Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2255/15.7T9PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ CARRETO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DEVER DE GARANTE
FILHO
SOBRINHO
Nº do Documento: RP201610122255/15.7T9PRT.P1
Data do Acordão: 10/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 1025, FLS.27-52)
Área Temática: .
Sumário: I - O crime de violência doméstica, do art. 152.º, do Cód. Penal, é um crime de resultado que pode ser cometido por omissão, traduzida na não prestação dos cuidados necessários de que a vítima carece e que leva à verificação do resultado típico: infligir maus tratos.
II – O bem jurídico (complexo) protegido pela incriminação abrange o bem-estar necessário à vida pessoal, traduzido na manutenção de um ambiente propício a um salutar e digno modo de vida.
III – Na relação sobrinho/tia não existe dever jurídico de garante; no caso dos autos, também não existe um dever contratual de assistência nem uma situação de ingerência [apesar de viverem na mesma casa, o sobrinho não assumiu uma posição de controlo nem existe uma real dependência que leve a tia a apoiar-se nele para a satisfação das suas necessidades (posição de dependência)] – pelo que, quanto a ela, a conduta do arguido é atípica.
IV – Pratica o crime de violência doméstica, o filho que, podendo, não presta ao pai a assistência adequada ao seu estado físico e mental, conduta que se traduz na ausência da prestação de cuidados alimentares, de cuidados de higiene pessoal, de limpeza da casa e na promoção de uma situação de abandono.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec nº2255/15.7T9PRT
TRP 1ª Secção Criminal

Acordam em conferência os juízes no Tribunal da Relação do Porto

No Proc. C.C. nº2255/15.7T9PRT do Tribunal da Comarca do Porto – Porto – Instância Central – 1ª Secção Criminal – J2 foi julgado o arguido:
B…

Após julgamento por acórdão de 23/6/2016 foi proferida a seguinte decisão:
“Pelo exposto, acordam os Juízes que integram o Tribunal Colectivo da 1ª Secção Criminal da Instância Central da comarca do Porto em julgar a pronúncia totalmente improcedente, absolvendo o arguido B… dos crimes de violência doméstica agravada de que vinha acusado.
Sem custas, por não serem devidas – artigos 513º, 514º e 522º, todos do Código de Processo Penal.
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Proceda ao depósito.
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Declara-se cessada a medida de coacção nos autos aplicada ao B….
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Após trânsito em julgado, efectue a comunicação prevista no artigo 37º da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro.
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Assim que requerido, restitua o cinto recolhido a fls 502 às pessoas que o tinham na sua posse (o arguido e a C…), sem prejuízo do disposto no artigo 186º do Código de Processo Penal.”

Recorre o MºPº, o qual no final da sua motivação apresenta as seguintes conclusões:
1 – O arguido B... foi absolvido da prática de dois crimes, agravados, de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. d), e nº 2, do CP, contra os ofendidos C... e D..., respetivamente tia e pai do arguido, quanto à primeira, por se entender que sobre o arguido não recaía o dever de garante, e, quanto ao segundo por entender que das condutas descritas na acusação/pronúncia não consta a referência a que a conduta do arguido tenha provocado mal estar físico, ou tenha colocado em causa o funcionamento das funções corporais do ofendido D.... E, quanto aos insultos dirigidos pelo arguido a seu pai, por se entender que essa conduta, isoladamente, não preenche o tipo de ilícito previsto no art.º 152.º do CP.
2 - Quanto ao bem jurídico: o bem jurídico protegido pela incriminação do art.º 152.º do CP é a saúde, bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, que pode ser afetado por uma multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade ou prejudiquem o possível bem estar dos idosos ou doentes que, mesmo que não sejam familiares do agente, com este coabitem.
3 – Quanto à omissão e ao dever de garante: São elementos essenciais do crime omissivo impróprio: a situação típica geradora do dever de agir; a imposição legal do dever de agir; a qualidade do autor (posição de garante); a capacidade de ação do autor; a não realização da ação imposta pelo dever; a produção de um resultado equivalente ao produzido pela ação; e, a causalidade hipotética.
4 - No Ac. STJ de 18-06-2008, foi decidido que o art. 10.º do CP faz equivaler, em geral, a omissão á acção, nos crimes de resultado. Mas a punibilidade do agente (aliás, omitente) depende da existência de um específico dever jurídico (não apenas ético) que o obrigue a agir, a evitar o resultado. O omitente, para ser punido, deve ocupar a posição de garante da não produção do resultado. ... Assim, o fundamento da punição da omissão reside na equivalência entre o desvalor da acção e o desvalor da omissão.
5 - Os deveres de garante supõem antes de mais uma relação de dependência entre o obrigado e o beneficiário desse dever, no sentido de que o obrigado ao dever de garante deve evitar a concretização de perigos em lesões do bem jurídico do beneficiário do dever de garante. Essa relação de dependência compreende, nomeadamente, o dever de assistência, entre pais e filhos, consagrado pelo art.º 1874.º do C. Civil. Entre pais e filhos, há pois um dever jurídico pessoal legal de garante.
6 - Porém, embora o CP não mencione expressamente a lei, o contrato e a ingerência como fundamentos do dever jurídico de garante, o certo é que estas tradicionais fontes de equiparação da omissão à ação constituem um fundamento da responsabilização penal do omitente pelo resultado.
7 - A ingerência, enquanto criação não lícita de uma situação de perigo para bens jurídico-penais, é também fonte do dever jurídico de garante e, portanto, da responsabilização penal do omitente pelo resultado, a título de crime de comissão por omissão.
8 - A fonte do dever jurídico de garante, com base na ingerência, reside no princípio de que quem cria uma situação de perigo tem a obrigação jurídica de praticar a ação (possível) adequada a impedir a concretização do perigo, ou seja, a produção do resultado.
9 - O fundamento do dever de garante parece assentar nos limites do uso da liberdade. Não se trata de exigir abstenção de toda ação perigosa, mas que em razão da perigosidade de certos comportamentos se atue cuidadosamente e que eventualmente se pratiquem novos atos aptos a evitar que a perigosidade dos iniciais cause a efetiva lesão dos bens jurídicos. O resultado típico tem de considerar-se objetivamente imputável, segundo as regras gerais, ao imcumprimento do dever de garante.
10 - Preenche o conceito de ingerência, a conduta do arguido B..., que, em 2014, apesar de residir sozinho com os ofendidos D... e C..., nascidos respetivamente em 19.02.2029 e 09.03.1927, como resulta dos factos provados em, I, b) e j) 5, recusou a prestação de apoio domiciliário e a integração do D... e C... em "Centros de Dia, como é referido no ponto I, l), dos factos provados.
11 - Recusa que o arguido reiterou em 09.02.2015, não obstante a proposta por parte da PSP e Segurança Social, relativamentre a C... como foi considerado provado no ponto I, ab).
12 - Como ficou provado, o arguido vivia sozinho, e desde há vários anos, como os ofendidos D... e C..., competindo-lhe por isso, em consequência da sua recusa na integração dos mesmos em Centros de Dia, assegurar-lhes os indispensáveis cuidados, designadamente de "SAÚDE", atenta a idade dos mesmos.
13 - Ao recusar a prestação de apoio domiciliário e a integração dos ofendidos em "Centros de Dia" o arguido B... assumiu a responsabilidade moral e jurídica de cuidar de ambos os ofendidos e, consequentemente, o dever de lhes assegurar o fornecimento dos cuidados de alimentação, dos cuidados médicos necessários e também de lhes proporcionar um ambiente saudável.
14 - Sobre o arguido incidia o dever de garante, quanto ao ofendido D..., decorrente, além do mais, do disposto no nº 1 do artigo 1874º do Código Civil, como é reconhecido pelo Tribunal, e, quanto à ofendida C..., decorrente da ingerência do arguido, ao recusar a prestação de apoio domiciliário e a sua integração em Centro de Dia, bem como do facto de coabitar, sozinho, com os ofendidos há vários anos.
15 - Quanto às omissões do dever de garante, consideradas provadas no ponto I, al. j), 1 a 7. O Tribunal, embora tenha considerado provadas todas as referidas omissões (al.j), 1 a 7), a verdade é que parece não retirar delas as devidas consequências.
16 - Quanto à C..., por entender, erradamente, pelas razões supra expostas, que, relativamente a esta ofendida, não impendia sobre o arguido o dever de garante, de cuidar da sua “saúde“.
17 - Quanto ao ofendido D..., por entender, como parece resultar da fundamentação do Acórdão, que o bem jurídico protegido é apenas a integridade física.
18 - Porém, deverá ser considerado que, não é apenas a integridade física o bem jurídico protegido pela norma em apreço, mas sim a SAÚDE, protegendo assim, o art.º 152.º do C. Penal, um bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, que pode ser afetado por uma multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade, ou prejudiquem o possível bem-estar dos idosos ou doentes que, mesmo que não sejam familiares do agente, com este coabitem.
18 – Haverá, por outro lado, de considera-se que as condutas omissivas do arguido, consideradas provadas no ponto I, al. j), 1 a 7, atingem uma gravidade tal, e são de tal modo danosas para a SAÚDE dos ofendidos, que não poderão deixar de considerar-se como de abuso sobre os idosos.
19 - De facto, "a pessoa de idade que não é alimentada, que não beneficia de cuidados médicos necessários, a quem não se dirige a palavra por dias e semanas a fio, sofre maus tratos físicos e psicológicos que responsabilizam necessariamente aquele que tem o dever de cuidar dela e que se encontra em condições de o fazer".
20 - Mostra-se, que as condutas omissivas do arguido B..., designadamente, não assegurando a alimentação adequada dos ofendidos D... e C..., não assegurando a prestação de cuidados de higiene a seu pai, não cuidando mínimamente da limpeza da habitação e mantendo-se fora de casa todo o dia e deixando sozinhos os referidos ofendidos, em condições deploráveis, violam claramente os deveres decorrentes da sua posição de garante, quanto à SAÚDE dos dois ofendidos.
21 - Quanto à restante matéria de facto considerada provada e condutas do arguido, por omissão e ação, de que se salientam:
- os factos considerados provados nas al. e) a h), reveladores, por um lado, da incapacidade dos ofendidos, e, por outro lado, da carência, que tinham, de que lhes fosse fornecida a alimentação necessária, o indispensável acompanhamento médico, a criação de condições de habitabilidade mínimas e que lhes fosse prestado o carinho que deveriam ter recebido do arguido, enquanto filho e sobrinho dos ofendidos;
- os factos considerados provados nas al. e) a h), reveladores, de que o arguido não cumpriu, minimamente, as obrigações decorrentes do dever de garante da SAÚDE dos ofendidos;
- os factos considerados provados nas al. ai) e aj), reveladores, do "abuso individual", que pode assumir diferentes formas, designadamente, o abuso financeiro (o património ou bens do idoso são utilizados sem o consentimento em benefício alheio);
- os factos considerados provados na al. ak), quanto aos quais deverá ser entendido que constitui violência doméstica sobre o idoso a sua sujeição permanente a gritos, ameaças e insultos, dado o evidente efeito que podem ter sobre o seu bem-estar físico e psicológico ao serem fonte indiscutível de stress, sofrimento e angústia.
22 – Quanto à relação de causalidade adequada existente entre as condutas ativas e omissivas do arguido e os danos produzidos na saúde física e emocional dos ofendidos D... e C...; o conceito jurídico de causalidade é um conceito de relação jurídico-social, que conduz a conteúdos ontológicos e normativos, não sendo, portanto, idêntico nem aos conceitos causais das ciências naturais nem aos filosóficos.
23 - Mostra-se, como resulta da matéria de facto considerada provada, que as condutas do arguido provocaram, como também foi considerado provado, danos na saúde física e emocional dos ofendidos, que foram consequência adequada das condutas ativas e omissivas do arguido.
24 - Da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão – art.º 410.º, n.º 2, al. b), do CPP. O vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão verifica-se quando, “de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ...”.
25 - Consta-se que o Tribunal considera, ao referir-se ao bem estar físico da pessoa, e mesmo colocar em causa o normal funcionamento das suas funções corporais, que o bem jurídico protegido é a integridade física e não a SAÚDE - entendida nas vertentes de saúde física, psíquica e/ou mental - mas também abrange a proteção da dignidade humana.
26 – Porém, resulta da matéria de facto considerada provada, não só a prática, pelo arguido B..., de condutas omissivas e ativas, relativamente aos dois ofendidos D... e C..., como também que essas condutas lhes causaram danos na Saúde, danos esses que se mostram igualmente comprovados, e, essencialmente, atentaram gravemente contra a dignidade humana dos ofendidos.
27 - Manifestamente, os factos comprovados impunham decisão diversa, na verdade;
- o arguido, só contratou o almoço e uma refeição intermédia, para o ofendido D..., e apenas o almoço, para a ofendida C..., e apenas durante 6 dias por semana, não adquirindo quaisquer outros alimentos para os ofendidos, situação claramente atentatória da SAÚDE e da dignidade humana dos ofendidos.
- não prestou, nem garantiu que fossem prestados, de forma habitual, os cuidados normais de higiene em relação ao seu pai, o qual, pelo menos a partir de finais de 2013, começou a ser visto com a roupa suja, a cheirar “mal” (designadamente cheirando a urina), e com a barba por fazer, situação claramente atentatória da SAÚDE e da dignidade humana do ofendido.
- habitualmente, mantinha-se fora de casa todo o dia, ali apenas pernoitando e fazendo a sua higiene, deixando sozinhos o D... e a C..., situação claramente atentatória da dignidade humana dos ofendidos.
- Não providenciou pela limpeza da habitação, que até Dezembro de 2014 foi sendo efectuada, apenas um dia por semana, e praticamente a título gratuito, por uma amiga da C..., ficando a residência, nos restantes dias, a acumular urina e lixo, e muitas vezes apresentando cheiro «nauseabundo», situação claramente atentatória da SAÚDE dos ofendidos.
- não obstante os pedidos da C... para que o fizesse, o arguido não consertou nem providenciou pelo conserto da porta principal da residência, por esse motivo o D... e a C..., quando pretendiam entrar e sair de casa, tinham de vencer uma escadaria composta por 4/5 degraus, com dificuldade e risco de queda, situação claramente atentatória da SAÚDE dos ofendidos.
- na manhã de 26 de Janeiro de 2015 a residência do D... e da C..., encontrava-se suja, cheirando a urina, situação claramente atentatória da SAÚDE dos ofendidos.
- na sequência da queda, em 06 de Fevereiro de 2015, sofrida por D..., do socorro prestado por vizinhos e condução ao hospital, no seu regresso a casa, em 07 de Fevereiro de 2015 (Sábado), mais uma vez o D... e a C... ficaram sozinhos a maior parte do dia, situação claramente atentatória da SAÚDE dos ofendidos.
- no dia 08 de Fevereiro de 2015 (Domingo), mais uma vez o D... e a C... ficaram sozinhos a maior parte do dia, situação claramente atentatória da SAÚDE dos ofendidos.
- na tarde de 9 de Fevereiro de 2015, a C... encontrava-se deitada no seu quarto (...), envergando um pijama sujo e com pouca roupa, situação claramente atentatória da SAÚDE da ofendida.
- na tarde de 09 de Fevereiro de 2015 (e com as citadas temperaturas), o D... encontrava-se prostrado na cama, com um casaco de pijama de verão, urinado e sem roupa ou qualquer agasalho na parte inferior do corpo («da cintura para baixo»), com tremores e sem qualquer outro tipo de reacção. Depois dos primeiros socorros prestados pelos bombeiros – a pedido de familiares do D... que ali acorreram, pois que o arguido não se encontrava em casa -, e que se traduziram no aquecimento com uma manta térmica e administração de oxigénio, o D... apresentava ainda uma temperatura auricular de 30º, correspondente a hipotermia média/grave, situação claramente atentatória da SAÚDE do ofendido.
- nesse momento, e conforme era já notório, o D..., com 85 anos de idade, apresentava quadro de hipernatrémia, rabdomiólise e sinais de desidratação e atrofia muscular, sendo, em termos de higiene, descrito como «imundo», situação claramente atentatória da SAÚDE do ofendido.
- na tarde de 17 de Fevereiro de 2015, a C... uma vez mais permanecia deitada na cama do compartimento que lhe fora destinado, ostentando hematomas em ambos os olhos e na parte esquerda da testa. No entanto, o arguido não providenciou por qualquer cuidado médico, hospitalar ou farmacêutico à C... (com 87 anos de idade, com as patologias supra descritas e quedas anteriores, com dificuldades de locomoção), nem o arguido lhe efectuou aqualquer curativo, situação claramente atentatória da SAÚDE da ofendida.
28 - Teremos pois de concluir que o douto Acórdão incorre no vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, porquanto deverá concluir-se que, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, a fundamentação justifica decisão oposta, de condenação do arguido pela prática dos crimes pelos quais foi acusado e pronunciado.
29 - Da medida da pena: Na determinação da medida concreta da pena deverá o Tribunal considerar que “o legislador penal por várias vezes se refere à especial vulnerabilidade em razão da idade, fazendo-a funcionar como fator de agravação” e “a necessidade de reforçar a consciência jurídica das pessoas relativamente a este crimes, estabelecendo a relação entre a violência que se materializa ao lado delas todos os dias, das mais variadas formas, e a sua relevância penal, que passa desapercebida, em grande parte devido à densidade normativa dos tipos legais de crime”. São pois elevadas as exigências de prevenção geral, devendo por isso o arguido ser condenado em penas de prisão.
30 - Das normas jurídicas violadas – art.ºs 10.º, n.º 2, e 152.º, n.º 1, al. d), e n.º 2, ambos do C. Penal. O Tribunal interpretou o art.º 10.º, n.º 2, do C. Penal, relativamente ao dever de garante do arguido, como não abrangendo a relação familiar (tia/sobrinho) existente entre a ofendida C... e o arguido B....
31 - Contudo, deveria ter interpretante tal norma no sentido de que sobre o arguido B... recai um dever jurídico de garante, decorrente da ingerência, relativamente à SAÚDE da ofendida C..., bem jurídico protegido pelo crime p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. d), e n.º 2, do C. Penal.
31 - Por outro lado, quanto ao ofendido D..., é entendimento do Tribunal que a matéria de facto considerada provada, não preenche o tipo legal, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. d), e n.º 2, do C. Penal, designadamente, por se “desconhecer” se a conduta do arguido B... prejudicou ou não o bem estar físico do ofendido ou mesmo o funcionamento das suas funções corporais.
33 - Contudo, deveria porém, ter interpretado tal norma no sentido de que o bem jurídico protegido, pelo crime p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. d), e n.º 2, do C. Penal, é a SAÚDE - entendida nas vertentes de saúde física, psíquica e/ou mental -, mas também abrange a proteção da dignidade humana, e que as condutas do arguido, consideradas provadas, são claramente violadoras desse bem jurídico, quer relativamente ao ofendido D..., quer relativamente à ofendida C....

O arguido MºPº respondeu ao recurso defendendo a sua improcedência;
Nesta Relação o ilustre PGA emitiu parecer no sentido da procedência parcial do recurso quanto ao ofendido D… e improcedente quanto ao demais.
Foi cumprido o artº 417º2 CPP e o arguido respondeu defendendo o seu recurso;

Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se à conferência.
Cumpre apreciar.
Consta do acórdão recorrido (transcrição):
“Fundamentação:
Provaram-se os seguintes factos:
I-
a. O arguido B… é filho de D…, este nascido a 19 de Fevereiro de 1929.
b. Mercê da sua separação conjugal (ocorrida no ano de 2005), o arguido passou a residir na casa de morada do seu pai, sita rua …, nº …, 1º andar direito, Porto, onde também habitava a C… (tia do arguido), nascida a 09 de Março de 1927.
c. Assim, a 19 de Fevereiro de 2015 o D… contaria 86 anos de idade, e, a 09 de Março de 2015, a C… perfez 88 anos de idade.
d. A C… padeceu de meningite na sua infância.
e. Para além disso, em Janeiro de 2015, a C… apresentava como quadro clínico «doença vascular cerebral (AVC isquémico), com factores de risco cardiovasculares traduzidos em diabetes e hipertensão arterial», tendo já sido submetida a uma «cirurgia vesical no IPO», sofrendo ainda de cegueira do direito e «fractura bilateral antiga nos tornozelos», com notórias dificuldades de locomoção.
f. Por seu turno, o D… sofreu (em Maio de 2006) enfarte agudo de miocárdio, com decorrente «cardiopatia isquémica» e com factores de risco traduzidos em «hipertensão arterial» e «dislipidemia».
g. Para além disso, no ano de 2012 foi-lhe diagnosticado quadro de demência com «períodos de desorientação frequentes».
h. E se, pelo menos até finais de 2013, o D… era pessoa autónoma, bem apresentada e cuidada, gradualmente passou a necessitar do auxílio de terceiros no que respeita aos cuidados de higiene, alimentação e conforto, necessidade que se agravou no ano anterior ao seu falecimento.
i. Conhecendo tais circunstâncias (notórias para todos aqueles que conviviam ou se cruzavam com o D…), o arguido:
1- numa primeira fase, contratou com o “Café E…” (sito nas imediações da residência) o fornecimento, no estabelecimento, do pequeno-almoço e almoço ao pai, e a entrega do almoço na residência, para a C…;
2- posteriormente, no decurso do ano de 2014, acordou o mesmo tipo de serviço com o restaurante “F…”, que fornecia o almoço e o lanche ao D…, e o almoço à C…, de terça-feira a Domingo, não possuindo aqueles, no dia de encerramento do estabelecimento (segunda-feira), qualquer refeição ou alimento assegurados pelo arguido.
j. O arguido:
1- além do referido em I-i., não adquiria nem providenciava pela aquisição de quaisquer outros bens alimentares para consumo por parte do seu pai e tia;
2- não cuidou de prestar, ou solicitar a outrem que o fizesse, de forma habitual, os cuidados normais de higiene em relação ao seu pai (designadamente a toma de banho, limpeza do corpo e lavagem da roupa), que, pelo menos a partir de finais de 2013, começou a ser visto com a roupa suja, a cheirar “mal” (designadamente cheirando a urina), e com a barba por fazer;
3- não cuidou de reparar electrodomésticos avariados que existiam na residência;
4- em 2010 promoveu o corte do telefone fixo instalado na habitação;
5- habitualmente mantinha-se fora de casa todo o dia, ali apenas pernoitando e fazendo a sua higiene, deixando sozinhos o D… e a C…;
6- não providenciava pela limpeza da habitação, que até Dezembro de 2014 foi sendo efectuada, apenas um dia por semana, e praticamente a título gratuito, por uma amiga da C…, ficando a residência, nos restantes dias, a acumular urina e lixo, e muitas vezes apresentando cheiro «nauseabundo»;
7- não obstante os pedidos da C… para que o fizesse, o arguido não consertou nem providenciou pelo conserto da porta principal da residência, por esse motivo o D… e a C…, quando pretendiam entrar e sair de casa, tinham de vencer uma escadaria composta por 4/5 degraus, com dificuldade e risco de queda.
k. Até data próxima do seu falecimento (ocorrido em Abril de 2014), uma sobrinha do D… auxiliava na organização das lides domésticas, na alimentação e higiene, daquele e da C….
l. No decurso do ano de 2014 o arguido recusou a prestação de apoio domiciliário e a integração do D… e da C… em «Centros de Dia».
m. Isto porque os próprios D… e C… o recusavam, apesar das várias propostas nesse sentido que lhe foram apresentadas pelo arguido e por outros familiares (facto invocado na contestação).
n. Na manhã de 26 de Janeiro de 2015 a médica de família G…, a pedido da Segurança Social, deslocou-se à residência do D… e da C…, ai constatando que a habitação se encontrava suja, cheirando a urina.
o. Na sequência de tal visita, a médica de família sinalizou o D… e a C… para encaminhamento urgente para «Centros de Dia» ou «Lares».
p. Ora, já a 16 de Maio de 2009 a C… (então com 82 anos de idade) havia sofrido uma queda, motivo por que teve de recorrer ao “Hospital …”.
q. E, a 22 de Julho de 2013, a mesma C… foi socorrida no serviço de urgência da mesma unidade de saúde, após queda no domicílio, com traumatismo na região frontal e periorbitária direita.
r. A C… habitualmente comparecia sozinha às consultas médicas de que necessitava.
s. No dia 06 de Fevereiro de 2015 a temperatura do ar, na zona de residência do D… e da C…, variou entre 0,4º (mínima) e 11º (máxima).
t. No dia 07 de Fevereiro de 2015 a temperatura do ar, na zona de residência do D… e da C…, variou entre 1,2º (mínima) e 12,1º (máxima).
u. No dia 08 de Fevereiro de 2015 a temperatura do ar, na zona de residência do D… e da C…, variou entre 3,23 (mínima) e 12,7º (máxima).
v. No dia 09 de Fevereiro de 2015 a temperatura do ar, na zona de residência do D… e da C…, variou entre 5,1º (mínima) e 15,1º (máxima).
w. Na tarde de 06 de Fevereiro de 2015 o D… sofreu uma queda no interior da sua residência, ficando prostrado no chão e a sangrar.
x. Sozinha e em pânico, a C… desatou aos berros, tendo sido acudida por vizinhos, que, ao verem o estado em que se encontrava o D…, logo chamaram uma ambulância.
y. Regressado a casa a 07 de Fevereiro de 2015 (Sábado), mais uma vez o D… e a C… ficaram sozinhos a maior parte do dia.
z. No dia 08 de Fevereiro de 2015 (Domingo), mais uma vez o D… e a C… ficaram sozinhos a maior parte do dia.
aa. Na tarde de 9 de Fevereiro de 2015, a C… encontrava-se deitada no seu quarto (de reduzidas dimensões, sem luz natural, e, à data, sem qualquer iluminação), envergando um pijama sujo e com pouca roupa.
ab. Não obstante a proposta por parte da PSP e Segurança Social, uma vez mais o arguido declinou que fosse prestado auxílio institucional à C….
ac. Por seu turno, na tarde de 09 de Fevereiro de 2015 (e com as citadas temperaturas), o D… encontrava-se prostrado na cama, com um casaco de pijama de verão, urinado e sem roupa ou qualquer agasalho na parte inferior do corpo («da cintura para baixo»), com tremores e sem qualquer outro tipo de reacção.
ad. Depois dos primeiros socorros prestados pelos bombeiros – a pedido de familiares do D… que ali acorreram, pois que o arguido não se encontrava em casa -, e que se traduziram no aquecimento com uma manta térmica e administração de oxigénio, o D… apresentava ainda uma temperatura auricular de 30º, correspondente a hipotermia média/grave.
ae. Nesse momento, e conforme era já notório, o D…, com 85 anos de idade, apresentava quadro de hipernatrémia, rabdomiólise e sinais de desidratação e atrofia muscular, sendo, em termos de higiene, descrito como «imundo».
af. Conduzido ao Serviço de Urgência do Hospital …, em informação clínica, ficou registado: «doente em mau estado geral, maus cuidados de higiene. Inconsciente», tendo igualmente sido diagnosticada grave desidratação, acabando por falecer cerca das 12 h 45 m do dia 10 de Fevereiro de 2015.
ag. Nesse mesmo dia 10 de Fevereiro de 2015, o arguido dirigiu-se à agência … do “H…”, com o propósito de efectuar o levantamento imediato de pelo menos € 7.500,00, só não logrando concretizar esses intentos porque o óbito do titular da conta associada era já do conhecimento daquela entidade.
ah. E, auferindo o vencimento mensal ilíquido de € 1.807,37, o arguido, além do mais:
- a 10 de Dezembro de 2013, efectuou o levantamento de € 392,03;
- a 19 de Dezembro de 2013, efectuou o levantamento de € 2.069,80;
- a 10 de Janeiro de 2014, efectuou o levantamento de € 580,00;
- a 10 de Fevereiro de 2014, efectuou o levantamento de € 600,00;
- a 10 de Março de 2014, efectuou o levantamento de € 594,00;
- a 25 de Março de 2014, efectuou o levantamento de € 1.000,00;
- a 07 de Abril de 2014, efectuou o levantamento de € 1.000,00;
- a 21 de Abril de 2014, efectuou o levantamento de € 1.600,00;
- a 09 de Maio de 2014, efectuou o levantamento de € 600,00;
- a 09 de Junho de 2014, efectuou o levantamento de € 600,00;
- a 10 de Julho de 2014, efectuou o levantamento de € 1.100,00;
- a 08 de Agosto de 2014, efectuou o levantamento de € 700,00;
- a 10 de Setembro de 2014, efectuou o levantamento de € 580,00;
- a 10 de Outubro de 2014, efectuou o levantamento de € 600,00;
- a 27 de Outubro de 2014, efectuou o levantamento de € 2.500,00;
- a 11 de Novembro de 2014, efectuou o levantamento de € 600,00;
- a 11 de Dezembro de 2014, efectuou o levantamento de € 600,00;
- a 12 de Janeiro de 2015, efectuou o levantamento de € 600,00;
- cerca das 12 h 56 m do dia 10 de Fevereiro de 2015, efectuou o levantamento de € 600,00.
ai. Todos estes levantamentos bancários foram feitos sobre a conta nº ……….. do banco “H…” (à qual ao arguido passou a ser permitido o acesso, a partir de 21 de Dezembro de 2012, por procuração datada de Dezembro de 2012, conferida pelo D…), de que o D… era o único titular, em datas em que este apresentava sinais de demência, e em que chegou a referir não ter dinheiro “nem para comprar um pão”.
aj. Desde 20102, era através da conta nº ………………., de que a C… era titular (juntamente com o D… e um irmão da C…), que eram pagas as prestações devidas pelo fornecimento do serviço de televisão por cabo na residência acima indicada, incluindo os canais “Premium” e “SportTv”.
ak. O arguido e o D…, no ano anterior ao falecimento do D…, sobretudo à noite, por vezes discutiam, alturas em que o arguido não se abstinha de apelidar o seu pai de “filho da puta”.
al. Em meados de 2014 (época em que o arguido contratou as refeições no restaurante “F…”), o arguido disse à proprietária do estabelecimento “Café E…” para não mais servir qualquer refeição ou quaisquer produtos ao seu pai.
am. Na tarde de 17 de Fevereiro de 2015, a C… uma vez mais permanecia deitada na cama do compartimento que lhe fora destinado, ostentando hematomas em ambos os olhos e na parte esquerda da testa.
an. Esse compartimento era o quarto onde a C… dormia havia mais de 50 anos (facto invocado na contestação).
ao. No entanto, o arguido não providenciou por qualquer cuidado médico, hospitalar ou farmacêutico à C… (com 87 anos de idade, com as patologias supra descritas e quedas anteriores, com dificuldades de locomoção), nem o arguido lhe efectuou qualquer curativo.
ap. O arguido actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que era o único familiar que coabitava com o D… e a C…, estes de idade avançada, com as patologias mentais e físicas acima descritas, e que, por via disso, necessitavam de auxílio.
aq. O arguido não cuidou pelo bem-estar físico e emocional do D… e da C…, actuando com indiferença por estes.
+
II-
O arguido não possui antecedentes criminais.
O percurso desenvolvimental do arguido decorreu no seio da família materna alargada, constituída por avós e tios maternos, pais e uma irmã mais nova, tendo beneficiado de ambiente familiar referenciado como equilibrado a nível afectivo, material e educativo.
Concluiu o curso complementar liceal, apresentando percurso escolar linear, sem dificuldade de ajustamento ao contexto escolar.
Praticou futebol durante mais de 15 anos, sendo formador desta modalidade nas camadas juvenis.
Para além da prática regular desta actividade, o arguido ocupava o seu tempo livre com actividades de lazer junto do grupo de pares, amigos de escola e vizinhos.
Com 18 anos de idade inicia-se no mercado de trabalho, tendo vivido diversas experiências laborais até iniciar funções, em 1980, como oficial de justiça, desde 2000 prestando serviço na unidade de serviço externo da comarca do Porto.
Casou com 23 anos de idade, relação de que tem 2 descendentes, hoje com 28 e 33 anos de idade.
Divorciou-se há cerca de 13/14 anos.
Após a separação, o arguido retornou o agregado familiar de origem, na data constituído pelo pai, D…, e pela tia, C….
No período a que se reporta a acusação, o arguido mantinha a coabitação com o pai e a tia, pessoas de idade avançada.
Em Fevereiro de 2015, na sequência do falecimento do pai, o arguido alterou a sua residência.
Actualmente, o seu agregado familiar é composto pelo próprio, pelo filho mais velho do arguido e pela família deste.
A dinâmica familiar é descrita como equilibrada, não obstante as contrariedades vividas no plano económico, atendendo a que o arguido é o único suporte do agregado a esse nível.
Em termos pessoais o arguido estabelece relações interpessoais adequadas, nesse contexto assumindo postura ajustada.
Profissionalmente, o arguido corresponde adequadamente às funções que desempenha, e estabelece relações interpessoais adequadas, com os colegas de trabalho e os seus superiores hierárquicos.
Socialmente o arguido estabelece pouca interacção com a comunidade de inserção, circunscrevendo-se às relações de cordialidade expectáveis entre vizinhos.
Não se observam sentimentos de rejeição face ao arguido.
O arguido reconhece, em abstracto, a censurabilidade dos factos que lhe são imputados, bem como a existência de vítimas e de danos.
***
Factos Não Provados
Não resultou provado, com relevo para a decisão a proferir, que:
Da acusação
a-a meningite que em criança afectou a C… tenha causado a esta sequelas ao nível cognitivo, designadamente evidentes limitações de compreensão e verbalização; e que estas limitações fossem notórias para todos aqueles que conviviam ou se cruzavam com a C…;
b-até dias antes do seu falecimento, o D… tenha sido pessoa dependente de terceiros quanto aos cuidados de higiene, alimentação e conforto;
c-o arguido tenha contratado com a proprietária do estabelecimento denominado “Café E…” apenas o fornecimento do almoço ao D…;
d-o D… cheirasse a fezes;
e-o arguido tenha recusado a reparação de um electrodoméstico que existia na sua residência;
f-o arguido não tenha cuidado de reparar ou fazer reparar o sistema eléctrico da habitação; que este, por via disso, se desligasse amiúde; que o arguido desligasse o sistema eléctrico da habitação; e que o D… e a C… ficassem longas horas às escuras, com o decorrente perigo de queda;
g-o D… e a C… jamais tenham disposto de aparelhos móveis; que não soubessem utilizar estes; e que o D… e a C… se encontrassem impedidos de pedir o socorro de que necessitassem;
h-após Abril de 2014 o arguido tenha recusado qualquer auxílio no acompanhamento do seu pai e tia; e que após essa data evitasse contactos e visitas de outros familiares;
i-na manhã de 26 de Janeiro de 2015 o arguido se encontrasse na sua habitação e tenha recusado sair do seu quarto e conversar com a médica G…;
j-o arguido não tenha acompanhado a C… quando em 2009 esta teve de se deslocar ao “Hospital …” por ter sofrido uma queda;
k-o arguido não tenha acompanhado a C… quando em Julho de 2013 esta se deslocou ao “Hospital …” por ter sofrido uma queda; e que, nessa altura, o arguido não tenha atendido diversas chamadas efectuadas por técnicos de saúde e pelo Gabinete de Apoio ao Acompanhante do “Hospital …”;
l-no dia 07 de Fevereiro de 2015 o arguido de todo não tenha cuidado e vigiado o estado de saúde do D…;
m- no dia 07 de Fevereiro de 2015, antes de sair de casa, o arguido tenha prendido os pés do D… com um cinto; e que tenha deixado a habitação às escuras;
n-no dia 07 de Fevereiro de 2015 o D… tenha permanecido, sem capacidade de reacção, deitado e nu da cintura para baixo, ou com a janela do quarto aberta;
o-no dia 08 de Fevereiro de 2015 o arguido de todo não tenha cuidado e vigiado o estado de saúde do D…; e que, nesse dia, a habitação não possuísse electricidade;
p-na tarde de 09 de Fevereiro de 2015 o D… apresentasse quadro de «caquexia» e subnutrição;
q-durante o internamento do D… o arguido apenas se tenha deslocado ao “Hospital …” após o óbito daquele, na tarde de 10 de Fevereiro de 2015;
r-o arguido procurasse reduzir ao máximo das despesas relacionadas com o D… e a C…, designadamente,
1-afirmando que não restabelecia o funcionamento do telefone fixo porque o pai e a tia fariam chamadas «sem nexo»;
2-afirmando não comprar alimentos porque a tia comia tudo num ápice, que parecia «uma coelha»;
3-não consertando os electrodomésticos avariados por tal implicar elevado consumo de energia;
4-cortando a electricidade e não reparando o sistema eléctrico;
5-que tenha deixado por pagar uma dívida de € 5,00 no estabelecimento de barbearia, relativa ao D…;
6-não providenciando pelo transporte do D… às consultas médicas necessárias; e que o D…, enquanto tal lhe foi possível, a elas tenha comparecido sozinho;
s-o arguido, perante terceiros, tenha apelidado o D… de “filho da puta, ou tenha dito «ele que vá comer para o caralho»;
t-nos dias em que o restaurante “F…” encerrava, o D… deambulasse pela zona, queixando-se de fome, pedindo comida, chegando mesmo a furtar fruta;
u-em meados de 2014 o arguido tenha dito à proprietária do estabelecimento “Café E…”, referindo-se ao D…, que «ele anda a comer em muitos lados e depois tinha de pagar”;
v-nos dois últimos anos anteriores ao falecimento do D…, alegando que o pai não os tomava, o arguido tenha deixado de comprar a medicação que àquele havia sido prescrita pelas suas patologias;
w- o arguido tenha comentado pretender que o D… andasse pela rua com urina, fezes e barba por fazer, para lhe ser mais fácil o internamento compulsivo no “Hospital …”;
x-a C…, no dia 17 de Fevereiro de 2015, tenha anuído (perante a PSP, com um gesto de assentimento) ter sido agredida pelo arguido;
y-no dia 10 de Fevereiro de 2015 a segurança social tenha proposto ao arguido a prestação de auxílio institucional à C…;
z-o arguido tenha sujeitado o D… e a C… a concretas situações de risco para a vida e integridade física, e, para além do referido em I-ak., a humilhações; e que o arguido os tenha tratado (pessoal e publicamente) como um «fardo» e como «despesa»;
Da contestação
aa- o arguido sempre tenha mantido um bom relacionamento com o seu pai;
bb- nos 10 anos que antecederam o falecimento do D…, o arguido sempre tenha provido pela alimentação, higiene e bem-estar do seu pai e tia;
cc- o arguido sempre tenha manifestado preocupação quanto ao estado mental do seu pai, e que o tenha transmitido aos técnicos da segurança social que acompanhavam os seus familiares;
dd-os aquecedores que existiam na habitação do D… e da C… se encontrassem ligados entre 06 e 09 de Fevereiro de 2015;
Invocado pelo arguido em audiência
ee- a 17 de Fevereiro de 2015 o arguido tenha acompanhado a C… ao hospital.
**
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Motivação
O arguido prestou declarações em audiência de julgamento, sendo que o seu teor, em conjugação com o teor dos documentos que constam de fls 166, 167 e 193 a 195, fundou a inclusão dos pontos I-a. a I-c. na matéria de facto provada.
O historial clínico do D… e da C… resulta sem qualquer dúvida dos registos clínicos que constam de fls 262 a 292, 293 a 335, 707 a 740 e 778 a 841, e do relatório de perícia de avaliação do dano corporal que consta de fls 571 a 574, o que fundou a inclusão dos pontos I-d. a I-g., I-p. e I-q. na matéria de facto provada.
De nenhum meio de prova produzido em audiência de julgamento resulta sequer indiciado que da meningite que em criança atingiu a C… tenham resultado, como sequelas, limitações de compreensão e verbalização – o que, por força do princípio constitucional de inocência de que o arguido beneficia, fundou a inclusão do ponto a- na matéria de facto não provada.
O arguido, nas declarações por prestadas em audiência de julgamento, afirmou que a C…, sendo pessoa autónoma, habitualmente comparecia sozinha às consultas médicas de que necessitava, o que foi confirmado pela própria C… no depoimento para memória futura que prestou, e pela G…, médica da C… – fundando a inclusão do ponto I-r. na matéria de facto provada.
O arguido, nas declarações por si prestadas em audiência de julgamento, referiu a forma como pretendia assegurar a alimentação do seu pai e tia, designadamente através da entrega do almoço à C… na residência, e o pagamento do pequeno-almoço e almoço ao seu pai, que tomava tais refeições nos estabelecimentos escolhidos pelo arguido.
Esta realidade foi em audiência de julgamento confirmada pelas testemunhas I… (que explorou o estabelecimento denominado “Café AE…” entre Maio de 2014 e Maio de 2015) e J… (gerente do restaurante denominado “F…”).
A testemunha I… declarou fornecer todos os dias as refeições ao D… e à C… (confirmando ainda que em meados de 2014 recebeu instruções do arguido para cessar o fornecimento de refeições ao D…, que passaria a tomá-las noutro estabelecimento – o que fundou a inclusão do ponto I-al. na matéria de facto provada); a testemunha J… afirmou que o fazia de 3ª feira a Domingo, inclusive.
O arguido afirmou que, no período em que contratou com o gerente do restaurante denominado “F…” o fornecimento de refeições ao seu pai e tia, às segundas-feiras o pai tomava as refeições num outro restaurante existente nas proximidades da residência.
Mas esta afirmação não mereceu confirmação por qualquer outro meio de prova.
Pelo contrário, foi sem qualquer dúvida infirmada pelo depoimento da testemunha G…, médica, de quem a C… é paciente desde Abril de 2014, e a quem esta relatou que às segundas-feiras não tinha refeição assegurada.
A circunstância de os vizinhos do D… e da C… (K… e L… – vizinhos há mais de 30 anos) terem conhecimento do fornecimento de refeições por parte do restaurante denominado “F…”, mas desconhecerem onde aqueles se alimentavam às segundas-feiras, dia de encerramento daquele estabelecimento, constitui também elemento indiciário forte da inexistência de qualquer refeição assegurada às segundas-feiras, pelo menos a partir de meados de 2014.
A conjugação de todos estes elementos fundou a inclusão dos pontos I-i.1- e I-i.2- na matéria de facto provada, e do ponto c- na matéria de facto não provada.

Testemunhas inquiridas em audiência de julgamento, que entraram e visitaram a habitação do D… e da C… (M… e N…, agentes da PSP que ali se deslocaram a 10 e 18 de Fevereiro de 2015; O…, sobrinha do D…, que até ao falecimento da sua mãe em diversas ocasiões visitou a habitação do tio), confirmaram que o frigorífico da habitação se encontrava completamente vazio.
Neste ponto considerou-se privilegiado o depoimento da testemunha P…, que entre Novembro de 2013 e Fevereiro de 2015 fez a limpeza da habitação do D… e da C… (onde se deslocava 1 vezes por semana, durante cerca de 2 horas), confirmando que o frigorífico se encontrava sempre vazio, tendo sido a depoente em inúmeras ocasiões a adquirir produtos alimentares, oferecendo-os à C…; e o depoimento para memória futura prestado pela própria C…, que confirmou habitualmente não haver qualquer comida no frigorífico – o que fundou a inclusão do ponto I-j.1- na matéria de facto provada.
A habitação do D… e da C…, pelo menos nos anos de 2013 a 2015, encontrava-se suja, com pulgas, apresentando cheiro forte a urina, e o próprio D…, após finais de 2013, começou a sair à rua com a roupa suja, com mau cheiro, por não tomar banho – é o que sem qualquer dúvida resulta do depoimento das testemunhas Q…, M… e N…, agentes da PSP que ali se deslocaram a 10 e 18 de Fevereiro de 2015); S… (amigo de infância do arguido, sendo a sua esposa familiar deste, que se deslocou à habitação do D… e da C… em Dezembro de 2013 e Fevereiro de 2015, na primeira ocasião auxiliando o D… a tomar banho, declarando que deitou ao lixo a roupa que aquele envergava, de tão suja que estava); G… (médica que se deslocou à habitação do D… e da C… em Janeiro de 2015); T… (médico que assistiu o D… na urgência em Fevereiro de 2015); O… (sobrinha do D…, que em 2014, por ocasião do funeral da sua mãe, encontrou-se com o seu tio, que nessa data, segundo afirmou, parecia «um mendigo»; e foi uma das pessoas que, a 09 de Fevereiro de 2015, chamou a polícia e o INEM para acudir ao D…, entrando em casa deste); P… (que entre Novembro de 2013 e Fevereiro de 2015 fez a limpeza da habitação do D… e da C…, onde se deslocava 1 vezes por semana, durante cerca de 2 horas), I… (que explorou o estabelecimento denominado “Café E…” entre Maio de 2014 e Maio de 2015, que relatou o estado de debilidade que foi tomando conta do D… no decurso do ano de 2014), K… e L… (vizinhos há mais de 30 anos, que entraram na habitação do D… e da C… no decurso do ano de 2014), J… (gerente do restaurante denominado “F…”, que relatou o estado de debilidade que foi tomando conta do D… no decurso do ano de 2014) e U… (sobrinha do D…, uma das pessoas que, a 09 de Fevereiro de 2015, chamou a polícia e o INEM para acudir ao D…, entrando em casa deste) - o que fundou a inclusão dos pontos I-j.2- e I-j.6- na matéria de facto provada.
De todo o modo, a circunstância de o estado geral do D… se degradar, no decurso do ano de 2014, obviamente não significa que ele se encontrasse na dependência de terceiros para fazer face à sua higiene, para prover à sua alimentação ou para ter algum conforto.
Seguramente necessitaria de auxílio, mas não se encontrava numa situação de dependência (designadamente, deslocava-se pelo seu pé para tomar as refeições nos restaurantes, e passeava pelas imediações da sua habitação) – o que fundou a inclusão dos pontos I-h. na matéria de facto provada, e do ponto b- na matéria de facto não provada.
Nenhuma das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento referiu que o D… cheirasse a fezes, mas genericamente a sujidade, particularmente urina – o que, atento o princípio constitucional de inocência de que o arguido beneficia, fundou a inclusão do ponto d- na matéria de facto não provada.
A testemunha P…, que entre Novembro de 2013 e Fevereiro de 2015 fez a limpeza da habitação do D… e da C…, onde se deslocava 1 vezes por semana, durante cerca de 2 horas, em audiência de julgamento referiu que, nesse período, a máquina de lavar louça jamais funcionou – meio de prova que sem qualquer dúvida fundou a inclusão do ponto I-j.3- na matéria de facto provada.
No entanto, de nenhum dos meios de prova produzidos em audiência de julgamento resulta mínima referência quanto a uma eventual recusa do arguido em reparar qualquer electrodoméstico, quanto a qualquer problema com o sistema eléctrico da habitação, ou ainda que o arguido desligasse este sistema eléctrico o que, atento o princípio constitucional de inocência de que o arguido beneficia, fundou a inclusão dos pontos e- e f- na matéria de facto não provada.
O arguido, nas declarações por si prestadas em audiência de julgamento, o que foi confirmado pela testemunha C… no depoimento para memória futura que prestou, reconheceu que habitualmente passava o dia todo fora de casa (trabalhando de 2ª a 6ª), e que, já no ano de 2010, havia cancelado o contrato relativo ao serviço de telefone fixo - o que fundou a inclusão dos pontos I-j.4- e I-j.5- na matéria de facto provada.
A testemunha C…, no depoimento para memória futura que prestou, confirmou ter em inúmeras ocasiões solicitado ao arguido a reparação da porta da habitação, o que este não fez, forçando a testemunha e o pai do arguido a subirem/descerem vários degraus quando pretendiam entrar/sair de casa – o que fundou a inclusão do ponto I-j.7- na matéria de facto provada.
O juízo de demonstração do ponto I-k. da matéria de facto provada fundou-se no depoimento da testemunha O… (sobrinha do D…, cuja mãe, segundo relatou, até falecer mensalmente visitava aquele, visitas que por vezes a testemunha acompanhava).
A testemunha V…, assistente social, no decurso do ano de 2014 propôs ao arguido o apoio institucional para auxiliar no acompanhamento do D… e da C…, o que o arguido inicialmente recusou, vindo a aceitar no final do ano de 2014, mas jamais formalizando essa intenção.
Sucede que a testemunha S… (amigo de infância do arguido, sendo a sua esposa familiar deste), como referiu em audiência de julgamento, no decurso do ano de 2013 tentou que o arguido e o D… aceitassem apoio institucional para assegurar o tratamento adequado deste, com o que o arguido concordou mas que o D… recusou.
E, como referiu em audiência de julgamento a testemunha O…, na tarde em que o D… faleceu, a C…, confrontada com a presença da autoridade policial e de uma técnica da segurança social que pretendia retirá-la do local, recusava sair.
Ganha assim credibilidade o declarado em audiência de julgamento a este propósito pelo arguido (a saber, que o D… e da C… recusavam apoio institucional).
Estes elementos fundaram a inclusão dos pontos I-l. e I-m. na matéria de facto provada.
O depoimento prestado em audiência de julgamento pela testemunha G… (médica que se deslocou à habitação do D… e da C… em Janeiro de 2015) fundou a inclusão dos pontos I-n. e I-o. na matéria de facto provada.
O juízo de demonstração dos pontos I-s. a I-v. da matéria de facto provada fundou-se na informação que consta de fls 549.
Do depoimento da testemunha L… (vizinha há mais de 30 anos, que acudiu ao pedido de socorro feito pela C… a 06 de Fevereiro de 2015, na sequência da queda do D…, chamando o INEM), em conjugação com o depoimento para memória futura prestado feito pela C…, resulta sem qualquer dúvida a verificação do vertido nos pontos I-w. e I-x. da matéria de facto provada.
O arguido, nas declarações por si prestadas em audiência de julgamento, reconheceu que, nos dias subsequentes ao regresso do seu pai do hospital, andou pelas imediações da sua habitação, ou seja, não permaneceu no seu interior – o que fundou a inclusão dos pontos I-y. e I-z. na matéria de facto provada.
Por isso mesmo, e porque de nenhum meio de prova se afigura possível retirar que o arguido, nos dias 07 e 08 de Fevereiro de 2015, não tenha de todo cuidado e vigiado do estado de saúde do seu pai, a dúvida insanável sobre a questão foi resolvida por aplicação do princípio de inocência constitucionalmente consagrado, o que fundou a inclusão dos pontos l- e o- (quanto à falta de cuidado e vigia; quanto ao facto de casa não ter electricidade, o agente da PSP M…, que se deslocou à habitação a 09 de Fevereiro, 2ª feira, declarou que, apesar de os aquecedores não se encontrarem a funcionar e de a iluminação ser fraca, a habitação dispunha de electricidade) na matéria de facto não provada.
Aliás, relativamente a inúmeros factos vertidos na acusação não resulta mínima referência de qualquer dos meios de prova produzidos em audiência de julgamento – o que, ainda atenta a presunção constitucional de inocência de que o arguido beneficia, fundou a inclusão dos pontos j-, k-, m-, r-1- a r-5-, s-, t-, u-, v- (em concreto sobre este ponto veja-se, pelo contrário, que, no relatório da autópsia feita ao D…, foram detectados 3 fármacos na sua corrente sanguínea) e w- na matéria de facto não provada.
Testemunhas inquiridas em audiência de julgamento relataram ter acompanhado o arguido o falecido D… às consultas médicas agendadas para este – designadamente as testemunhas S…, W… –, meio de prova que fundou a inclusão do ponto r-6- matéria de facto não provada.
As circunstâncias que precederam o falecimento do D…, designadamente a forma como foi encontrado em casa, os primeiros socorros que lhe foram prestados e os sintomas que apresentava na tarde de 09 de Fevereiro de 2015, resultam sem qualquer dúvida do depoimento das testemunhas U… e O… (sobrinhas do D…, que a 09 de Fevereiro de 2015 chamaram a polícia e o INEM para acudir ao D…), T… (médico que prestou os primeiros socorros ao D…, à porta da habitação deste), X… (médico que na urgência do hospital prestou cuidados médicos ao D…), bem como do boletim clínico que consta de fls 5 e 6, do certificado de óbito que consta de fls 7 – o que fundou a inclusão dos pontos I-ac. a I-af. na matéria de facto provada.
As referidas sobrinhas do D…, os elementos da PSP que entraram na habitação nesse dia 09 de Fevereiro (N… e M…), e a testemunha que visitou o D… na tarde de 07 de Fevereiro de 2015 (S…), unanimemente declararam que o interior da habitação estava gelado – o que naturalmente fundou a inclusão do ponto dd- na matéria de facto não provada.
Também as circunstâncias em que a C… foi encontrada na tarde desse dia 09 de Fevereiro de 2015 foram descritas pelos elementos da PSP que, juntamente com a O…, deslocaram-se à habitação daquela e do D…, os agentes M… e N…, que em audiência de julgamento confirmaram a elaboração, na sequência da sua deslocação, do expediente cuja cópia consta de fls 83 – o que fundou a inclusão dos pontos I-aa. e I-ab. no elenco dos factos provados, e do ponto y- no elenco dos factos não provados.
O arguido, nas declarações que prestou em audiência de julgamento, reconheceu ter sido o autor de todos os movimentos a débito efectuados na conta bancária titulada pelo D… a partir de Dezembro de 2013, bem como reconheceu ter procurado proceder ao levantamento de vários milhares de euros da mesma conta, no próprio dia do falecimento do pai, o que, em conjugação com o teor dos documentos que constam de fls 575 a 654 (extracto da conta bancária nº ……….. do “H…” titulada pelo D…), fls 697 (informação quanto ao salário auferido pelo arguido em 2015), fls 926 a 928 (procuração passada a favor do arguido pelo D…, referente à movimentação da dita conta bancária), e com o depoimento da testemunha Y… (bancário, funcionário do “H…”, que em audiência de julgamento confirmou que o arguido tentou desmobilizar uma aplicação no valor de € 10.000,00 de que era titular o seu pai, no próprio dia do falecimento deste, o que não foi permitido por tal facto ser já conhecido da instituição bancária), fundou a inclusão dos pontos I-ag. a I-ai. (quanto ao segmento «não ter dinheiro nem para comprar um pão», considerou-se o depoimento prestado a fls 230 a 232 pela testemunha P…, cuja leitura foi feita em audiência de julgamento – cfr fls 1320) na matéria de facto provada.
O arguido, nas declarações prestadas em audiência de julgamento, reconheceu ainda que o pagamento das prestações relativas ao fornecimento do serviço de televisão por cabo era feito por débito na conta bancária de que era titular a C…, o que, em conjunto com o teor das informações e extractos bancários que constam de fls 667 a 673 a 696, fundou a inclusão do ponto I-aj. na matéria de facto provada.
O arguido e o seu pai, o D…, tinham convivência difícil – isto mesmo o arguido confirmou à assistente social V… (que o relatou em audiência de julgamento), em audiência foi descrito pela testemunha S… (amigo de infância do arguido, sendo a sua esposa familiar deste), e confirmado pelas testemunhas K… e L… (vizinhos há mais de 30 anos, que em audiência de julgamento relataram a frequência com que ouviam discussões entre o arguido e o pai, designadamente o K… reproduzindo os insultos que com frequência ouviu o arguido dirigir ao seu pai), e pela C…, no depoimento para memória futura que prestou.
Estes elementos sem qualquer dúvida fundaram a inclusão do ponto I-ak. na matéria de facto provada, e do ponto aa- na matéria de facto não provada.
A testemunha S… (amigo de infância do arguido, sendo a sua esposa familiar deste), em audiência de julgamento declarou que em 2012 ofereceu um telemóvel ao D…, que ele utilizou, pelo menos durante um período.
O D… e a C…, apesar da idade, caminhavam pelo próprio pé, designadamente pela rua (o D… todos os dias deslocava-se pelo seu pé ao restaurante), e, com maior ou menor dificuldade, conseguiam expressar-se.
Viviam num local rodeado de casas habitadas, em pleno centro da cidade do Porto.
Manifestamente não se encontravam impedidos de pedir o socorro de que necessitassem – como resultou claro da situação de emergência vivida pelo D… e a C… a 07 de Fevereiro, quando, na sequência da queda do primeiro, a segunda pediu ajuda aos vizinhos e assim obteve a comparência do INEM em tempo útil.
Estes elementos fundaram a inclusão do ponto g- na matéria de facto não provada.
O arguido, em Maio de 2014, perante a assistente social V… recusou apoio institucional no auxílio a prestar ao seu pai e tia – ou seja, o arguido, confrontado com a disponibilidade dos técnicos da segurança social para auxiliar no apoio ao pai, simplesmente recusou, não havendo mínima notícia de ter demonstrado qualquer preocupação (o que fundou a inclusão do ponto cc- na matéria de facto não provada).
Em Dezembro desse ano, perante nova proposta, o arguido verbalizou a aceitação, mas não chegou a apresentar os documentos necessários à tramitação do processo.
Mas não há qualquer indício que o arguido por qualquer forma tenha restringido o contacto do pai com outros familiares – as testemunhas O… e S…, no decurso do ano de 2014, em diversas ocasiões encontraram-se e falaram com o B….
Portanto, se é verdade que o arguido numa ocasião recusou o apoio institucional disponibilizado, mais tarde terá reconsiderado, por forma alguma limitando o contacto do D… com outras pessoas – o que fundou a inclusão do ponto h- na matéria de facto não provada.
A testemunha G…, médica, deslocou-se à habitação do D… e da C… em Janeiro de 2015.
Declarou que a porta do quarto que a C… informou ser do arguido encontrava-se fechada, e, tendo batido, não obteve qualquer resposta.
O arguido nega que nesse momento se encontrasse na habitação.
Logo, a dúvida insanável sobre a matéria, resolvida a favor do arguido por imperativo constitucional, fundou a inclusão do ponto i- na matéria de facto não provada.
A testemunha S…, como referiu em audiência de julgamento, visitou o D… na tarde de 07 de Fevereiro de 2015.
Encontrou-o na cama, sem estar amarrado, e com roupa.
O quarto estava frio, mas a janela não se encontrava aberta.
O que fundou a inclusão do ponto n- na matéria de facto não provada.
Não possuímos informação segura quanto ao momento em que o arguido se deslocou ao hospital após ter conhecimento do internamento do D… a 09 de Fevereiro de 2015 – o arguido afirma que ali se deslocou antes das 12 h do dia 10 de Fevereiro de 2015; a testemunha O…, sobrinha do falecido D…, declarou ter permanecido no “Hospital …”, no dia 09 de Fevereiro de 2013, até perto das 23 h 00.
Logo, a dúvida insanável na matéria, por imperativo constitucional resolvida a favor do arguido, impôs a inclusão do ponto q- na matéria de facto não provada.
Os guardas da PSP N… e M… na tarde de 17 de Fevereiro de 2015 deslocaram-se à residência da C…, na sequência do que elaborou o expediente que consta de fls 90 a 95, que confirmou em audiência de julgamento, designadamente o estado físico em que encontrou a C…, documentado nas fotografias que constam de fls 93.
A C…, nas declarações para memória futura que prestou, peremptoriamente negou ter sido agredida pelo arguido – logo, na ausência de qualquer outro meio de prova sobre a matéria (e atendendo a que do relatório pericial que consta de fls 571 a 574 resulta que as lesões apresentadas pela C… são compatíveis com a hipótese de queda), a dúvida sobre esta matéria, por imperativo constitucional, foi resolvida a favor do arguido.
O que fundou a inclusão do ponto I-am. na matéria de facto provada, e do ponto x- na matéria de facto não provada.
As testemunhas U… e O… (sobrinhas do D…, que durante dezenas de anos conheceram a habitação onde residia o tio e a C…) confirmaram que o local onde a C… foi encontrada, tanto no dia 09 como no dia 17 de Fevereiro, era há muito o seu quarto – o que fundou a inclusão do ponto I-na. Na matéria de facto provada.
Os guardas da PSP N… e M…, tendo em audiência de julgamento confirmado a elaboração do expediente que consta de fls 90 a 93, relataram que, na sequência, conduziram a C… ao hospital.
E, tendo sido solicitada a totalidade dos registos clínicos da C…, de fls 708 facilmente se constata que a 17 de Fevereiro de 2015 recebeu tratamento por força da intervenção policial.
O que fundou a inclusão do ponto I-ao. na matéria de facto provada e do ponto ee- na matéria de facto não provada.
Quem de todo não dispõe de comida em casa e não vê asseguradas refeições num dos dias da semana (segunda-feira), quem não tem a casa minimamente limpa, e quem não vê assegurados os cuidados normais de higiene, obviamente não é bem tratado, o seu bem estar não é provido – conclusão que se verteu no ponto bb- da matéria de facto não provada.
Mas nenhum elemento do processo permite concluir, com segurança mínima, que do desmazelo e abandono a que o arguido remeteu o seu pai e tia tenha de facto resultado perigo concreto para a vida e/ou integridade física do D… ou da C…, ou seja, situação em que, de acordo com a absoluta normalidade das coisas e segundo a experiência comum, é de esperar morte ou lesão corporal – o que fundou a inclusão do ponto z- na matéria de facto não provada (relativamente à circunstância de o arguido ter tratado o pai e tia como um «fardo», acrescenta-se que de nenhum dos meios de prova produzidos em audiência resulta referência a tal matéria).
O D… e a C…, pela idade que apresentavam e pelas dificuldades que sentiam, manifestamente eram pessoas carecidas de auxílio.
Considerando o arguido pessoa de normal entendimento, inteligência e sagacidade, desde logo pelas declarações que prestou em julgamento, sem qualquer dúvida incluiu-se o ponto I-ap. na matéria de facto provada.
Ora, a conduta do arguido [que se traduziu em não proporcionar ao seu pai e tia alimentação qualquer pessoa de mínima formação consideraria normalmente adequada; não assegurar que o seu pai tivesse os normais cuidados de higiene; não assegurar a limpeza regular da habitação onde todos residiam; não consertar nem promoveu o conserto da máquina de lavar e da porta da habitação; deixar o seu pai e tia sozinhos a maior parte do tempo] obviamente representou um abandono, indiferença e despreza pelos seus familiares – o que fundou a inclusão do ponto I-aq. na matéria de facto provada.
Quanto aos antecedentes criminais do arguido e à sua situação sócio-económica (ponto II- da matéria de facto provada), considerou-se o teor do certificado do registo criminal e do relatório social que constam de fls 1240 e 1344 a 1348.
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São as seguintes as questões a apreciar:
- Contradição insanável entre a fundamentação e a decisão;
- Análise do tipo legal e subsunção dos factos ao direito (comissão por omissão / dever de garante/ ingerência, o bem jurídico e analise dos factos)
- escolha e medida da pena,
e ainda pena de substituição e indemnização
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O recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e que o tribunal de recurso tem de apreciar (artºs 412º, nº1, e 424º, nº2 CPP, Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335), mas há que ponderar também os vícios e nulidades de conhecimento oficioso ainda que não invocados pelos sujeitos processuais – artºs, 410º, 412º1 e 403º1 CPP e Jurisprudência dos Acs STJ 1/94 de 2/12 in DR I-A de 11/12/94 e 7/95 de 19/10 in DR. I-A de 28/12 - tal como, mesmo sendo o fundamento de recurso só de Direito: a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou o erro notório na apreciação da prova (Ac. Pleno STJ nº 7/95 de 19/10/95 do seguinte teor:“ é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”) mas que, terão de resultar “ do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” – artº 410º2 CPP, “ não podendo o tribunal socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo” in G. Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III vol. pág. 367, e Simas Santos e Leal Henriques, “C.P.Penal Anotado”, II vol., pág. 742, sendo tais vícios apenas os intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma, não sendo de considerar e ter em conta o que do processo conste em outros locais - cfr. Ac. STJ 29/01/92 CJ XVII, I, 20, Ac. TC 5/5/93 BMJ 427, 100 - e constitui a chamada “ revista alargada” como forma de sindicar a matéria de facto.
Tais vícios não são alegados, qua tale, invocando o recorrente a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
Conhecendo.
A contradição insanável da fundamentação, e entre esta e a decisão é um dos vícios intrínsecos da sentença, a que faz referencia o artº 410º 2b) CPP, e expressamente nomeado pelo recorrente, e por contradição entende-se o facto de afirmar e negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e na qualidade.
Para os fins da al. b) do n.º 2) constitui contradição apenas e só aquela que (como ali se refere expressamente), se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras de experiência, ou seja, quando de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados” – Leal Henriques e Simas Santos, CPP anotado ob. e loc. cit.,. ou como refere o STJ Ac. de 17/2/2000 “ a contradição insanável verifica-se quando é dado provado e não provado o mesmo facto.” ou mais completo ainda quando há contradição entre a matéria de facto dada como provada, entre a matéria de facto dada como provada e a matéria de facto dada como não provada, entre a fundamentação da prova da matéria de facto, e ainda entre a fundamentação e a decisão.
A recorrente alegar que existe contradição entre a fundamentação e a decisão porque os factos provados impunham decisão diversa (de condenação)
Ora como é evidente e o Exmo. PGA o salienta no seu parecer, tal situação configura uma questão relativa ao “tratamento jurídico” dado aos factos apurados, e não enquadra o vício alegado por este configurar um erro da decisão: devia ter condenado com base nos mesmos factos e não absolvido, enquanto o vicio em causa se refere à decisão da matéria de facto (provado ou não provado) por isso que tem de ser demonstrado no texto da sentença - vicio da sentença - e um dos modos de alterar a matéria de facto (revista alargada).
Assim é de julgar improcedente tal questão, sendo que os demais vícios e questões de conhecimento oficioso não são alegados e vista a decisão recorrida não se vislumbra nenhum deles.
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- Análise do tipo legal e subsunção dos factos ao direito.

A questão ou questões centrais do recurso, têm a ver com a analise dos factos provados, que não são questionados e por isso se mantem inalterados.
Assim:
Vejamos se os factos integram os crimes de que o arguido foi acusado.
O arguido foi acusado da prática do crime de violência domestica p.p. pelo artºs 152º 1 e 2 d) CP, praticados até 9/2/2015.
Diz-nos o artº 152º 1 d) e 2 CP:
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
(…)
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”
No caso está em causa não uma conduta activa (facere) do arguido mas uma omissão: não prestar os cuidados necessários de que as vitimas careciam e de que o arguido era capaz de prestar.
Tal incriminação tem por base o artº 10º1 e 2 CP, que equiparando a omissão à acção dispõe: “1 - Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei.
2 - A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado.”
Donde decorre que para que seja agente de um tal ilícito importa que sobre o autor de tal omissão recaia um dever jurídico que o obrigue a agir e a evitar o resultado.
Ora o arguido foi absolvido quanto aos factos que teriam por vítima C…, porque sobre ele não impendia um dever jurídico de agir, por não ser o facto de residirem na mesma habitação e terem uma relação de afinidade (tia / sobrinho) que decorre a obrigação jurídica de providenciar pela limpeza da casa, alimentação ou acompanhamento médico, gerando apenas um dever moral.
Contra tal argumentação se insurge o recorrente alegando que estamos perante uma situação de ingerência, no que não colhe o assentimento do ilustre PGA.
Apreciando:
O crime omissivo pressupõe sempre a violação de um dever jurídico de fazer algo (de agir), que não é feito, para evitar o resultado e o dever do agente consiste em agir para evitar a lesão do bem jurídico que se concretiza com a produção do evento material.
O facto típico é assim a “criação de um risco de verificação de um resultado típico” e existirá sempre que o risco ocorre ou é potenciado por força da omissão - Figueiredo Dias, Dto Penal, Parte Geral, I, Coimbra editora 2ª ed. Pág.927, por outro lado tem de ocorrer uma ausência de acção (da acção esperada) que resultará do que segundo a situação típica é necessário para obstar à verificação do resultado previsto no tipo legal e necessário é ainda que o omitente possa levar a cabo a acção devida (ou necessária a evitar o resultado)- cf. Figueiredo Dias, ob. cit. pág. 928;
Importa, também por isso averiguar se sobre o arguido / sobrinho impendia um dever jurídico de agir e evitar o resultado quanto à tia.
Tal dever jurídico “de garante” - de não ocorrência do resultado pode emergir ou ter como fontes directamente a lei (dever legal especial), o contrato, situações de criação do perigo e intimas relações vitais, cabendo nos deveres especiais de garante a aceitação fáctica de deveres e as relações intimas - familiares (recíprocos deveres familiares) (cf. Johannes Wessels, Direito Penal, Parte Geral 1976, pág. 157 e ss, ou como ensina Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, II, verbo, pág. 49 e ss, o dever jurídico recai sobre aquela pessoa que equilibra a relação de dependência de outrem. Esse dever jurídico constitui a posição de garante do bem jurídico protegido e resulta de uma posição de protecção ou de uma posição de controlo, traduzindo-se a posição de protecção em proteger de todos os perigos (caso dos pais), pode ser originária (pais) ou pode ser derivada - passa do titular originário para terceiros através de acto negocial (baby sitter), sendo certo que, para o mesmo professor “vai-se gerando consenso de que a lei impõe a certas pessoas, em razão de especiais qualidades, funções ou relações, determinados deveres de garante e que esses deveres resultam de uma relação fáctica de proximidade entre o omitente e determinados bens jurídicos que ele tem o dever especial de proteger …”- pág. 55.
Tal posição, está, cremos de acordo com o entendimento do Prof Figueiredo Dias, expresso no seu Direito Penal, I, 2ª ed. pág. 939 e ss,, que deixando de lado a teoria formal e a teoria das funções quanto ao fundamento/ nascimento do dever jurídico, opta por uma teoria formal-material, assente numa “unívoca relação de solidariedade natural entre o omitente e o titular do bem jurídico” - pág. 939, face à existência, de relações fácticas entre ambas (viviam na mesma casa e providenciou pela sua alimentação).
Todavia não se demonstra a existência de uma situação de real dependência entre ambos, mas antes de relativa autonomia (recusa de apoio dos Centros de dia –al.s l), m), r)), e se “não haverá razão para que a posição de garante não se estenda a outras relações familiares, máxime, avós/ netos, …”- ibidem pág.940, verifica-se que o arguido não se imiscuiu na vida da tia (interferindo nela para além do assinalado) não assumindo pela via da assunção fáctica tais funções nem criando uma relação de confiança entre eles que levasse aquela tia a apoiar-se neste/ sobrinho para satisfazer a suas necessidades (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit, pág. 941 e pág. 949). No mesmo sentido, Albuquerque, Paulo P. de, Comentário do Código Penal, UCP, pág. 72, e 73;
Dever jurídico significa, assim, dever que “tem de assentar numa relação de confiança susceptível de produzir efeitos jurídicos” in Figueiredo Dias, ob. cit. pág. 933.
Ora a lei não impõe esse dever jurídico, nem existe qualquer contrato, nem como vimos existe uma situação de ingerência / relação de apoio ou de assunção de facto de tais cuidados, que suporte o dever de agir quanto à tia e isto sem cuidar de averiguar se os factos apurados relativos a esta teriam a virtualidade de serem suficientemente graves e por essa via integradores do conceito jurídico base da incriminação: constituiriam maus tratos físicos ou psíquicos.
Mostra-se assim por esta via também correcta a absolvição do arguido por tal ilícito.

Mas como decorre do artº 10º CP, tal normativo só é aplicável quanto aos crimes de resultado ou de dano, pois que ali se exige que o tipo de crime compreenda um certo resultado, e é esse resultado que tinha de ser evitado e que a omissão da acção devida não evitou.
Donde só os crimes de resultado podem ser cometidos por omissão;
Diz-se no Ac. STJ 18/6/2008 www.dgsi.pt “VI - O art. 10.º do CP faz equivaler, em geral, a omissão à acção, nos crimes de resultado. Mas a punibilidade do agente (aliás, omitente) depende da existência de um específico dever jurídico (não apenas ético) que o obrigue a agir, a evitar o resultado. O omitente, para ser punido, deve ocupar a posição de garante da não produção do resultado. Só esse dever jurídico de agir pode fundamentar a punição; doutra forma a punibilidade da omissão constituiria uma intromissão intolerável na esfera privada de cada um. Assim, o fundamento da punição da omissão reside na equivalência entre o desvalor da acção e o desvalor da omissão.” (sublinhado nosso)

Se o crime em análise não for um crime de resultado não pode ser punido, e por essa razão, entendeu o tribunal recorrido que não tendo ocorrido nenhum resultado/ lesão imputável à conduta omissiva do arguido e imputada na acusação, não se encontravam preenchidos os elementos típicos do crime.
Vejamos.
Característica indelével do crime de violência doméstica é o seu bem jurídico, que lhe confere não apenas autonomia mas legitimidade constitucional (artº 18º CRP) de interferência / regulação/ limitação, nas relações humanas e sociais, num âmbito específico destas (relações familiares ou análogas).
Assim fundamental na apreciação de tal ilícito é que os factos em que se desdobra (ou o facto em que se traduz - pois que tanto pode ser um como vários - de modo reiterado ou não, infligir maus tratos – artº 152º 1 CP) signifiquem a afetação da dignidade pessoal da vítima através do seu desrespeito como pessoa traduzida a mais das vezes no desejo de sujeição/dominação sobre a mesma e a sua manipulação.
Dos termos legais do artº 152º1 CP resulta a nosso ver que o conceito de violência doméstica podendo traduzir-se em actos reiterados ou não, deles têm de resultar “ maus tratos físicos ou psíquicos”, o resultado da actuação tem de traduzir uma gravidade que vá para além da simples ofensa em causa.
Mau trato, traduz a nosso ver, uma ofensa à dignidade humana (em concreto da pessoa visada, e em toda a sua plenitude: física e mental), bem jurídico abrangente que (para além da saúde) está subjacente a toda a proteção legal (cfr. Comentário Conimbricense do Cód Penal, I, Coimbra, 1999, pág. 232), o que tem de ser entendido para além da integridade física ou da honra (objecto de protecção de outras normas penais, cf. ac RG.10/7/2014 www.dgsi.pt: “Essencial é que os comportamentos assumam uma gravidade tal que justifique a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar”), e se não necessita de uma reiteração (face à norma legal) não prescinde de uma gravidade que vá para além e ultrapasse a ofensa à integridade física ou à honra (sob pena de o crime de violência doméstica se traduzir apenas num crime familiar), ou seja é necessário que justifique a sua autonomia, pondo em causa a relação existente entre agressor e ofendido.
Por isso cremos dever entender que infligir maus tratos físicos e/ou psíquicos, significa na economia do artº 152º CP, pôr em causa a saúde do ofendido nas suas diversas vertentes: física (ofensa á integridade física), psíquica (humilhações, provocações, ameaças, coacção ou moléstias), desenvolvimento e expressão da personalidade e dignidade pessoal (castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais, etc.) - que constituem o complexo bem jurídico protegido pela norma incriminadora e traduzem-se num complexo de acções por parte do agente que pressupõem na maioria das vezes “ uma reiteração das respectivas condutas” – cfr. por todos, Comentário Conimbricense ao Cód Penal, tomo I, págs. 332 a 334, ou quando assim não seja - sendo uma só acção - como se expressa o STJ no Ac de 14/11/97 CJ III, 235 “… as ofensas corporais, ainda que praticadas uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade, ou seja, que traduzam crueldade, insensibilidade ou até vingança desnecessária da parte do agente é que cabem na previsão do art. 152.º do Código Penal” ou quando a conduta do arguido “se revista de uma gravidade tal que seja suficiente para … comprometer a possibilidade devida em comum” -Ac. R. Évora 23/11/99 CJ V, 283, ou “se revelar de uma certa gravidade ou traduzir, da parte do agente, crueldade, insensibilidade ou até vingança” -Ac. R. E. 25/1/05, CJ I, 260, ou ainda “O crime de maus tratos exige uma pluralidade de condutas ou, no mínimo, uma conduta complexa, que revista gravidade e traduza, por exemplo, crueldade ou insensibilidade” - Ac. R. Porto 12/5/04, www.dgsi.pt, proc. 0346422.
Assim à luz do bem jurídico protegido os factos devem apresentar-se perante a vítima como dotados de um especial desvalor (pondo em causa a dignidade da pessoa enquanto tal, nomeadamente pelo desejo de domínio da relação familiar existente), sob pena de não se verificar o ilícito de violência doméstica.
Cremos ser este o sentido do Ac. RC 21/10/2009 www.dgsi.pt, e do ac. R.P 30/1/2013 www.dgsi.pt/jtrp, sob pena de não revelando a conduta do agente o “especial desvalor da acção” ou a “particular danosidade social do facto” (cf. Valadão e Silveira, Maria Manuela “Sobre o Crime de Maus Tratos Conjugais”, in APMJ, Do Crime de Maus Tratos, Lisboa, 2001, pág.21) o crime não se mostrar fundamentado.
O que fundamenta tal ilícito são pois os actos que, como expressa o Ac. TRP 28/9/2011 www.dgsi.pt/jtrp… pelo seu caráter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima.” e nos casos de actos singulares tem de se verificar esta especial qualidade da acção, sob pena de não se mostrar preenchido o ilícito em causa. Cfr. Ac.R.P de 30/1/2008 www.dgsi.pt/jtrp “Muito embora, em princípio, o preenchimento do tipo do crime de maus-tratos previsto no art. 152º do C. Penal não se baste com uma acção isolada (nem tampouco com vários actos temporalmente muito distanciados entre si), vem entendendo a generalidade da jurisprudência que existem casos em que uma só conduta, pela sua excepcional violência e gravidade, basta para considerar preenchida a previsão legal.”
Daí resulta, e em conclusão, que é à luz da ofensa do bem jurídico protegido e logo da mens legislatoris que as condutas ilícitas únicas ou reiteradas devem ser apreciadas no sentido de preencherem ou não o tipo legal, no sentido de revelarem um tratamento insensível ou degradante da condição humana da pessoa atingida. (cfr. também ac. TRP 26/5/2010 www.dgsi.pt/jtrp), e de modo a evitar uma situação de “…domínio ou uma subjugação sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e a reconduz a uma vivência de medo, de tensão e de subjugação.” in Ac. TRP 9/1/2013 www.dgsi.pt/jtrp, ou de desprezo ou desconsideração por parte do agente (ac TRG de 1/07/2013 www.dgsi.pt), ou mais amplamente como expressa a RLisboa no ac. de 05/07/2016 www.dgsi.pt “ 1. O crime de violência doméstica, p. e p. no art. 152.º, do Código Penal, após a autonomização operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, visa, acima de tudo, proteger a dignidade humana, tutelando, não só, a integridade física da pessoa individual, mas também a integridade psíquica, protegendo a saúde do agente passivo, tomada no seu sentido mais amplo de ambiente propício a um salutar e digno modo de vida.”
Estão assim em causa situações degradantes em que em face das condições e necessidades actuais não são prestados os cuidados necessários e adequados ao bem estar de uma pessoa enquanto tal dotada de dignidade, princípio informador e suporte de toda a sociedade (artº 1º CRP)
Por isso se justifica que no tipo legal caibam as situações reais traduzidas em privações de bens essenciais, que lesam esse bem jurídico e ofendem o bem estar necessário à vida pessoal e a que todas as pessoas têm direito como pessoas dotadas de dignidade como se expressa no ac. TRC de 16/01/2013 www.dgsi.pt: “ O bem jurídico protegido no tipo legal de crime de violência doméstica reside na dignidade da pessoa humana, incluindo-se todos os comportamentos que lesem essa dignidade. Tendo o arguido privado a sua esposa do acesso á água, gás, electricidade, telefone e correio, na casa onde ambos habitavam, deve interpretar-se tal conduta, segundo as regras da experiência comum, como a privação dos bens essenciais no espaço da residência que será o reduto de maior tranquilidade de qualquer pessoa, constituindo uma forte humilhação e privação do que de mais essencial se espera desse espaço privado, atentatória da dignidade humana e quem assim actua não pode desconhecer esse facto (basta que se coloque mentalmente na mesma situação).”, aceitando-se e fazendo sentido por isso que, como expende Ribeiro de Faria, M. Paula, Os crimes praticados contra idosos, UCE, Porto, 2015, pág. 15 ( cf. motivação do recurso) sofre maus tratos físicos e psicológicos a pessoa de idade que não é alimentada, não beneficia de cuidados médicos necessários, o que tudo ou a nosso ver se traduz (ou pode traduzir) na omissão das acções adequadas a evitar tal resultado, fazendo sentido e aceitando-se por isso que em causa está “ a protecção de um estado de completo bem estar físico e mental” como defende Nuno Brandão, A tutela penal especial da violência domestica, Julgar, 12 especial, Set/ Dez 2010 pág.16;

Sendo assim, cremos por outro lado, só considerando o crime de maus tratos em causa, como de resultado é que é possível imputar o “infligir” de maus tratos por via omissiva ao agente (artº 10ºCP): equiparar a omissão à acção.
Na verdade apesar de maioritariamente ser entendimento como crime de dano (cfr. Nuno Brandão, A tutela penal especial da violência domestica, cit. pág.16) outras qualificações vão sendo defendidos, incluindo pelo autor citado para quem “ o crime de violência doméstica assume não a natureza de um crime de dano, mas sim de crime de perigo, nomeadamente de perigo abstracto” ob. cit pág. 17, e no mesmo sentido o ac RE de 8/01/2013 www.dgsi.pt como de perigo abstracto, ou no ac. RP de 10/07/2013 onde é qualificado de mera actividade;
Ora temos para nós que efectivamente o crime exige a verificação do um resultado e não apenas o perigo de lesão da saúde ou integridade física e tal se traduz na ocorrência de “maus tratos” que são o resultado da conduta lesiva e não o meio de lesar a saúde física ou psíquica. Prevendo-se aqui apenas o perigo de lesão da saúde, estar-se-ia a considerar este tipo de crime com menos danosidade social que o crime de ofensa à integridade física, quando é o inverso (exigindo-se aqui uma especial gravidade face ao bem jurídico: tratamento que ofende a dignidade humana).
Cremos por isso que no crime em causa os maus tratos devem ser vistos como o resultado da conduta e não apenas como meio da ocorrência de sérios riscos para a integridade da vítima, pois não está no tipo legal em causa o modo de agir mas o efeito de uma conduta (os maus tratos infligidos)

Mas nos crimes omissivos tem de ocorrer uma ausência de acção, da acção capaz de evitar o resultado, que se traduz na omissão da acção salvadora (Maria Felino Rodrigues, A teoria Penal da Omissão e a revisão crítica de Jakobs, Almedina, 2000, pág. 27), pois no seu dizer a omissão penalmente relevante só pode ser a omissão de uma acção determinada, visto que a omissão em si mesma não existe.
Mas essa acção salvadora que devia ter sido adoptada (a acção omissiva típica) pressupõe a verificação, a existência de um perigo concreto para qualquer daqueles bens jurídicos que confira sentido à omissão do agente. Ou seja, no caso, só perante a eminencia da lesão da saúde é que se impõe o dever de agir pois antes não existe o perigo que fundamenta o dever de agir, e esse resultado fosse previsível / recognoscível no momento.

Daqui decorre a necessidade de enquadrar de entre os factos provados, aqueles que podem ser relevantes para o preenchimento do ilícito em análise.
E desde logo salta à vista, que os factos que podem ter relevo penal, são apenas os relativos ao ano de 2014 até ao falecimento de D…, pois que até final de 2013 era uma pessoa autónoma que cuidava de si, não necessitando por isso dos cuidados de terceiro e nomeadamente do arguido (al. h) dos factos provados), sendo que até pelo menos Abril de 2014 os factos em si mesmos não se mostram criminalmente relevantes, pois em face dos factos provados e apesar deles, não se evidencia a gravidade para o bem estar do pai, que posteriormente vieram assumir, pois que de acordo com as al. j6 e k) e para além do mencionado em i) e j) a limpeza da casa até Dez/2014 era assegurada um dia por semana e até aquela data de Abril 2014 uma sobrinha da vitima auxiliava na organização das lides domesticas, na alimentação e higiene.
Por outro lado a não deslocação dos idosos para um centro de dia ou apoio domiciliário, onde lhe poderiam ser prestados alguns dos cuidados, não pode ser imputado ao arguido em face da recusa expressa dos mesmos conforme al. m);
Do mesmo modo a imputação constante da al.ak), não apenas porque não quantificada, nem situada no tempo nem enquadrada nas circunstancias da acção, não tem a virtualidade lesiva prevista no tipo legal, e o mesmo ocorre com o levantamento de quantias depositadas, que o MºPº qualifica de “abuso financeiro” mas sem razão, pois que em lado algum se insinua sequer que não foram usadas para pagamento de bens ou serviços prestados ao idoso, desde a habitação até à alimentação e antes se tenham traduzido em apropriações indevidas e as tenha afectado a outros fins.
Resta por isso e no essencial, o que possa ter ocorrido após Abril de 2014 até ao falecimento do pai.
Neste âmbito relevante é apenas a prestação de alimentos, os cuidados de higiene e limpeza e a situação de abandono.
Perpassa pelos factos provados, que a situação se foi degradando aos poucos, após o pai começar a perder autonomia, e mormente a partir de final de 2013 acentuando-se a abrir de 2014.
Neste âmbito sobressai em 1ª linha:
- os cuidados alimentares, que apesar do descrito na al. i) e j) não resulta em lado algum dos factos que tal fosse insuficiente nos dias contratados, estando em falta apenas dois momentos relevantes, quais sejam à 2ª feira e a falta de quaisquer outros bens em casa, como se evidencia naquelas alíneas ao ali se expor que “não possuindo aqueles, no dia de encerramento do estabelecimento (segunda-feira), qualquer refeição ou alimento assegurados pelo arguido”, e “não adquiria nem providenciava pela aquisição de quaisquer outros bens alimentares para consumo”.
- os cuidados de higiene pessoal do pai, em conformidade com o descrito na al. j.2), e
- os cuidados de limpeza da casa, al. j6) e n).
- e a falta de auxílio, traduzido na ausência de casa conforme a al. j5) relevante apenas na parte em que tal não lhe é exigido pela actividade laboral;
Para além destes assume especial acuidade o ocorrido de 6 a 9/2/2015, em que manifestamente estamos perante uma situação de abandono do pai por parte do arguido.
Ora tal situação, aliada às demais pré existentes traduzem uma situação de maus tratos.
Na verdade não apenas o pai ficou praticamente sozinho em casa durante 3 dias – Sábado / Domingo e Segunda - (com a tia – ainda mais idosa- que não lhe podia prestar os cuidados necessários, convalescendo depois da ida ao hospital no dia 6/2 (sexta Feira) por queda em casa, como se evidencia a não prestação de quaisquer cuidados quer de higiene (al.s ac), ae) e af), ou de bem estar face às temperaturas do ar existentes (al.s s) a v), e ad);
Ora nenhuma razão justificativa é avançada para que tal tenha ocorrido, sendo que tais situações eram do conhecimento do arguido, que não as podia desconhecer, desde a falta de alimentos em casa, à falta de higiene do pai e a sua incapacidade para se cuidar, ou permanecer fora de casa no fim de semana a maior parte do tempo, conhecedor do estado em que o pai se encontrava e dos cuidados de que necessitava e do tempo/ temperatura que fazia que impunha quanto a este a necessidade de aquecimento.
Impunha-se-lhe em face dos deveres jurídicos emergentes da relação filial que providenciasse pela assistência ao seu pai, quer directamente quer promovendo-a através de terceiras pessoas, sendo que tinha capacidade económica para o fazer, como evidenciam não apenas os levantamentos bancários que fez como o que pretendeu fazer (al.s ag) e ah).
Nestas circunstâncias verificamos que o bem estar e a saúde do pai D… foi lesada e os factos revestem acentuada gravidade pondo em causa o tratamento digno a que toda a e qualquer pessoa é merecedora, ofendendo por isso a sua saúde e bem estar e a sua dignidade pessoal.
Ao assim proceder o arguido omitiu as acções adequadas à prestação da assistência devida a seu pai e de que ele carecia, sendo que o podia fazer não tendo agido em conformidade com o que é esperado e socialmente aceitável, face ao conhecimento e verificação de uma situação de perigo, que lhe impõe a sua acção (Albuquerque, Paulo, ob. cit. pág. 72 “… na omissão, agente apenas não desencadeia ou interrompe um processo causal que evite a concretização de um perigo preexistente de lesão do bem jurídico” pelo que não há omissão se quando ainda não há uma lesão em curso ou o perigo de lesão do bem em causa) - por si reconhecida ou reconhecível como lesiva da saúde e bem estar, sendo que o arguido tem capacidade fáctica para adoptar a conduta adequada a evitar tal resultado e a conduta que adoptou é/foi socialmente inadequada.
Por outro lado o resultado (maus tratos) deve ser uma consequência previsível da acção/omissão, e essa previsibilidade “deve ser aferida de acordo com um juízo de prognose póstuma (ou juízo ex ante) colocando-se o aplicador no momento histórico da conduta do agente. O aplicador deve proceder a este juízo de acordo com o conhecimento resultante da experiencia comum e os conhecimentos especiais do agente” - Albuquerque, Paulo P. ob. cit. pág. 69, o que em face dos factos ocorre, pois que já se vinham desenrolando e de que o arguido se apercebia e em face dos quais interagia e apesar dos poucos contatos tinha perfeito conhecimento da situação em que viviam, da sua debilidade e do seu estado em face da queda e da idade, da ida ao hospital bem como das necessidades assistenciais do pai, e em vez de providenciar pela sua satisfação, actuou no sentido contrario ao seu dever, não apenas não providenciando pela sua satisfação como pessoalmente o abandonou, não querendo saber do seu estado, quando se lhe impunha a adopção de uma acção especifica para que o resultado não viesse a ocorrer, sendo este para si previsível, violando por isso as “exigências de comportamento em geral obrigatórias cujo cumprimento o direito requer, na situação concreta respectiva, para evitar realizações não dolosas … ”- Comentário Conimbricense, I, 2ª ed. pág. 177, pois como exprime F. Dias, ob. cit, pág. 932 citando Damião da Cunha “os deveres não visam impedir resultados, visam exactamente diminuir a probabilidade da ocorrência do resultado”
Podemos assim concluir que impendia sobre o arguido o dever de garante em relação ao seu pai (emergente da lei - fruto da relação filial) de evitar actos ofensivos da sua saúde e dignidade pessoal; omitiu os actos adequados a evitar tais ofensas que podia e devia ter adoptado e tendo ocorrido por essa via uma situação de maus tratos, tal resultado é-lhe imputável a titulo omissivo, sendo que “… a obrigação de evitar o resultado é só uma forma de referir … a obrigação de levar a cabo a acção adequada a evitar o resultado” Figueiredo Dias, ob. cit. pág. 933
Podemos assim, assinalar o arguido como autor de um crime de violência domestica contra seu pai, que se encontrava particularmente indefeso em face da sua idade, numa situação de doença e demência, de que vinha acusado.

Visto isto importa agora proceder à determinação da medida a pena a aplicar ao arguido, em conformidade com o AFJ nº 4/2016 que dispõe “Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal.”; tal operação de determinação da medida da pena deverá ser efetuada pelo Tribunal da Relação e sem necessidade de proceder à audiência para produção de prova, dado que dos factos provados resultam todos os dados relevantes para o efeito sobre as condições de vida do arguido.
Assim:
E antes de mais importa ponderar sobre a medida abstracta da pena, tendo em conta que o artº 10º3 CP, dispõe que a pena pode ser especialmente atenuada.
Ora vistos ao factos e na parte em que relevam criminalmente, afigura-se-nos que se justifica essa atenuação especial da pena tendo em conta o modo como se foi desenvolvendo a vida em comum, em especial, na recusa do pai em ir para o lar e quiçá alguma inabilidade do arguido, como homem, em lidar de modo mais correcto com a situação que se lhe ia deparando no dia a dia, pelo que se nos afigura, também em face do falecimento da pai, uma menor necessidade da pena (artº 72º1 CP), em face do que a moldura abstracta da pena parte do limite legal mínimo (30 dias) até ao limite máximo 3 anos e 4 meses de prisão (artº 73º1 a e b) CP).
Em face desta nova moldura na concretização da pena a aplicar ao arguido deve atender-se nos termos do artº71º CP, à respectiva culpa - suporte axiológico de toda a pena, ou de outro modo “A culpa é o pressuposto e fundamento da responsabilidade penal. A responsabilidade é a consequência ou efeito que recai sobre o culpado. (...) Sendo pressuposto e fundamento da responsabilidade deve ser também a sua medida, (...). O domínio do facto pelo agente é o domínio da sua vontade racional e livre, e é esta que constitui o substrato da culpa” - Prof. Cavaleiro Ferreira, Lições de Dto. Penal, I, págs. 184 e 185, sendo que o princípio da culpa é a “consequência da exigência incondicional da defesa da dignidade da pessoa humana que ressalta dos artigos 1º, 13º, n.º 1 e 25º, n.º 1 da Constituição da Republica Portuguesa”- Prof. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág. 84, - e às exigências de prevenção quer geral quer especial, e que (e assim Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 227 e sgt.s) as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma sub-moldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção actuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer, ou na mesma perspectiva como se expressa o STJ Ac. 17/4/2008 in www.dgsi.pt/jstj: “A norma do artigo 40º condensa, assim, em três proposições fundamentais o programa político criminal sobre a função e os fins das penas: protecção de bens jurídicos e socialização do agente do crime, senda a culpa o limita da pena mas não seu fundamento.
Neste programa de política criminal, a culpa tem uma função que não é a de modelar previamente ou de justificar a pena, numa perspectiva de retribuição, mas a de «antagonista por excelência da prevenção», em intervenção de irredutível contraposição à lógica do utilitarismo preventivo.
O modelo do Código Penal é, pois, de prevenção, em que a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. A fórmula impositiva do artigo 40º determina, por isso, que os critérios do artigo 71º e os diversos elementos de construção da medida da pena que prevê sejam interpretados e aplicados em correspondência com o programa assumido na disposição sobre as finalidades da punição; no (actual) programa político criminal do Código Penal, e de acordo com as claras indicações normativas da referida disposição, não está pensada uma relação bilateral entre culpa e pena, em aproximação de retribuição ou expiação.
O modelo de prevenção - porque de protecção de bens jurídicos - acolhido determina, assim, que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
O conceito de prevenção significa protecção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 227 e segs.).
A medida da prevenção, que não podem em nenhuma circunstância ser ultrapassada, está, assim, na moldura penal correspondente ao crime. Dentro desta medida (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.
Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
Na determinação da medida concreta da pena, o tribunal está vinculado, pois, nos termos do artigo 71º, nº 1, do Código Penal, a critérios definidos em função de exigências de prevenção, limitadas pela culpa do agente. “
Tendo em conta os factos provados a atender e dos quais resulta que o arguido se mostra social, familiar e profissionalmente inserido, não tendo antecedentes criminais, e o seu modo e condições de vida tal como emergem daqueles factos, e por outro lado os factos ilícitos em si mesmos e o modo como estes ocorreram, se foram desenvolvendo e em que se traduziram e a sua intensidade essencialmente traduzidos no abandono votado ao pai na parte final da vivencia comum, afigura-se-nos em face da moldura penal justo fixar a pena em dez (10) meses de prisão.
Vista esta pena e o modo de vida do arguido, e tendo em conta as exigências de prevenção especial que não se mostram prementes, afigura-se-nos que tendo em conta também a conduta processual do arguido e o reconhecimento da censurabilidade dos factos praticados, afigura-se-nos que a pena de prisão aplicada deve ser objecto de substituição, sendo a adequada ao caso, a pena de multa (artº 43º 1 CP) por satisfazer as exigências de prevenção.
Na determinação desta pena da multa de substituição há que atender aos critérios do artº 47º CP ( ex vi artº 43º1 in fine CP) e tendo em conta os critérios supra ponderados nos termos do artº 71º CP em face daqueles factos e da situação profissional do arguido (oficial de justiça) da qual se infere em termos de normalidade a situação económico-financeira mediana e seu modo de vida tal como emergem daqueles, substitui-se a pena de 10 meses de prisão aplicada na pena de multa de trezentos ( 300) dias, à taxa diária de sete euros e cinquenta cêntimos ( 7,50€), ou seja dois mil duzentos e cinquenta euros ( 2.250,00€)

Pese embora o que dispõe o artº 21º2 da Lei 112/09 de 16/9, não há lugar à fixação de indemnização a favor da vítima dado o seu falecimento, pois as especiais exigências de protecção da vítima (ac. RC de 02/07/2014 www.dgsi.pt) que estão na base da sua fixação já não se fazem sentir.
+
Pelo exposto, o Tribunal da Relação do Porto, decide:
Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo MºPº e em consequência alterando o acórdão recorrido:
- como autor de um crime de violência doméstica, p.p. pelo artº 152º1d) e 2 CP, e ponderando o disposto no artº 10º, 26º, 71º e 40º CP condena o arguido B… na pena de dez meses de prisão que ao abrigo do artº 43º CP substitui pela pena de multa de trezentos dias à taxa diária de sete euros e cinquenta cêntimos, o que perfaz dois mil duzentos e cinquenta euros;
- no mais mantém o acórdão recorrido;
- Condena o arguido no pagamento da taxa de justiça devida na 1ª instância em 4 UC e nas demais custas.
Sem custas o recurso;
Notifique.
Dn
+
Porto, 12/10/2016
José Carreto
Paula Guerreiro