Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2670/11.5TBPNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: INVENTÁRIO
REDUÇÃO POR INOFICIOSIDADE
PRAZO DE CADUCIDADE
Nº do Documento: RP201810082670/11.5TBPNF.P1
Data do Acordão: 10/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS N- 681-A, FLS 49-57)
Área Temática: .
Sumário: I - Entre nós vigora um “modelo do recurso de reponderação” em que o seu âmbito se encontra objetivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido, não podendo, assim, o tribunal ad quem conhecer de questão nova que não seja do conhecimento oficioso.
II - O processo de inventário é o meio processualmente adequado para discutir a redução por inoficiosidade de liberalidades, entre vivos ou por morte, efectuadas pelo autor da sucessão, que ofendam a legítima dos seus herdeiros legitimários.
III - O prazo de caducidade fixado no artigo 2178º do Código Civil somente rege para o caso de liberalidade feita a pessoa que não seja herdeira do autor da sucessão que a realizou; já se o beneficiário dessa liberalidade for seu herdeiro legitimário, então, a todo o tempo, se pode pedir, no respectivo processo de inventário, a redução da liberalidade por inoficiosidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2670/11.5TBPNF.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Penafiel - Juízo Local Cível, Juiz 1
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2ª Adjunta Desª. Maria de Fátima Andrade
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- RELATÓRIO

O presente processo de inventário judicial facultativo foi instaurado por B... para partilha das heranças de C..., falecido em 19 de Junho de 1998, e de D..., falecida em 28 de novembro de 2006, casados que foram entre si no regime imperativo da separação de bens, em primeiras núpcias de ambos, sem deixarem descendentes ou ascendentes vivos.
O inventariado outorgou testamento no Cartório Notarial de Penafiel, em 2 de outubro de 1997, no qual fez vários legados e instituiu herdeiros do remanescente vários sobrinhos, mas apenas para o caso de o falecimento da sua esposa ocorrer antes do seu.
Por seu turno, a inventariada fez dois testamentos: um em 2 de outubro de 1997, no qual fez vários legados e instituiu herdeiros do remanescente vários sobrinhos, mas apenas para o caso de o falecimento do seu marido ocorrer antes do seu, e outro, em 26 de Setembro de 2001, no qual legou ao requerente do inventário todos os bens e direitos imóveis, de natureza rústica e urbana, que ela testadora herdou, no todo ou em parte do seu falecido marido C..., como única herdeira legitimária deste.
As heranças são compostas pelos bens descritos a fls. 819 a 849, não tendo sido registado qualquer passivo.
Por despacho exarado em 17 de março de 2017 dispensou-se a realização da conferência de interessados, por se ter considerado inútil a sua convocação, na medida em que toda a herança foi distribuída em legados e não existirem bens sobre os quais os respectivos interessados pudessem licitar; aí se ordenou igualmente a notificação dos interessados para se pronunciarem sobre a forma à partilha.
Por despacho proferido em 21 de abril de 2017 foi determinada a forma como se deveria proceder à partilha dos bens deixados pelos inventariados, sendo que em 17 de maio desse mesmo ano foi elaborado mapa informativo onde a secretaria dá nota da “existência de inoficiosidade do legado efectuado pelo inventariado C... [dado] que o valor dos bens legados excede em 49,49% o valor da quota disponível (…) pelo que os legados terão de ser reduzido rateadamente na proporção de 49,49% em cada verba legada, até ao montante da quota disponível de €246.885,52”.
Na presença da aludida informação, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Cumpra o disposto no n.º 1 do art. 1377.º do C.P.Civil (na redação anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 29/2009.06.29)”.
No seguimento da notificação de que foi alvo veio o requerente do inventário, em 5 de junho de 2017, apresentar requerimento nos seguintes termos: «o inventariado C... (…) deixou como única herdeira legitimária a aqui inventariada D....
Como resulta do testamento junto aos autos, o inventariado fez vários legados.
Cotejando a relação de bens apresentada, quanto a tal inventariado, com o testamento outorgado, resulta que o “de cujus” legou todos os seus bens imóveis, à exceção do imóvel constante da verba número 68.
Do exposto resulta que não foi respeitada a legítima da inventariada, correspondente a metade da herança (cfr. artigo 2158º do Código Civil), como melhor resulta do mapa informativo de fls….
Por sua vez, a inventariada D..., por testamento de 26 de Setembro de 2001 legou ao aqui requerente “todos os bens e direitos imóveis, de natureza rústica e urbana, que ela testadora herdou, no todo ou em parte de seu falecido marido C..., como única herdeira legitimária deste”.
Face à determinação da inoficiosidade dos legados requer respeitosamente a V. Ex.ª a avaliação de todas as verbas, constantes de todos os bens legados, nos termos e para os efeitos do artigo 1367º do Código de Processo Civil (…)».
Sobre o aludido requerimento recaiu despacho no qual se deixou consignado, no que ora releva, que «Face à informação constante do mapa informativo de que ocorre inoficiosidade do legado efectuado pelo inventariado C..., [veio] o interessado B... requerer a avaliação de todos os bens legados, nos termos do art. 1367.º do C.P.Civil, pronunciando-se ainda sobre a forma como deve ser composto o seu quinhão após a avaliação (…).
Conforme resulta do art. 1376º, nº 1 do C.P.Civil, cabe à secretaria informar se os bens doados ou legados excedem a quota do interessado ou a parte disponível (…). Verificando-se que existe inoficiosidade, os interessados só podem requerer a redução, podendo o donatário ou o legatário escolher, entre os bens doados ou legados, os necessários a preencher o valor que tenha direito a receber, conforme preceitua o n.º 2 do mesmo preceito.
A possibilidade de ser requerida a avaliação, nos termos do art. 1367.º do C.P.Civil, respeita a um momento anterior, pois apenas pode ser solicitada até ao exame do processo para a forma da partilha, como dispõe o n.º 3, pelo que vai indeferida a avaliação requerida.
Acresce que vem arguida [pelos interessados E..., F... e G...] a caducidade do direito de requerer a redução, nos termos do art. 2178.º do Cód. Civil que preceitua que a ação de redução de liberalidades inoficiosas caduca dentro de dois anos a contar da aceitação da herança pelo herdeiro legitimário.
O art. 2169.º do Cód. Civil confere legitimidade aos herdeiros legitimários ou aos seus sucessores para requererem a redução das liberalidades inoficiosas.
O artigo 2030.º do Cód. Civil, quanto às espécies de sucessores, refere que são herdeiros ou legatários.
Conjugadas estas disposições legais, sendo o requerente legatário de D... (…), deve considerar-se que tem legitimidade para requerer a redução por inoficiosidade dos legados efectuados pelo inventariado C....
Escreve João António Lopes Cardoso (in Partilhas Judiciais, Vol II, 4.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2001, p. 406) que “Como tem sido geralmente aceite, este prazo só rege para o caso de doações feitas a pessoas que não são herdeiras do doador. Se o donatário é herdeiro, a todo o tempo se pode pedir, no respectivo processo de inventário, a redução da doação por inoficiosidade.”
No caso, o requerente da redução não é herdeiro da inventariada, mas apenas legatário, pelo que deve considerar-se que caducou o direito de requerer a redução dos legados por inoficiosidade.
Pelo exposto, indefiro o requerido pelo interessado B... (…).
Proceda-se à elaboração do mapa de partilha».
Nessa sequência foi elaborado o mapa de partilha que se mostra junto a fls. 977/987, o qual foi notificado a todos os interessados, vindo o requerente do inventário reclamar do mesmo por nele não ter sido realizada a redução por inoficiosidade dos legados efectuados pelo inventariado C....
Sobre esse requerimento recaiu despacho nos seguintes moldes: «O requerente vem reclamar do mapa de partilha por nele não ter sido realizada a redução de legados, apesar de lhe ter sido reconhecido o direito a requerer essa redução.
Não assiste razão ao Requerente porque, no mesmo despacho em que efetivamente se lhe reconheceu legitimidade para requerer a redução de legados, julgou-se verificada a caducidade desse direito (…).
Pelo exposto, indefiro a reclamação apresentada».
Na mesma ocasião foi proferida a sentença homologatória da partilha.
Não se conformando com o assim decidido, veio o interessado B... interpor o presente recurso, o qual foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes

CONCLUSÕES:
1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença de fls., que indeferiu a reclamação do mapa de partilha, apresentada pelo Recorrente e homologou a partilha constante de tal mapa, adjudicando a cada um dos interessados os respectivos quinhões.
2. Nos termos do número 2 do artigo 1396º do Código de Processo Civil, redacção dada pelo Decreto-Lei nº 226/2008, de 20 de novembro, vem o presente recurso também interposto quanto a todas as decisões interlocutórias proferidas no âmbito do presente processo.
3. Quanto à questão da inoficiosidade, o despacho de 30 de junho de 2017, concluiu que caducou o direito de requerer a redução dos legados por inoficiosidade.
4. Tal conclusão é, manifestamente, contraditória, quer com o teor do mesmo despacho, bem como com o mapa informativo da partilha e do despacho quanto à forma da partilha de 21 de abril de 2017.
5. De facto, do mapa informativo de partilha resulta que “o legado é inoficioso pelo que terá de ser reduzido rateadamente na proporção de 49,49% em cada verba legada, até ao montante da quota disponível de 246.885,52€.
6. Fez, assim, o douto despacho errada interpretação e aplicação dos artigos 2030º e 2169º do Código Civil.
7. Violou, ainda, tal despacho o disposto no número 2 do artigo 1376º do Código de Processo Civil, redacção dada pelo Decreto-Lei nº 226/2008, de 20 de novembro, porquanto não procedeu à notificação prevista em tal dispositivo legal.
8. O Requerente/Recorrente é legatário e herdeiro da inventariada D..., contrariamente ao alegado no despacho de 30 de junho de 2017.
9. Assim, tem o Requerente/Recorrente legitimidade para requerer a redução por inoficiosidade dos legados efectuados, podendo requerer tal redução no presente inventário.
10. Quanto à avaliação dos bens da herança, o Requerente/Recorrente requereu tal avaliação pelos requerimentos de 1 de abril de 2017 e de 5 de junho de 2017, pelo que é o mesmo atempado.
11. Fez, assim, o douto despacho errada interpretação e aplicação do número 3 do artigo 1367º do Código de Processo Civil, redacção dada pelo Decreto-Lei nº 226/2008, de 20 de novembro.
12. De todo o exposto resulta que o mapa de partilha homologado, pela douta sentença, ora em crise, é contraditório com o teor do mapa informativo, uma vez que não teve em conta a redução por inoficiosidade dos legados, bem como o despacho quanto à forma de partilha de fls…
13. Violou, assim, a douta sentença o disposto no artigo 1375º nº 1 do Código de Processo Civil, redacção dada pelo Decreto-Lei nº 226/2008, de 20 de novembro.
14. Pelo que, a douta sentença se encontra ferida de nulidade prevista na alínea c) do número 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.
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Os interessados E..., F... e G... apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Cód. Processo Civil.
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações, são as seguintes as questões solvendas:
. da nulidade da sentença homologatória da partilha;
. da falta de notificação dos interessados para os efeitos do disposto no nº 2 do art. 1376º do Código Processo Civil.
. da redução por inoficiosidade dos legados e caducidade do direito de a requerer.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO

A factualidade a atender é a que dimana do antecedente relatório.
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IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO
IV.1 –Da (alegada) nulidade da sentença

Nas suas alegações recursivas o apelante advoga, desde logo, que a sentença homologatória enferma de vício de nulidade, que reconduz à previsão da alínea c) do nº 1 do art. 615º.
Certo é que não identifica em que passo concreto desse ato decisório ocorre o invocado vício formal, o que, naturalmente, dificulta a apreensão da justeza da crítica que direciona a essa peça processual.
Ainda assim, dentro dos poderes de cognição que competem a este tribunal de recurso, iremos procurar dilucidar se efetivamente a decisão recorrida padece de nulidade, parecendo, se bem entendemos o seu propósito, que o apelante faz assentar a existência desse vício na contradição entre a (constatada) inoficiosidade dos legados que se mostra referida no mapa informativo elaborado ao abrigo do disposto no art. 1376º do Cód. Processo Civil e a afirmação de que ocorreu a caducidade do direito de invocar essa inoficiosidade.
Ora, ao invés do entendimento sustentado pelo apelante, não se vislumbra a ocorrência da apontada contradição, já que, summo rigore, somente se pode falar em caducidade do direito à redução das liberalidades realizadas pelo autor da sucessão se ocorrer a inoficiosidade das mesmas, pois de contrário não faria sentido convocar essa forma de extinção desse direito.
Consequentemente não enferma, pois, o ato decisório sob censura de vício que inquine a sua validade formal.
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IV.2. Da falta de realização da notificação a que alude o nº 2 do artigo 1376º do Código de Processo Civil
Tal como deflui da análise do presente processo, a questão da falta de notificação dos interessados para os efeitos do disposto no nº 2 do art. 1376º do Cód. Processo Civil, que o apelante traz agora à apreciação deste tribunal ad quem, não foi alvo de oportuna alegação no momento processualmente próprio (isto é, dentro do condicionalismo definido nos arts. 195º, 197º e 199º, todos do Cód. Processo Civil) e consequentemente sobre ela não recaiu qualquer pronunciamento jurisdicional.
Ora, como é sabido, o recurso consiste no pedido de reponderação sobre certa decisão judicial, apresentada a um órgão judiciariamente superior ou por razões especiais que a lei permite fazer valer. O recurso ordinário (que nos importa analisar para a situação presente) não é uma nova instância, mas uma mera fase (eventualmente) daquela em que a decisão foi proferida.
O recurso é uma mera fase do mesmo processo e reporta-se à mesma relação jurídica processual ou instância[1]. Dentro desta orientação tem a nossa jurisprudência[2] repetidamente afirmado que os recursos visam modificar decisões e não criar soluções sobre matéria nova.
O tribunal de recurso vai reponderar a decisão tal como foi proferida.
Podemos concluir que os recursos destinam-se em regra a reapreciar decisões proferidas e não a analisar questões novas, apenas se excetuando: o caso da verificação de nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia (artigo 615º, nº 1, alínea d), do CPC); a existência de questão de conhecimento oficioso; a alteração do pedido, em segunda instância, por acordo das partes (artigo 272º do CPC); e a mera qualificação jurídica diversa da factualidade articulada.
Assim sendo, o argumento que o apelante veio introduzir nas conclusões do recurso - no sentido de não ter sido regularmente notificado para os fins do disposto no nº 2 do art. 1376º do Cód. Processo Civil - não pode ser considerado, dado que não foi tempestivamente alegado, nem o decisor de 1ª instância se pronunciou sobre o mesmo, não se integrando outrossim em qualquer das apontadas exceções.
Improcede, por conseguinte, a conclusão 7ª.
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IV.3- Da redução por inoficiosidade dos legados efectuados pelo inventariado C... e da caducidade do direito de a requerer

Como se notou, o requerente do inventário, na sequência da notificação do mapa informativo onde se dava nota da “existência de inoficiosidade do legado efectuado pelo inventariado C... [dado] que o valor dos bens legados excede em 49,49% o valor da quota disponível (…)”, veio requerer a sua redução por inoficiosidade.
O juiz a quo, depois de afirmar a legitimidade do referido interessado para formular tal pretensão, concluiu, no entanto, pela caducidade do respectivo direito pelo decurso do prazo estabelecido no art. 2178º do Cód. Civil.
O apelante rebela-se contra tal sentido decisório sustentando que, no presente processo, não pode operar tal exceção perentória.
A resolução da questão que é, assim, trazida a este tribunal de recurso convoca a apreciação do regime que a lei substantiva estabelece para a redução de liberalidades por inoficiosidade, instituto este que, no desenho legal, se mostra estabelecido para a protecção dos herdeiros legitimários.
Com efeito, em conformidade com o preceituado nos arts. 2024º e 2032º do Cód. Civil, falecida uma pessoa, os seus presumíveis sucessores são chamados à titularidade das relações jurídicas patrimoniais deixadas pelo de cujus.
De entre os sucessores avultam os herdeiros legitimários, ou seja, aqueles a quem o legislador, em virtude dos especiais laços que os unem ao falecido (matrimónio ou filiação – cfr. art. 2157º do Cód. Civil), destina uma quota de bens (a legítima) de que o autor da sucessão não poderá dispor em detrimento daqueles, estabelecendo-se, desse modo, o que se vem denominando de princípio da intangibilidade quantitativa da legítima.
Precisamente com o desiderato de garantir a sua efectividade, consagrou-se, como se referiu, o instituto da inoficiosidade - regulado nos arts. 2168º a 2178º do Cód. Civil -, nos termos do qual é conferido aos herdeiros legitimários ou aos seus sucessores, o direito (potestativo) de requerer a redução das liberalidades, entre vivos ou por morte, realizadas pelo de cujus e que ofendam a sua legítima.
Em consonância com o regime legal haverá, no entanto, de estabelecer um distinguo consoante essas liberalidades sejam feitas a um terceiro ou a um herdeiro legitimário prioritário.
É que se a liberalidade tiver sido feita a um terceiro, a sua imputação é feita na quota disponível, havendo inoficiosidade apenas se o seu montante ultrapassar o dessa quota.
Já se a liberalidade contemplar um sucessor legitimário, ela será inoficiosa, em princípio[3], se exceder o valor da quota disponível adicionado ao da sua legítima subjectiva, pois só assim atingirá ou afectará as legítimas subjectivas alheias, de eventuais co-herdeiros legitimários.
Portanto, a constatação da inoficiosidade de liberalidades, em vida ou por morte, pressupõe que elas ofendam a legítima, como diz o art. 2168º do Cód. Civil, ou seja, que, após a operação prévia de imputação, o montante das liberalidades imputáveis na quota disponível a exceda, ofendendo a quota indisponível.
No entanto, a realização pelo autor da sucessão de uma liberalidade que se revele inoficiosa não implica a sua nulidade, importando antes a sua redutibilidade “em tanto quanto for necessário para que a legítima seja preenchida” (cfr. art. 2169º do Cód. Civil), redutibilidade essa conseguível através da interposição da competente ação de redução a que alude o já citado art. 2178º que, sob pena de caducidade, deverá ser intentada “dentro de dois anos, a contar da aceitação da herança pelo herdeiro legitimário”, o que significa que a sanção aplicável a essas liberalidades, sejam elas doações ou legados, não opera ipso iure, mas apenas a requerimento dos lesados, ou seja, os herdeiros legitimários e seus sucessores.
Já se deu nota, que o tribunal recorrido considerou que o requerente do inventário detinha legitimidade para invocar a inoficiosidade[4] enquanto sucessor da inventariada D... (única herdeira legitimária do inventariado C...), acabando, contudo, por decidir que o exercício desse direito caducou pelo decurso do prazo fixado no art. 2178º do Cód. Civil.
É exatamente neste ponto que se situa o âmago do objeto do presente recurso, o que se volve em apurar se o aludido prazo de caducidade vale apenas para a ação prevista no citado art. 2178º (no qual especificamente se prevê a ação de redução das liberalidades por inoficiosidade enquanto meio processual que a lei faculta ao herdeiro legitimário para tutela da sua legítima subjectiva) ou se esse prazo é igualmente aplicável no processo de inventário.
Malgrado a possibilidade de recurso a ambos os meios processuais, vem-se majoritariamente considerando que o processo adequado para discutir a redução por inoficiosidade de liberalidades feitas pelo de cujus é o processo de inventário[5], argumentando-se, fundamentalmente, que se está apenas perante uma das muitas sub-operações que integram uma outra operação, mais complexa, que é a operação de partilha de um património hereditário, sendo que o inventário é o processo que no ordenamento jurídico se encontra especialmente desenhado e vocacionado para esse efeito.
Como quer que seja, não se antolha fundamento válido para a inaplicabilidade do aludido prazo de caducidade no processo de inventário, já que as razões que subjazem à sua consagração valem igualmente para esta concreta forma processual.
Com efeito, como é consabido, a caducidade (enquanto forma de extinção não retroactiva de efeitos jurídicos em virtude da verificação de um facto jurídico stricto sensu) funda-se especificamente numa exigência de certeza jurídica. Determinados direitos, entre eles o direito potestativo de redução de liberalidades inoficiosas, têm de ser exercidos dentro de certo prazo, sob pena de se extinguirem, para que, decorrido esse prazo, fique definida de vez a situação jurídica dos interessados.
Assim, os beneficiários das liberalidades, na medida em que podem ser afectados pelo pedido de redução, têm interesse na manutenção dos bens e não querem, naturalmente, ver o seu valor reduzido. É este interesse que lhes confere legitimidade para proteger a integridade dos bens doados ou legados, o que podem fazer, precisamente, pela invocação da caducidade do direito de pedir a redução[6], independentemente do exercício dessa faculdade de redução se processar na ação a que alude o art. 2178º ou no âmbito de processo de inventário.
Por conseguinte, para obviar à indefinição do beneficiário da liberalidade, quanto à definitiva titularidade dos bens que lhe hajam sido doados ou legados, justifica-se o estabelecimento de um prazo durante o qual deve ser exercido o aludido direito de redução da liberalidade.
Sendo essa a ratio essendi do prazo fixado no último normativo referido, vem-se, por isso, defendendo[7] que o mesmo só rege para o caso de liberalidades feitas a pessoas que não são herdeiras do autor da sucessão que as realizou; já se o beneficiário dessa liberalidade for seu herdeiro legitimário, então, a todo o tempo, se pode pedir, designadamente no respectivo processo de inventário, a redução da liberalidade por inoficiosidade, uma vez que, dada a necessária imputação do excesso da liberalidade na sua quota legitimária, somente em casos raros poderá ter de haver lugar a essa redução. Em suma, a caducidade aplica-se apenas aos casos em que o beneficiário da liberalidade não seja herdeiro legitimário do autor da liberalidade.
No seguimento desta perspectiva das coisas, considerando que, in casu, os interessados que foram contemplados pelos legados realizados pelo inventariado C... não assumem a aludida qualidade de seus herdeiros (legitimários) é, por isso, oponível ao requerente do inventário (a quem foi reconhecida legitimidade para a invocação da inoficiosidade) a exceção da caducidade do respectivo direito que foi invocada por aqueles.

Por isso, tal como se considerou no ato decisório sob censura, mostra-se extinto, por caducidade, o direito a pedir a redução por inoficiosidade dos legados realizadas pelo inventariado aos interessados contemplados no testamento que outorgou em 2 de outubro de 1997, sendo certo que entre o momento da sua morte (19 de junho de 1998) e o óbito da sua esposa (sua única herdeira legitimária) decorreram mais de oito anos, período durante o qual esta última não exercitou o aludido direito potestativo[8].
Improcedem, assim, as demais conclusões recursórias.
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V- DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante.

Porto, 8.10.2018
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Maria de Fátima Andrade
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[1] Sobre a questão, por todos, RUI PINTO, O recurso civil – uma teoria geral, págs. 69 e seguintes, onde sublinha que os nossos recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamento de questões novas, vigorando um “modelo do recurso de reponderação” em que o âmbito do recurso se encontra objetivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido.
[2] Cfr., inter alia, acórdão do STJ de 15.09.2010 (processo nº 322/05.4TAEVR.E1.S1), acórdão desta Relação de 20.10.2005 (processo nº 0534077) e acórdão da Relação de Lisboa de 14.05.2009 (processo nº 795/05.1TBALM.L1-6), acessíveis em www.dgsi.pt.
[3] Sendo de ressaltar que, em conformidade com o respectivo regime legal (arts. 2018º, 2113º e 2114º do Cód. Civil), tratando-se de deixas a favor de herdeiros legitimários haverá de atender-se à vontade manifestada pelo autor das liberalidades, esta expressa no próprio título, na certeza de que, havendo lugar à colação, a imputação faz-se na legítima e, sendo o beneficiário dispensado dela, a liberalidade é imputada na quota disponível.
[4] Segmento decisório esse que, apesar de se revelar de sentido discutível (de facto, não falta quem limite essa legitimidade apenas aos herdeiros legitimários e seus descendentes – assim, inter alia, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. VI, 1998, pág. 274 e acórdão do STJ de 29.01.2002, processo nº 02A1934, acessível em www.dgsi.pt, no qual se escreve que, “atento o regime e natureza da sucessão legitimária e os interesses que lhe estão subjacentes, temos por seguro que o direito de pedir a redução das liberalidades inoficiosas apenas cabe ao sucessor do herdeiro legitimário que seja, ele próprio, também herdeiro legitimário de que se finou sem exercer tal direito”), transitou em julgado para efeitos endoprocessuais, na medida em que não foi fundadamente posto em crise em sede recursória por qualquer dos demais interessados no presente inventário.
[5] Cfr., neste sentido, na doutrina, LOPES CARDOSO, Partilhas Judiciais, vol. II, 4ª ed., pág. 406, BATISTA LOPES, Das doações, págs. 256 e seguintes e ALBERTO DOS REIS, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 85º, pág. 341; na jurisprudência, acórdão do STJ de 17.11.1994, CJ/STJ, ano II, tomo 3º, pág. 147, acórdão desta Relação de 8.11.2001, CJ, ano XXI, tomo 5º, pág. 177 e acórdão da Relação de Lisboa de 3.05.2007, processo nº 2857/2007-2, acessível em www.dgsi.pt.
[6] Isso mesmo é enfatizado por CARVALHO FERNANDES (Lições de Direito das Sucessões, 2001, pág. 412), afirmando que verdadeiramente o que caduca é o direito à redução.
[7] Cfr., neste sentido, LOPES CARDOSO, ob. citada, pág. 406, ALBERTO DOS REIS, op. citada, págs. 242 e 300, acórdão do STJ de 9.04.2002, CJ/STJ, ano X, tomo 2º, pág. 18, acórdão desta Relação de 8.11.2001, CJ, ano XXI, tomo 5º, pág. 177, acórdão da Relação de Lisboa de 3.05.2007 (processo nº 2857/2007-2), acórdão da Relação de Évora de 8.03.2012 (processo nº 536/09.8TBSTB) e acórdão da Relação de Lisboa de 6.11.2011 (processo nº 1948/08.0YXLSB-A.L1-2), os três últimos acessíveis em www.dgsi.pt.
[8] Será de registar, neste conspecto, que as declarações de vontade da inventariada que ficaram plasmadas no testamento que realizou em 26 de Setembro de 2001 revelam, de forma concludente, a aceitação da herança do seu falecido marido (cfr. arts. 2050º e 2056º do Cód. Civil), pelo que, pelo menos nessa data, se verificou o dies a quo do aludido biénio, que se consumou, portanto, em momento muito anterior à propositura do presente inventário judicial.