Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1856/19.9T8AGD-A.P3
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO RAMOS LOPES
Descritores: PROVA DOCUMENTAL
DOCUMENTO PARTICULAR
CONTRATO DE CESSÃO DE CRÉDITOS
EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
LEGITIMIDADE ACTIVA
Nº do Documento: RP202301101856/19.9T8AGD-A.P3
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE; DECISÃO REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Os documentos sem força probatória plena ficam sujeitos à livre apreciação – todos os documentos que não sejam documentos autênticos ou particulares cuja autoria seja reconhecida (aqueles e estes têm força probatória plena - arts. 371º e e 376º do CC, respectivamente), desde que impugnados pela parte contra quem são apresentados, vêem a sua eficácia probatória dependente da livre apreciação do juiz.
II - A impugnação do documento particular não determina, pois, que ao mesmo não possa ser reconhecido valor probatório, antes implicando que o mesmo fica sujeito à livre apreciação do juiz.
III - Demonstrado que o exequente embargado sucedeu (por acto inter vivos – contrato de cessão de créditos) ao credor na titularidade activa da obrigação exequenda, tem de reconhecer-se a sua legitimidade activa – sucedeu (por acto inter vivos) a quem no título dado à execução figura como credor.
IV - Em relação ao devedor, que não tem de ser parte no contrato, a eficácia da cessão depende da notificação ou da aceitação, podendo a notificação ser feita judicial ou extrajudicialmente, quer pelo cedente quer pelo cessionário.
V - A notificação da cessão ao devedor (art. 583º, nº 1 do CC) pode ser feita através da citação para a execução que o credor-cessionário proponha contra os devedores em vista da realização coerciva do crédito cedido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 373/20.9T8OVR-A.P1
Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Apelante (exequente embargada): L..., SARL.
Apelados (executados embargantes): AA e BB.
Juízo de execução de Águeda – Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro.
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Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que contra eles instaurou a L..., SARL, para haver coercivamente a quantia de 73.044,16€, invocando que por contrato de cessão de carteira de créditos, outorgado em 21/09/2016, o Banco 1... (assim como o Banco 2...) lhe cedeu uma carteira de créditos, bem como todas as garantias a eles inerentes, englobando o crédito peticionado (crédito consubstanciado em mútuo com hipoteca celebrado entre o cedente, como mutuante, e CC e DD, como mutuários, e em que intervieram os apelantes como fiadores destes mutuários), apresentaram-se os executados AA e BB a embargar invocando, além da falta de personalidade jurídica e judiciária da exequente, da inexigibilidade da obrigação exequenda, da errada liquidação do valor devido e da prescrição dos juros, a ilegitimidade da exequente, impugnando a alegada cessão de créditos (que alegam não lhe ter sido notificada), não aceitando que o Banco 1..., SA, haja cedido qualquer crédito à exequente de que eles, embargantes, devedores (mormente o crédito invocado no requerimento executivo).
Contestou a exequente embargada, sustentando a sua personalidade jurídica e judiciária, a correcção da liquidação efectuada, a não prescrição dos juros, a irrelevância da declaração da insolvência dos mutuários relativamente aos embargantes (pois os efeitos daquela insolvência não se estende aos garantes) e, bem assim, a sua legitimidade activa para a execução, por ser válido e eficaz o contrato de cessão de créditos que celebrou com o Banco 1..., S.A., que, aliás, comunicou aos embargantes.
Proferida decisão que, além de julgar improcedente quer a falta de personalidade jurídica e judiciária da exequente embargada, quer a sua ilegitimidade activa (considerando provada a invocada cessão de créditos e bem assim a sua comunicação aos executados), julgou parcialmente procedentes os embargos, determinado o prosseguimento da execução com dedução do valor dos juros de mora prescritos, contados a partir de 8/05/2018, apelaram os embargados, sustentando a falta de personalidade jurídica e judiciária da exequente embargada, a inexigibilidade da obrigação, a errada liquidação da quantia exequenda e a ilegitimidade da exequente embargada (defendendo a anulação da decisão, por ser indispensável o prosseguimento do processo para instrução).
Conhecendo da apelação, foi em 23/11/2020 proferido acórdão que, reconhecendo gozar a exequente de personalidade judiciária, revogou a decisão recorrida, determinando o prosseguimento do processo para a fase instrutória por se entender que o estado do processo não permitia conhecer imediatamente da excepção da ilegitimidade da exequente, impondo-se a produção de prova sobre os factos relevantes alegados pelas partes nos articulados.
Em vista de dar cumprimento ao assim decidido, determinou-se no tribunal a quo a notificação da embargada exequente para juntar aos documentos tidos por pertinentes (a versão digitalizada do original do invocado contrato de cessão de créditos, acompanhada da lista de créditos cedidos, com sinalização do crédito exequendo e ainda cópias das cartas enviadas aos embargantes de comunicação de tal cessão) e após (juntos tais documentos, que mereceram pronúncia dos embargantes), por entender que a questão era tão só de direito, foi proferido saneador-sentença que, ‘quanto à questão da ilegitimidade da exequente’, julgou improcedentes os embargos e determinou o prosseguimento da execução, deduzido o valor dos juros de mora prescritos, referentes ao período contado a partir de 8/05/2018.
Decisão revogada por decisão sumária de 29/03/2022, que determinou o prosseguimento do processo para a fase instrutória, por entender ser necessário julgamento para decidir da matéria concernente à questão da invocada ilegitimidade da exequente (considerando-se que face à posição assumida pelos embargantes não era então possível considerar provado o invocado contrato de cessão de créditos, bem como a notificação de tal contrato aos embargantes) e dos demais factos relevantes alegados pelas partes nos articulados (e não só, pois, da matéria concernente a questão da ilegitimidade).
Voltados os autos à primeira instância, em vista de cumprir o superiormente determinado, identificou-se a ‘legitimidade processual da exequente’ como objecto do litígio e enunciaram-se como temas da prova a celebração do invocado contrato de cessão de créditos (e a inclusão do crédito exequendo em tal cessão) e a comunicação de tal cessão aos embargantes e, após julgamento, foi proferida sentença que julgou procedentes os embargos e declarou a exequente parte ilegítima na execução, absolvendo os executados da instância executiva.
Apela a exequente embargada, defendendo a revogação da sentença e sua substituição por outra que a reconheça como parte legítima e, em consequência, determine o prosseguimento dos autos executivos, terminando as alegações formulando as seguintes conclusões:
A. Entendeu o Tribunal que não tem a ora Recorrente legitimidade activa por não resultar provada a celebração de contrato de cessão de créditos, tampouco entende que foi dado conhecimento aos Recorridos do mesmo.
B. Não obstante a prova documental junta aos autos, que atesta de forma clara e sem margem para dúvidas a ocorrência quer de um facto dado como não provado, quer do outro.
C. Note-se, ainda, que a notificação da cessão demarca somente o momento a partir do qual o devedor fica obrigado ao cumprimento da obrigação cedida perante o cessionário.
D. Não é, pois, a alegada omissão, geradora de ilegitimidade activa da Recorrida, não se podendo fundar o Tribunal ad quo em tal facto para a determinar.
E. Porquanto tal legitimidade adquiriu a ora Recorrente no momento da celebração do contrato de cessão de créditos, não fazendo a lei depender a sua legitimidade de qualquer acção ou omissão por parte da mesma ou aceitação, conhecimento ou participação por parte dos Recorridos.
F. Concluindo a Recorrente ter legitimidade para os autos a que os presentes são apensos, reconhecimento esse que se requer.
Contra-alegaram os embargantes em defesa da decisão apelada e pela improcedência da apelação, concluindo:
A. o douto Tribunal a quo julgou corretamente a matéria de facto ao considerar não provado que:
A1) “por contrato de cessão de créditos celebrado em 21 de setembro de 2016 entre a ora exequente e o Banco 1..., S.A., este cedeu àquela o crédito exequendo” [vd. “1” dos factos não provados vertidos na sentença]; e
A2) “por cartas datadas de 10 de novembro de 2016, o Banco 1..., S.A. e a ora exequente deram conhecimento aos embargantes da cessão de créditos operada” [vd. “2” dos factos não provados vertidos na sentença];
B. os Embargantes/Recorridos impugnaram expressamente haver sido cedido à Exequente/Embargada/Recorrente, pelo “Banco 1..., S.A.” e/ou pelo “Banco 2..., SA”, o crédito por esta alegado e invocado no requerimento executivo;
C. os Embargantes/Recorridos impugnaram, por falsidade (com os fundamentos referidos nesta resposta), o documento nº 1 junto pela Exequente/Embargada/Recorrente ao requerimento executivo;
D. os Embargantes/Recorridos impugnaram, por falsidade (com os fundamentos referidos nesta resposta), os documentos nºs 1, 2, 3 e 4 juntos pela Exequente/Embargada/Recorrente à respetiva contestação aos embargos;
E. recaía sobre a Exequente/Embargada/Recorrente o ónus de responder àquelas impugnações por falsidade e de provar a veracidade daqueles cinco documentos (o que não fez), sob pena de estes não poderem ser atendidos na causa para efeito algum;
F. a certidão judicial junta pelos Embargantes/Recorridos aos autos em 22.10.2019 e os dois documentos (pesquisas no “site” dos “CTT”) que juntaram aos autos a 05.03.2020 demonstram e provam a falsidade dos cinco documentos referidos nas precedentes alíneas C) e D);
G. a Exequente/Embargada/Recorrente juntou aos autos, em 27.05.2021, quatro documentos anexos ao respetivo requerimento então entregue, deixando claro que não dispunha dos registos postais;
H. os Embargantes/Recorridos exerceram o respetivo contraditório relativamente a esses documentos através de requerimento que juntaram aos autos no dia 11.06.2021, impugnando expressamente os documentos juntos pela Exequente/Embargada/Recorrente em 27.05.2021, bem como deixaram impugnado o efeito probatório que esta deles pretendia extrair, nos termos vertidos no precedente número II-7.6. desta resposta;
I. a Exequente/Embargada/Recorrente nada respondeu ou requereu na sequência do vertido pelos Embargantes/Recorridos no seu requerimento de 11.06.2021;
J. o ónus da prova da matéria referida na precedente alínea A) impendia sobre a Exequente/Embargada/Recorrente, à qual competia individualizar e produzir os concretos meios de prova (mormente documentais) que entendesse relevantes e adequados para o efeito;
K. a Exequente/Embargada/Recorrente não logrou provar tal matéria;
L. o título dado à vertente execução consiste na escritura pública de “compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança” junto ao requerimento executivo pela Exequente/Embargada/Recorrente;
M. a Exequente/Embargada/Recorrente não foi e não é interveniente em qualquer dos atos titulados pela referida escritura pública;
N. a Exequente/Embargada/Recorrente não foi nem é titular de qualquer das relações jurídicas então ali estabelecidas, não é titular de qualquer interesse relevante emergente do título dado à execução, não detém qualquer direito de crédito sobre os Embargantes/Recorridos e não tem qualquer interesse legítimo nem interesse direto em demandar;
O. a Exequente/Embargada/Recorrente não tem legitimidade processual para propor a execução embargada – cuja instância, por ilegitimidade ativa, se deve consequentemente extinguir;
P. a douta sentença recorrida não viola qualquer disposição legal.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Do objecto do recurso.
Considerando, conjugadamente, a decisão recorrida (que constitui o ponto de partida do recurso) e as conclusões das alegações (por estas se delimita o objecto dos recursos, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), as questões a decidir reconduzem-se a apreciar:
- da modificação da decisão de facto,
- da legitimidade activa da exequente.
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FUNDAMENTAÇÃO
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Fundamentação de facto
A decisão recorrida considerou:
Factos provados
A. Em 9 de fevereiro de 2007, o Banco 1..., S.A. celebrou com CC e DD um contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança através de escritura pública, no valor de 62.500,0€.
B. Nos termos do referido contrato e para garantia do pagamento do capital mutuado, juros e despesas foi constituída hipoteca voluntária sobre a fração autónoma designada pela letra “L” do prédio urbano sito em Quinta ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...... e descrita na Conservatória do Registo Predial de Águeda sob o nº....
C. Os ora embargantes intervieram no contrato referido em A), tendo ali declarado o seguinte: ‘Que solidariamente afiançam todas as obrigações que os segundos outorgantes assumem a título do presente empréstimo e que na qualidade de fiadores e como principais pagadores se obrigam perante o banco ao cumprimento das mesmas, renunciando, desde já e expressamente ao benefício da excussão prévia, bem como ao benefício do prazo previsto no artigo setecentos e oitenta e dois do Código Civil e que desde já dão ainda o seu acordo a quaisquer modificações de taxa de juro, prazo do empréstimo, ou outras alterações que venham a ser convencionadas entre os segundos outorgantes e aquele Banco.’
Factos não provados
1- Por contrato de cessão de créditos celebrado em 21 de Setembro de 2016 entre a ora exequente e o Banco 1..., S.A., este cedeu àquela o crédito exequendo.
2. Por cartas datadas de 10 de Novembro de 2016, o Banco 1..., S.A. e a ora exequente deram conhecimento aos embargantes da cessão de créditos operada.
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Fundamentação jurídica
A. Da modificação da decisão da primeira instância sobre a matéria de facto.
Pretende a apelante se altere a decisão da primeira instância sobre a matéria de facto por forma a considerar provada a matéria julgada não provada, sustentando que tal modificação se impõe valorizando a prova documental junta aos autos (mormente a que, na sequência de despacho que a convidou a tal, juntou em requerimento de 27/05/2021 -
o contrato de cessão de créditos, digitalizado e traduzido, datado e assinado, acompanhado do anexo em que são identificados os créditos cedidos, designadamente o crédito exequendo, que refere estar identificado na página 13ª do anexo, na 27ª linha contada da parte inferior, e as cartas enviadas aos embargantes comunicando a cessão).
Mostrando-se satisfeitos os ónus de impugnação impostos ao recorrente que impugne a decisão da matéria de facto no art. 640º do CPC, importa reapreciar e reponderar os elementos probatórios produzidos nos autos averiguando se dos mesmos pode concluir-se, de forma racionalmente fundada, no sentido que a apelante pretende sejam julgados os factos impugnados (ou antes se deve corroborar-se o julgamento feito a propósito na decisão recorrida) – cumpre à Relação, fazendo jus aos poderes que lhe são atribuídos enquanto tribunal de segunda instância que garante um segundo grau de jurisdição em matéria de facto, efectuar uma autónoma apreciação crítica das provas produzidas (em vista de, a partir deles, expressar a sua convicção com total autonomia[1], de formar uma convicção autónoma), alterando a decisão caso adquira, face a essa autónoma apreciação dos elementos probatórios a que há-de proceder, uma diversa convicção[2].
Trata-se de processo de análise dos elementos probatórios produzidos – a decisão da matéria de facto resulta do confronto entre as provas sujeitas à livre apreciação do juiz, e assenta numa convicação objectivável e motivável, a que a se acede por via da razão, alicerçada em elementos de lógica e racionalidade (à luz das regras do bom senso, das regras da normalidade e da experiência da vida).
O princípio da livre apreciação da prova (art. 607º, nº 5 do CPC) não comete ao juiz a arbitrária faculdade de escolher a versão dos factos em litígio, antes lhe impõe a formação de convicção em obedicência a critérios de lógica e racionalidade – a valoração das provas pelo juiz deve ser feita de forma livre e segundo a prudente convicção, sem o condicionamento de critérios legais pré-estabelecidos caros aos sistemas da prova legal ou tarifada, antes resultando da sua ponderação à luz da lógica, objectivdade, racionalidade, da experiência da vida e das regras da normalidade[3].
Deve ponderar-se que as provas (art. 342º do CC) têm por função a demonstração da realidade dos factos, buscando-se através delas não a certeza absoluta da realidade dos ‘factos’ – ‘se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação de justiça’[4] –, mas antes produzir o que para a justiça é imprescindível e suficiente – um grau de probabilidade bastante, face às circunstâncias do caso e às regras da experiência da vida. A prova como demonstração efectiva (segundo a convicção do juiz) da realidade de um facto ‘não é certeza lógica mas tão-só um alto grau de probabilidade suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica)’[5].
A prova produzida nos autos a propósito da questão é, exclusivamente, documental – documentos particulares, não subscritos pelos embargantes e por estes impugnados, que por isso não fazem prova plena dos factos que representam.
Documentos sem força probatória plena, por isso sujeitos à livre apreciação – todos os documentos que não sejam documentos autênticos ou particulares cuja autoria seja reconhecida (aqueles e estes têm força probatória plena - arts. 371º e e 376º do CC, respectivamente), desde que impugnados pela parte contra quem são apresentados, vêem a sua eficácia probatória dependente da livre apreciação do juiz[6].
A impugnação do documento particular não determina que ao mesmo não possa ser reconhecido valor probatório, antes implicando que o mesmo fica sujeito à livre apreciação do juiz – ainda que desacompanhado doutros meios de prova tendentes a corroborá-lo, tal documento (elemento probatório) tem de ser analisado criticamente em vista de se apurar se demonstra ou não o facto que com a sua junção a parte pretende provar.
A decisão apelada julgou não provado o invocado contrato de cessão de créditos entre o Banco 1..., S.A., e a exequente, considerando a ‘ausência de prova produzida’ pela embargada quanto à respectiva celebração, ponderando que o documento junto aos autos (a tal contrato relativo) foi impugnado pelos embargantes.
Argumentação que não pode acompanhar-se, pois que a impugnação do documento por parte dos embargantes, como se referiu, não significa que ao mesmo deva ser recusado qualquer valor probatório (valor para fundar a livre convicção do juiz), tão só determinando que o mesmo fica sujeito à livre apreciação – o que remete, considerando não ter sido produzido qualquer outro elemento probatório a propósito da matéria, para a apreciação da valia intrínseca do documento para demonstrar a realidade do facto (da celebração do contrato), atendendo às circunstâncias do caso e à regras da experiência.
Apreciação que tem como ponto prévio (a realidade do foro demonstra-o e comprova-o, diariamente) ser normal e corrente a cessão de créditos entre entidades financeiras – diariamente, nos tribunais nacionais, se apresentam cessionários a requerer a sua habilitação em processos judiciais, mormente executivos, por terem celebrado com os cessionários, designadamente entidades bancárias, contratos de cessão de créditos, acompanhados das pertinentes garantias, que têm por objecto uma carteira de créditos (um grande número de créditos).
Não interessa à economia da presente apelação apurar das razões (interesses) que determinam as partes a assim negociar – interessa realçar que tais negócios são frequentes, sendo corrente a habilitação de adquirentes ou cessionários (seja ab initio, seja em incidente de habilitação) com fundamento em tais contratos de cessão de créditos: negócios em que os cedentes (instituições de crédito autorizadas junto dos bancos centrais) vendem a investidor (entidade que se dedica ao investimento em carteiras de risco e à aquisição de dívidas em situação de incumprimento) empréstimos de risco (já em incumprimento e até objecto de processos judiciais), por um valor global acordado, sendo que o clausulado do contrato respeita aos termos do negócio de cessão, deixando-se a identificação do objecto mediato do contrato (dos créditos cedidos) para anexo (onde todos e cada um dos créditos são identificados).
Demonstra também a prática forense (que neste âmbito funciona como experiência da vida) que, normalmente os cessionários são entidades estrangeiras (de grandes centros financeiros) e que os contratos são celebrados em língua estrangeira.
Analisado o documento junto pela exequente embargada por requerimento de 27/05/2021 (documento que já juntara com a contestação aos embargos), constata-se que o mesmo se reporta a contrato celebrado na língua inglesa (está também junta pertinente tradução e certificação da tradução, nos termos do DL 76-A/2006, de 29/03 e Portaria 657-B/2006, de 29/06), consubstanciado em ‘Contrato de Cessão de Créditos’ celebrado em 21 de Setembro de 2016 entre o Banco 1..., S.A. e o Banco 2..., SA, a título de vendedores, e L... SARL, a título de comprador, através do qual os vendedores declararam vender e o comprador declarou comprar carteira de empréstimos de risco (alguns objecto de processos judiciais) detida pelos primeiros, sendo os empréstimos vendidos identificados em anexo (ficheiro electrónico, considerado parte integrante do contrato, contendo os dados relativos aos empréstimos objecto da alienação), clausulado que se reporta a tudo o necessário ao estabelecimento da lex contractus de um tal negócio (desde a densificação do significado e alcance de determinados termos – as ‘definições’ –, passando pelo estabelecimento de regras para a interpreteção e elaboração, o clausulado relativo ao endosso da carteira de empréstimos, aos actos a ser efectuados pelos vendedores e pelo comprador em cumprimento do contrato, as cláusulas relativas ao direito de recompra de empréstimos por parte dos vendedores, as cláusulas das garantias das partes e do incumprimento das mesmas pelos vendedores, cláusula de confidencialidade, determinação da lei aplicável e cláusulas relativas à resolução de litígios), acompanhado dos respectivos anexos (atinentes às garantias dos vendedores, do comprador, da identificação dos empréstimos alienados, dos rascunhos da notificação da cessão de créditos e dos modelos de relatório de dados de cobrança).
Da cópia do original conclui-se estar o mesmo rubricado e assinado a final pelos representantes dos outorgantes, a saber: por banda do Banco 1..., S.A., por membro de conselho de administração e Vice-Presidente do comité executivo e ainda por um outro membro do conselho de administração e do comité executivo, por banda do Banco 2..., SA, por membro do conselho de administração e em representação da L..., SARL, por um seu administrador.
Nenhum elemento objectivo suscita dúvidas sobre a autenticidade do documento nem muito menos sobre a veracidade do vínculo negocial estabelecido entre as partes, não se mostrando minimamente consistentes nem racionalmente fundadas as dúvidas e objecções suscitadas pelos embargantes.
Em primeiro lugar, não colhe o argumento de que o documento junto pela embargada em 29/01/2021 demonstra que esta foi constituída em 24/03/2017 (data posterior à da elaboração do contrato) – na verdade, o documento junto pela embargada em 29/01/2021 não respeita a si, antes à sociedade L1... SARL (sociedade de responsabilidade limitada registada em 11/04/2017 e constituída em 24/03/2017, sendo detida, entre outros, pela embargada, a L... SARL).
Depois, da circunstância do Banco 1..., S.A., se manter como credor nos autos de insolvência dos mutuários afiançados pelos aqui embargantes (pelo menos à data de 15/10/2019, como se comprova pela da certidão extraída do processo de insolvência que sob o nº 1054/12.2T2AVR, a correr termos no juízo de comércio de Aveiro), sem que aí tenha havido notícia da cessão do crédito (ou a habilitação do cessionário), não significa que tal tenha cessão não tenha existido – tanto mais que os actos documentados relativos a tal processo (incluído o recebimento de quantia em pagamento do crédito reclamado) são anteriores à data da cessão (veja-se a data do cheque remetido pela massa insolvente ao Banco 1... – de 22/05/2014).
Observa-se também (ao contrário do que referem os embargantes na impugnação deduzida ao documento junto pela embargada no requerimento de 27/05/2021) que o documento é o mesmo que já fora junto com a contestação, concluindo-se que o crédito exequendo se mostra identificado no anexo destinado à identificação dos créditos cedidos através do número da operação/conta – a operação identificada no requerimento executivo (operação nº ...) mostra-se identificada no referido anexo junto no requerimento de 27/05/2021 (como refere a exequente embargada, na página 13ª, linha 27ª a contar do lado inferior), no campo destinado ao número de conta, assim se identificando o crédito exequendo com um dos créditos objecto da cessão.
Do exposto resulta que os elementos probatórios permitem concluir, com a probabilidade suficiente para as necessidades práticas da vida (probabilidade bastante, face às circunstâncias do caso e às regras da experiência), pela veracidade do facto impugnado e julgado não provado sob o número 1 pela decisão apelada (ou seja, pela celebração do alegado contrato de cessão de créditos, através do qual o Banco 1..., S.A., cedeu à embargada L... SARL, o crédito exequendo).
Diversamente se tem de concluir quando ao facto julgado não provado sob o número 2 – as cópias das cartas destinadas a comunicar a cessão aos agora embargantes (cartas subscritas por embargada e pelo Banco 1...), juntas pelo embargante com a contestação e também no requerimento de 27/05/2021, não se mostram acompanhadas do registo e/ou do aviso de recepção respectivos (sendo certo que das cópias das comunicações juntas pela embargada consta que se tratava de cartas registadas com aviso de recepção).
Impugnado o recebimento de tais comunicações pelos embargantes, não tendo a embargada logrado juntar o registo e aviso de recepção respectivos (como admite no seu requerimento – aduzindo a impossibilidade de consultar nos CTT o resultado de entrega, face ao tempo já decorrido), não pode concluir-se, com o grau de probabilidade necessária à demonstração do facto em juízo, que as mesmas tenham sido entregues/recebidas – tem de ponderar-se que a cautela e precaução de enviar as comunicações através de registo com aviso de recepção teria seguramente seguimento no cuidado de assegurar que a comunicação fora recebida pelos destinatários (cuidando de recolher e arquivar os avisos de recepção que os CTT não deixariam de devolver).
Procede, assim, parcialmente, a impugnação da decisão da primeira instância sobre a matéria de facto, julgando-se provado:
- Por contrato de cessão de créditos celebrado em 21 de Setembro de 2016 entre a ora exequente e o Banco 1..., S.A., este cedeu àquela o crédito exequendo.
B. Da legitimidade activa da exequente.
Provado o contrato de cessão, demonstrada está a legitimidade da exequente.
Apesar de no título dado à execução (a escritura de mútuo com hipoteca e fiança) não figurar como credor (art. 53º, nº 1 do CPC), certo é que a exequente logo alegou no requerimento executivo a ocorrência de fenómeno sucessório, inter vivos, no lado activo da obrigação exequenda, através do qual tal posição activa para si foi transmitida, assim justificando a sua legitimidade (art. 54º do CPC) – alegou que, por contrato de cessão de créditos, o credor (o mutuante) lhe vendeu o crédito que detinha sobre os mutuários e fiadores.
Havendo sucessão, entre vivos, na titularidade da obrigação exequenda, entre o momento da formação do título e o da propositura da acção executiva, devem tomar a posição de parte, como exequentes e executados, os sucessores das pessoas que figuram no título como credores ou devedores[7] - devendo por isso deduzir-se no requerimento inicial da execução os factos constitutivos da sucessão[8] (como no caso aconteceu).
Demonstrado que o exequente embargado sucedeu (por acto inter vivos – contrato de cessão de créditos) ao credor originário na titularidade activa da obrigação exequenda, tem de reconhecer-se a sua legitimidade activa – sucedeu (por acto inter vivos) a quem no título dado à execução figura como credor.
Transferência do lado activo da obrigação, no estádio de desenvolvimento em que se encontrava à data do contrato, cuja eficácia, relativamente aos embargantes (art. 583º, nº 1 do CC) ocorreu, pelo menos, com a sua citação para a acção executiva, pois que então lhes foi dado conhecimento da cessão.
Na verdade, em relação ao devedor, que não tem de ser parte no contrato, a eficácia da cessão depende da notificação ou da aceitação, podendo a notificação ser feita judicial ou extrajudicialmente, quer pelo cedente quer pelo cessionário[9]. Ora, a citação, enquanto acto pelo qual se dá conhecimento a uma pessoa que contra si foi proposta em juízo determinada acção, entregando-se-lhe duplicado da peça processual que introduziu o feito em juízo e cópias dos documentos que a acompanhem (arts. 219º e 227º do CPC), cumpre plenamente a função de levar ao conhecimento do devedor cedido a alteração do lado activo da relação, passando a modificação na titularidade do crédito a poder ser-lhe oposta desde então[10].
Entendimento que vem sendo observado pela jurisprudência – a cessão de créditos (contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do credor, a totalidade ou uma parte do seu crédito, traduzindo-se na substituição do credor originário por outra pessoa, mas sem produzir a substituição da obrigação antiga por uma nova, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional, pois só ocorre a modificação subjectiva operada pela transferência do lado activo da relação obrigacional) pode ser levada ao conhecimento do devedor por qualquer meio, inclusivamente pela citação do devedor cedido para a acção executiva[11]; ou seja, na cessão de créditos não é imprescindível o consenso do contraente originário cedido, bastando a notificação aludida no art. 583º, nº 1 do CC, que pode ser feita através da citação para a acção que contra o devedor proponha o credor-cessionário[12] (ou, como no caso, pode ser feita através da citação para a execução que o credor-cessionário proponha contra os devedores em vista da realização coerciva do crédito cedido).
Resulta do exposto que, face à cessão de créditos, a exequente embargada tem a qualidade de titular activa da obrigação exequenda – é, pois, parte legítima (lado activo) para a execução.
C. Conclusão.
Do exposto resulta proceder a apelação, não podendo esta Relação, à luz da regra da substituição do tribunal recorrido, conhecer do mérito dos embargos, porquanto na tramitação dos autos, em razão de errada interpretação das anteriores decisões proferidas pela Relação (acórdão de 23/11/2020 e decisão sumária de 29/03/2022), o tribunal recorrido não realizou instrução relativamente à demais matéria dos embargos (além da legitimidade – também da falta de personalidade judiciária, questão esta já decidida com trânsito em julgado), como fora determinado naquelas decisões superiores, limitando a instrução da causa (conforme resulta da identificação o objecto do litígio e enunciação dos temas da prova) à questão da legitimidade da exequente (circunscreveu-se à questão da ‘legitimidade processual da exequente’ o objecto do litígio e elencou-se como temas da prova tão só a celebração do contrato de cessão e sua comunicação da cessão aos embargantes). Tal balizamento da instrução da causa obsta a que, desde já, se possa apurar (só em atenção aos elementos constantes dos autos) a matéria de facto pertinente à apreciação e decisão das demais questões, impondo-se assim que no tribunal recorrido a causa prossiga os seus normais termos (em vista de se permitir às partes a produção das provas que entendam pertinentes relativamente aos demais factos relevantes concernentes às demais questões suscitadas nos embargos)
D. Sintetizando a argumentação decisória (em cumprimento do nº 7 do art. 663º do CPC):
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DECISÃO
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Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar procedente a apelação e, em consequência, considerando a exequente como parte legítima, em determinar o prosseguimento dos autos nos termos referidos (permitindo-se às partes a produção das provas que entendam pertinentes relativamente aos demais factos relevantes concernentes às demais questões suscitadas nos embargos).
Custas da apelação pelos embargantes apelados.
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Porto, 10/01/2023
João Ramos Lopes
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues

(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
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[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª Edição, 2018, p. 290.
[2] Defendiam-no a propósito do regime processual anterior ao introduzido pela Lei 41/2013, de 26/07, ao nível da doutrina, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2ª edição revista e actualizada, pp. 283 a 286 e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª edição, p. 227 (referindo que, por se encontrar na posse dos mesmos elementos de prova que a 1ª instância, a Relação, se entender, dentro do princípio da livre apreciação da prova, que aqueles elementos impõem uma decisão diferente sobre o ponto impugnado da matéria de facto, alterará a decisão que sobre ele incidiu – a reapreciação da prova pela Relação coincide em amplitude com a da 1ª instância); ao nível da jurisprudência (tirada no âmbito da vigência do anterior regime processual), p. ex., os Acórdãos do STJ de 01/07/2008, de 25/11/2008, de 12/03/2009, de 28/05/2009 e de 01/06/2010, no sítio www.dgsi.pt.
Posição que a doutrina e a jurisprudência vêm mantendo (e veementemente reforçando) quanto ao regime processual vigente – p. ex., na doutrina Abrantes Geraldes, Recursos (…), p. 298 a 303 (maxime 302 e 303) e na jurisprudência os acórdãos do STJ de 8/01/2019 (Ana Paula Boularot), de 25/09/2019 (Ribeiro Cardoso), de 16/12/2020 (Tomé Gomes) e de 1/07/2021 (Rosa Tching), no sítio www.dgsi.pt.
[3] Helena Cabrita, A Fundamentação de Facto e de Direito na Sentença Cível – I, p. in Balanço do Novo Processo Cível, Formação Contínua, Jurisdição Cível, CEJ, Março de 2016, disponível na página da internet https://cej.justica.gov.pt/E-Books/Direito-Civil-e-Processual-Civil-e-Comercial (consulta em Dezembro de 2022).
[4] A. Varela, RLJ, Ano 116, p. 339.
[5] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pp. 191/192.
[6] José Lebre de Freitas, A Falsidade no Direito Probatório, Almedina, 1984, p. 88.
[7] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 4ª Edição, p. 131.
[8] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código (…), p. 132, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I (Parte Geral e Processo de Declaração), 2018, p. 86 e José Lebre de Freitas, A Ação Executiva À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ª Edição, pp. 144 e 145.
[9] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 3ª edição revista e actualizada (com a colaboração de Henrique Mesquita), p. 568.
[10] L. Miguel Pestana de Vasconcelos, A Cessão de Créditos em Garantia e Insolvência, p. 405.
[11] Acórdão do STJ de 7/09/2021 (Maria Clara Sottomayor) - que cita concordante jurisprudência do STJ e das Relações -, no sítio www.dgsi.pt.
[12] Acórdão do STJ de 3/10/2017 (Hélder Roque), no sítio www.dgsi.pt.