Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1836/19.4T8OAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: TRIBUNAL DA RELAÇÃO
PODERES COGNITIVOS
VÍCIOS DA DECISÃO
APRECIAÇÃO DA PROVA
ERRO NOTÓRIO
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
Nº do Documento: RP202006221836/19.4T8OAZ.P1
Data do Acordão: 06/22/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE, MANTIDA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - No domínio do regime processual das contra-ordenações laborais e de segurança social aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, os poderes cognitivos do Tribunal da Relação estão, em regra, restringidos à matéria de direito, sem prejuízo de alteração da decisão do tribunal recorrido “sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida“ ou de anulação e devolução do processo ao tribunal recorrido, conforme preceituado nas alíneas a) e b), do n.º2, do art.º 51.º, bem como do conhecimento oficioso dos vícios a que alude o artigo 410º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal.
II - Os vícios da decisão elencados no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal têm de emergir, resultar do próprio texto, da peça escrita, por si só considerada ou conjugada com as regras da experiência comum, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão, como peça autónoma.
III - Não se vislumbrando pela análise da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, isto é, os fundamentos que justificam a convicção formada, sustentada na prova que é referida, qualquer erro de lógica na construção do raciocínio, alguma incoerência que seja, ou sequer desfasamento, em relação às regras de experiência comum, é forçoso concluir que não pode de todo afirmar-se a existência do alegado erro notório na apreciação da prova.
IV - A intervenção do Tribunal da Relação no processo contra-ordenacional é idêntica à do Supremo Tribunal de Justiça na apreciação dos recursos de revista em processo penal.
V - A preterição do princípio in dubio pro reo pressupõe que o julgador tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.
VI - A apreciação da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: há-de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO n.º 1836/19.4T8OAZ.P1
Recurso de Contra-ordenação laboral
4.ª SECÇÃO

I. RELATÓRIO
I.1 A sociedade B…, Lda, notificada da decisão administrativa da Autoridade Para as Condições do Trabalho, aplicando-lhe uma coima de 91 unidades de conta [€ 9.282], pela prática, como reincidente, de uma contra-ordenação muito grave, prevista pelo artigo 129.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do Código do Trabalho – violação do dever de ocupação efectiva do trabalhador -, dela discordando deduziu impugnação judicial.
No essencial, impugnou a decisão administrativa alegando, em síntese, que sempre atribuiu funções ao trabalhador e este estava ocupado, sem prejuízo de no armazém o trabalho do trabalhador, enquanto motorista/manobrador, ser inferior em quantidade ao exercido em obra, sendo que a sua colocação em armazém se justificava por ser necessário outro trabalhador e o em causa ter passado por um período de perturbação pessoal e/ou familiar que o levaram em algumas situações a provocar danos em obras. Por isso, pretendia-se diminuir a pressão sobre o trabalhador.
A impugnação judicial foi recebida, tendo sido designada data para realização do julgamento.
I.2 Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença concluída com o dispositivo seguinte:
- «Pelo exposto, julgo improcedente a impugnação e, em consequência, mantenho a decisão administrativa.
Mais condeno a recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em três unidades de conta.
(…)».
I.3 Discordando desta decisão a arguida interpôs recurso, o qual foi admitido e fixados o efeito e modo de subida adequados. Apresentou as respectivas alegações, sintetizando-as nas conclusões seguintes:
1ª O presente recurso vai interposto da douta sentença, proferida em 10/10/2019 pelo M. Juiz do Tribunal “a quo”, que, mantendo integralmente a decisão da autoridade administrativa, aplicou à Recorrente uma coima única de 91 UC, isto é, de € 9.282,00 (nove mil, duzentos e oitenta e dois euros), pela prática da contraordenação p. e p. pelo artigo 129º, nº 1, alínea b) e nº 2 do Cód. do Trabalho.
2ª Não obstante o recurso das decisões proferidas em processos de contra-ordenação laboral apenas poder versar sobre matéria de direito (conforme artigo 51º, nº 1 da Lei nº 107/2009, de 14 de Setembro), entende-se que, para além das questões de direito, pode o mesmo ter ainda por escopo qualquer um dos vícios elencados no artigo 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras de experiência comum.
3ª Entende a Recorrente que a douta sentença padece do vício elencado na alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Cód. Proc. Penal, ou seja, de erro na apreciação da prova, impondo a prova produzida nos autos uma decisão manifestamente distinta daquela que o foi, sendo que, além de ter havido violação do princípio do in dubio pro reo, foi efetuada uma incorreta interpretação dos factos e determinação e aplicação das normas jurídicas em causa, inexistindo, pois, fundamento para a aplicação da referida coima à Recorrente.
4ª Analisada a douta sentença de que ora se recorre verifica-se que, perante as duas versões contraditórias dos factos, funcionou como critério decisório a inexistência de determinada prova documental que, na convicção do M. Juiz do Tribunal a “quo”, teria necessariamente de existir e que, a existir, poderia confirmar a versão da Recorrente.
5ª Entende a Recorrente que a prova documental que no entender do M. Juiz do Tribunal “a quo” deveria existir para a Recorrente fazer prova da sua versão dos factos, não tinha nem tem de existir, o que resulta à saciedade das regras de experiência comum, não podendo, assim, a sua inexistência ter a virtualidade de o fazer decidir pela prática da contra ordenação de que a Recorrente vem acusada, como o teve.
6ª Os documentos a que o Tribunal “a quo” alude na sua douta decisão e que, no seu entender, seriam determinantes para provar a versão dos factos da Recorrente, não têm obrigatoriamente de existir, do que resulta que se fez uma interpretação errónea sobre a sua não existência, dela sendo retiradas considerações e conclusões erróneas e não consentâneas com a realidade comercial e empresarial no nosso país, à luz das regras de experiência comum e do homem médio. Vejamos…
7ª Em sede de audiência de discussão e julgamento o M. Juiz do Tribunal “a quo” determinou a notificação da Recorrente para vir juntar aos autos documentos assinados pelo trabalhador C… e que demonstrassem a sua intervenção em tarefas de carga e descarga de materiais, tendo-o feito não obstante a testemunha D… ter referido e explicado que o trabalhador não tinha qualquer tipo de intervenção nessa documentação e porque razão não a tinha e que, por isso, não poderiam existir quaisquer documentos assinados pelo mesmo.
8ª A Recorrente, dentro do prazo que lhe foi concedido para o efeito, veio aos autos explicar o “procedimento documental” normal da empresa quanto a cargas e descargas, nomeadamente quanto a registos das mesmas, justificando o motivo da inexistência dos documentos solicitados.
9ª O M. Juiz do Tribunal “a quo” não atentou de todo nestes esclarecimentos da Recorrente, que resultam, aliás, da prática comercial e empresarial e das regras de experiência comum, e que retratam a realidade desta e doutras empresas no nosso país, limitando-se a extrair a conclusão, errada, de que inexistindo documentos assinados pelo referido trabalhador não há prova de que este executava trabalhos de cargas e descargas e consequentemente, da versão apresentada pela Recorrente.
10ª Na empresa Recorrente, como em tantas outras deste ramo de atividade, certo é que os movimentos de mercadorias, produtos, materiais, etc… são devidamente registados mas, diferentemente do que considerou o douto Tribunal “a quo”, os documentos que os fundamentam não têm necessariamente de ser assinados, e muito menos por quem executa um trabalho prático de mera carga e descarga.
11ª Há que ter presente que um trabalhador com a categoria profissional de condutor-manobrador, como era o caso do trabalhador em causa, tem por função, entre outras (que são várias e se encontram especificadas no doc. 2 junto com o recurso de impugnação, não sendo só as de carga e descarga de mercadorias), a de executar trabalhos de cargas e descargas com as máquinas, ou seja, de manobrar máquinas com o objetivo de efetuar cargas e descargas de materiais, mercadorias ou produtos, o que não implica, necessariamente, ter de os confirmar ou assinar documentos que atestem o seu género, qualidade e quantidade. Ou seja, é absolutamente comum e habitual, e resulta até do senso comum, que quem executa a tarefa de carga e descarga de materiais não faça esse tipo controle e muito menos assine documentos a atestar situações que não são da sua competência verificar. Aliás, essa era a função do chefe de armazém, D…, pelo que, não havia nenhuma razão para ser o trabalhador em causa a fazê-lo.
12ª Depois, e como resulta das explicações apresentadas pela Recorrente na sequência do douto despacho de fls., das quais o douto Tribunal “a quo” fez “tábua rasa”, o procedimento habitual da empresa, em caso de cargas e descargas, é o que ocorre na maioria das empresas deste ramo de actividade (construção civil) e que se traduz, basicamente, no seguinte:
13ª Relativamente às entregas/descargas de volumes expedidas através de transportadoras, o procedimento normal é o destinatário dos mesmos limitar-se a apor assinatura comprovativa da sua recepção em documentos que ficam na posse apenas dessas transportadoras e não do destinatário, sendo que, no caso da Recorrente, quem procede a essa recepção são normalmente os funcionários administrativos.
14ª Aliás, resulta da experiência comum que, sempre que se recepciona qualquer encomenda expedida através de transportadora, se assina documento em como se recebeu a dita encomenda, documento que fica na posse da transportadora, sendo que, só posteriormente se procede à análise e confirmação do material encomendado, ou seja, nunca tal confirmação é efetuada na presença de funcionário da transportadora.
15ª O caso da Recorrente não é diferente: usualmente os funcionários administrativos atestam a receção de todas as encomendas vindas de fornecedores e expedidas através de transportadoras e, posteriormente, o material entregue é confirmado por funcionário responsável por executar essa tarefa, que não é necessariamente quem executa a descarga da mercadoria.
16ª Do que resulta, obviamente, que o ex-trabalhador C…, enquanto condutor-manobrador, nunca podia ter assinado qualquer documento inerente a estas descargas, já que, neste caso, tal não é o procedimento normal nesta empresa neste tipo de situação.
17ª Quanto às descargas de materiais com origem e entrega directamente pelos fornecedores “históricos”, e cuja confiança recíproca tem anos, ou seja, pelos fornecedores mais antigos, a verdade é que estas não requerem nem é procedimento normal da empresa a elaboração de qualquer documento que ateste essa recepção, assinado pelo trabalhador que faça a descarga.
18ª Neste tipo de relação contratual, o procedimento normal é o fornecedor deixar a guia de remessa ou factura, documentos esses que, posteriormente, são conferidos pelo responsável de armazém D… e por este rubricadas, em consonância com o material descarregado, sendo certo que, qualquer divergência é facilmente sanada entre as partes, atenta a relação de confiança de longa data existente.
19ª Assim, neste caso, a conferência do material descarregado com o constante da guia de remessa ou factura emitida pelo fornecedor não é, nunca foi nem tem de ser feito por quem executa em concreto o trabalho de descarga, razão pela qual, de igual modo não se justifica que seja aquele trabalhador a assinar qualquer documento que a tal respeite.
20ª No que respeita a descargas de quantidades significativas de materiais, como por exemplo um camião de cimento que transporta sempre a mesma quantidade (16 paletes com 72 sacos cada), estas são de fácil conferência a olho nu, já que a caixa do reboque vem toda preenchida e a altura é uniforme, razão pela qual, não é também necessário assinar qualquer documento, e muito menos ser o condutor-manobrador a fazê-lo.
21ª Quanto às cargas, estão são efectuadas mediante os pedidos dos responsáveis de obras da Recorrente efectuados ao funcionário D…, chefe de armazém, com emissão de documentos de transporte comunicados previamente à Autoridade Tributária que cria um código numérico entregue ao motorista e sem qualquer assinatura/rubrica dos intervenientes em causa; ou seja, neste caso são emitidas guias de transporte, que atestam o tipo e quantidade do material transportado mas que não têm de modo algum de ser assinadas pelo condutor manobrador que executa o trabalho de carga.
22ª Do supra exposto resulta que não é prática comum na empresa ora Recorrente, nem seguramente nas demais empresas do ramo, os funcionários que têm a categoria profissional de condutores-manobradores, quando executam trabalhos de cargas e descargas de materiais ou produtos, assinarem documentos que atestem a quantidade ou qualidade dos mesmos, circunstancialismo que o M. Juiz “a quo” não procurou apurar de forma segura.
23ª Assim, salvo o devido respeito, o M. Juiz “a quo” parte de uma premissa errada quando diz terem de existir documentos assinados por um trabalhador que faça cargas e descargas (já que não têm mesmo de existir) e, por outro lado, faz um raciocínio errado quando considera que não é normal não existirem tais documentos, ou seja, que não é normal que um trabalhador que procede a cargas e descargas não tenha assinado um único documento.
24ª Resulta das regras de experiência comum que no giro comercial e empresarial, sobretudo tratando-se de empresas do ramo de construção civil, que os procedimentos de cargas e descargas de materiais em estaleiro se processam conforme supra relatado e não do modo como entende o M. Juiz do tribunal “a quo”, o qual é desfasado da realidade dos factos. O entendimento do M. Juiz do tribunal “a quo” baseia-se em meras considerações gerais e abstratas, sem qualquer suporte na realidade dos factos.
25ª Entende a Recorrente que o M. Juiz do tribunal “a quo”, ao retirar a conclusão que extraiu da inexistência de tais documentos incorreu em erro de tal forma patente que não escapa o mesmo à imediata observação e verificação comum do homem de formação média.
26ª Não pode o douto tribunal “a quo”, se tiver em conta as regras de experiência comum e a prática normal neste tipo de empresa, concluir da forma como concluiu.
27ª Existe erro na apreciação da prova quando se dão como provados factos que face às regras de experiência comum e à lógica coerente do homem médio não se teriam podido verificar, o que é o caso.
28ª Esse erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Cód. Proc. Penal, tem de decorrer da decisão decorrida e si mesma, por si ou conjugada com as regras da experiência comum e tem, ainda, de ser um erro claro e evidente, como o é.
29ª Nesta perspectiva, e tendo em consideração que a douta decisão, para além de se basear neste elemento que ora é posto em crise, se baseia apenas nas duas versões contraditórias, verifica-se existir igualmente violação do princípio do in dúbio pro reo.
30ª Essa violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratado como erro notório na apreciação da prova, o que significa que a sua existência só pode ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma mais do que evidente, que o tribunal, na dúvida optou por decidir contra o arguido.
31ª O referido princípio é um corolário da presunção de inocência, consagrada constitucionalmente no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. Constitui um dos direitos fundamentais dos cidadãos (cfr. artigo 18.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa; 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos e Liberdades Fundamentais, e 14.º, n.º 2, d o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos).
32ª Colocado o tribunal em julgamento perante dúvida insanável em matéria de prova, deve aplicar o dito princípio. Um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que o referenciado princípio se afirma.
33ª Resulta do texto da douta decisão que o douto Tribunal “a quo” ficou em dúvida em relação aos factos, ou seja, às versões trazidas pelo partes, pelo que, não estando convicto de nenhuma das versões deveria aplicar o princípio in dubio pro reo, mostrando-se, deste modo, violada a norma do artigo 32.º, n.º 2, da CRP.
34ª Na verdade, a douta sentença de que ora se recorre não desconsidera a versão da Recorrente em si mesma, mas antes e apenas a desconsidera com base no facto de inexistirem documentos que não têm de existir, factor que, ao que parece, terá funcionado como “critério de desempate”.
35ª Ora, tendo em consideração que tal critério não é verosímil, já que não têm de existir necessariamente tais documentos, e restando apenas duas versões contraditórias dos factos, salvo o devido respeito, na dúvida, devia o douto tribunal “a quo” ter decidido a favor da Recorrente, sendo que, ao não fazê-lo, violou o princípio do in dúbio por reo e aplicou, assim, erradamente, o direito aos factos tidos por provados.
36ª Como refere em douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, datado de 09/02/2005, no qual foi relator o Juiz Conselheiro Henriques Gaspar “O erro notório na apreciação da prova a que se referia a motivação do recorrente para o tribunal da relação, constituiu uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.
A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da “experiência comum”.
37ª Face ao exposto, é entendimento da ora Recorrente ter a douta decisão incorrido no vício de erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Cód. Proc. Penal, isto é, num vício de raciocínio na apreciação das provas, e que se veio a traduzir na violação do princípio do in dúbio pro reo.
38ª Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso e deverá a decisão ser alterada, absolvendo-se a Recorrente da prática da contra-ordenação ou, no caso de não se entender ter havido violação deste princípio, o que apenas por mera hipótese se admite, deve a mesma ser declarada nula, determinando-se o reenvio do processo, de harmonia com o disposto no artigo 51º, nº 2 Lei 107/2009, de 14 de Setembro, com todas as consequências legais.
I.4 Notificado do requerimento do recurso e respectivas alegações, o Ministério Público apresentou contra-alegações, finalizadas com as conclusões seguintes:
1ª –O princípio da livre apreciação da prova permite que o julgador se decida por uma determinada versão possível dos factos em prejuízo de outra, contanto que fundamente adequadamente a sua escolha, pois que as testemunhas, enquanto nessa qualidade, não têm todas o mesmo valor, nem aquele está investido no dever de acreditar em todas elas de igual forma ou em todas as partes dos seus depoimentos, tudo ficando dependente do juízo que formular sobre o seu mérito, cabendo-lhe, portanto, selecionar de acordo com a sua valia os que estima credíveis e rejeitar os que desvirtuam ou desprezam a realidade.
2ª – Resultou como provado que, desde 3 de julho de 2018 o trabalhador C… foi substituído no local de trabalho onde se encontrava, em …, por um condutor manobrador admitido nesse mesmo dia. A empresa comunicou ao depoente que não tinha trabalho para ele.
3ª – O trabalhador, mais tarde, ficou no armazém, a cumprir um horário, sem lhe ser sido distribuído o trabalho.
4ª - Esta situação ocorreu após uma visita da ACT à R. depois de uma comunicação do trabalhador reivindicando o pagamento do trabalho suplementar prestado e à obrigação da R. a pagar-lhe cerca de 4.000 Euros a título de retroativos em atraso;
5ª – A R. alega que a sentença enferma de erro na apreciação da prova, pois o Tribunal recorrido não teve em atenção que eram os funcionários administrativos da sociedade que confirmavam a recepção das mercadorias e o chefe de armazém. Contudo, do depoimento das testemunhas indicadas pela R. resultou provado que, colocaram o trabalhador C… para substituir o chefe de armazém quando este ia almoçar. Sendo que, o horário de almoço dos dois trabalhadores era em parte coincidente.
6ª - Se o trabalhador foi colocado para fazer as horas de almoço, certamente, nessa altura, não estavam no escritório funcionários administrativos para recepcionar as encomendas das transportadoras e não estava o chefe de armazém. Assim, caso o trabalhador estivesse de facto a exercer funções como auxiliar de armazém, tinha que existir documentação da verificação/recepção das mercadorias entregues pelas transportadoras.
7ª - Não houve qualquer violação do “princípio in dubio pro reo”.
8ª - Do texto da decisão recorrida, conjugada com a sua motivação e com as regras da experiência comum não resulta que devesse ter sido outra a decisão tomada pelo tribunal recorrido.
Termos em que, não deve o recurso interposto pela ora recorrente merecer provimento, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.
I.5 Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer (art.º 416.º do CPP), pronunciando-se pela inadmissibilidade do recurso, dado a 2.ª instância, em matéria de direito contra-ordenacional, apenas conhecer de direito, conforme estabelecido no art.º 51.º n.º 2 da Lei 107/2009.
I.5.1 A arguida respondeu, reiterando a posição assumindo no recurso, no essencial, que a sentença padece do vício elencado na alínea c), do n.º2, do art.º 410.º do CPP.
I.6 Foi cumprido o disposto no art.º 418.º do CPP, remetendo-se o processo aos vistos e o projecto de acórdão por via electrónica, após o que se determinou a sua inscrição para julgamento em conferência.
I.7 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso (art.ºs 403, nº 1, e 412º, n.º 1, do CPP), as questões que se perfilam para apreciação consistem em saber o seguinte:
i) Se a sentença enferma de erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Cód. Proc. Penal, por essa razão sendo admissível o recurso sobre a matéria de facto;
ii) Em caso afirmativo, se o tribunal a quo errou na apreciação da matéria de facto e, por consequência, na aplicação do direito.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1 MOTIVAÇÃO DE FACTO
O tribunal a quo fixou a matéria de facto seguinte [a numeração foi introduzida por nós]:
1. Factos provados:
1. É arguida B…, Lda. com o NIF ……… e sede em …, ….-… …, …, na qualidade de empregadora.
2. Representam a arguida E… NIF ……… com domicílio na … n.º .., …, ….-… … e por F…, NIF ……… e domicílio em …, ….-… …, concelho de Arouca.
3. No dia 26 de julho pelas 10h 45m foi realizada visita inspetiva ao armazém da empresa – edifício contíguo à sede da empresa – no …, …, …, concelho de Arouca.
4. Nesse dia e hora foi verificado pelo inspector autuante que o trabalhador C… se encontrava dentro dos limites da propriedade, frente ao referido armazém.
5. O referido trabalhador encontrava-se de pé, sem vestuário ou calçado de trabalho, com óculos escuros, sem exercer qualquer trabalho.
6. Foi solicitada a consulta do registo dos tempos de trabalho que se encontrava preenchido e disponível no edifício contíguo.
7. Da sua análise foi verificado que, no dia da visita, o referido trabalhador iniciou o seu período de trabalho às 10h00m.
8. Mais foi verificado que, desde 6 de julho o referido trabalhador tem cumprido o horário com início às 10h00m e termo às 19h30m com intervalo de descanso das 14h00m às 15h 30m.
9. O trabalhador tem a categoria profissional de condutor manobrador.
10. Foi questionado o trabalhador pelo motivo por que se encontrava sem trabalhar tendo declarado que “estava de castigo”.
11. Mais declarou estar sem qualquer ocupação há vários dias, tendo reportado tal facto à empresa.
12. Foi recolhido o seu depoimento em auto de declarações pelo inspector autuante e que faz parte integrante do auto de notícia. O trabalhador declarou que:
- “desde 3 de julho de 2018 substituíram-no no local de trabalho onde se encontrava, em …, por um condutor manobrador admitido nesse mesmo dia. A empresa comunicou ao depoente que não tinha trabalho para ele. Dirigiu-se, então, à ACT, que o aconselhou a apresentar-se na empresa. O que tem feito desde então.
Estipularam-lhe um outro horário de trabalho e tem-se mantido neste local – oficina da empresa - desde essa data, sem tarefas atribuídas. Ninguém lhe atribui tarefas ou justifica a não atribuição de trabalho. O motivo desta situação prende-se, segundo o depoente, a ter pedido que lhe pagassem o trabalho suplementar prestado. A resposta que lhe deram foi de que se não «estivesse bem, a porta está aberta». Acresce que lhe pagaram cerca de 4.000 Euros a título de retroativos em atraso.
Segundo o depoente, tal situação estará na origem da sua inocupação. O trabalhador declara que regista os tempos de trabalho na oficina”.
13.De facto, na sequência de uma intervenção inspetiva realizada no dia 16 de maio de 2018, a arguida apurou e pagou ao trabalhador C… o valor de 4.372,19 Euros.
14. Como decorre do seu depoimento, o trabalhador C… associa a falta de pagamento do trabalho suplementar e o pagamento dos retroativos na sequência da intervenção inspetiva como o motivo de a empresa o estar a “castigar”, ou seja, de o manter inocupado num local onde nunca trabalhou, com um horário de trabalho distinto do que sempre cumpriu e sem possibilidade de exercer as suas funções de condutor manobrador.
15. Nesse mesmo dia foi solicitado na empresa um esclarecimento sobre a situação laboral do trabalhador uma vez que se encontrava sem ocupação.
16. Foi interlocutora, G…, Técnica Superior de SST que informou não estar presente nenhum elemento dos Recursos Humanos da empresa que pudesse esclarecer cabalmente a situação do trabalhador em causa.
17. A interlocutora facultou uma descrição de funções interna para a categoria de “condutor/manobrador”.
18. Procedendo da forma supra descrita, o arguido atuou negligentemente omitindo um dever objetivo de cuidado (a que está obrigada e de que é capaz) e a diligência adequada, no sentido de evitar a produção daquele resultado (conformando-se com o mesmo).
2. Factos não provados:
- No período considerado, para além das tarefas referidas pelo trabalhador, a recorrente, através dos seus dirigentes, atribuiu funções ao trabalhador e este estava ocupado, sendo que a colocação do trabalhador em armazém se justificava por ser necessário outro trabalhador em armazém e o trabalhador em causa ter passado por um período de perturbação pessoal e/ou familiar que o levaram em algumas situações a provocar danos em obras e, por isso, pretendia-se diminuir a pressão sobre o trabalhador.
II.2 ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
Defende a recorrente que a sentença padece do vício elencado na alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Cód. Proc. Penal, ou seja, de erro notório na apreciação da prova, impondo a prova produzida nos autos uma decisão manifestamente distinta daquela que o foi, sendo que, além de ter havido violação do princípio do in dubio pro reo, foi efetuada uma incorreta interpretação dos factos e determinação e aplicação das normas jurídicas em causa, inexistindo fundamento para a aplicação da coima.
Nesse pressuposto, sustenta que no caso este Tribunal deve admitir o recurso sobre a matéria de facto e pronunciar-se sobre as questões nele suscitadas.
Contrapõe o Ministério Público que não houve qualquer violação do princípio in dubio pro reo, nem do texto da decisão recorrida, conjugada com a sua motivação e com as regras da experiência comum resulta que devesse ter sido outra a decisão tomada pelo tribunal recorrido. Não há erro notório na apreciação da prova e, logo, a reapreciação da matéria de facto não é admissível.
II.2.1 No que concerne ao direito adjectivo, no caso aplica-se o regime processual das contra-ordenações laborais e de segurança social aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro. E, por determinação do art.º 60.º, subsidiariamente, desde que o contrário não resulte daquela lei, “(..), com as devidas adaptações, os preceitos reguladores do processo de contra-ordenação previstos no regime geral das contra–ordenações”, isto é, no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, com as alterações introduzidas pelos Decretos-lei n.º 356/89, de 17 de Outubro e n.º 244/95, de 14 de Setembro, e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro. Aplicam-se, ainda, também subsidiariamente, os preceitos reguladores do processo penal, em tudo o que não se mostre regulado em qualquer um daqueles diplomas (art.º 41.º, do RGCO).
Vejamos então se no caso deve ser admitido o recurso.
O art.º 51.º da Lei n.º 107/2009, estabelece o seguinte:
- 1 - Se o contrário não resultar da presente lei, a segunda instância apenas conhece da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.
2 - A decisão do recurso pode:
a) Alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida;
b) Anulá-la e devolver o processo ao tribunal recorrido.
Consagra-se, pois, o regime já afirmado no Regime Geral das Contra-Ordenações e Coima [Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, actualizado pelo Decreto-Lei nº 356/89, de 17 de Outubro, pelo Decreto-Lei nº 244/95, de 14 de Setembro e pela Lei nº 109/2001, de 24 de Dezembro], nomeadamente no artigo 75º, onde se lê:
1- Se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.
2 - A decisão do recurso poderá:
a) Alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida, salvo o disposto no artigo 72.º-A;
b) Anulá-la e devolver o processo ao tribunal recorrido.
Significa isto, como é consabido, que os poderes cognitivos deste Tribunal ad quem estão, em regra, restringidos à matéria de direito, sem prejuízo de alteração da decisão do tribunal recorrido “sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida “ou de anulação e devolução do processo ao tribunal recorrido, conforme preceituado nas alíneas a) e b), do n.º2, do art.º 51.º, bem como do conhecimento oficioso dos vícios a que alude o artigo 410º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal.
Sobre o dever de conhecimento oficioso, afirma-se no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 19-10-1995 [Proc.º 046580, Conselheiro Sá Nogueira, disponível em www.dgsi.pt] o seguinte: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.
Em suma, como regra, em processo contra-ordenacional o recurso para a Relação sobre a decisão da 1.ª instância, é restrito à matéria de direito.
Por seu turno, dispõe o artigo 410.º do CPP no n.º 2 e alínea c), o seguinte:
2- Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) (..);
b) (..);
c) Erro notório na apreciação da prova.
No acórdão desta Relação e Secção, de 18 de Dezembro de 2018 [proc.º nº 4881/16.8T8MTS.P2, Desembargador Nélson Fernandes – aqui adjunto - disponível em www.dgsi.pt] a propósito dos vícios da sentença previstos no n.º2, do art.º 410.º, recorrendo à jurisprudência do STJ, faz-se a elucidativa resenha que nos permitimos transcrever:
- «(..) importa desde logo ter presente, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Março de 2016 , por apelo ao que se disse no Acórdão desse mesmo Tribunal de 8 de Novembro de 2006 , que os aludidos vícios elencados no citado n.º 2 do artigo 410.º, “pertinem à matéria de facto; são anomalias decisórias ao nível da confecção da sentença, circunscritos à matéria de facto, apreensíveis pelo seu simples texto, sem recurso a quaisquer outros elementos a ela estranhos, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito.(...) Na verdade, os factos relevantes para a decisão da causa são necessariamente factos que importam consequências jurídicas, e por isso, em tal âmbito, a matéria de facto é sempre juridicamente relevante.”
Discorrendo sobre a matéria, pode ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Março de 2010 (transcrição):
(…) No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, cuja indagação, como resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo.
Nesta forma de impugnação, as anomalias, os vícios da decisão elencados no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal têm de emergir, resultar do próprio texto, da peça escrita, por si só considerada ou conjugada com as regras da experiência comum, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão, como peça autónoma.
A possibilidade de introdução do Tribunal ad quem no domínio da facticidade sempre será parcial, restrita, limitada e indirecta, consistindo numa fórmula mitigada de reapreciação da matéria de facto, para utilizar a expressão contida na alínea a) do n.º 15 da aludida Exposição de Motivos; tratando-se de vícios inerentes à decisão, à sua estrutura interna (e não de erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida), de vícios emergentes da decisão documentados no texto, a sua indagação não pode ir além do suporte textual, sem possibilidade de recurso a elementos estranhos àquela peça escrita.
Daí que, conforme jurisprudência uniforme e já remota deste Supremo Tribunal, se entenda que os vícios têm de resultar da própria decisão recorrida, encarada por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, analisada na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos estranhos à peça decisória, que lhe sejam externos, constando do processo em outros locais, como documentos juntos ou depoimentos colhidos ao longo do processo - acórdãos do STJ de 29-11-1989, processo n.º 40255/89-3ª; de 19-12-1990, processo n.º 41327/90-3ª, in BMJ n.º 402, pág. 232; de 31-05-1991, in BMJ n.º 407, pág. 77; de 03-07-1991, Colectânea de Jurisprudência 1991, tomo 4, pág. 12; de 16-10-1991, in BMJ n.º 410, pág. 10; de 13-02-1992, in BMJ n.º 414, pág. 389; de 22-09-1993, CJSTJ 1993, tomo 3, pág. 210; de 09-11-1994, CJSTJ 1994, tomo 3, pág. 245; de 20-03-1995, BMJ n.º 445, pág. 335 (não é inconstitucional e não viola o princípio do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, a norma do n.º 2 do artigo 410º CPP, ao exigir que os vícios tenham de resultar do texto da decisão recorrida); de 18-09-1996, BMJ n.º 459, pág. 283; de 25-09-1996, BMJ n.º 459, pág. 304; de 17-10-1996, BMJ n.º 460, pág. 399; de 15-10-1997, processo n.º 582/97; de 19-11-1997, processo n.º 873/97-3ª; de 20-11-1997, processo n.º 1242/97-3ª; de 11-03-1998, BMJ n.º 475, pág. 480; de 28-10-1998 e de 29-10-1998, in BMJ, n.º 480, págs. 83 e 292.
E mais recentemente: de 15-02-2007, processo n.º 3174/06 - 5.ª; de 14-03-2007, processo n.º 617/07 - 3.ª; de 17-05-2007, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 197; de 23-05-2007, processo n.º 1405/07 - 3.ª; de 11-07-2007, processo n.º 1416/07 - 3.ª, de 27-07-2007, processo n.º 2057/07-3.ª; de 24-10-2007, processo n.º 3338/07-3ª; de 17-01-2008, CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 206; de 05-03-2008, processo n.º 3259/07-3.ª; de 12-06-2008, processo n.º 4375/07-3ª; de 19-06-2008, processo n.º 122/08-5ª (por conseguinte, não será lícito recorrer à prova produzida para se surpreender qualquer dos referidos vícios, exactamente porque não se pode confundir aqueles, enquanto afectam, de forma patente, a estruturação fáctica interna, em que há-de ter apoio a decisão de direito, com erro de julgamento); de 16-10-2008, processo n.º 2851/08-5ª; de 22-10-2008, processo n.º 215/08-3ª; de 04-12-2008, processo n.º 2486/08-5ª; de 14-05-2009, processo n.º 1182/06.3PAALM.S1-3.ª (Veja-se ainda o acórdão n.º 573/98, de 13-10-1998, publicado no DR – II Série, n.º 263, de 13-11-1998).
Como se extrai dos acórdãos do STJ de 11-12-1996, in BMJ n.º 462, pág. 207 e de 12-11-1997, processo n.º 32507, característica comum a todos os vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º, do Código de Processo Penal, a fim de fundamentarem o reenvio do processo para novo julgamento, quando insanáveis no tribunal de recurso, é que resultem do texto da decisão recorrida, sem influência de elementos exteriores àquela, a não ser as regras da experiência comum.
Trata-se de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Vícios da decisão, não do julgamento, como se exprime Maria João Antunes (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).
Na análise a efectuar para detecção do vício há que ter em conta que a fixação da matéria de facto teve na sua base uma apreciação da prova, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Os vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, nomeadamente, o erro notório na apreciação da prova, não podem ser confundidos com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida ou com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questões do âmbito da livre apreciação da prova, princípio inscrito no citado normativo - artigo 127.º do CPP.
Não podendo, neste tipo de análise, prevalecer-se de prova documentada, nem se encontrando perante prova legal ou tarifada, não pode o tribunal superior sindicar a boa ou má valoração daquela, e querer discutir, nessas condições, a valoração da prova produzida é afinal querer impugnar a convicção do tribunal, olvidando a citada regra.
Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.
Para avaliar se a convicção formada pelo tribunal padece dos aludidos vícios há, que apreciar, por um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção) e, por outro, a natureza das provas produzidas e os processos intelectuais que o conduziram a determinadas conclusões.
O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo susceptível de apreciação.”
[..]».
Entrando na apreciação começaremos por destacar, como sublinha o Supremo Tribunal de Justiça na transcrição acima, que como “característica comum a todos os vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º, do Código de Processo Penal, a fim de fundamentarem o reenvio do processo para novo julgamento, quando insanáveis no tribunal de recurso, é que resultem do texto da decisão recorrida, sem influência de elementos exteriores àquela, a não ser as regras da experiência comum”.
De resto, note-se, a própria recorrente tem essa noção, afirmando que “Esse erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Cód. Proc. Penal, tem de decorrer da decisão decorrida e si mesma, por si ou conjugada com as regras da experiência comum e tem, ainda, de ser um erro claro e evidente”, para depois invocar, nesse sentido, o Ac. do STJ de 09/02/2005, quando elucida:
- “O erro notório na apreciação da prova a que se referia a motivação do recorrente para o tribunal da relação, constituiu uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.
A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da “experiência comum”.
Por outro lado, como também elucida o STJ cabe ter presente que “N]análise a efectuar para detecção do vício há que ter em conta que a fixação da matéria de facto teve na sua base uma apreciação da prova, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal”, e concomitantemente, no que concerne ao método a observar na indagação para se saber se há um erro notório, importa reter, que “há, que apreciar, por um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção) e, por outro, a natureza das provas produzidas e os processos intelectuais que o conduziram a determinadas conclusões”.
Como primeira nota, atentando no elenco dos factos provados, quer vistos individualmente, quer conjugados entre si, não se vislumbra qualquer incoerência, contradição lógica ou desfasamento à luz das regras da experiência comum.
De resto, como se retira das conclusões, a recorrente também não lhes aponta qualquer vício. Coloca é a questão a montante, vindo defender que o alegado vício de erro notório na apreciação da prova ocorreu no processo de formação da convicção do julgador, conduzindo à fixação daqueles factos.
Assim, importa atentar na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, constante da sentença, cujo teor é o seguinte:
-«A única questão que se coloca, na realidade, é a de saber se o trabalhador estava sem ocupação no período de tempo reportado pelo próprio trabalhador até à data da inspeção e mesmo depois desta. Nesta matéria surgem duas versões não coincidentes: por um lado, o trabalhador, testemunha C…, confirmou que esteve aquele período sempre sem trabalho, por não lhe ser distribuído qualquer trabalho, apesar de ter concordado com a mudança de local e horário de trabalho, o que considerou ser um castigo porque tinha apresentado uma queixa na ACT que fez uma inspeção à empresa e, nessa sequência, a emprega liquidou-lhe uma quantia de cerca de € 4.000 [correspondente a uma redução unilateral do seu salário], tendo unicamente, num dia, carregado dois sacos de cimento para um camião. Estas declarações foram inteiramente confirmadas pelas declarações do inspetor do trabalho que confirmou que fez a primeira inspeção que culminou no pagamento daquela quantia ao trabalhador e, pouco tempo após esta situação, o trabalhador procurou-o novamente e reportou-lhe que tinha sido colocado no armazém sem qualquer trabalho, não por não existir, mas porque não lhe era distribuído trabalho, o que terá sucedido até ao momento da inspeção em que verificou no local que o trabalhador estava nas condições referidas sem qualquer trabalho, em frente ao armazém em causa. Contra esta posição, as testemunhas H… e D…, colaboradores da ré, afirmaram que tal não corresponde à realidade porque o trabalhador esteve todo aquele tempo a trabalhar, podendo ter menos trabalho do que nas obras, mas sem deixar de ter trabalho, justificando a sua colocação naquele local por existir um longo período de tempo durante o dia, em que por força do horário de almoço desta última testemunha, o armazém ficar sem funcionários e, por isso, os motoristas vinham carregar ou descarregar e tinham que ficar um longo tempo à espera. Perante este cenário e como a última testemunha confirmou que o trabalhador teria feito cargas e descargas, consigo ou sozinho naquele período, considerando que o controlo das existências de uma empresa é uma matéria essencial para o controlo de custos e, por isso, se trata de atividade cujos movimentos de mercadorias são totalmente registados, determinou-se a notificação da empresa para juntar aos autos documentos assinados pelo trabalhador e que demonstrassem a sua participação em tarefas de cargas e descargas, o que consideramos ter que existir se o trabalhador fazia cargas ou descargas sozinho no período em que o outro funcionário do armazém estava em período de almoço. No entanto, a recorrente não juntou qualquer documento assinado pelo trabalhador em causa. Perante esta situação, consideramos que temos que atribuir credibilidade à primeira versão dos factos, pois não vemos com normalidade que um trabalhador que procede a cargas e descargas não tenha assinado um único documento, designadamente a receção de mercadorias ou outros, não tenha verificado se as mercadorias entregues estavam em conformidade com as faturas ou qualquer documento das transportadoras [aliás, esta diligência era a grande oportunidade para a recorrente “desmascarar” a versão dos factos relatada pelo trabalhador caso esta não correspondesse à verdade]. Logo, consideramos provada a versão dos factos constante da decisão administrativa e, em contraposição, não consideramos provada a versão dos factos relatada pela recorrente pois esta é contraditória com aquela versão, sendo certo que se consideramos provado que o trabalhador esteve sem exercer funções, então naturalmente que não podemos considerar provadas as considerações sobre os motivos da sua colocação no armazém».
A recorrente sustenta o alegado erro notório na apreciação da prova em duas linhas de argumentação distintas:
i) O Senhor Juiz, “perante as duas versões contraditórias dos factos”, considerou “como critério decisório a inexistência de determinada prova documental que, na (sua)convicção teria necessariamente de existir e que, a existir, poderia confirmar a versão da Recorrente.”;
ii) Verifica-se existir igualmente violação do princípio do in dubio pro reo que deve ser tratado como erro notório na apreciação da prova.
A primeira linha de argumentação é sustentada com os argumentos constantes das conclusões 5.ª a 28.ª, defendendo a recorrente, no essencial, que “Não pode o douto tribunal “a quo”, se tiver em conta as regras de experiência comum e a prática normal neste tipo de empresa, concluir da forma como concluiu”, acrescentando que que “Existe erro na apreciação da prova quando se dão como provados factos que face às regras de experiência comum e à lógica coerente do homem médio não se teriam podido verificar, o que é o caso.” Mas visto com maior detalhe, alega o seguinte:
- que essa prova documental “não tinha nem tem de existir, o que resulta à saciedade das regras de experiência comum”;
- esses documentos “não têm obrigatoriamente de existir”, não sendo tal consentâneo “ com a realidade comercial e empresarial no nosso país, à luz das regras de experiência comum e do homem médio”;
- o Senhor Juiz determinou a “notificação da Recorrente para vir juntar aos autos documentos assinados pelo trabalhador C… e que demonstrassem a sua intervenção em tarefas de carga e descarga de materiais, tendo-o feito não obstante a testemunha D… ter referido e explicado que o trabalhador não tinha qualquer tipo de intervenção nessa documentação e (..) por isso, não poderiam existir quaisquer documentos assinados pelo mesmo”;
- a Recorrente “(..) veio aos autos explicar o “procedimento documental” normal da empresa quanto a cargas e descargas, nomeadamente quanto a registos das mesmas, justificando o motivo da inexistência dos documentos solicitados”;
- o Senhor Juiz “não atentou de todo nestes esclarecimentos da Recorrente, que resultam, aliás, da prática comercial e empresarial e das regras de experiência comum (..)”;
- um trabalhador com a categoria profissional de condutor-manobrador “(..) tem por função, entre outras (que são várias e se encontram especificadas no doc. 2 junto com o recurso de impugnação, não sendo só as de carga e descarga de mercadorias (..)”;
- o Tribunal a quo fez “tábua rasa” das explicações dadas pela recorrente quanto ao seu “procedimento habitual da empresa, em caso de cargas e descargas (..) que se traduz, basicamente [no que descreve nas conclusões 13.ª à 15.ª], para concluir que “obviamente, (..) o ex-trabalhador C…, enquanto condutor-manobrador, nunca podia ter assinado qualquer documento inerente a estas descargas, já que, neste caso, tal não é o procedimento normal nesta empresa neste tipo de situação”;
- Descreve alegados procedimentos da empresa “Quanto às descargas de materiais com origem e entrega directamente pelos fornecedores “históricos”, e cuja confiança recíproca tem anos, [conclusões 17.ª, 18.ª e 19.ª];
- Descreve alegados procedimentos em caso “de quantidades significativas de materiais, como por exemplo um camião de cimento que transporta sempre a mesma quantidade (16 paletes com 72 sacos cada), [Conclusão 20.ª];
- Descreve alegados procedimentos “Quanto às cargas”[Conclusão 21.ª].
- Afirma que do “exposto resulta que não é prática comum na empresa ora Recorrente, nem seguramente nas demais empresas do ramo, os funcionários que têm a categoria profissional de condutores-manobradores, quando executam trabalhos de cargas e descargas de materiais ou produtos, assinarem documentos que atestem a quantidade ou qualidade dos mesmos, circunstancialismo que o M. Juiz “a quo” não procurou apurar de forma segura” [Conclusão 22.ª].
- Conclui que o “M. Juiz “a quo” parte de uma premissa errada quando diz terem de existir documentos assinados por um trabalhador que faça cargas e descargas (já que não têm mesmo de existir) …”.
- Afirma resultar “das regras de experiência comum que no giro comercial e empresarial, sobretudo tratando-se de empresas do ramo de construção civil, que os procedimentos de cargas e descargas de materiais em estaleiro se processam conforme supra relatado e não do modo como entende o M. Juiz do tribunal “a quo”, o qual é desfasado da realidade dos factos.” [conclusão 24.ª].
- E conclui que “o M. Juiz do tribunal “a quo”, ao retirar a conclusão que extraiu da inexistência de tais documentos incorreu em erro de tal forma patente que não escapa o mesmo à imediata observação e verificação comum do homem de formação média [conclusão 25.ª].
- Rematando, que “Esse erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Cód. Proc. Penal, tem de decorrer da decisão decorrida e si mesma, por si ou conjugada com as regras da experiência comum e tem, ainda, de ser um erro claro e evidente, como o é” [conclusão 28.ª].
Em jeito de introdução, relembramos algo que é elementar, em concreto, existirem “duas versões não coincidentes”, como refere o tribunal a quo, ou mesmo mais, acrescentamos nós, é a situação com que se depara normalmente o julgador, cabendo-lhe procurar descobrir a verdade material dos factos face à prova produzida, na prossecução desse desiderato podendo, no sentido de poder dever, ordenar oficiosamente “a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa” (art.º 340.º 1 do CPP).
É no uso desse poder dever que se insere a notificação determinada pelo Senhor Juiz para a recorrente “juntar aos autos documentos assinados pelo trabalhador e que demonstrassem a sua participação em tarefas de cargas e descargas”, resultando com clareza da fundamentação, que tal foi considerado “ter que existir”, atendendo às circunstâncias bem específicas da situação, nomeadamente “se o trabalhador fazia cargas ou descargas sozinho no período em que o outro funcionário do armazém estava em período de almoço”.
Com efeito, antes de ai chegar, o tribunal a quo deixou afirmado que foi justificada a colocação do trabalhador em causa “naquele local por existir um longo período de tempo durante o dia, em que por força do horário de almoço desta última testemunha, o armazém ficar sem funcionários e, por isso, os motoristas vinham carregar ou descarregar e tinham que ficar um longo tempo à espera”.
Nesse contexto, que não é manifestamente uma situação comum, não tem razão a recorrente vir sustentar que essa prova documental “não tinha nem tem de existir, o que resulta à saciedade das regras de experiência comum”, não sendo tal consentâneo “ com a realidade comercial e empresarial no nosso país, à luz das regras de experiência comum e do homem médio”.
Pelo contrário, como defende o Ministério Público nas contra-alegações “Se o trabalhador foi colocado para fazer as horas de almoço, certamente, nessa altura, não estavam no escritório funcionários administrativos para recepcionar as encomendas das transportadoras e não estava o chefe de armazém. Assim, caso o trabalhador estivesse de facto a exercer funções como auxiliar de armazém, tinha que existir documentação da verificação/recepção das mercadorias entregues pelas transportadoras”.
Por outras palavras, se o trabalhador ficava sozinho no exercício daquelas funções –durante a hora de almoço- , havendo cargas e descargas, na normalidade das coisas seria expectável que houvesse qualquer tipo de registo desses movimentos. Se não houvesse a prática de qualquer registo, tal não significa, como pretende significar a recorrente que esse método de organização correspondesse à “realidade comercial e empresarial no nosso país, à luz das regras de experiência comum e do homem médio”.
E, note-se, tanto assim é que a recorrente sentiu necessidade de vir estribar a sua posição socorrendo-se da explicação que veio fazer nos autos sobre as suas práticas - o “procedimento documental” - bem assim do Doc. 2, junto aos autos, para referir o conteúdo funcional da categoria profissional do trabalhador.
Ora, ao fazer este percurso, fazendo apelo a elementos exteriores à decisão, nomeadamente, a prova que invoca, a recorrente está a entrar em contradição, não sendo coerente na aplicação dos princípios que ela própria enunciou, nem tão pouco da jurisprudência que cita, dado não estar a levar em conta que o erro notório na apreciação da prova tem que resultar da decisão recorrida em si mesma, isto é, do seu texto, sem influência de elementos exteriores, a não ser as regras da experiência comum.
Assim, não se vislumbrando pela análise da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, isto é, os fundamentos que justificam a convicção formada, sustentada na prova que é referida, qualquer erro de lógica na construção do raciocínio, alguma incoerência que seja, ou sequer desfasamento, em relação às regras de experiência comum, é forçoso concluir que não pode de todo afirmar-se a existência do alegado erro notório na apreciação da prova.
Passando à segunda linha de argumentação, defende a recorrente que o Tribunal a quo violou o princípio do in dubio pro reo, que deve ser tratado como erro notório na apreciação da prova, por resultar do texto da decisão que “ficou em dúvida em relação aos factos, ou seja, às versões trazidas pelo partes, pelo que, não estando convicto de nenhuma das versões deveria aplicar o princípio in dubio pro reo, mostrando-se, deste modo, violada a norma do artigo 32.º, n.º 2, da CRP”.
Refere, no essencial:
- Colocado o tribunal em julgamento perante dúvida insanável em matéria de prova, deve aplicar o dito princípio.
- Resulta do texto da decisão que o Tribunal a quo ficou em dúvida em relação às versões trazidas pelo partes; não estando convicto de nenhuma das versões deveria aplicar o princípio in dubio pro reo, mostrando-se, deste modo, violada a norma do artigo 32.º, n.º 2, da CRP.
- O Tribunal a quo não desconsidera a sua versão, apenas a desconsidera com base no facto de inexistirem documentos que não têm de existir.
Como deixámos dito, na apreciação de recursos sobre sentenças que decidiram a impugnação judicial de decisão administrativa em procedimento contra-ordenacional, os poderes cognitivos deste Tribunal ad quem estão, em regra, restringidos à matéria de direito, sem prejuízo de alteração da decisão do tribunal recorrido “sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida “ ou de anulação e devolução do processo ao tribunal recorrido, conforme preceituado nas alíneas a) e b), do n.º2, do art.º 51.º, bem como do conhecimento oficioso dos vícios a que alude o artigo 410º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal.
Pode assim dizer-se que a intervenção do Tribunal da Relação no processo contra-ordenacional é idêntica à do Supremo Tribunal de Justiça na apreciação dos recursos de revista em processo penal.
Sobre o princípio in dubio pro reo, o Supremo Tribunal de Justiça, em elucidativo acórdão de 12-03-2009 [proc.º 07P1769, Conselheiro Soreto de Barros, disponível em www.dgsi.pt], observa o seguinte:
-«(..)
III- O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito.
IV- Este princípio tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
V- Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.
VI- Daqui se retira que a sua preterição exige que o julgador tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido. Já o saber se, perante a prova produzida, o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida é uma questão de facto que não cabe num recurso restrito à matéria de direito, mesmo que de revista alargada.
VII - A apreciação pelo STJ da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: há-de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, ou seja, quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.
Deste ensinamento importa reter dois pontos fulcrais:
-i) A preterição do princípio in dubio pro reo pressupõe que o julgador tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido;
ii) A apreciação da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: há-de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio.
Em suma, como se sintetiza num outro aresto do STJ [Ac. de 4-12-2008, proc.º 08P3456, Conselheiro Maia Costa, disponível em www.dgsi.pt], sendo um princípio atinente à produção da prova, este Tribunal ad quem só poderá pronunciar-se pela violação do princípio in dubio pro reo quando, tendo em conta a matéria de facto fixada e a respectiva fundamentação, atendendo às regras da experiência comum, constatar estar inequivocamente evidenciado que o Tribunal a quo, perante as dúvidas razoáveis que a prova suscitava decidiu contra o arguido.
Retomando o caso, considerada a matéria de facto provada, a respectiva fundamentação, e ponderadas as regras da experiência comum, constata-se que o Tribunal a quo não teve dúvidas quer em dar como provados os factos que integram os elementos típicos do ilícito contra-ordenacional imputado, quer em julgar não provado o facto alegado pela arguida com vista a afastar a sua responsabilidade, isto é, que “No período considerado, para além das tarefas referidas pelo trabalhador, a recorrente, através dos seus dirigentes, atribuiu funções ao trabalhador e este estava ocupado, sendo que a colocação do trabalhador em armazém se justificava por ser necessário outro trabalhador em armazém e o trabalhador em causa ter passado por um período de perturbação pessoal e/ou familiar que o levaram em algumas situações a provocar danos em obras e, por isso, pretendia-se diminuir a pressão sobre o trabalhador”.
Da fundamentação resulta com segurança que o Tribunal a quo, antes de determinar a “notificação da empresa para juntar aos autos documentos assinados pelo trabalhador e que demonstrassem a sua participação em tarefas de cargas e descargas”, considerava existir prova suficiente no sentido de demonstrarem a violação do dever de ocupação efectiva do trabalhador, designadamente, por aquele ter sido colocado naquele local - que nada tem a ver com a sua categoria profissional e funções antes desempenhadas -, sem lhe ser distribuído trabalho, ocorrendo tal imediatamente a seguir a ter apresentado queixa na ACT contra a entidade empregadora, por esta ter-lhe reduzido unilateralmente o salário, levando à intervenção daquela entidade e, nessa sequência, tendo-lhe aquela pago € 4000.
Contudo, vindo as testemunhas H… e D…, ambos trabalhadores da arguida, dizer, no essencial, que o trabalhador fora ali colocado para suprir a ausência daquele último durante a hora do almoço, em razão do armazém ficar sem funcionários e para evitar que os motoristas ficassem à espera, entendeu o Tribunal determinar aquela diligência com a explicação que consta na fundamentação e que acima já referimos, na consideração dessa «diligência (ser) a grande oportunidade para a recorrente “desmascarar” a versão dos factos relatada pelo trabalhador caso esta não correspondesse à verdade».
Convenhamos, a versão dada pelas testemunhas é insólita e claramente contrária às regras da experiência comum. Com efeito, não faz sentido colocar um trabalhador com a categoria de condutor/manobrador no armazém, para mais para alegadamente assegurar a presença de outro trabalhador durante o período da hora do almoço, acrescendo as circunstâncias em que tal decisão é tomada.
Por fim, da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto resulta com clareza que o julgador não sentiu qualquer dúvida ao decidir, bastando atentar na parte final da mesma, onde se lê:
«[..]
Logo, consideramos provada a versão dos factos constante da decisão administrativa e, em contraposição, não consideramos provada a versão dos factos relatada pela recorrente pois esta é contraditória com aquela versão, sendo certo que se consideramos provado que o trabalhador esteve sem exercer funções, então naturalmente que não podemos considerar provadas as considerações sobre os motivos da sua colocação no armazém».
Por conseguinte, não tem razão a recorrente ao alegar que o Tribunal a quo ficou em dúvida em relação às versões trazidas pelo partes e, logo, não havia razões para ser aplicado o princípio in dubio pro reo.
Concluindo, não há erro notório na apreciação da prova, nem violação do princípio in dubio pro reo, não existindo qualquer fundamento para a reapreciação da matéria de facto e subsequentes questões suscitadas pela recorrente.

III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC [artigos 513º, n.º 1 do CPP, ex vi do artigo 74º, nº 4 do RGCO e 59º e 60º, ambos da Lei nº 107/2009, de 14 de Setembro e 8º, nº 9 e Tabela III do RCP].

Porto, 15 de Junho de 2020
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes