Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5038/20.9T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
SOCIEDADES EM RELAÇÃO DE DOMÍNIO
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP202204045038/20.9T8MTS.P1
Data do Acordão: 04/04/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5 . ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A sociedade dominante, porque responsável pessoal e ilimitadamente pela generalidade das obrigações da sociedade dominada, é considerada “responsável legal” para os efeitos do disposto no nº 2 do artigo 6º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
II - Por conseguinte, por mor do estabelecido na alínea c) do nº 3 do artigo 82º desse mesmo diploma legal, durante o processo de insolvência da sociedade dominada, o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir as ações judiciais contra a sociedade dominante na qualidade de responsável legal pelas dívidas daquela.
III - A válida imputação de inconstitucionalidade a uma norma (ou a uma sua dimensão parcelar ou interpretação), impõe, a quem pretende atacar, na perspetiva da sua compatibilidade com regras ou princípios constitucionais, determinada interpretação normativa, indicar concretamente a dimensão normativa que considera inconstitucional.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 5038/20.9T8MTS.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Matosinhos – Juízo Local Cível, Juiz 3
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2º Adjunto Des. Pedro Damião e Cunha
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- RELATÓRIO

M..., Ldª. intentou a presente ação declarativa na forma comum contra X..., S.G.P.S., Ldª. na qual conclui pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de 11 551,94€, a que acrescem juros de mora vencidos e que se continuarão a vencer até ao pagamento da dívida.
Para substanciar tal pretensão alega ser detentora de crédito, no aludido montante, sobre “Q..., L.da”, sociedade entretanto declarada insolvente.
Acrescenta que, sendo extremamente reduzida a possibilidade de no âmbito da insolvência vir a ser ressarcida pelo valor de tal crédito, deverá essa importância ser liquidada pela ré por se encontrar numa relação de domínio com a insolvente.
A ré contestou sustentando, desde logo, que a autora, face ao disposto no art. 82º, nº 3, do CIRE é parte ilegítima; advoga ainda não ocorrer qualquer situação de domínio que a obrigue a responder pelas dívidas da “Q..., Ldª”.
A autora respondeu concluindo como no articulado inicial.
Dispensada a realização de audiência prévia, veio a ser proferido saneador/sentença com o seguinte teor: «[o] que se pretende com a exigência da legitimidade das partes é que a decisão a proferir pelo tribunal sobre o mérito da ação possa surtir o seu efeito útil, vinculando os verdadeiros sujeitos da relação controvertida, presentes na lide.
Trata-se, assim, de assegurar que “a causa seja julgada perante os verdadeiros e principais interessados na relação jurídica, de modo a não “voltar a repetir-se” (Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil”, vol. II, pág. 167).
Nos termos do art. 30º, do Código de Processo Civil, o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar e o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer. Assim, a legitimidade é definida, pelo legislador através da titularidade do interesse em litígio.
O interesse directo em demandar exprime-se, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, pela utilidade derivada da procedência da acção, e o interesse em contradizer pelo prejuízo que advenha dessa procedência.
Tendo em conta que, mesmo recorrendo-se ao disposto neste n.º 2 o critério aferidor da legitimidade através do interesse directo em demandar ou em contradizer, pode ainda ser insusceptível de resolver todas as dúvidas e problemas que a prática de todos os dias, sempre tão rica, tem a potencialidade de levantar, acrescentou o legislador no n.º 3 deste mesmo artigo uma regra, direccionada a resolver as dificuldades práticas na aplicação do conceito de legitimidade.
Assim, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados como titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como esta se mostra configurada pelo autor.
De facto, estabelecendo o autor a relação processual (tal como a configura) com determinada pessoa, arrogando-se ele determinada qualidade ou apontando determinada qualidade ao réu, saber se essas qualidades existem ou não depende de prova a produzir, pelo que interessam ao fundo da causa e não à legitimidade. Só haverá, assim, ilegitimidade se as pessoas demandadas pelo autor, não o devessem ter sido, face à forma como este configura a acção.
No caso dos autos, a autora sustenta ser titular de um crédito sobre Q..., L.da.
E que tal sociedade foi declarada insolvente, sendo pouco provável que venha a dela receber o valor em dívida.
Mais sustentando que, tendo estado a insolvente numa situação de domínio total em relação à ré, é esta, ao abrigo do disposto nos arts. 501º a 504º, do CSC, também responsável pelo pagamento do crédito em causa.
Invoca a ré, para sustentar a ilegitimidade activa da autora, o disposto no art. 82º/3, do CIRE, segundo o qual “Durante a pendência do processo de insolvência, o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir: a) As acções de responsabilidade que legalmente couberem, em favor do próprio devedor, contra os fundadores, administradores de direito e de facto, membros do órgão de fiscalização do devedor e sócios, associados ou membros, independentemente do acordo do devedor ou dos seus órgãos sociais, sócios, associados ou membros; b) As acções destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de insolvência; c) As acções contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente”.
Crê-se que, atenta a forma como a autora configurou a acção, ao caso dos autos apenas pode ser trazida à colação a alínea c).
Que, como referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (em “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2013, pág. 439) se aplica “sempre que alguma norma legal estabeleça a responsabilidade de terceiros por dívidas do insolvente”.
Ora, independentemente da bondade da sua pretensão (cuja apreciação caberia à decisão de mérito), a autora funda a mesma no disposto nos arts. 491º e 501º e ss, do CS, que estabelecem para a sociedade dominante (na perspectiva da autora, a aqui ré) a responsabilidade pelas obrigações da sociedade subordinada (segundo o autor, a sociedade insolvente).
É inequívoco que está invocada a responsabilidade legal de um terceiro, por dívida de sociedade insolvente.

Compulsados os autos de insolvência (cujo seguimento informático foi solicitado e permitido) constata-se que os mesmos estavam à data da propositura da acção e continuam nesta data pendentes, ainda não tendo havido lugar ao seu encerramento.
Pelo que a legitimidade activa para propositura da presente acção estava reservada ao administrador de insolvência.
Sendo de facto a autora parte ilegítima.
Desta forma, ao abrigo do exposto e do disposto nos arts. 288º/1/d), 493º/2, 494º/e) e 495º, do CPC, julga-se o autor parte ilegítima, absolvendo-se a ré da instância».
Não se conformando com o assim decidido, veio a autora interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
I. O presente recurso tem como objecto a matéria de direito da sentença proferida nos presentes autos através de que, em suma, o Tribunal a quo considerou a Recorrente parte ilegítima, entendendo, com base no disposto no artigo 82.º, n.º 3, alínea c) do CIRE, que a legitimidade para a mesma estava reservada exclusivamente ao administrador da insolvência no processo de insolvência da sociedade subordinada da Recorrida.
II. Desde logo, tendo a Recorrente se apresentado, nos presentes autos, como credora de uma sociedade subordinada da Recorrida, peticionando a esta (Recorrida) o valor do seu crédito, ao abrigo do instituto previsto no artigo 501.º do CSC, dúvidas não subsistem de que a mesma é parte activa legítima, por ter interesse em demandar nos termos do artigo 31.º do CPC.
III. Por outro lado, fundando-se a ratio do artigo 82.º, n.º 3, do CIRE no princípio da igualdade entre credores (par conditio creditorum), o qual está consagrado no artigo 604.º do CC, e tendo a presente acção sido intentada contra uma terceira sociedade, aliás, solvente, não se verificará nenhum prejuízo, consequência ou situação de desigualdade para a massa insolvente ou para a generalidade dos credores que justifique que acções como a presente sejam incluídas no âmbito do referido artigo 82.º, n.º 3, do CIRE.
IV. A definição de «responsáveis legais» constante do n.º 2 do artigo 6.º do CIRE não compreende as relações de domínio, não incluindo as sociedades directoras ou dominantes, tanto mais que para a definição de responsável legal importará o concreto exercício do poder de controlo do património do devedor, não sendo, por conseguinte, aplicável o disposto na alínea c) do n.º 3 do artigo 82.º do CIRE ao caso vertente.
V. No mais, o n.º 3 do artigo 82.º do CIRE, por ser uma norma excepcional que não admite interpretação extensiva, não pode ser alargado à situação dos presentes autos.
VI. Em face do exposto, ao decidir como decidiu - i. e., que a Recorrente não é parte legítima na presente acção, que a legitimidade para a instauração da presente acção estava reservada ao administrador da insolvência e, indirectamente, que a Recorrida é, para esse efeito, responsável legal, o Tribunal a quo, salvo o devido respeito, violou o disposto nos artigos 82.º, n.º 3, alínea c), e 6.º, n.º 2, do CIRE, 31.º do CPC, 604.º do CC e 501.º do CSC,
VII. preceitos esses que conjugadamente deveriam ter sido interpretados no sentido de que os credores do insolvente têm legitimidade activa para, ao abrigo do disposto no artigo 501.º do CSC, propor acções contra as sociedades directoras (que se encontrem em relação de domínio com a insolvente), independentemente de o processo de insolvência se encontrar, ou não, encerrado.
VIII. Acresce que, ainda que assim não se entendesse, a eventual interpretação do artigo 82.º, n.º 3, do CIRE no sentido de que - em casos como o dos presentes autos, em face da existência de eventuais prazos prescricionais e/ou de caducidade, e perante a inacção do administrador de insolvência - a legitimidade activa para propor e fazer seguir acções contra as sociedades directoras (que se encontrem em relação de domínio com as insolventes) está exclusivamente reservada ao administrador de insolvência sempre seria inconstitucional, por violação do disposto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa,
IX. inconstitucionalidade essa que, ad cautelam, ora se deixa invocada.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, são as seguintes as questões solvendas:
- saber se a autora detém, ou não, legitimidade processual ativa para instaurar a presente ação declaratória;
- da inconstitucionalidade material do art. 82º, nº 3, al. c), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO

A materialidade a atender para a decisão do presente recurso é a que dimana do antecedente relatório, havendo ainda a considerar que a “Q..., Ld.ª” foi declarada insolvente em 03/11/2020 por sentença proferida no âmbito do processo n.º 5248/20.9T8VNG, que corre ainda termos no Juízo de Comércio de Santo Tirso.
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IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO
IV.1. Da (i)legitimidade ativa para a propositura da presente ação

Como vimos, a questão essencial que é trazida à apreciação deste tribunal de recurso é a de saber se a autora/apelante detém legitimidade para a instauração da presente ação declaratória.
Como é sabido, no nosso sistema processual a legitimidade das partes é um mero pressuposto processual, ou seja, um dos pressupostos adjetivos necessários para que a lide se possa desenvolver e surtir uma decisão útil.
A legitimidade é o pressuposto processual que contende com a determinação de quem deve estar na ação, servindo como critério de afirmação da legitimidade o interesse direto em demandar ou contradizer, proveniente da qualidade de titular da relação material controvertida.
Através desse pressuposto procura-se assegurar que a lide se trave entre os verdadeiros titulares do interesse que nela vai ser decidido, isto é, que esteja na ação precisamente quem nela deve estar. Trata-se de garantir que a condução do processo será feita por quem tem o poder jurídico de dirigir a pretensão ou a defesa deduzidas em juízo, por serem quem pode dispor do direito ou ser juridicamente afetado pelo seu reconhecimento.
A relação material controvertida que releva para o efeito não é a que devesse ser mas aquela que o é efetivamente. Dito de outro modo, a relação em função da qual pode ser afirmado o interesse em demandar ou contradizer é a relação configurada pelo autor, a relação tal como o autor a caracteriza, define e invoca como causa de pedir.
Isso mesmo resulta do art. 30.º, cujo n.º 1 estabelece que «
o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer», concretizando o seu nº 2 que «o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação, e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha», e precisando-se no seu nº 3 que «na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor».
Já MANUEL DE ANDRADE[2] assinalava que «a legitimidade não é (...) uma qualidade pessoal das partes (como a capacidade), mas uma certa posição delas em face da relação material litigada. Ela corresponde, grosso modo, ao conceito civilista de poder de disposição, ampliado, porém, de forma a abarcar, v.g., a faculdade de constituir uma dada relação jurídica, e não apenas a de modificar ou extinguir. É o poder de dispor do processo - de o conduzir ou gestionar no papel de parte...».
A legitimidade processual é por isso aferida pela relação das partes com o objeto da ação, consubstanciada na afirmação do interesse direto daquelas nesta. Não podem, no entanto, ser confundidas a legitimidade processual com a legitimidade material ou substantiva. De facto, como tem sido especialmente enfatizado na doutrina[3], a legitimidade é, no campo do direito material, um conceito de relação – relação entre o sujeito e o objeto do ato jurídico. Encarada essa relação na perspetiva do sujeito, exprime a posição pessoal deste nessa relação, justificativa de que se ocupe juridicamente do objeto e postulando, em regra, a coincidência entre o sujeito do ato jurídico e o interesse por ele posto em jogo. Portanto, não basta assim saber quem são as partes (em sentido formal) no processo. Para que o juiz se possa pronunciar sobre o mérito da causa, importa ainda saber quais devem ser as partes em sentido substancial, porque só a intervenção destas em juízo garante a legitimidade para a ação.
Temos, por conseguinte, que o autor será parte legítima quando a procedência da ação lhe diz respeito, segundo o critério do seu interesse direto.
Postas tais considerações, revertendo ao caso sub judicio verifica-se que a autora funda a sua legitimidade no facto de ser credora da sociedade “Q..., Ldª” (que se encontra em processo de insolvência), cujo capital social é detido pela ora ré, a qual, enquanto sociedade dominante, será responsável pelas obrigações daquela ao abrigo da regra vertida no art. 501º do Código das Sociedades Comerciais[4].
Perante a configuração assim apresentada pela autora no seu articulado inicial, quer ela, quer a ré, seriam, à luz do enunciado critério legal, dotadas de legitimidade processual para a presente demanda por serem titulares da relação material controvertida – a primeira por (alegadamente) ser credora da sociedade dominada por um crédito no montante de €12.774,87 e a segunda por, enquanto sociedade dominante, se ter tornado responsável legal pelo ressarcimento do prejuízo que aquela sofreu com a insatisfação do seu crédito[5].
Questão que então se coloca é a de saber se tal conclusão é, no caso, afastada pela existência de uma norma legal específica que prive a autora/apelante dessa legitimidade ad causam.
Na decisão recorrida considerou-se que a autora carece dessa legitimidade porquanto, estando a sociedade “Q..., Ldª” em processo de insolvência, competirá ao respetivo administrador da insolvência - por mor do disposto na alínea c) do nº 3 do art. 82º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[6] (CIRE) - a legitimidade exclusiva para acionar os responsáveis legais pelas dívidas daquela.
É quanto a esse segmento decisório que ora se rebela a apelante argumentando que o mencionado preceito legal não terá aplicação “à situação dos presentes autos”.
Em face dessa delimitação do objeto do recurso, a problemática a decidir é, pois, a de saber se a presente demanda está, ou não, compreendida na previsão da aludida norma, já que, como se começou por referir, à luz das regras gerais seria indubitável a legitimidade (processual) da autora. Precisamente por constituir um desvio às regras processuais gerais, o n.º 3 do artigo 82.º do CIRE é uma norma excecional não admitindo interpretação extensiva, razão pela qual não se deve questionar se a sua estatuição deve ser alargada a situações distintas, por mais próximas que possam ser.
De acordo com esse normativo (inserido no capítulo relativo aos efeitos da declaração da insolvência sobre o devedor e outras pessoas), estando pendente o processo de insolvência, só o administrador da insolvência tem legitimidade para propor e fazer seguir um conjunto de acções[7] que se referem a casos de responsabilidade de terceiros, conexos com a situação de insolvência, concretamente:
«a) As ações de responsabilidade que legalmente couberem, em favor do próprio devedor, contra os fundadores, administradores de direito e de facto, membros do órgão de fiscalização do devedor e sócios, associados ou membros, independentemente do acordo do devedor ou dos seus órgãos sociais, sócios, associados ou membros;
b) As ações destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de insolvência;
c) As ações contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente.»
O transcrito inciso normativo contempla, pois, aquelas ações que são (e devam ser) intentadas em benefício direto da generalidade dos credores ou em prol do devedor e, por via disso, suscetíveis de aproveitar, reflexa ou indiretamente, à generalidade desses mesmos credores enquanto titulares de interesses individuais, mas homogéneos.
Daí a solução legal da concentração da legitimidade no administrador da insolvência[8], com o que se pretende evitar que a propositura de ações de responsabilidade pelos mais diversos credores – potencialmente muito numerosos – se reflita no processo de insolvência e introduza um fator de complexificação e atraso na satisfação dos credores da entidade insolvente, constituindo, outrossim, mais uma explicitação no domínio do processo insolvencial do princípio par conditio creditorum (consagrado, em termos gerais, no nº 1 do art. 604º do Cód. Civil) com o que se visa impedir que algum credor possa obter, fora desse processo, uma satisfação mais rápida ou mais completa, em prejuízo dos restantes credores[9].
Por conseguinte, os objetivos que justificam a atribuição dessa legitimidade exclusiva são essencialmente dois: (i) um objetivo de concentração processual, na medida em que se evita a proliferação de ações e assegura-se economia processual, correndo a ação por apenso ao processo de insolvência; (ii) igualdade entre os credores, visando-se garantir que todos eles são satisfeitos na mesma medida através do património dos responsáveis.
O propósito do legislador foi, assim, claro no sentido de “transferir” para o administrador da insolvência os poderes para propor todas as ações contra terceiros que possam influenciar, de forma direta ou reflexa, o valor da massa insolvente, incluindo, portanto, a ação em que se pretenda acionar a responsabilidade de sociedade dominante ao abrigo do citado art. 501º, a qual assume inequivocamente a qualidade de “responsável legal” para os efeitos do disposto no nº 2 do art. 6º do CIRE[10].
Essa transferência de competências é coerente com o papel deste órgão no processo de insolvência, o qual assume o controlo da massa insolvente e está incumbido de proceder à sua administração e liquidação para repartir o respetivo produto final pelos credores de acordo com o mencionado princípio da igualdade dos credores. Daí que, sob esse enfoque, não faria sentido permitir que, no decurso do processo de insolvência da devedora, algum dos credores pudesse ser pago antes dos demais ou mesmo em condições mais vantajosas, sem justificação objetiva, mormente por recurso ao património de uma “responsável legal” pelas dívidas daquela.
Consequentemente, enquanto estiver pendente o processo de insolvência da sociedade devedora, encontra-se a autora privada de legitimidade ativa para propor ou fazer seguir ação balizada pelos apontados elementos objetivos da instância, na justa medida em que, filiando juridicamente a sua concreta pretensão de tutela jurisdicional no art. 501º do Cód. das Sociedades Comerciais, a presente ação reconduz-se inequivocamente à fattispecie da al. c) do nº 3 do art. 82º do CIRE.
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IV.2. Da inconstitucionalidade do nº 3 do artigo 82º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas por afrontar o disposto no artigo 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.

A apelante remata as conclusões recursivas sustentando que “a interpretação do nº 3 do art. 82º do CIRE no sentido de que – em casos como o dos presentes autos, em face da existência de eventuais prazos prescricionais e/ou de caducidade, e perante a inação do administrador de insolvência – a legitimidade ativa para propor e fazer seguir ações contra as sociedades diretoras (que se encontrem em relação de domínio com as insolventes) está exclusivamente reservada ao administrador de insolvência sempre seria inconstitucional, por violação do disposto no art. 20º, nº 1 da Constituição”.
Questão que então se coloca é a de saber se estão reunidos os pressupostos para apreciação da inconstitucionalidade suscitada.
A respeito da conformidade da interpretação das normas jurídicas com o direito constitucional refere GOMES CANOTILHO: “[o] princípio da interpretação das leis em conformidade com a constituição é fundamentalmente um princípio de controlo (tem como função assegurar a constitucionalidade da interpretação) e ganha relevância autónoma quando a utilização dos vários elementos interpretativos não permite a obtenção de um sentido inequívoco dentre os vários significados da norma. Daí a sua formulação básica: no caso de normas polissémicas ou plurissignificativas deve dar-se preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a constituição”[11].
A inconstitucionalidade deve ser suscitada de forma processualmente adequada junto do tribunal que proferiu a decisão, de molde a obrigar ao seu conhecimento (art. 72º da Lei nº 28/82, de 15.11).
Recai sobre o recorrente o ónus de colocar a questão de inconstitucionalidade, enunciando-a de forma expressa, clara e percetível e segundo os requisitos previstos na lei.
Por outro lado, pretendendo questionar certa interpretação de um preceito legal, deverá o recorrente especificar claramente qual o sentido ou dimensão normativa do preceito ou preceitos que tem por violador da Constituição, enunciando com precisão e rigor todos os pressupostos essenciais da dimensão normativa tida por inconstitucional.
Esta tem sido a interpretação desenvolvida pelo Tribunal Constitucional, como disso dá nota, entre outros, o acórdão nº 560/94[12] quando observa: “de facto, a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo, quando tal questão se coloca perante o tribunal recorrido a tempo de ele a poder decidir e em termos de ficar a saber que tem essa questão para resolver – o que, obviamente, exige que quem tem o ónus da suscitação da questão de constitucionalidade a coloque de forma clara e percetível.
Bem se compreende que assim seja, pois que, se o tribunal recorrido não for confrontado com a questão da constitucionalidade, não tem o dever de a decidir. E, não a decidindo, o Tribunal Constitucional, se interviesse em via de recurso, em vez de ir reapreciar uma questão que o tribunal recorrido julgara, iria conhecer dela ex novo”.
A exigência de um cabal cumprimento do ónus da suscitação atempada – e processualmente adequada – da questão de constitucionalidade não é, pois – uma “mera questão de forma secundária”. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se, sobre a questão de constitucionalidade e para que o Tribunal ad quem, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame (e não a um primeiro julgamento) de tal questão.
Ora, no caso vertente, a apelante limita-se a indicar um preceito constitucional (concretamente o nº 1 do art. 20º da Lei Fundamental) que considera ter sido violado na decisão recorrida, não enunciando, contudo, o segmento interpretativo adotado que contraria tal preceito, o que, per se, impede a apreciação da constitucionalidade.
Por outro lado, a mera afirmação de que existe inconstitucionalidade na aplicação de determinada norma, não equivale a suscitar, adequadamente, uma questão de inconstitucionalidade normativa, posto que a válida imputação de inconstitucionalidade a uma norma (ou a uma sua dimensão parcelar ou interpretação), impõe, a quem pretende atacar, na perspetiva da sua compatibilidade com normas ou princípios constitucionais, determinada interpretação normativa, indicar concretamente a dimensão normativa que considera inconstitucional, o que também não ocorre no caso concreto.
Como assim, considera-se que a apelante não suscita, validamente, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, sendo de registar, de qualquer modo, que pelas razões já anteriormente tecidas neste aresto a propósito da ratio essendi que preside à consagração da regra plasmada no nº 3 do art. 82º do CIRE, não se vislumbra em que medida a mesma afronte o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva, previsto no citado art. 20º da Lei Fundamental.
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Diante do exposto, nenhuma censura nos merece o ato decisório recorrido, improcedendo, desta forma, todas as conclusões formuladas pela recorrente e, com elas, o respetivo recurso.
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V- DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a cargo da apelante (art. 527º, nºs 1 e 2).

Porto,4/4/2022
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
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[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] In Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 84.
[3] Cfr., por todos, LEBRE DE FREITAS et al., in Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 51, ANTUNES VARELA et al., in Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, pág. 132 e CASTRO MENDES, in Teoria geral do direito civil, Associação Académica da Faculdade de Direito, 1979, págs. 72-73.
[4] Conforme tem sido sublinhado na doutrina e na jurisprudência pátrias (cfr., por todos, na doutrina, ENGRÁCIA ANTUNES, Os grupos de sociedades, Almedina, 2ª edição, págs. 663 e seguintes, RITA GOMES DE ANDRADE, A responsabilidade da sociedade totalmente dominante, Almedina, 2009, págs. 112 e seguintes e AAVV, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. VII, 2014, Almedina, págs. 264 e seguintes; na jurisprudência, acórdão do STJ de 31.05.2005 [processo nº 05A1413], acórdão da Relação de Lisboa de 19.06.08 [processo nº 260/2007-6] e acórdão da Relação de Coimbra de 15.01.2013 [processo nº 2110/09.0T2AVR.C], acessíveis em www.dgsi.pt), a responsabilidade prevista nesse normativo assume determinadas características especiais, mormente por se tratar de uma responsabilidade direta e ilimitada (a sociedade dominante responde pessoal e imediatamente perante os credores da sociedade dominada), de natureza legal (decorrente de uma norma prevista na lei societária e não da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade-filha) e objetiva (respondendo a sociedade dominante pelas dívidas da sociedade dependente independentemente da culpa que tenha no não cumprimento).
[5] Sendo certo que para efeito de apreciação deste pressuposto processual não cabe dirimir se o invocado art. 501º tem (ou não) efetiva aplicação na situação em apreço, por se tratar de questão atinente ao mérito.
[6] Na redação que lhe foi introduzida pela Lei nº 16/2012, de 20.04.
[7] Que, nos termos do seu nº 6, correm por apenso ao processo insolvencial.
[8] Sobre a razão de ser desta legitimidade exclusiva, cfr., inter alia, CARNEIRO DA FRADA, A responsabilidade dos administradores na insolvência, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 66 (2006), págs. 672 e seguinte e ELISABETE GOMES RAMOS, Insolvência da sociedade e efetivação da responsabilidade dos administradores, in Boletim da Faculdade de Direito nº 83 (2007), págs. 466 e seguintes.
[9] Sobre a aplicação deste princípio no específico domínio do processo insolvencial, cfr., entre outros, CATARINA SERRA, in Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2019, págs. 137 e seguintes, onde ressalta que, no processo de insolvência, tal princípio acarreta uma limitação generalizada dos direitos “naturais” dos credores, o que corresponde a “uma exigência de justiça distributiva ou de solidariedade económica natural” entre eles.
[10] Nesse sentido se pronunciam, entre outros, COUTINHO DE ABREU, em anotação ao artigo 501º do Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. VII, Almedina, 2014, pág. 269, MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, in Manuel de Direito da Insolvência, 6ª edição, Almedina, pág. 169 e seguinte, ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, Insolvência nas sociedades em relação de grupo: de novo pela consolidação substantiva das massas patrimoniais, in I Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2013, pág. 302 e CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, pág. 419, sendo que estes dois últimos autores, noutro lugar (A situação dos acionistas perante dívidas da sociedade anónima no Direito Português, in Direito das Sociedades em Revista, 2012, ano 2, vol. IV, Almedina, págs. 11 e seguintes) defendem a possibilidade de o credor interpelar o administrador da insolvência para que este proponha a ação e, perante a recusa ou inércia, intentar, ele próprio, a ação a título sub-rogatório.
[11] In Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, pág.1226.
[12] Acessível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/.