RAI como crime de burla.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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1º questão: admissibilidade da constituição de assistente nos crimes de falso testemunho.

Esta questão não tem tido unanimidade na sua resolução, pois uns entendem que sendo o bem jurídico protegido neste tipo de crime, o interesse na boa realização da justiça, onde é protegido um interesse de ordem pública no que respeita à constituição como assistente, exclui a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também imediatamente protegido um interesse susceptível de ser corporizado num concreto interesse individual, pelo que não é possível a constituição de assistente, outros já consideram que sim.
Assim, para quem é admissível a constituição de assistente, entre outros, temos os Acórdãos do STJ de 12/07/2005; Ac. TRC de 7-6-2016, de 06/05/2009; Ac.s TRL de 18/07/2007 e Ac. De 22/09/2009 e Ac. do TRP de 21/11/2012.
Sustentando o entendimento contrário, entre outros, ver Ac. STJ de 14/11/2002; Ac. TRE de 10/12/2009; Ac. TRG de 18/12/2006 e de 23/04/2012; Ac.TRL.de 03/05/2005 de 29/03/2007 e Ac. TRP de 18/05/2011.
Também o Tribunal Constitucional, no Ac. de 22 de Outubro de 2003, se pronunciou, quanto aos crimes de falsificação de documentos e de falso testemunho, onde diz:
«… no Acórdão n.º 76/2002 (publicado no Diário da República, II Série, de 5 de Abril de 2002),… pronunciou-se pela não inconstitucionalidade da norma do artigo 68º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido da«impossibilidade de constituição como assistente no que se refere aos crimes de“falsificação praticada por funcionário” …e de “denegação de justiça….
É que, também nestes casos, os bens jurídicos protegidos (a segurança e a credibilidade no tráfico jurídico probatório relacionado com documentos no primeiro caso e a realização da justiça no segundo caso) tem claramente uma natureza supra-individual, residindo a sua titularidade no Estado.
É certo que, embora os crimes de falsificação praticada por funcionário e de denegação de justiça não visem directamente a protecção ou mesmo a satisfação (no caso de denegação de justiça) de interesses colectivos, e de não incluírem por consequência como seu pressuposto, a violação de interesses particulares, a verdade é que tais interesses são em muitos casos ofendidos através da sua comissão. Alguns destes casos haverá, porventura, concurso de crimes, como quando a falsificação servir para a prática de burla, caso em que o ofendido se poderá constituir como assistente. E genericamente, pode dizer-se que tais incriminações visam indirectamente proteger também interesses particulares, como resulta de o tipo subjectivo de ilícito de crime de falsificação do artigo 257º incluir a “intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado” e de o crime de denegação de justiça, sempre que a justiça é pedida pelos particulares, ter como consequência necessária a insatisfação do interesse particular nessa administração.
A questão, porém, é a de saber se, em face de disposições constitucionais que não só garantem a administração da justiça, com o artigo 202º, nº 2, como especialmente garantem o direito do ofendido “de intervir no processo nos termos de lei”, nas palavras do nº 7 do artigo 32º, aditado na revisão constitucional de 1997, a norma do artigo 68º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal, que delimita a constituição de assistente através do conceito de ofendido, na interpretação que não considera ofendidos os particulares possivelmente afectados pelos crimes de falsificação praticada por funcionário do artigo 257º do Código Penal e de denegação de justiça prevista no artigo 369º do Código Penal, excede o espaço de configuração deixado ao legislador pela Constituição.
A resposta deve ser negativa. A revisão constitucional de 1997 faz-se no contexto da vigência do artigo 68º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal e nada indica que tenha querido outra coisa senão dar dignidade constitucional ao que aí se estabelece. A constituição de assistente em crimes que não visam directamente proteger interesses privados, mas sim interesses colectivos, em que nem sempre há lesão adicional de interesses privados, e em que a lesão desses interesses não é um elemento constitutivo do tipo de crime – por outras palavras, em crimes em que nem sempre há ofendido – não é certamente uma exigência constitucional.»
Em todos estes arestos se entendeu que a natureza pública do bem jurídico protegido pela incriminação é fundamento bastante para se considerar não ser constitucionalmente censurável a exclusão da possibilidade de se constituírem como assistentes no processo penal por parte de titulares de interesses particulares ofendidos. É que tais interesses particulares eram, nos casos sobre os quais incidiram os mencionados arestos, apenas indirecta ou mediatamente tutelados pela previsão de tais crimes.
Importa ainda referir que a norma impugnada, restringindo a possibilidade de se constituir como assistente no processo penal aos ofendidos que sejam “titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”, encontra paralelo na exigência decorrente da demonstração, por parte dos assistentes, de um específico e concreto interesse em agir como condição para impugnar certa decisão, decorrente do artigo 401º, n.ºs 1, alínea b), e 2, do Código de Processo Penal, exigência essa que o Tribunal não considerou inconstitucional, através do Acórdão n.º 205/2001 (publicado no Diário da República, II Série, de 29 de Junho de 2001).
Como se afirmou neste último Acórdão, o artigo 32º, n.º 7, da Constituição atribuiu à lei ordinária “a acção modeladora” do “direito do ofendido de intervir no processo penal”. E se é certo que essa “atribuição à lei ordinária não legitima o legislador a proceder a um “«esvaziamento» do núcleo essencial da intervenção do assistente no processo penal»”, parece também certo que tal «esvaziamento» não está em causa nos presentes autos, como não estava no caso sobre que incidiu o citado Acórdão n.º 205/200…».

Assim, parece-nos que em determinados tipos de crime público que protegem bens eminentemente públicos (v.g., desobediência, denúncia caluniosa, falso testemunho, abuso de poder, falsificação de documentos), o legislador pretendeu também tutelar bens jurídicos de natureza particular.
Neste sentido, Figueiredo Dias e Anabela Rodrigues - A Legitimidade da Sociedade Portuguesa de Autores em Processo Penal,1989, pág. 115/6 - “o conceito de ofendido não pode ser deduzido pela distinção entre incriminação que protege um bem jurídico individual ou que protege um bem jurídico supra-individual, mas deve derivar da susceptibilidade de o bem jurídico poder ou não ser corporizado num concreto portador individual”.
O facto do bem jurídico protegido na incriminação revestir natureza pública tal não exclui a legitimidade de constituição como assistente, pois o que interessa saber é se o dano no bem jurídico público tem igualmente repercussões numa esfera jurídica individual.
Esta tendência recente tem sido igualmente seguida pela jurisprudência, nos acórdãos do STJ nº 1/2003, nº 8/2006, nº 40/2010 (www.dgsi.pt).
Assim, a problemática, assenta não no conceito de ofendido, mas na identificação do bem jurídico protegido pelo crime que estiver em causa, pelo que a constituição de assistente deve partir do alargamento do bem jurídico, no sentido que quando as incriminações protegem vários interesses, todos eles se revelam dignos da tutela da lei, ainda que algum deles se mostre dominante.
No caso concreto, vimos que o assistente pretende que o arguido C… seja pronunciado pela prática de um crime de falsidade de testemunho p. e p. pelos art. 360º do Código Penal, pelas declarações que prestou, enquanto testemunha, no processo nº 2107/11.0TBPVZ, bem como cada uma das arguidas E… e D…, pelas declarações que prestaram nos processos nº 2531/06.0TBPVZ e nº 2107/11.0TBPVZ.
Quanto ao arguido C… o assistente invoca no RAI que, tendo prestado depoimento na acção ordinária nº 2017/11.0TBPVZ que correu termos pelo 3º Juízo Cível da Póvoa de Varzim instaurada por “F… Lda.” contra “G… Lda.” com vista à condenação desta a pagar à primeira a quantia de cerca de €80.000 relativa a fornecimento de areia, prestou depoimento falso, por ter atestado que facturas forjadas (falsas) titulavam verdadeiros fornecimentos.
Quanto às arguidas E… e D… refere terem prestado falsos depoimentos enquanto testemunhas no âmbito de dois processos:
No processo nº 2531/06.0TBPVZ do 3º Juízo Cível da Póvoa de Varzim instaurado pela sociedade “F…, Lda.” contra o ora assistente B… e mulher pede a condenação destes a pagarem àquela a quantia de cerca de €550.000 correspondente a fornecimentos de areia não pagos, por terem falsamente atestado a existência de fornecimentos titulados por facturas falsas; E no processo nº 2017/11.0TBPVZ do 3º Juízo Cível da Póvoa de Varzim, instaurado por “F… Lda.” contra “G… Lda.” com vista à condenação desta a pagar à primeira a quantia de cerca de €80.000 relativa a fornecimento de areia, por terem atestado falsamente que facturas forjadas (falsas) titulavam verdadeiros fornecimentos.
Ora, como se diz na decisão recorrida, no que respeita aos depoimentos prestados pelos arguidos C…, E… e D… no processo nº 2017/11.0TBPVZ, constata-se que a existir um ofendido particular passível de se constituir assistente, este nunca seria o denunciante B…, pois nesse processo, se houve um prejudicado com o depoimento alegadamente falso prestado, foi a sociedade demandada “G…, Lda.”, ali condenada a pagar à massa insolvente da “F…, Lda.” determinada quantia monetária, e não o denunciante B….
Assim, qualquer prejuízo que tivesse decorrido da eventual prestação de depoimentos falsos por parte dos arguidos C…, E… ou D… nesse processo incidiu directamente na própria pessoa colectiva e no seu património, pois foi ela quem foi condenada a pagar à autora determinada quantia pecuniária. Mesmo entendendo que o crime de falsidade de testemunho protege também interesses de particulares, nunca poderíamos considerar o ora assistente como titular desse interesse, porque a parte prejudicada é a sociedade G…, mesmo sendo o assistente o legal representante dessa sociedade, pois esse facto não lhe confere legitimidade para, em nome próprio, intervir nos autos como assistente relativamente a factos em que aquela é ofendida, como parece ser pacifico.
Relativamente ao âmbito do processo nº 2531/06.0TBPVZ a cada uma das arguidas E… e D… de um crime de falsidade de testemunho e tendo presente que o denunciante assume ali a qualidade de lesado, porque a acção foi também contra si instaurada, a questão que se coloca é a de determinar se será ele o titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com esta incriminação.
Ora, no crime de falso testemunho, p. e p., pelo art. 360° do Código Penal, concordamos, que o interesse directa e imediatamente protegido, é um interesse público, o interesse do Estado na realização ou administração da justiça, apesar de poder prejudicar pessoas singulares e colectivas diferentes do Estado.
No caso concreto, esses depoimentos, na versão do RAI, ao serem utilizados como motivação da matéria de facto considerada provada nas duas referidas acções, contribuíram decisivamente para as sentenças condenatórias nelas proferidas, impondo ao recorrente e à sociedade G…, o pagamento de quantias muito elevadas, e que, não sendo essas quantias devidas, o seu pagamento implica prejuízos igualmente elevados.
Assim, num primeiro momento, haverá que concluir que, a haver crime de falso depoimento, da prática desse crime pelos arguidos resultam directamente prejuízos elevados para o recorrente, sendo esses prejuízos visados pelos arguidos, pelo que com a dedução da acusação, que o Ministério Público não deduziu, poderia posteriormente deduzir contar os arguidos o pedido de indemnização cível pelos prejuízos que os mesmos lhe causaram.
Como dissemos, concorda-se que o bem jurídico protegido neste tipo de crime é o interesse na boa realização da justiça, mas a jurisprudência vem entendendo que, no que respeita à constituição como assistente, só caso a caso, e perante o tipo incriminador, é possível afirmar, em última análise, se a mesma é de admitir, pois um só tipo legal pode proteger mais do que um bem jurídico, questão a resolver face, ao mesmo tempo, ao caso concreto e ao recorte do tipo legal interessado (cfr. Ac. do STJ de 23-5-02, proc. n.º 976/02-5), levando à conclusão que o tipo em causa visa proteger a administração da justiça, mas também, eventuais prejuízos causados a interesses de particular.
Ora, a análise do tipo legal de falsidade de depoimento do art. 360.º do Código Penal, onde é protegido um interesse de ordem pública, não exclui, sem mais, a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também imediatamente protegido um interesse susceptível de ser corporizado num concreto interesse individual.
Porém, o certo é que esta questão acaba por perder alguma relevância prática, no caso concreto, como veremos, pela solução que vamos dar à quanto à (in)existência dos crimes de burla processual, tendo este comportamento como objectivo final, a prática deste ilícito de burla, ou seja, a falsificação serviu para a prática de burla.
Assim, procede o recurso na parte referente ao processo nº 2531/06.0TBPVZ.
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2ª questão punibilidade (ou não) da burla processual

A questão da punibilidade da burla processual é igualmente controversa na jurisprudência, pois não há unanimidade nas decisões.
De um lado, os defensores da Punibilidade da “burla processual”, alegam, no essencial, que nada na lei nos indica que o legislador tenha querido afastar a punibilidade desta conduta, pois, atenta a redacção actual do tipo legal do crime de burla, constata-se que é apta a abranger este tipo de burla.
Os argumentos em sentido contrário, têm como fundamento essencial, que a lei processual contém providências ao dispor do tribunal, podendo o julgador utilizar os mecanismos que punem a má fé dos litigantes, sendo certo que a aplicação do princípio non bis in idem obsta à punição da burla cometida em processo.
Questiona-se, não a possibilidade de induzir o juiz em erro mas a capacidade deste em provocar actos de disposição patrimonial em outrem, induzindo-se o juiz em erro de modo a que este dite uma sentença «injusta», determinante de um acto de disposição não querido e em prejuízo de outras partes no processo ou de um terceiro.
Porém, toda a questão gira à volta do que se deve tomar em conta para o preenchimento dos elementos do tipo base do crime de burla, aparecendo a sentença «defraudada» como mero resultado da produção de erro.
De facto, como se escreve no Ac. do STJ de 04.10.2007, in www.dgsi.pt, que vamos seguir de perto na abordagem a este tema, há que esclarecer o que é um ilícito civil e o que é um ilícito penal. Os tribunais cíveis têm ao seu dispor mecanismos processuais aptos a resolver dificuldades no âmbito da sua competência cível. Contudo, por vezes, o contorno do litígio concreto extravasa o âmbito da competência dos tribunais cíveis, de tal sorte que é irrelevante saber se os meios processuais civis são ou não aptos a paralisar a pretensão fraudulenta, pois a configuração do caso clama antes por uma intervenção jurídico-penal.
Por outro lado, no tipo de burla, “não se exige que o enganado seja o próprio sujeito passivo da burla, podendo o engano ocorrer em outra pessoa autorizada a completar o acto de disposição patrimonial induzido pela existência de um erro”.
A questão que se coloca consiste, pois, em saber se os tribunais cíveis e as sanções cíveis que lhe estão associadas (declaração de nulidade de negócios, paralisação de pretensões com base no abuso de direito, condenação em multa por litigância de má fé, ou até, noutro campo, procedimentos disciplinares de ordens profissionais…), são totalmente eficientes e se esgotam os meios jurídicos contra aqueles que afectam (ou pretendem afectar) os bens patrimoniais de outrem. O problema centra-se assim na diferença entre aquilo que é o ilícito civil e o ilícito penal.
Como se refere no citado acórdão do STJ de 04 de Outubro de 2007, há uma grande diferença entre aquilo que é o ilícito civil e aquilo que é o ilícito penal. Se a litigância de má fé é um bom mecanismo no meio civilístico, ela não apaga nem esgota a intervenção do Estado ante as condutas dolosas das partes.
Nele se refere que, embora se actue no campo civilístico, usado contratos civis que não se querem cumprir ou usando de reserva mental, “a linha divisória entre a fraude, constitutiva da burla, e o simples ilícito civil, uma vez que o dolo «in conrahendo» cível determinante da nulidade do contrato se configura em termos muito idênticos ao engano constitutivo da burla, inclusive quanto à eficácia causal para produzir e provocar o acto dispositivo, deve ser encontrada em diversos índices indicados pela doutrina e pela jurisprudência, tendo-se presente que o dolo «in contrahendo» é facilmente criminalizavel desde que concorram os demais elementos estruturais do crime de burla”.
Assim, há fraude penal (a somar ao ilícito civil), quando: há um propósito ab initio de não prestar o equivalente económico; se verifica dano social e não puramente individual, com a violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indirecto; se verifica uma violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena; há uma fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir; há uma impossibilidade de se reparar o dano; há um intuito de lucro ilícito e não do lucro do negócio.
Ora, num caso em que alguém, através de um processo, pretende induzir em erro um julgador para assim satisfazer o plano que orquestrou, trabalha num sentido capaz de violar a ordem jurídica de forma especialmente intensa e grave, não olhando a meios para atingir os seus fins e nem que para isso se pressuponha entorpecer a administração da justiça para conseguir um fim que sabe ser contrário ao direito. Tal actividade exige, então, como única sanção adequada, a pena.
Efectivamente, acompanhado de outros comportamentos processuais ilícitos, o direito de acção judicial é susceptível de causar danos à parte contrária ou a terceiros, independentemente da verificação no caso de litigância de má fé.
Por isso, a propositura de uma acção judicial pode revelar-se apenas um meio de execução de um desígnio criminoso, num arquétipo em que o recurso aos tribunais representa apenas um artificio fraudulento, de molde a se obter um enriquecimento ilegítimo e causar a outrem um prejuízo patrimonial.
Assim, a burla processual não pode ser autonomizada como uma categoria não punível, devendo antes ser reconduzida à tipificação geral do crime de burla e ser considerada como um comportamento astucioso que integra o elemento objectivo do ilícito-tipico em causa, pois os mecanismos da litigância de má fé são manifestamente insuficientes e não esgotam o poder das partes, em especial para os casos em que há consumação, onde o Juiz do processo civil tem o poder jurisdicional esgotado.
Por outro lado, a litigância de má fé, quando tomada como limitadora da responsabilidade comum, seria sempre inconstitucional, pois o processo penal é para averiguar da existência de crimes, quem foram os seus autores e a sua responsabilidade (art.º 262.º CPP).

Sabemos que a lei pune como crime de burla, a conduta de “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial (art. 217 n.º 1 do Código Penal).
Por isso, a burla processual, é uma forma de cometimento do ilícito de burla, valendo as regras gerais previstas para o ilícito de burla, onde qualquer pessoa pode praticar este ilícito.
Com a expressão “factos que astuciosamente provocou”, pretende o legislador unificar os vários modos de cometimento da burla.
De facto, a astúcia corresponde à habilidade para enganar, ao estratagema, ardil, maquinação. Assim, para caracterizar a conduta astuciosa, não bastará qualquer mentira, terá de haver uma actuação sofisticada, um artifício ou mentira envolta num enredo que dê substrato à realidade apresentada.
A astúcia caracteriza-se pelo seu recorte objectivo, que haverá de ser reconstituído a partir de actos materiais que a revelem e não por referência a estados de espírito ao nível da motivação do agente, i. é, não basta que a atitude psicológica do agente seja astuciosa, é necessário antes que seja a conduta exterior deste que revele um quid de astúcia. Este aspecto assume tamanha importância, pois sem astúcia, não pode haver burla (nem mesmo tentada), caso em que seria uma conduta atípica, o que faz com que este tipo de crime tenha uma forma vinculada (decorrente de o legislador ter descrito o processo executivo através da astúcia e do erro/engano dela resultantes) - Maria Fernanda Palma/Rui Carlos Pereira, O crime de Burla no Código Penal de 1982-95, RFDUL, Vol. XXXV, Lex, 1994, p. 324.
Para um facto ser astucioso significa que foi usado de “especial requinte fraudulento” ou de uma “mentira qualificada”.
Estes autores, ob. cit., p. 328, consideram que haverá burla mesmo no caso de ingenuidade da vítima ou no caso em que esta tenha tido culpa na situação de erro ou engano em que caiu; não há lugar a indagações sobre a idoneidade do meio empregue, considerada abstractamente, pois que a eventual culpa da vítima ou a sua ingenuidade, não podem constituir causa de desculpa para o agente, embora pondo no lugar do agente, uma pessoa média (ou uma pessoa do mesmo circuito social e profissional), dotada dos concretos conhecimentos do agente (que abarcarão, precisamente, a especial ingenuidade da vitima), e que questionemos se ela poderia prever a produção do resultado”.
Também Leal-Henriques/Simas Santos, Código Penal Anotado, Vol. II, Rei dos Livros, 2000, p. 837-838, “a mera mentira verbal pode, pois, dada a redacção deste artigo, ser meio de induzir em erro ou engano, excepto se a mentira for tal que a mais elementar prudência aconselha a que não seja acreditada”.
Por isso, a consumação da burla processual dá-se no momento em que o sujeito visado com a lesão do património fica efectivamente afectado. Ora, num caso em que este, tendo oportunidade de defesa, a use mal ou devendo interpor recurso da decisão que se baseou numa errada apreciação dos factos, ao não o fazer, poderá «contribuir» por não se opor eficazmente ao plano do agente do crime, a que o Juiz, inconscientemente, dá cobertura.
Quem intenta uma acção judicial, assume uma estratégia no âmbito de um litígio. Para a mesma ser procedente, é necessário dar uma certa configuração factual, arrolar testemunhas, juntar documentação, ou outros elementos probatórios que sustentem aquilo que se leva ao processo com o objectivo de ver a sua pretensão reconhecida. Ora, para ludibriar o tribunal, é necessária toda uma certa encenação, suportada muitas vezes documentalmente, que permita assegurar a veracidade do que se alega, pelo que se trata de astúcia do agente.
Assim, para a burla ser punível, será necessário que a vítima tenha sido induzida em erro ou engano, provocado astuciosamente pelo agente.
Ora, quer o erro, quer o engano traduzem uma ideia de falsa representação da realidade, que levam o burlado a representar mentalmente os factos que lhe são apresentados por forma diversa da que eles tomam, agindo o enganado, por se encontrar falsamente convencido da realidade.
Por isso, o erro ou engano funcionam como instrumento manipulador da inteligência da vítima, que assim é conduzida à auto-lesão. Este erro ou engano não requerem uma certeza da vítima quanto à falsa figuração da realidade, porque mesmo o que a vítima tenha duvida, haverá erro ou engano se ela decidir praticar os actos que produzem o prejuízo patrimonial.
Ora, o Juiz pode cair em erro, sendo susceptível de tomar decisões com base em enganos, daí a existência de um regime de recursos de revisão e um outro regime de recursos ordinários.
Assim, na perspectiva da burla processual, que é a que mais nos interessa, podendo ser o juiz enganado, este pode seguir o caminho previamente trilhado e apontado pelo agente, causando prejuízo a outra pessoa, havendo uma necessária causalidade (cfr.Fernanda Palma/Rui Pereira, ob. cit., p. 329), sem esquecer que o que é necessário à consumação é a diminuição patrimonial do lesado e não o enriquecimento efectivo do lesante.
Na burla processual, é preciso compreender-se que a conduta do agente foi a de, efectivamente, usar o processo para daí colher os proveitos que idealizou (ou ao menos, parte deles). Na determinação desta conduta, é sabido que a prova do dolo não é fácil, assim como não o é no preenchimento de outros crimes.
Por isso, apenas quando se produz uma diminuição patrimonial real e efectiva do lesado, se pode falar em prejuízo e, como tal, de consumação.
É, pois, necessária uma conduta astuciosa que produza erro ou engano na vítima e que esta, por outro lado, pratique actos tendentes à diminuição do património (seu ou alheio), resultando assim o prejuízo patrimonial, sendo que o prejuízo se dá com a sentença motivada pelo engano.
Ora, como já dissemos, na burla processual, a parte num processo, com a sua conduta enganosa, realizada com ânimo de lucro, induz o Juiz em erro e este, em consequência do erro, dita uma sentença injusta que causa um prejuízo à parte contrária ou a terceiro. Uma parte no processo provoca o erro do juiz, apresentando conscientemente dados ou meios de prova falsos para conseguir uma decisão desfavorável à outra parte.
Por isso, na burla processual, a apresentação duma peça falsa, mesmo acompanhada de documentos materialmente falsos ou incompletamente verdadeiros, que corroboram a versão, deve concluir-se que tal actividade tem por objectivo exclusivo a realização do crime de burla.

Vejamos agora o caso concreto.
Segundo os factos alegados no RAI, o arguido e as testemunhas E… e D…, agindo segundo um projecto comum e, portanto, de comum acordo e intencionalmente, enganaram o tribunal com base em falsos contratos de compra e venda comercial, obtiveram sentenças favoráveis que, com base nos depoimentos dos três e nas facturas que na realidade não traduziam verdadeiras compras e vendas de areia, impuseram ao recorrente e à sociedade G… a obrigação de pagamento das elevadas quantias em dinheiro nelas fixadas a favor da F…, quantias que, por sua vez, eram necessárias para que esta pagasse ao arguido C… a elevada quantia em que a favor deste foi condenada na acção nº 79/08, como já anteriormente se referiu.
Essas sentenças implicaram assim uma verdadeira transferência patrimonial do recorrente e da G… a favor da F… e do C…: de um lado, a criação ou constituição da obrigação de pagamento por parte daqueles, a onerar como passivo o seu património, do outro lado, e como contrapartida daquela obrigação, o correspondente direito de crédito a favor da F…, com o correspondente engrandecimento do seu activo patrimonial.
No caso dos autos, como vimos, na tese do RAI, é o recurso pelos arguidos a uma acção cível na qual é pedida a condenação dos RR a pagar quantias em dinheiro de montante muito elevado mas não realmente devido, utilizando para justificar a suposta dívida dessas quantias, falsos factos relativos a supostos contratos de compra e venda comercial supostamente celebrados entre a A., como vendedora, e os RR., como compradores, mas em que, nunca tendo havido tais contratos, nunca houve vontade de realizar o correspondente negócio jurídico, mas antes uma decisão pré-concebida de, fazendo ao tribunal crer na veracidade daqueles contratos, obter uma sentença condenatória do pagamento do alegado e respectivo preço.
Os contratos de compra e venda, nesta tese, foram assim falsamente invocados, com suporte em factos e contratos de compra e venda falsos, nas facturas sem correspondência alguma com a realidade, e nos depoimentos falsos que corroboraram tais factos, tais contratos e tais facturas, não foram mais do que o elemento de que os arguidos, no seu projecto comum, astuciosamente se serviram para enganar o tribunal com vista a extorquirem, pela via da esperada sentença, as elevadas quantias reclamadas dos RR.
A ser assim, justifica-se uma reacção social traduzida numa pena criminal, verificados que estejam os demais elementos do tipo legal da burla.
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Pelo exposto, julga-se procedente o recurso e nessa medida revoga-se a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que admita a instrução quanto aos imputados crimes de falso depoimento (relacionado com o processo n.º 2531/06.0TBPVZ) e de burla.
Sem custas.

Porto, 11 – 01 – 2017
Donas Botto
José Carreto