Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
638/17.7IDPRT.P3
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LILIANA DE PÁRIS DIAS
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
ESCOLHA DA PENA
ESPÉCIE E MEDIDA DA PENA
PENAS DE SUBSTITUIÇÃO
PREFERÊNCIA
RESSOCIALIZAÇÃO DO DELINQUENTE
PREVENÇÃO DA REINCIDÊNCIA
ORDENAMENTO JURÍDICO NACIONAL
DEFESA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
PENA DE PRISÃO
CRIMES FISCAIS
EVASÃO FISCAL
SEGURANÇA SOCIAL
ESTADO
CONSEQUÊNCIAS
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
JUÍZO DE PROGNOSE
CONDIÇÃO DE PAGAMENTO
CRITÉRIOS
PRINCÍPIO DA CULPA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: RP20230301638/17.7IDPRT.P3
Data do Acordão: 03/01/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (AUDIÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO (CRIMNAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Finalidades exclusivamente preventivas devem presidir à operação da escolha da espécie de pena a aplicar ao agente, devendo o tribunal dar preferência à pena não detentiva, a não ser que razões ligadas à socialização do delinquente, no seu conteúdo mínimo, traduzido na prevenção da reincidência, ou de preservação do limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido de defesa do ordenamento jurídico, imponham a pena de prisão.
II - Importa ainda salientar, neste âmbito, que, em caso de conflito entre os vetores da prevenção geral e especial, o primado pertence à prevenção geral.
III - No domínio da criminalidade fiscal, as exigências de prevenção geral são prementes, porquanto é sabido que entre nós a evasão fiscal assume proporções escandalosas, sendo ainda razoável suspeitar da existência de elevadíssimas cifras negras, tratando-se de uma situação de fuga generalizada à tributação que acarreta imensas desigualdades sociais, cria uma imagem de impunidade que põe em causa a coesão social e faz vacilar o sentimento de dever que cada cidadão deveria ter presente ao pagar os seus impostos ou contribuições para a segurança social, bem como ao próprio Estado.
IV – E daí que seja normalmente defendido que neste tipo de criminalidade, e salvo situações excecionais, seja de optar pela aplicação da pena de prisão em detrimento da pena de multa.
V – A norma prevista no art.º 14.º, n.º 1 do RGIT determina a imposição de pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, como condição de suspensão da execução da pena de prisão, operação que reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura.
VI - Com vista a aferir da razoabilidade de imposição da condição de pagamento das quantias em dívida, para além do valor de tais quantias, importa ponderar a atual situação profissional e económica do arguido e sua previsível situação futura, atentando nos seus rendimentos, encargos, formação profissional e património.
VII - Apesar do contexto sócio-económico atual do arguido não se afigurar, à partida, muito favorável, pode, ainda assim, ser considerada razoável a ponderação efetuada pelo tribunal de primeira instância quanto ao juízo de prognose formulado com recurso às condições económicas futuras fundadamente expectáveis.
VIII - Mostra-se inadmissível no nosso sistema penal qualquer «prisão por dívidas», o que se evidencia pela circunstância de a revogação da suspensão da execução da pena não ser automática, nunca dispensando a verificação de um incumprimento culposo.
IX - Encontra-se consolidada a jurisprudência do Tribunal Constitucional no sentido da congruência da norma legal em apreço com os princípios constitucionais da proporcionalidade e da culpa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 638/17.7IDPRT.P3
Recurso Penal
Juízo Local Criminal do Porto – Juiz 8


Acordam, em audiência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I. Relatório
No âmbito do processo comum singular que, sob o nº 638/17.7IDPRT, corre termos pelo Juízo Local Criminal do Porto, na sequência do acórdão proferido por este Tribunal da Relação, que determinou a nulidade da sentença inicialmente proferida, foi proferida nova sentença, datada de 16 de setembro de 2022, com o seguinte dispositivo:
“Nestes termos e face ao exposto:
Julgo a acusação pública de fls. 309 e ss. parcialmente procedente por provada e, em consequência:
ABSOLVO O ARGUIDO AA DA PRÁTICA, COMO COAUTOR MATERIAL, DE UM CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL, PREVISTO E PUNIDO PELOS ARTS. 6º e 105º, n.ºs 1, 2, 4 e 7 do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), com referência aos arts. 19º a 26º, 27º, 29º e 41º do Código do IVA.
CONDENO O ARGUIDO BB PELA PRÁTICA, COMO AUTOR MATERIAL, DE UM CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL, PREVISTO E PUNIDO PELOS ARTS. 6º e 105º, n.ºs 1, 2, 4 e 7 do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), com referência aos arts. 19º a 26º, 27º, 29º e 41º do Código do IVA, NA PENA DE 1 (UM) ANO DE PRISÃO, SUSPENSA NA SUA EXECUÇÃO POR 5 (CINCO) ANOS, COM A CONDIÇÃO DE PAGAR AO ESTADO O MONTANTE DE €43.646,84 (quarenta e três mil, seiscentos e quarenta e seis euros e oitenta e quatro cêntimos) E ACRÉSCIMOS LEGAIS.
CONDENO A SOCIEDADE ARGUIDA “A..., LDA.” PELA PRÁTICA, por força do disposto no art. 7º, n.º 1 do RGIT, de UM CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL, previsto e punido pelo art. 105º, n.ºs 1, 2, 4 e 7, do RGIT, com referência aos arts. 19º a 26º, 27º, 29º e 41º do Código, na pena de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), no montante global de €1.800,00 (mil e oitocentos euros).
Julgo procedente o pedido de declaração de perda de vantagens a favor do Estado efetuado pelo Ministério Público e, em consequência: CONDENO O ARGUIDO, NOS TERMOS DO DISPOSTO NO ART. 110º, N.ºS 2, 3 E 4 DO CP, AO PAGAMENTO AO ESTADO DO MONTANTE DE €43.646,84 (quarenta e três mil, seiscentos e quarenta e seis euros e oitenta e quatro cêntimos).
*
CUSTAS CRIME: custas a cargo dos arguidos, sendo a taxa de justiça fixada em 2 (duas) UC´s (art. 8º, n.º 5 e Tabela III, do RCP). […]”.

Inconformado com a decisão condenatória, dela interpôs novo recurso o arguido BB para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem [1]:
“1. O presente recurso tem como objeto a matéria de direito da sentença proferida nos autos, a qual condenou o arguido BB, pela prática, como autor material, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 6º e 105º, nºs. 1, 2, 4 e 7 do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), com referência aos art.ºs 19º a 26º , 27º, 29º e 41º do Código do IVA, na pena de 1 (um) ano de prisão, suspensa na sua execução por 5 (cinco) anos, com a condição de pagar ao Estado o montante de €43.646,84 (quarenta e três mil, seiscentos e quarenta e seis euros e oitenta e quatro cêntimos) e acréscimos legais.
2. Nos presentes autos de processo comum, o Ministério Público deduziu acusação, em 16-05-2018, contra o Arguido BB, imputando-lhe a prática, à data de 15-05-2017, em coautoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 6º e 105º, nº 1, 2, 4 e 7 do RGIT, com referências aos artigos 19º a 26º, 27º, 29º e 41º do Código do IVA.
3. Pelo que, atendendo aos factos dados como provados (vide ponto 4 da matéria recursiva), o Tribunal a quo condenou o Arguido, ora Recorrente, pela prática, como autor material, de um crime de abuso de confiança fiscal na pena de 1 (um) ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período, tendo obtido provimento.
4. O Requerente não se conformando com a douta sentença proferida nos autos, dela veio a interpor recurso, bem como, recorreu também o Ministério Público da sentença supramencionada.
Sucede que, e neste sentido,
5. O Tribunal a quo veio a proferir nova sentença na qual condenou o ora Requerente, pela prática, como autor material, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 1 (um) ano de prisão, suspensa na sua execução por 5 (cinco) anos, com a condição de pagar ao Estado o montante de €43.646,84 (quarenta e três mil, seiscentos e quarenta e seis euros e oitenta e quatro cêntimos) e acréscimos legais.
6. Atendendo ao supra descrito, considera o aqui Recorrente, na sua humilde opinião, ter sido injustamente condenado.
Senão vejamos,
7. O crime de abuso de confiança fiscal está previsto e é punível nos termos da Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho, com as recentes alterações previstas pela (Lei n.º 7/2021, de 26/02) – Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT) que estabelece no n.º1 do artigo 105º que “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.” . E ainda, dispõe o n.º 1 do artigo 15º do mencionado diploma legal supra: “Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre (euro) 1 e (euro) 500, tratando-se de pessoas singulares, e entre (euro) 5 e (euro) 5000, tratando-se de pessoas coletivas ou entidades equiparadas, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos.”
8. Nesta senda, o douto Tribunal optou pela escolha de uma pena de prisão, fundamentando a sua decisão em “(…) fortes necessidades de prevenção geral (…)”, e pelo facto do Arguido ter “(…) atualmente, antecedentes criminais, por crimes de idêntica natureza, já tendo sido condenado em penas de multa”.
Mas mal andou o Tribunal, porque com todo o respeito, que é muito,
9. Segundo o Certificado de Registo Criminal (CRC) do ora Requerente, emitido em 2018-04-23 pode ler-se que “Nada consta acerca da pessoa identificada”. Sendo o elemento preponderante a data da prática dos factos, 15-05-2017, pelos quais vem o ora Requerente condenado.
10. Até porque, em tal data não tinha o Recorrente praticado quaisquer ilícitos criminais, o que significa que à data era primário.
11. Por outro lado, importa não olvidar que o Arguido confessou integralmente e sem reservas os factos que lhe são imputados na acusação de forma livre, integral e sem reservas.
12. Pelo que, o Arguido, ora Recorrente, reconheceu a ilicitude da sua conduta e mostrou-se arrependido, o que prova a interiorização do desvalor da sua conduta.
13. Assume a ilicitude dos seus atos independentemente das consequências que daí possam emergir. Veja-se ainda que, de acordo com o Relatório Social o Recorrente é descrito como “(…) ponderado, empreendedor e responsável (…)”.
14. Neste sentido, conclui o Relatório Social que “O mesmo está consciente da sua situação jurídico-penal, manifestando ansiedade e preocupação, bem como receio pelas consequências do desenrolar do mesmo.”
15. Por outro lado, não nos podemos conformar com a sentença proferida pelo Tribunal a quo que fixou como condenação da suspensão o pagamento por parte do Recorrente da quantia de €43.646,84 (quarenta e três mil, seiscentos e quarenta e seis euros e oitenta e quatro cêntimos) e acréscimos legais.
16. Note-se que o Relatório Social expressamente refere que o Recorrente vive com a mãe, e “(…) no presente não desenvolve atividade profissional (…) não auferindo qualquer valor regular (…)”. Pelo que “(…) é a progenitora que (…) faz face às despesas de subsistência e gastos com a manutenção da habitação.”
17. Assim, questionamos como pode o ora Recorrente pagar €43.646,84 (quarenta e três mil, seiscentos e quarenta e seis euros e oitenta e quatro cêntimos) e acréscimos legais, se o mesmo não recebe uma retribuição salarial fixa.
18. Note-se que, não deve o Tribunal imputar ao Recorrente a falta de cumprimento da pena, na medida em que, o Arguido não cumpriu com a obrigação a que se encontrava adstrito por insuficiência económica e não por facto que lhe é imputável.
19. Acresce-se ainda que, mesmo se o Recorrente consignar uma possibilidade de emprego, o valor a que está obrigado a liquidar é avultado.
20. Pelo que, parcas são as soluções de rentabilidade do Recorrente, para pagar tais quantias, tendo que recorrer, uma vez mais, ao auxílio da sua mãe para que a mesma, eventualmente, liquide a quantia Recorrente condenado a pagar.
21. Pois bem, mesmo que a progenitora possuísse tal quantia (que não tem, até porque suporta todas as despesas e encargos do Recorrente) estaria o Tribunal a quo a condenar indiretamente uma inocente a pagar pela liberdade do seu filho.
22. Convenhamos que, muito honestamente, cobrar €43.646,84 (quarenta e três mil, seiscentos e quarenta e seis euros e oitenta e quatro cêntimos) e acréscimos legais pela liberdade de um cidadão cujo crime do qual foi condenado por abuso de confiança fiscal não nos parece uma pena, de todo, ajustada ao crime em concreto.
Até porque,
23. A pena deve fomentar a reinserção do Arguido na sociedade, tendo o processo penal o objetivo de punir, mas essencialmente, a medida da pena é tida como um meio de reflexão para que o Arguido reconheça o ilícito da sua conduta e, assim, através da escolha da medida coercitiva evitar que o Arguido cometa novos crimes.
24. Assim, o Tribunal “a quo” com a douta sentença proferida está a agudizar e a incentivar a prática de novos crimes. Pelo que, salvo melhor entendimento, o Tribunal “a quo” deveria ter tido uma sensibilidade a condenar que não teve, uma vez que, sabia que o Recorrente se encontrava desempregado, razão pela qual não consegue fazer face às suas despesas.
25. Neste sentido e atendendo ao aduzido supra, dúvidas não subsistem de que a qualificação de 1 (um) ano de pena de prisão suspensa por cinco anos na sua execução com a condição de pagar de €43.646,84 (quarenta e três mil, seiscentos e quarenta e seis euros e oitenta e quatro cêntimos) e acréscimos legais é o mesmo que o condenar a pena de prisão efetiva, porque o Recorrente não dispõe de condições económicas para liquidar tais montantes.
26. Note-se que a escolha da medida da pena de prisão só é admissível quando se mostrar totalmente indispensável. Tal como estabelece o n.º 2 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa (CRP) que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias (vide acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, à data 10-12-2009, processo n.º 711/08.2GCPTM.E1 (ponto 46), vide Supremo Tribunal de Justiça em acórdão proferido em 19-11-2020, processo n.º 936/18.2PBSXL.S1 Entende ainda, o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão proferido em 19-11-2020, processo n.º 936/18.2PBSXL.S1 (ponto 47) e vide Supremo Tribunal de Justiça em acórdão proferido em 19-11-2020, processo n.º 936/18.2PBSXL.S1 (ponto 49).
27. Assim, a aplicação de uma medida privativa da liberdade irá piorar a sua situação socio-económica, isto porque, se as taxas de desemprego são elevadas, para os desempregados em geral, com as condições da Recorrente e aplicação de medida privativa provocam uma instabilidade e dificuldade na procura de um emprego.
28. Neste sentido, deveria o Tribunal ter tido em consideração ao estatuído no artigo 70º do Código Penal, uma vez que, deveria o deveria o Tribunal “a quo” ter optado pela pena de multa em detrimento da pena de prisão, suspensa na sua execução por 5 (cinco) anos, com a condição de pagar ao Estado o montante de €43.646,84 (quarenta e três mil, seiscentos e quarenta e seis euros e oitenta e quatro cêntimos) e acréscimos legais, leia-se neste sentido, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, à data 10-12-2009, processo n.º 711/08.2GCPTM.E1(ponto 55).
Posto isto,
29. Na humilde opinião do ora Recorrente a qualificação da pena de multa, prevista no n.º 1 do artigo 105º do RGIT a ser fixada, nos termos do artigo 15º do suprarreferido diploma legal, em medida equitativa, considerando as circunstâncias atinentes à culpa, à prevenção geral e especial e, sem olvidar, a débil situação económico-financeira do Recorrente afigura-se justa, proporcional e adequada.
30. Pelo que, e tendo em conta que o ora Recorrente se encontra atualmente desempregado, situação esta de enorme fragilidade económica conforme suprarreferido.
31. Vem requerer a substituição da pena proferida em sentença no pretérito dia 16 de setembro de 2022 por pena de multa, considerando que tal medida é suficiente e proporcional para proteger o bem jurídico tutelado, contribuindo para a reintegração do Arguido, ora Recorrente na sociedade, conforme o previsto no artigo 40º CP.
PRINCÍPIOS E NORMAS VIOLADAS OU INCORRETAMENTE APLICADAS
- A sentença recorrida violou os artigos 18º, n.º 2 CRP, 40º e 70º do CP.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra que condene o Arguido em pena de multa, nos termos dos artigos 105º e 15º do RGIT.”.
*
O recurso foi admitido para subir nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo.
*
O Ministério Público, em primeira instância, apresentou resposta, defendendo a improcedência do recurso e consequente manutenção da decisão recorrida, posição condensada nas seguintes conclusões:
“I – “A pena é um meio de interpelar, a sociedade e cada um dos seus membros, para a relevância social e individual de respetivo bem jurídico tutelado penalmente”, nas palavras de A. Taipa de Carvalho in Direito Penal Parte Geral 3.ª edição U.C.E. Porto, pág.78.
II- Não obstante o arguido ora Recorrente ser primário na data dos factos, sofreu as condenações constantes do ponto 13 dos factos provados.
III - “O momento relevante para o apuramento das necessidades preventivas é o do julgamento e não o da prática do facto, razão pela qual o tribunal pode ponderar factos novos que tenham ocorrido entre a prática do facto e a audiência de julgamento que revelem uma atenuação ou um agravamento das necessidades preventivas (…)”, em concreto, os factos provados levados ao referido ponto 13.º.
IV- Ao optar pela pena de prisão nos termos do art.º 70.º do C.P. apreciando as exigências de prevenção geral e especial, relevando estas últimas nos termos constantes da fundamentação da douta sentença a quo, não se afastou o tribunal dos critérios orientadores da escolha e determinação da medida da pena, não incorrendo em violação do princípio constitucional da máxima restrição possível da pena.
V- Acresce que o tribunal a quo, ponderando a aplicação de penas de substituição, concluiu pela aplicação ao Arguido de uma pena não privativa da liberdade, como é consensualmente considerada a pena de suspensão da execução da pena de prisão, subordinada à condição legalmente prevista de pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, num período alargado de tempo.
VI- Salvo melhor entendimento, à luz dos critérios legais e das posições doutrinárias e jurisprudenciais referidas supra, a douta decisão a quo não incorre em violação de princípios constitucionais ou das demais normas invocadas, constantes dos art.ºs 18º nº 2 da CRP, 40º e 70º do C.P., nos termos e com os fundamentos expendidos pelo Recorrente, pelo que deverá manter-se.”.
*
A Exma. Sr. Procurador-Geral Adjunto, neste Tribunal, emitiu parecer, no qual, aderindo aos fundamentos da resposta do Ministério Público na 1ª instância, pronunciou-se pela negação de provimento ao recurso e confirmação da sentença recorrida, salientando a necessidade de aplicação de uma pena de prisão suspensa na execução, condicionada ao pagamento dos impostos e demais quantias em dívida, em detrimento de uma pena de multa.
*
Procedeu-se a exame preliminar e, colhidos os vistos, realizou-se audiência nos termos do disposto no art.º 411.º, n. 5 do CPP, cumprindo apreciar e decidir.
*
II - Fundamentação
É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (art.º 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cf., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).
Podemos, assim, equacionar como questões colocadas à apreciação deste tribunal, as seguintes:
1) A pena de multa afigura-se suficiente e adequada para dar resposta às exigências preventivas verificadas no caso concreto, pelo que deve ser aplicada?
2) A obrigação imposta como condição de suspensão de execução da pena de prisão mostra-se desproporcionada e irrazoável, pelo que, também por esta via, deve o tribunal optar pela pena de multa?
*
Delimitado o thema decidendum, importa conhecer a factualidade em que assenta a condenação proferida (segue transcrição):
«II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Da prova produzida, resultaram os seguintes:
1. FACTOS PROVADOS:
1) A sociedade “A..., Lda.”, NIPC ..., com sede na Rua ..., ... Porto, encontra-se coletada a título principal para o exercício da atividade de “Restaurantes, NE (inclui Act. Restauração Meios Móveis)” (CAE ...) pelo Serviço de Finanças de Porto-5, com início de atividade em 17/10/2013 e enquadrada em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) no regime geral de determinação do lucro tributável e, para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) no regime normal de periodicidade trimestral.
2) O arguido BB é sócio gerente da referida sociedade desde 17/10/2013, sendo responsável pela gestão e administração da sociedade arguida, competindo-lhe decidir, para além do mais, a faturação dos serviços prestados, dos lançamentos contabilísticos, bem como cobrar e arrecadar os montantes faturados, proceder ao pagamento dos impostos e praticar as respetivas obrigações fiscais.
3) A sociedade arguida, representada pelo arguido BB, liquidou e recebeu nos 3.º e 4.º trimestres de 2016 e 1.º trimestre de 2017 - e até ao termo do prazo de entrega daquelas prestações tributárias (2016-11-15, 2017-02-15 e 2017-05-15) - IVA dos seus Clientes que, subtraído do IVA dedutível, ascende a €17.328,60, €14.963,60€ e €11.354,64, e cuja entrega ao Estado ela descurou em violação do dever geral de pagar impostos.
4) Com efeito, até ao termo do prazo de entrega das prestações tributárias - recebeu efetivamente dos seus Clientes IVA no montante de €17.328,60, €14.963,60 e €11.354,64 respetivamente, relativo ao imposto liquidado nos 3.º e 4.º trimestre de 2016 e 1.º trimestre de 2017 (2016.09T, 2016.12T e 2017.03T respetivamente).
5) Assim, no âmbito da referida atividade, o arguido BB prestou serviços, que faturava e de que se fazia pagar, liquidando e efetivamente recebendo o IVA referido na sua totalidade, quantias que recebeu e não entregou nos cofres do Estado, até à data limite de entrega das declarações periódicas, no montante de €17.328,60, €14.963,60 e €11.354,64.
6) Até à presente data o arguido BB não regularizou a sua situação fiscal, encontrando-se o Estado patrimonialmente prejudicado em valores elevados e no valor total mínimo acima mencionado.
7) O imposto referido foi recebido na íntegra pela sociedade arguida, o que resulta da análise dos movimentos diários de caixa e na análise contabilística, contudo, por decisão do seu gerente, arguido BB, não foram entregues ao Estado na data em que terminou o prazo para cumprimento da obrigação de entrega, nem nos 90 dias seguintes, nem nos 30 dias subsequentes à notificação para o efeito, antes o utilizando em benefício da sociedade arguida.
8) O arguido BB tinha conhecimento das suas obrigações fiscais, pois sabia que, por via do exercício da atividade da referida sociedade e de acordo com as normas vigentes em matéria tributária, estava legalmente obrigado a entregar à Autoridade Tributária, nos prazos fixados na lei, as quantias liquidadas e recebidas a título de tal imposto (IVA) no período referido.
9) O arguido BB sabia que a aludida importância que recebeu dos clientes da sociedade que representava, a título de IVA, não lhe pertencia a si nem àquela, mas sim ao Estado, e que as deveria entregar, simultaneamente com a respetiva declaração periódica de IVA, nos competentes Serviços do IVA, ou noutro local autorizado, dentro do prazo legal indicado.
10) Contudo, ainda assim, agiu do modo descrito, o que quis, em representação da dita sociedade, apropriando-se desse montante e utilizando-o no normal giro da mesma.
11) Atuou, assim, o arguido BB, por si e em representação da sociedade referida, em nome e no interesse coletivo desta, com o propósito de obter proveitos económicos indevidos a que não tinha direito, pela não entrega da quantia de IVA, que não foi por si suportada, mas sim cobrada aos clientes, agindo ainda com o intuito de causar o correlativo prejuízo ao Estado Português, como de facto causou pois, ao não entregar à Administração Tributária aqueles montantes de IVA diminuiu as receitas tributárias e, por via disso, lesou o erário público da Fazenda Nacional no montante global de €43.646,84.
12) O arguido BB agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e penalmente punível e, por isso, censurável.
Mais se provou:
13) O arguido BB tem os seguintes antecedentes criminais (cfr. fls. 495 e ss.):
- por sentença datada de 06/07/2018, transitada em julgado a 14/02/2019, proferida no âmbito do Proc. n.º 4636/16.0T9PRT, foi o arguido condenado pela prática, em 31/08/2016, de um crime de falsificação de documento, na pena de 30 dias de multa, à taxa diária de €6,00, no montante de €180,00, pena essa já declarada extinta;
- por sentença datada de 07/03/2019, transitada em julgado em 08/04/2019, proferida no âmbito do Proc. n.º 875/17.4IDPRT, foi o arguido condenado pela prática, em 15/05/2017, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de €5,00, no montante de €650,00, pena essa já declarada extinta;
- por acórdão datado de 04/11/2019, transitado em julgado em 04/12/2019, proferido no âmbito do Proc. n.º 749/17.9IDPRT, foi o arguido condenado pela prática, em 2015 e 2018, de um crime de fraude fiscal qualificada e um crime de abuso de confiança fiscal na pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa por igual período, com a condição de no período da suspensão pagar à AT a quantia de 17.710,00€ e na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de €8,00, no montante global de €960,00.
14) O arguido AA tem os seguintes antecedentes criminais (cfr. fls. 49o e ss.):
-por sentença datada de 06/03/2018, transitada em julgado a 14/02/2019, proferida no âmbito do Proc. n.º 222/16.2PAVLG, foi o arguido condenado pela prática, em 01/06/2016, de um crime de difamação, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de €8,00, no montante de €800,00, pena essa já declarada extinta.
Provou-se também:
15) O arguido BB nasceu no dia .../.../1981, tendo atualmente 40 anos de idade.
16) O arguido AA nasceu no dia .../.../1968, tendo atualmente 53 anos de idade.
17) A sociedade arguida encontra-se em liquidação.
18) Resulta ainda dos autos (cf. teor do relatório social datado de 22/03/2021, a fls. 481 e ss.):
- Nascido numa família cujos padrões vivenciais são descritos como medianos é o mais novo de dois descendentes. O seu percurso desenvolvimental decorreu inserido no seu núcleo de origem, onde a dinâmica foi referenciada como ajustada, estável e potenciadora de interiorização de valores consentâneos com as convenções sociais, sendo que na gestão do processo educativo esteve patente o perfilhamento de estratégias educativas exigentes e tradicionais, onde ambas as figuras parentais foram intervenientes, não obstante o acompanhamento do quotidiano estivesse assacado à progenitora, mas devido ao laboro desta, partilhado também com uma ama.
- O arguido efetuou o percurso escolar sem registar repetições, manifestando capacidade de aprendizagem e adaptação comportamental às regras da instituição escolar, tendo orientado a sua escolarização para a artes, pelo que no secundário ingressou na escola ....
-Integrou o curso superior de designer gráfico, o qual finalizou com sucesso, sendo que após completar este curso, concluiu também o curso de designer de interiores, sendo que esta última formação foi em paralelo com o trabalho que já desenvolvia como designer gráfico.
- Trabalhou em comunicação, imagem e decoração, num gabinete da área, cerca de 7 anos. Posteriormente foi laborar para uma gráfica de familiares, onde esteve apenas um ano. Após esse período começou a trabalhar numa empresa de comunicação e Imagem, onde o seu vínculo precário, laborando nesta empresa cerca de um ano.
- Depois desta experiência, em conjunto com um amigo, constituiu uma sociedade B..., Lda., abrindo então uma casa comercial, ..., o que reporta a 2012, sendo que em 2014, constituiu nova sociedade, A..., Lda., com um terceiro, abrindo então um restaurante no ... situado no centro da cidade, a “...”. Todavia esta sociedade apenas prevaleceu cerca de meio ano, ficando então o arguido, sozinho, segundo refere, na gestão do restaurante, sendo o primeiro sócio relações públicas do mesmo.
- Na sequência da situação profissional, apesar de manter a morada da progenitora, passa a residir de forma permanente em casa do primeiro sócio e amigo.
- O arguido no presente integra o núcleo familiar de origem, composto pelo próprio e pela mãe, 74 anos, reformada, sendo que o pai de CC faleceu em 2018 após doença prolongada. O núcleo assim constituído habita no primeiro andar de uma moradia bifamiliar, tipologia 3, a qual é composta por r/ch, 1º andar e sótão, adquirida há vários anos pelos pais do arguido, a qual se insere em zona urbana. A ambiência familiar é referenciada como ajustada, havendo entre os elementos da família, incluindo o irmão mais velho já autónomo, grande coesão e solidariedade. Nesta dimensão o arguido é qualificado como ponderado, empreendedor, responsável e que manifesta preocupação com o bem-estar dos que lhe são próximos, pelo que expressou o cuidado em preservar a mãe desta situação, muito embora esta, tenha conhecimento parcial das circunstâncias.
- BB, no presente, não desenvolve atividade profissional, uma vez que encerrou ambos os estabelecimentos comerciais, não auferindo qualquer valor regular, apesar de, durante este período, último ano, venha a realizar alguns trabalhos pontuais para conhecidos no âmbito de remodelação, decoração de interiores e imagem. Assim, é a progenitora que com a sua reforma e pensão de viuvez, no montante global de €819, faz face às despesas de subsistência e gastos com a manutenção da habitação. O arguido ocupa ainda o tempo em pintura e escultura.
-À data dos factos, 2016, o arguido mantinha permanência no núcleo de origem, sendo que em 2017 passou a residir permanentemente em casa do primeiro sócio e amigo, que consigo trabalhava como relações públicas, num apartamento arrendado, tipologia 3, em cuja habitação também residia em períodos alternados a filha mais velha deste último, sendo descrita a existência de uma dinâmica interna equilibrada.
- A atividade económica do restaurante “...”, onde o arguido exercia funções de sócio gerente, auferindo mais ou menos €800, mais ajudas de custo que se consubstanciavam no pagamento de transporte e habitação, após o primeiro ano de abertura em que refere ter tido sucesso, passou a confrontar-se com acentuadas
dificuldades financeiras, sendo que o volume de negócio ter-se-á ressentido inicialmente pelas obras efetuadas na via pública e, posteriormente, pelo encerramento e obras no mercado do Bolhão, o que terá sido determinante para a diminuição significativa da procura do restaurante, particularmente a nível de turistas, situação que se agravou ao longo do tempo. Nesta sequência e conjuntura, passou a confrontar-se com grandes dificuldades em assegurar as despesas fixas inerentes à manutenção do espaço, situação que piorou com o aparecimento do COVID 19, acabando então por encerrar o restaurante em março de 2020, rescindindo também o contrato de arrendamento do espaço.
-No período correspondendo à factualidade descrita, BB orientava o quotidiano em torno da atividade laboral, referindo que pretendia abarcar todas as áreas no âmbito da gerência comercial, situação que se tornou desgastante, o que, cumulativamente com a falta de formação em gestão, propiciou algum desalinho a nível organizacional. No meio social onde BB cresceu e atualmente se encontra, tanto o próprio como família projetam uma imagem positiva e de respeito, sendo as referências pessoais de ajustamento aos preceitos sociais, sendo-nos ainda transmitido que tem como características a correção e amabilidade.
-O conhecimento deste envolvimento de BB com o Sistema de Justiça Penal parece cingir-se a um grupo restrito de pessoas próximas, pelo que até ao momento, no meio social, pese embora um conhecimento ténue dos desaires negociais, não se verifica qualquer repercussão referente à presente situação.
-O envolvimento do arguido com o Sistema de Administração de Justiça parece não ter tido consequências nefastas a nível familiar, uma vez que mãe e irmão continuam a prestar-lhe o seu apoio incondicional. Na dimensão pessoal, o arguido fez menção aos ecos negativos, manifestando algum desalento e tristeza pelas dificuldades com que se está a deparar, sentindo-se sucumbido pela indefinição que neste momento detém, essencialmente a nível profissional e financeiro. O mesmo está consciente da sua situação jurídico-penal, manifestando ansiedade e preocupação, bem como receio pelas consequências do desenrolar do mesmo. O arguido denota capacidade crítica, sendo que em termos abstratos identifica a ilicitude dos comportamentos, bem como danos e vítimas. Equacionando a possibilidade de condenação, o arguido manifestou adesão a eventual medida de execução na comunidade.
[…]
2. FACTOS NÃO PROVADOS:
a) O arguido AA é, conjuntamente, com o arguido BB, gerente de facto da sociedade “A..., Lda.”, pelo menos, desde 2015, dividindo a responsabilidade da gestão da vida da mesma, nomeadamente, assinando documentos em representação da sociedade e tomando decisões inerentes à sua regular administração.»
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Apreciando os fundamentos do recurso.
A) Escolha da espécie de pena – pena de multa ou pena de prisão?
Vejamos, em primeiro lugar, se é adequada a aplicação de uma pena de multa em detrimento de uma pena de prisão (suspensa na respetiva execução), como defende o recorrente, ou se esta deverá ser mantida.
Como é sabido, são finalidades exclusivamente preventivas que devem presidir à operação da escolha da espécie de pena a aplicar ao agente, devendo o tribunal dar preferência à pena não detentiva, a não ser que razões ligadas à socialização do delinquente (no seu conteúdo mínimo, traduzido na prevenção da reincidência) ou de preservação do limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido de "defesa do ordenamento jurídico", imponham a pena de prisão.
Importa ainda salientar, neste âmbito, que em caso de conflito entre os vetores da prevenção geral e especial, o primado pertence à prevenção geral [2].
Analisada a decisão recorrida, verificamos que o tribunal de primeira instância fundou em razões de prevenção especial, ligadas à necessidade de ressocialização do recorrente, e de prevenção geral, traduzidas na necessidade do reforço do sentimento comunitário na validade da norma violada, a opção pela aplicação de uma pena de prisão, em detrimento de uma pena de multa.
Com efeito, argumentou o tribunal de primeira instância nos seguintes termos:
«Neste tipo de crime as razões de prevenção geral são muito elevadas. Na verdade, são conhecidas as dificuldades financeiras com que se debatem, quer as Finanças, quer a Segurança Social, noticiadas amiúde na comunicação social e que são do conhecimento público, dificuldades estas que põem em causa toda a economia. Esta frágil situação é causada, em parte considerável, pela fuga às obrigações legais de pagamento, sendo cada vez mais frequente a prática deste tipo de ilícitos penais, não obstante a opção legislativa pela criminalização, o que indicia uma desvalorização da conduta por parte dos agentes: quando confrontados com dificuldades financeiras, os agentes optam, normalmente e em primeiro lugar, por reter as contribuições devidas a título de impostos ou devidas à Segurança Social, usando-as como forma válida de financiamento da própria atividade ou fonte de rendimento próprio, desprezando o dano insidioso que causam a toda a coletividade. Há, por conseguinte, neste particular, fortes necessidades de prevenção geral.
Por outro lado, esta situação de fuga generalizada à tributação acarreta inúmeras desigualdades sociais, cria uma imagem de impunidade que põe em causa a coesão social e faz vacilar o sentimento de dever que cada cidadão deveria ter presente ao pagar os seus impostos ou contribuições para a segurança social.
Deste modo, as exigências de prevenção geral associadas a este tipo de crime são elevadas, atenta a sua marcada e reiterada incidência social, com proveitosos lucros para os infratores e manifesto prejuízo para os contribuintes cumpridores que veem violado o seu direito de igualdade fiscal, gerando um natural sentimento de revolta e reafirmando as imperiosas necessidades de tutela da validade e vigência das normas punitivas.
Na verdade, o fenómeno dos crimes de abuso de confiança fiscal constitui uma inaceitável violação dos princípios da igualdade e proporcionalidade contributivas. E tal fenómeno tem de ser combatido com vigor e de uma forma eficaz, sob pena de se criar nos contribuintes uma sensação de impunidade que um Estado de Direito não pode permitir.
É que, para além de o crime de abuso de confiança violar a relação de confiança estabelecida entre o Estado e o devedor tributário, o certo é que tal crime transcende o simples valor patrimonial em si mesmo da prestação tributária a entregar, para colocar em risco o regular funcionamento do sistema fiscal e os interesses que o mesmo deve satisfazer.
O arguido BB admitiu os factos e tem atualmente antecedentes criminais por crimes de idêntica natureza, já tendo sido condenado em penas de multa.
Assim, tendo presentes as considerações expostas, opta-se pela aplicação ao arguido de uma pena de prisão.»
Afiguram-se-nos inteiramente justificadas as considerações expendidas pelo tribunal de primeira instância a propósito da escolha da pena de prisão, sendo certo que o tribunal não fundou exclusivamente, e nem sequer principalmente, nos antecedentes criminais do arguido (que conta já com duas condenações em pena de multa pela prática de outros crimes de natureza fiscal) as suas reservas quanto à concreta eficácia preventiva da pena de multa.
Com efeito, o tribunal a quo enfatizou a premência das exigências de prevenção geral, dada a frequência com que os crimes desta natureza são praticados, prevalecendo, na comunidade, uma “sensação de impunidade”.
Efetivamente, e tal como vem sendo sublinhado pela jurisprudência, as exigências de prevenção geral neste domínio são prementes, porquanto é sabido que entre nós a evasão fiscal assume proporções escandalosas, sendo ainda razoável suspeitar da existência de elevadíssimas cifras negras, as quais muitas vezes apenas são confirmadas pelas largas dezenas de milhões de euros recuperados pelo Estado mediante planos de recuperação fiscal, a que apenas aderem, por regra, os contribuintes cuja evasão foi detetada. E esta situação de fuga generalizada à tributação acarreta imensas desigualdades sociais, cria uma imagem de impunidade que põe em causa a coesão social e faz vacilar o sentimento de dever que cada cidadão deveria ter presente ao pagar os seus impostos ou contribuições para a segurança social.
Daí que seja normalmente defendido que, neste tipo de criminalidade e salvo situações excecionais, seja de optar pela aplicação da pena de prisão em detrimento da pena de multa [3].
A propósito desta questão, observa a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta, no seu parecer, o seguinte: “A opção pela pena de multa só pode ocorrer se não colocar em causa a prevenção geral consubstanciada na proteção de bens jurídicos e as necessidades de reintegração do agente na sociedade, nos termos de uma prevenção especial positiva. Se estas necessidades ficarem comprometidas com a aplicação de uma pena não detentiva, esta deverá ser recusada, sendo de optar pela pena de prisão.
Ora, é hoje um dado adquirido a eticização do direito penal fiscal. O sistema fiscal não pode ser visto, numa perspetiva redutora, apenas como o meio de arrecadar receitas, cabe-lhe também a realização de objetivos de justiça distributiva, o financiamento das atividades sociais do Estado, cf. arts. 103º e 104º da Constituição.
O dever de pagar impostos é um dever fundamental (neste sentido Casalta Nabais, “O dever fundamental de pagar impostos”, Livraria Almedina, 1998, pág. 186 ss).
A violação deste dever, essencial para a realização dos fins do Estado, é extraordinariamente frequente, máxime em situações como a descrita nos autos – apropriação de IVA - pelo que são muito acentuadas as exigências de prevenção geral e muito graves as consequências que da mesma resultam para o justo funcionamento do sistema fiscal.
Ao nível das exigências de socialização importa destacar que este não é o único processo criminal no percurso de vida do arguido, pelo que também, por aí se impõe a aplicação de uma pena de prisão, mas suspensa na sua execução sob a condição de pagamento das prestações devidas e acréscimos legais, por não haver obstáculo à realização de um juízo de prognose favorável.»
De facto, nenhuma censura merece o tribunal de primeira instância por ter valorado as condenações entretanto sofridas pelo recorrente, designadamente pela prática de crimes de idêntica natureza. Com efeito, se a culpa se reporta ao facto, devendo ser aferida por referência ao momento em que o facto ilícito típico é praticado, as necessidades preventivas a atender são as contemporâneas do julgamento e subsequente decisão proferida pelo tribunal de primeira instância, motivo pelo qual o tribunal pode e deve avaliar o comportamento do agente posterior ao facto (cf. o art.º 71.º, n.º 2, alínea e), do Código Penal).
Consideramos, assim, que a premência da necessidade de reafirmação da confiança comunitária na validade da norma violada, decorrente da específica danosidade social do tipo de ilícito em causa, e de dissuasão de comportamentos análogos (pelo recorrente e pela comunidade em geral) desaconselha a aplicação de uma pena de multa e justifica a opção pela pena de prisão (embora suspensa na respetiva execução).
Nenhuma censura merece, assim, neste aspeto, a sentença recorrida.
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Defende o recorrente que o tribunal deveria ter desistido da aplicação de uma pena de prisão suspensa na execução, por ser afigurar manifesto que não dispõe de condições económicas para satisfazer a condição pecuniária determinada na sentença recorrida. Argumenta que, na prática, a decisão proferida equivale a uma condenação numa pena de prisão efetiva, afigurando-se a condição imposta totalmente desproporcionada.
O art.º 14 º da Lei nº 15/2001, de 5 de junho (RGIT) prevê a possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, embora também sempre condicionada ao pagamento, nesse prazo, da prestação tributária em dívida, acrescida dos respetivos acréscimos legais, ou do montante dos benefícios indevidamente obtidos.
Como fizemos notar no acórdão antecedente, esta norma determina a imposição de pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, como condição de suspensão da execução da pena de prisão, operação que reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura.
Portanto, na formulação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 8/2012, “o que é de aplicação automática é a condição, não a suspensão, que demanda formulação de lógico juízo prévio; para que se verifique a imposição do condicionamento necessário é que antes se tenha optado exatamente pela suspensão, uma suspensão com contornos especiais, mas exatamente por isso a merecer maiores cuidados. A suspensão está subordinada, ela própria, à verificação de pressupostos, carecendo de avaliação a situação presente”.
Impunha-se, assim, que o tribunal de primeira instância equacionasse a possibilidade de imposição da condição pecuniária ao arguido BB, formulando o mencionado juízo de prognose, tendo em conta a sua concreta situação económica, e decidisse em conformidade: caso o resultado dessa ponderação fosse positivo (eventualmente, mediante a extensão do prazo de suspensão até ao limite de cinco anos, para facilitar o cumprimento da obrigação pecuniária), mantendo a suspensão da execução da pena de prisão, obrigatoriamente condicionada ao pagamento da prestação tributária e legais acréscimos; caso fosse negativo, regressando ao primeiro passo da decisão relativa à determinação da sanção (escolha da pena a aplicar: prisão ou multa; eventualmente, optando por outra pena de substituição, caso considerasse inadequada a pena de multa, ou determinando o cumprimento da pena de prisão, revelando-se inadequadas todas as penas de substituição).
Na última sentença proferida, objeto do presente recurso, o tribunal a quo, efetuando o necessário juízo de prognose, concluiu no sentido da possibilidade de imposição da referida condição pecuniária, referindo o seguinte:
«Decorre dos autos que o arguido é solteiro, não tem filhos, integra o núcleo familiar de origem, composto pelo próprio e pela mãe, 74 anos, reformada. O arguido encerrou ambos os estabelecimentos comerciais, não auferindo qualquer valor regular, vindo a realizar alguns trabalhos pontuais para conhecidos no âmbito de remodelação, decoração de interiores e imagem. A progenitora, com a sua reforma de €819, é quem suporta todas as despesas inerente à habitação e de subsistência de ambos, ocupando o arguido ainda o tempo em pintura e escultura. Pelo que, não obstante não ter um rendimento regular, o certo é que o arguido não tem despesas nem encargos, designadamente com filhos, renda, luz, água, alimentação. Destarte, pesem embora as condições pessoais do arguido, a verdade é que, durante o período de cinco anos, no caso dos autos, nada nos pode levar a concluir que o mesmo não consiga, no futuro e no decurso dos anos concedidos – 5 anos, proceder ao pagamento da quantia em causa, sendo aliás pessoa trabalhadora e empreendedora, pelo que, considerando tal prazo e sobrepesando os rendimentos e despesas, considero equilibrado tal cumprimento. O Tribunal determina, assim, que a suspensão fique subordinada ao cumprimento da seguinte condição: pagar ao Estado o montante de €43.646,84 (quarenta e três mil, seiscentos e quarenta e seis euros e oitenta e quatro cêntimos) e acréscimos legais.»
Com vista a aferir da razoabilidade de imposição da condição de pagamento das quantias em dívida, para além do valor de tais quantias, importa ponderar a atual situação profissional e económica do arguido e sua previsível situação futura – atentando nos seus rendimentos, encargos, formação profissional e património.
Resulta da factualidade apurada que o arguido/recorrente vive em economia comum com a sua mãe que, neste momento, suporta todas as despesas inerentes à habitação e subsistência de ambos, dado que o arguido não dispõe de rendimentos regulares.
Apesar deste contexto não se afigurar, à partida, muito favorável, encontramos, ainda assim, razoabilidade na ponderação efetuada pelo tribunal de primeira instância quanto ao juízo de prognose formulado, com recurso às condições económicas futuras fundadamente expectáveis.
Com efeito, o valor da condição pecuniária não é muito elevado e o recorrente é ainda jovem, dispondo de todas as condições para se enquadrar profissionalmente, considerando a sua experiência profissional e qualificações académicas. Além disso, o tribunal optou justificadamente pela determinação de um prazo alargado de suspensão, contribuindo para o estabelecimento de condições favoráveis para que o recorrente possa cumprir a condição pecuniária que lhe foi imposta.
Quanto à possibilidade de uma eventual prisão por «fracos recursos económicos», invocada pelo arguido/recorrente, é evidente que também não lhe assiste razão, mostrando-se inadmissível no nosso sistema penal qualquer «prisão por dívidas», o que se evidencia pela circunstância de a revogação da suspensão da execução da pena não ser automática, nunca dispensando a verificação de um incumprimento culposo (cf. o artigo 55.º e seguintes do Código Penal).
Invoca, por fim, o recorrente que o tribunal, determinando a imposição da condição pecuniária, violou o princípio da proporcionalidade estipulado no art.º 18.º, n.º 2, da Constituição da República.
Apesar de o recorrente não explicitar as razões que o levam a considerar a norma constante do art.º 14.º, n.º 1 do RGIT (ou a respetiva aplicação ao caso concreto) inconstitucional, sempre se dirá que se encontra consolidada a jurisprudência do Tribunal Constitucional no sentido da congruência da norma legal em apreço com os princípios constitucionais da proporcionalidade e da culpa.
Com efeito, submetida, por diversas vezes, a questão da respetiva inconstitucionalidade - enquanto condiciona sempre a suspensão da execução da prisão ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais – à apreciação do Tribunal Constitucional, este tem vindo sempre a pronunciar-se no sentido de a norma em questão não violar qualquer preceito e/ou princípio constitucional.
Disto mesmo dá nota o Acórdão do TC n.º 237/2011, quando refere:
«[…] a questão da (alegada) inconstitucionalidade de interpretação normativa que sujeite a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento de dívidas de natureza fiscal (…), já foi objeto de inúmeras decisões por parte deste Tribunal Constitucional (cfr., a mero título de exemplo, Acórdãos n.º 256/2003, n.º 335/03, n.º 376/03, n.º 500/05, n.º 309/06, n.º 543/06, n.º 587/06, n.º 29/07, n.º 61/07, n.º 327/2008 e n.º 556/09, todos disponíveis em www.tribunalconstitucioanl.pt/tc/acordaos/). O Tribunal Constitucional tem vindo a entender que tal interpretação normativa não padece de qualquer inconstitucionalidade, seja por violação do princípio da proporcionalidade, seja por violação do princípio da culpa […].»
No mesmo sentido decidiu o Acórdão do TC n.º 29/2007, no qual ficou consignado: «[…] o Tribunal teve já, por diversas vezes, oportunidade de se pronunciar sobre ela, concluindo pela inexistência de inconstitucionalidade do artigo 14º, n.º 1, do RGIT, na parte em que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelo arguido do imposto em dívida e respetivos acréscimos legais. Fê-lo, designadamente, nos acórdãos n.ºs 256/03, 335/03 e 500/05 […].”.
No que respeita a uma eventual violação do princípio da igualdade, salientou-se no mencionado o aresto o seguinte para concluir que, detendo o legislador ordinário uma ampla margem de liberdade no exercício da sua atividade de criação e conformação dos tipos legais de crime, são, no essencial, razões de política criminal que justificam o regime em questão: «Este Tribunal já por diversas vezes se pronunciou sobre o princípio da igualdade, particularmente na dimensão da proibição do arbítrio, que assume maior relevo para apreciação do presente caso, firmando uma jurisprudência reiterada no sentido de que se é verdade que o princípio da igualdade obriga a que se trate por igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente, não impede, contudo, qualquer diferenciação de tratamento, mas apenas as discriminações arbitrárias, irrazoáveis, ou seja, as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante».
Semelhante orientação foi acolhida no Acórdão do TC n.º 556/2009, quando, convocando o Acórdão do TC n.º 327/08 [que julgou não inconstitucional a norma do artigo 14.º do RGIT, interpretada no sentido de que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de duração da pena de prisão concretamente determinada, a contar do trânsito em julgado da decisão, da prestação tributária e acréscimos legais], aduz:
«Suposto que corresponda à exata interpretação da lei e apesar deste efeito perverso, esta nova configuração do regime de suspensão da execução da pena de prisão por crimes fiscais não é de molde a justificar a revisão do entendimento consolidado do Tribunal na matéria.
Continuam a ser válidas as três razões pelas quais nesta jurisprudência se afasta a objeção de que se está a impor ao arguido um dever que se sabe de cumprimento impossível e, com isso, a violar os princípios da proporcionalidade e da culpa: (i) o juízo quanto à impossibilidade de pagar não impede legalmente a suspensão; (ii) sempre pode haver regresso de melhor fortuna; (iii) e a revogação não é automática, dependendo de uma avaliação judicial da culpa no incumprimento da condição».
Em suma, não ocorrem razões válidas para contrariar a corrente jurisprudencial que se veio sedimentando ao nível do Tribunal Constitucional – reforçada, atualmente, pela jurisprudência firmada pelo AFJ n.º 8/2012, na medida em que impõe a necessidade de formulação de juízo de prognose quanto à razoabilidade da imposição da condição pecuniária -, tanto mais que, de relevante, nada capaz de a infirmar traz o recorrente.
Improcede, assim, na totalidade o presente recurso, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.
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III – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso do arguido, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (artigos 513º, nº 1, do CPP, 1º, nº 2 e 8º, nº 9, do RCP e tabela III anexa).

Notifique.
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(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente)
*

Porto, 1 de março de 2023.
Liliana de Páris Dias
Cláudia Rodrigues
João Pedro Pereira Cardoso
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[1] Mantendo-se a ortografia original do texto.
[2] Como se afirma no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28/10/2009 (disponível para consulta em www.dgsi.pt).
[3] Cf., entre outros, o acórdão da Relação de Guimarães de 16/1/2006 e os acórdãos da Relação do Porto de 6/6/2007 e de 20/6/2012 (todos disponíveis em www.dgsi.pt).