Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
827/12.0TUPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA SOARES
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
MOTIVO DE FORÇA MAIOR
PICADA DE INSECTO
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
Nº do Documento: RP20171120827/12.0TUPRT.P1
Data do Acordão: 11/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO 1ª
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ªSECÇÃO (SOCIAL), (LIVRO DE REGISTOS N.º264, FLS.325-330)
Área Temática: .
Sumário: I - Se julga a apelação da Ré seguradora improcedente e se confirma a decisão recorrida na parte em que considerou que o acidente não proveio de motivo de força maior.
II - Ao abrigo da al. c) do nº2 do artigo 662º do CPC se anula a decisão recorrida e se ordena que o Mmº. Juiz a quo proceda a novo julgamento com vista ao conhecimento da matéria acima referida e profira decisão em conformidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº827/12.0TUPRT.P1
Relatora: M. Fernanda Soares – 1492
Adjuntos: Dr. Domingos José de Morais
Dra. Paula Leal de Carvalho
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I
Nos presentes autos emergentes de acidente de trabalho em que é Autor B…, patrocinado pelo MP, e Rés C... e D… Lda., foi proferida sentença cuja parte decisória é a seguinte: “1) Declaro que o sinistrado B…, por força do acidente sofrido, ficou afectado de IPP de 1% a partir de 21.10.2012; 2. Condeno a Ré C… a pagar ao sinistrado o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no montante de €149,45 a partir de 21.10.2012; 3. Mais condeno a Ré a pagar ao sinistrado a quantia global de €9.122,10 a título de ITA e de ITP, absolvendo-a do restante peticionado; 4. Àquelas quantias deverão acrescer juros de mora, à taxa legal, contados desde os respectivos vencimentos, até efectivo e integral pagamento; 5. Absolvo a Ré D… Lda., dos pedidos formulados contra a mesma”.
A Ré seguradora veio recorrer da sentença pedindo a sua revogação e substituição por acórdão que a absolva dos pedidos, concluindo do seguinte modo:
1. Por falta de prova o facto 9 deverá ser dado como não provado.
2. A picada de insecto desconhecido configura um caso de força maior, impedindo a caracterização do acidente como laboral.
3. A falta de prova do nexo causal entre aquela picada e as lesões e sequelas apresentadas pelo Autor também o impendem.
4. Ao fazer tal caracterização o Tribunal a quo fez errada aplicação do artigo 8º, nº1 da LAT.
O Autor veio igualmente recorrer da sentença na parte em que absolveu a Ré entidade patronal pedindo a sua revogação e substituição por acórdão que considere que a quantia anual de €15.573,97 auferida pelo sinistrado deve ser tida em conta para o cálculo da reparação do acidente, e consequentemente condene a Ré patronal no pagamento das indemnizações pelos períodos de incapacidade temporária e pensão devidas ao sinistrado, tendo em conta que tal quantia não se mostra transferida para a seguradora, concluindo do seguinte modo:
1. A Ré patronal não logrou provar que a quantia de €15.573,97, paga anualmente ao sinistrado, se destinava a compensar o mesmo de custos aleatórios ou factos extraordinários, como resulta da matéria dada como provada, sendo que sobre a entidade patronal recaía o ónus da prova.
2. A quantia de €15.573,97 não se encontrava transferida para a seguradora.
3. Tal quantia deve ser considerada retribuição para efeitos do disposto no artigo 71º da Lei nº98/2009 de 04.09.
4. O cálculo das indemnizações e pensão devem ter em conta a referida quantia, auferida pelo sinistrado na data do acidente.
5. A decisão recorrida, na parte que absolveu a Ré patronal dos pedidos, violou o disposto no artigo 71º, nº3 da LAT e no artigo 258º, nº3 do CT.
Veio ainda o Autor responder ao recurso da Ré seguradora defendendo a sua improcedência, concluindo do seguinte modo:
1. A recorrente não indica os concretos meios probatórios, constantes do processo ou registo da gravação que impunham uma decisão sobre o facto nº9, que impugna.
2. Por tal motivo, o recurso deve ser rejeitado nos termos do artigo 640º, nº1, al. b) do CPC.
3. A recorrente não indica a redacção que deve ser dada à matéria de facto, pelo que o recurso deve ser rejeitado nos termos do artigo 640º, nº1, al. c) do CPC.
4. O trabalho do Autor decorria em pleno mato, pelo que ele estava sujeito ao risco do trabalho de montagem de aerogeradores, bem como ao risco resultante do local em que o trabalho decorria.
5. A picada de um insecto, que ocorreu no local de trabalho, que era desenvolvido em plena natureza, montagem de aerogeradores, não pode ser considerado caso de força maior, tal como este conceito é definido pelo artigo 15º da LAT.
A Ré patronal veio responder ao recurso do Autor pugnando pela sua improcedência.
Admitido o recurso e corridos os vistos cumpre decidir.
* * *
II
Matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo.
1. O Autor prestou trabalho, ao serviço da Ré patronal, desde 17.09.2007.
2. O Autor prestou trabalho sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré patronal, com a categoria de técnico de montagem de turbinas eólicas.
3. O Autor estava há cerca de um mês e meio no Estado de Rio Grande do Norte, Brasil, em zona de mato, ao serviço da Ré – que procedia à montagem de um parque eólico de cerca de 91 geradores, sito na localidade de … – quando, no dia 09.11.2011, pelas 9H30M, dentro do horário de trabalho e quando preparava a ferramenta no interior de um contentor que existia para o efeito de guarda de material, foi picado por um insecto.
4. Aquando do descrito em 3, o Autor exercia funções na montagem da estrutura dos aerogeradores, bem como do sistema eléctrico.
5. O Autor recebeu tratamento no local de trabalho.
6. O Autor regressou a Portugal no dia 12.11.2011, viagem que se encontrava marcada, e como o braço continuava a doer e ia ficando cada vez mais negro, dirigiu-se do aeroporto para o hospital E…, onde recebeu tratamento, foram-lhe receitados antibióticos e anti-inflamatórios, tendo, 3 dias depois, ali voltado para fazer novo tratamento.
7. O Autor voltou ao Brasil e depois esteve na Europa.
8. Em 06.05.2012 o Autor foi novamente ao hospital E…, onde lhe foi diagnosticada a existência de uma bactéria tropical – lesão inflamatória ulcerada com várias áreas de supuração. As características são consistentes com o diagnóstico de esporotricose. O facto de não se ter demonstrado a presença de fungos não invalida este diagnóstico – e fez novos tratamentos.
9. Em consequência do evento aludido em 3 resultaram para o Autor as lesões descritas no auto de exame médico realizado no INMLCF.
10. Bem como resultaram os seguintes períodos de incapacidade: ITA desde 10.11.2011 até 26.11.2011 e desde 06.05.2012 até 05.10.2012; ITP de 30% desde 27.11.2011 até 05.05.2012 e desde 06.10.2012 até 20.10.2012.
11. E resultou para o Autor uma IPP de 1% desde 21.10.2012.
12. Na data do referido evento o Autor auferia ao serviço da entidade patronal o vencimento mensal de €1.525,00, acrescido de subsídio de férias e de natal, e a quantia anual de €15.573,97 em prémios fixos.
13. A responsabilidade por acidentes de trabalho encontrava-se transferida para a Ré seguradora.
14. A Ré seguradora aceitou a transferência da responsabilidade por acidentes de trabalho por parte da entidade patronal, pelo vencimento mensal de €1.525,00 x 14.
15. A Ré patronal aceitou que o Autor auferia, à data do evento, o vencimento mensal de €1.525,00 x 14, acrescido da quantia anual de €15.573,00 de média de outros prémios.
16. Durante os períodos em que o Autor esteve incapacitado para o trabalho, a Ré patronal pagou ao Autor o vencimento, não lhe tendo pago o prémio anual fixo.
17. O Autor, de Novembro de 2010 a Outubro de 2011, tudo inclusive, auferiu ajudas de custo em sete meses e prémio de disponibilidade em seis meses.
Adita-se a seguinte factualidade:
18. Do relatório referido em 9 consta que o Autor apresenta as seguintes lesões: “Membro superior esquerdo: Lesão ovalada de 3 cm, acastanhada, elevada, 4 centimétricas, esféricas, na região axilar e hemitórax esquerdo e várias suprapúbicas.
* * *
III
Recurso da Ré seguradora.
Objecto do recurso.
1. Da alteração da decisão quanto à matéria de facto.
2. Se o acidente proveio de motivo de força maior.
* * *
IV
Da alteração da decisão quanto à matéria de facto.
Questão preliminar – da rejeição do recurso em sede de apreciação da matéria de facto.
O Autor veio defender que a Ré/recorrente não deu cumprimento ao determinado nas alíneas b) e c) do nº1 do artigo 640º do CPC. Vejamos então.
Nos termos do artigo 640º do CPC “1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo do poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (…).
António Abrantes Geraldes refere – em comentário ao referido artigo – que (…) “O recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve especificar aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre ao recorrente indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos” (…) e acrescentado ainda que (…) “as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” (…) – Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, páginas 126/127/129.
A recorrente indicou qual o facto que considera incorrectamente julgado e a decisão que deve ser proferida quanto ao mesmo [facto 9 – não provado], a significar que deu cumprimento ao determinado nas alíneas a) e c) do nº1 do artigo 640º do CPC.
Refere ainda a recorrente que o Tribunal a quo baseou-se no relatório médico-pericial juntos aos autos e no depoimento do senhor perito médico, Dr. F…, prestado na audiência de 05.01.2007. Contudo, e segundo o seu entendimento, nem do relatório nem do depoimento resulta o nexo causal entre a picada e as lesões descritas no auto de exame médico-legal.
Do acabado de referir decorre que a recorrente deu cumprimento ao determinado na al. b) do nº1 do artigo 640º do CPC na medida em que indicou os meios de prova que, no seu entender, não determinam a prova do facto 9.
Assim sendo, passar-se a conhecer da requerida alteração.
O facto 9.
O Tribunal a quo deu como provado: Em consequência do evento aludido em 3 resultaram para o Autor as lesões descritas no auto de exame médico realizado no INMLCF.
Consta da motivação da decisão quanto à matéria de facto o seguinte: (…) “Das palavras do Autor na audiência final resulta também que este acompanhou as reacções do seu corpo subsequentes à picada que sofreu, não tendo dúvidas que esta esteve na génese das sequelas que, mais tarde, foram constatadas pelo senhor perito do INMLCF (cf. o respectivo relatório pericial de folhas 32 a 36). De resto, também aquele senhor perito, no apontado relatório da sua autoria, não deixou de considerar existir nexo causal entre as lesões que o Autor apresentava e o evento por este explanado, o que corroborou em julgamento, aí esclarecendo que chegou a tal conclusão por inexistir, em termos médicos, outra explicação para o sucedido, e considerando também o tratamento clínico efectuado. E tal, ainda que nunca tenha sido possível determinar o agente causal, sendo, no entanto, de presumir que terá sido um fungo a provocar as sequelas sofridas”.
A apelante defende que nem o relatório pericial nem o depoimento prestado pelo senhor perito permitem estabelecer o nexo causal entre o evento (a picada de insecto) e as lesões que o Autor apresenta. Analisemos então.
Comecemos pelo relatório.
Do mesmo consta: “os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano atendendo a que existe adequação entre a sede do traumatismo e a sede do dano corporal resultante, existe continuidade sintomatológica e adequação temporal entre o traumatismo e o dano corporal resultante, o tipo de lesões é adequado a uma etiologia traumática, o tipo de traumatismo é adequado a produzir este tipo de lesões, se exclui a existência de uma causa estranha relativamente ao traumatismo e se exclui a pré-existência do dano corporal”.
Do acabado de transcrever decorre, sem margem para dúvidas, que no relatório pericial se estabeleceu o nexo causal entre a picada e as lesões apresentadas pelo Autor.
Passemos agora ao depoimento do perito médico, Dr. F….
Da audição do referido depoimento resulta que o senhor perito admitiu a existência do nexo causal entre a picada e as lesões apresentadas pelo Autor.
Ora, a convicção do Tribunal a quo, a tal respeito, é também a nossa tendo em conta os referidos elementos de prova conjugados com o facto 6 [O Autor regressou a Portugal no dia 12.11.2011, viagem que se encontrava marcada, e como o braço continuava a doer e ia ficando cada vez mais negro, dirigiu-se do aeroporto para o hospital E…, onde recebeu tratamento, foram-lhe receitados antibióticos e anti-inflamatórios, tendo, 3 dias depois, ali voltado para fazer novo tratamento] e o teor do relatório de folhas 52 [relatório efectuado no Hospital Privado E… onde é referido que o Autor no dia 12.11.2011, pelas 20:15, ou seja, 3 dias após o sinistro, deu entrada no serviço de urgência, apresentando «infecção dos tecidos moles da face interna do antebraço esquerdo de 2 dias de evolução após picada de ??? no Brasil …. Refere dor+prurido»].
Termos em que improcede a pretensão da apelante e se considera assente a factualidade constante do item II do presente acórdão.
* * *
V
Se o acidente proveio de motivo de força maior.
A Ré seguradora, na sua contestação, veio dizer não aceitar a ocorrência do acidente descrito pelo Autor nem a sua caracterização como acidente de trabalho, desconhecendo a data da sua ocorrência bem como o nexo de causalidade ente o acidente e as lesões apresentadas pelo sinistrado.
Nada referiu a apelante quanto ao facto de o acidente ser proveniente de força maior.
Contudo tal questão acabou por ser abordada na sentença recorrida nos seguintes moldes: (…) “A Ré seguradora, em sede de alegações na audiência final, veio pugnar pela similitude do evento que ora nos ocupa com o explanado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28 de Maio de 2007 (consultável em www.dgsi.pt), no qual, em síntese, se considerou que uma picada de insecto consubstancia um caso de força maior, «o qual não corresponde a risco criado pelas condições de trabalho (não se provou a existência de insectos no local de trabalho ou nas suas proximidades), nem se produziu ao executar serviço expressamente ordenado pela entidade empregadora em condições de perigo evidente (a Autora estava a dirigir-se para a via pública quando sentiu a picada do insecto)». No entanto e salvo o devido respeito por opinião contrária, consideramos que, para os efeitos aqui em apreço, não se podem equiparar as duas situações. Na verdade e por um lado, não podemos esquecer que o Autor quando foi picado por um insecto, encontrava-se a laborar, mais concretamente a preparar a ferramenta no interior de um contentor destinado à guarda de material, Por outro lado, não é nada despiciendo considerar que aquele sujeito processual activo, aquando da picada, encontrava-se a trabalhar por conta da Ré patronal em zona de mato, no Brasil. Ora, as regras da experiência comum permitem-nos concluir, com mediana clareza, da maior propensão para em tal zona geográfica existirem mais insectos, potencialmente mais perigosos, sendo, por isso, bem mais acrescido o risco de pelos mesmos ser-se atacado. Do que se retira que, vistos os concretos contornos do evento em presença, impossível se torna subsumir a situação sub judice num caso de força maior” (…).
A apelante defende que a picada de insecto desconhecido configura um caso de força maior, impedindo a caracterização do acidente como laboral. Que dizer?
Inexistem dúvidas [factos 3, 6, 9] que o acidente ocorreu no tempo e no local de trabalho e em consequência do mesmo o Autor sofreu lesões – artigo 8º da Lei nº98/2009 de 04.09 (LAT) – pelo que é um acidente de trabalho. Resta averiguar, então, se o mesmo não dá direito à reparação por se verificar a situação prevista no artigo 15º da LAT.
Nos termos do artigo 15º da LAT “1. O empregador não tem de reparar o acidente que provier de motivo de força maior. 2. Só se considera motivo de força maior o que, sendo devido a forças inevitáveis da natureza, independentes de intervenção humana, não constitua risco criado pelas condições de trabalho nem se produza ao executar serviço expressamente ordenado pelo empregador em condições de perigo evidente”.
Como salienta Carlos Alegre o conceito de força maior é aquele que é devido a “ – forças inevitáveis da natureza, - independentes de intervenção humana, - que não constitua risco criado pelas condições de trabalho, - nem se produza ao executar serviço expressamente ordenado pela entidade patronal em condições de perigo evidente” – Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, página 64.
Pedro Romano Martinez refere que “O legislador optou por dar uma noção legal de força maior, relacionando-a com as forças da natureza, procedendo depois a uma restrição, pois descaracteriza a figura quando constitua risco criado pelas condições de trabalho ou se verifique ao executar serviço expressamente ordenado pelo empregador em situação de perigo” (…) – Direito do Trabalho, página 785.
Cumpre, ainda, aqui transcrever o sumário do acórdão proferido por esta Secção Social, datado de 28.05.2007 [relatado pelo saudoso Desembargador Ferreira da Costa e subscrito pelo aqui 1º adjunto], e referido na sentença recorrida: Não configura um acidente de trabalho indemnizável a situação em que a trabalhadora, ao sair do seu local de trabalho quando caminhava na rampa que liga o edifício à via pública foi atingida por um insecto no glóbulo ocular esquerdo, dado que tal acidente, embora com uma relação espácio – temporal com o trabalho, resultou de um caso de força maior e que não corresponde a qualquer risco criado ou agravado pelas condições de trabalho.
Posto isto, passemos para o caso concreto.
Na sentença recorrida recorreu-se a presunção judicial para se concluir estar provado que a picada de insecto se deveu a risco criado pelas condições de trabalho [já que no caso não se verifica a execução de tarefa ordenada pela empregadora em situação de perigo evidente]: que a zona de mato, no Brasil, é mais propícia à existência de mais insectos, potencialmente mais perigosos, sendo por isso maior o risco de se ser atacado por eles.
Segundo o disposto no artigo 349º do Código Civil “Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”.
As presunções judiciais “só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal” (artigo 351º do C. Civil), a significar que a “força destas presunções pode ser arredada por simples contraprova” – Professor Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, página 215.
As presunções judiciais, naturais ou de facto, “têm por base as lições da experiência ou as regras da vida. O Juiz, no seu prudente arbítrio, deduz de certo facto conhecido um facto desconhecido, porque a sua experiência da vida lhe ensina que aquele é normalmente indício deste” – Conselheiro Jorge Augusto Pais do Amaral, Direito Processual Civil, 9ªedição, página 303.
Acresce que “a utilização de presunções judiciais surge com mais frequência quando se torne necessário proferir uma decisão relativamente a factos essenciais correspondendo aos pressupostos normativos de que depende a procedência da acção ou da excepção, relativamente aos quais, por vezes, se torna difícil o seu apuramento através de meios de prova directa” – Temas da Reforma do Processo Civil, volume II, página 221, do Conselheiro A. Abrantes Geraldes.
Pois bem, o Mmº. Juiz a quo partiu de um facto conhecido [o trabalho do Autor processava-se em zona de mato, no Estado de Rio Grande do Norte, no Brasil] para concluir que essa zona tem maior propensão à existência de insectos perigosos e por isso maior é o risco de o trabalhador sofrer ataque desses insectos.
Afigura-se-nos legítima, com recurso às regras da experiência, a conclusão a que se chegou na sentença recorrida, a significar que a situação de força maior – a picada de insecto – se mostra «descaracterizada», e como tal, não afasta a responsabilidade da aqui seguradora, atendendo que esse evento ocorreu por força das especiais circunstâncias em que o Autor executava o trabalho.
Por tais razões podemos igualmente afirmar que a situação tratada no acórdão de 28.05.2007 é deferente da presente.
Improcede, assim, a pretensão da apelante.
* * *
VI
Recurso do Autor.
Objecto do recurso.
Da retribuição do sinistrado para efeitos de cálculo da pensão e demais prestações.
Consta da sentença recorrida o seguinte: (…) “Quanto aos prémios, não se provou que os mesmos, desde logo pela sua regularidade (tão-somente foi pago, no ano que antecedeu o acidente, ajudas de custo em sete meses e prémio de disponibilidade em seis meses), ou por terem sido acordados entre trabalhador e empregadora, integrassem o conceito de retribuição” (…).
O apelante discorda referindo que a Ré patronal não logrou provar que a quantia de €15.573,97, paga anualmente ao sinistrado, se destinava a compensar o mesmo de custos aleatórios ou factos extraordinários, como resulta da matéria dada como provada, sendo que sobre a entidade patronal recaía o ónus da prova. Tal quantia deve ser considerada retribuição para efeitos do disposto no artigo 71º da Lei nº98/2009 de 04.09. Vejamos então.
Nos termos do disposto no artigo 258º do CT/2009 [em vigor à data do acidente] “1. Considera-se retribuição a prestação a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho. 2. A retribuição compreende a retribuição base e outras prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie. 3. Presume-se constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador”.
Segundo o disposto no artigo 71º, nº2 da LAT “Entende-se por retribuição mensal todas as prestações recebidas com carácter de regularidade que não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios”. Por sua vez o nº3 do mesmo artigo refere que “Entende-se por retribuição anual o produto de 12 vezes a retribuição mensal acrescida dos subsídios de natal e de férias e outras prestações anuais a que o sinistrado tenha direito com carácter de regularidade”.
Ou seja, é retribuição tudo a que o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho e todas as prestações que revistam carácter de regularidade, salvo aquelas que se destinam a compensar o sinistrado por custos aleatórios, ou seja, “custos de natureza acidental e meramente compensatória” [acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.03.2014 em www.dgsi.pt].
Aliás, esta Secção Social sufraga igual entendimento. A título de exemplo cita-se o acórdão de 01.12.2014 [em www.dgsi.pt] onde se refere o seguinte: (…) “Procurando-se com as indemnizações ou pensões fixadas na sequência de um acidente de trabalho, compensar o trabalhador da falta ou diminuição da sua capacidade laboral e, consequentemente, da falta ou diminuição dos rendimentos provenientes do trabalho, lógico é que, para o cálculo daquelas indemnizações ou pensões, se atenda a todas as prestações que o empregador satisfazia e em função das quais o trabalhador programava regularmente a sua vida (por não serem desde logo absorvidas em custos aleatórios). Só não deverão contabilizar-se neste módulo retributivo assinalado essencialmente pela medida das expectativas de ganho do trabalhador aquelas prestações que, na palavra do artigo 26º da LAT de 1997, se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios, ou seja, aquelas que têm uma causa específica e individualizável, diversa da remuneração do trabalho ou da disponibilidade da força de trabalho” (…) [tal entendimento ´mantém-se mesmo à luz da nova LAT].
Acresce dizer que cabe à Ré patronal o ónus da prova dos factos constantes da parte final do nº2 do artigo 71º da LAT – artigo 342º, nº2 do C. Civil. Por outro lado, cumpre realçar que não é o que o empregador intitula à «quantia» paga ao trabalhador que releva mas antes o seu destino/finalidade.
Está provado que a o Autor auferia, à data do acidente, o vencimento mensal de €1.525,00 x 14 meses, acrescido da quantia anual de €15.573,97 de média de outros prémios [facto 15].
A Ré patronal veio dizer que a quantia de €15,573,97 era auferida pelo Autor apenas quando ele se encontrava deslocado fora de Portugal, traduzida no montante diário de €47,00 a título de ajudas de custo, € 2,00 diários a título de telemóvel e ainda prémio de disponibilidade – artigos 21, 27, 28 a 34 da contestação. Compulsada a matéria de facto dada como não provada verificamos que dela não consta a matéria alegada nos referidos artigos da contestação da empregadora e igualmente não consta da factualidade provada.
Ora, estando provado que o Autor trabalha para a Ré desde 17.09.2007 e que existem meses em que dos seus recibos de vencimento não consta o «pagamento» de ajudas de custo, telemóvel e prémio de disponibilidade [recibos de vencimento do Autor referentes aos meses de Dezembro 2010 e Março de 2011 sendo que nos meses de Junho, Julho e Agosto de 2011 o Autor esteve doente mas a Ré pagou-lhe o vencimento base – facto 16] é de toda a relevância apurar-se a referida matéria de facto constante dos artigos 21, 27 a 34 da contestação [nomeadamente quais as despesas que as ajudas de custo se destinavam a cobrir].
Ou seja, este Tribunal de recurso não possui todos os elementos de facto – segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito – para conhecer do recurso do Autor, pelo que se justifica o uso oficioso do disposto no artigo 662º, nº2, al. c) do CPC, tendo em vista a ampliação da matéria de facto.
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Termos em que
1. Se julga a apelação da Ré seguradora improcedente e se confirma a decisão recorrida na parte em que considerou que o acidente não proveio de motivo de força maior.
2. Ao abrigo da al. c) do nº2 do artigo 662º do CPC se anula a decisão recorrida e se ordena que o Mmº. Juiz a quo proceda a novo julgamento com vista ao conhecimento da matéria acima referida e profira decisão em conformidade.
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Custas da apelação da Ré Seguradora a cargo desta. Sem custas a apelação do Autor.
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Porto, 20.11.2017
Fernanda Soares
Domingos Morais
Paula Leal de Carvalho