Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8275/08.0TBMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: REGULAMENTO COMUNITÁRIO
CITAÇÃO
TRADUÇÃO
Nº do Documento: RP201111148275/08.0TBMAI.P1
Data do Acordão: 11/14/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Legislação Comunitária: REGULAMENTO (CE) 1348/2000 DE 29-05-2000.
Sumário: I- Nos termos do artigo 14.º do Regulamento (CE) n.º 1348/2000 do Conselho de 29/05/2000, não é obrigatório a tradução da petição inicial e dos documentos enviados com a mesma, quando um tribunal português cita uma sociedade com sede em França, através de carta registada com aviso de recepção, por a França não ter comunicado qualquer reserva em relação à utilização da língua do país de origem.
II- Porém, por aplicação dos artigos 5.º e 8.º do mesmo Regulamento, interpretados à luz dos seus considerandos n.ºs 6 a 10 e do aditamento introduzido pela primeira actualização das comunicações dos Estados-Membros, em 18.07.2001, impunha-se ao tribunal português avisar a ré, aquando da citação, que podia recusar a recepção do acto por o mesmo não estar redigido numa das línguas referidas naquele artigo 8.º.
III- Em face da recusa do destinatário, que chegou aos autos dentro do decurso do prazo que o mesmo tinha para se defender, impunha-se que o tribunal ex officio providenciasse junto da autora no sentido desta proceder à tradução da petição inicial e da documentação junta, dentro de um prazo razoável, mais o mais curto possível, enviando-a, posteriormente à citanda, com a menção que a partir da data da sua recepção se iniciaria a contagem do prazo para contestar.
IV- A omissão do dever de proceder ao referido aviso, bem como à obtenção da tradução, configura preterição de formalidades essenciais, determinativas da nulidade da citação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 8275/08.0TBMAI.P1 (Apelação)
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Maia
Apelantes: B……, Ld.ª e C……
Apelados: Os mesmos
Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
B….., Ld.ª, com sede na Rua dos ….., n.º …, 4470-083 Gueifães, Maia, intentou, em 18/09/2008, acção declarativa condenatória, sob a forma de processo ordinário, no Tribunal Judicial da Comarca da Maia, contra C….., sociedade de direito francês, com sede em Avenue …., n.º …, 40150 SOORTS–HOSSEGOR, France, pedindo a condenação desta a pagar-lhe uma indemnização de €3.500.000,00.
Para fundamentar a sua pretensão, invocou, em suma, que desde 1993 as partes mantinham uma relação comercial que consistia, por parte da autora, na contratação de empresas têxteis para confeccionarem e produzirem artigos da colecção da ré, mediante o recebimento de uma percentagem da facturação realizada. Entre 1997 e 1999, o volume de contratos que a ré realizava, por intermédio da autora, atingiu cerca de 70% do volume de negócio das compras efectuadas pela ré. A partir de 1999, e por imposição da ré, a autora passou a garantir a exclusividade da sua actividade para com a sociedade ré, garantindo-lhe esta um volume anual de negócios constante e regular, quer em facturação, quer em produção. Porém, a ré entrou em incumprimento e desviou a produção da autora, o que lhe causou elevados prejuízos, deixando, ainda, de auferir ganhos em elevado montante, que contabilizou no valor peticionado.
Em 08/10/2008, foi expedida carta registada com A/R, para a sede da ré, citando-a, para, querendo, contestar acção, tendo-lhe sido enviado um duplicado da petição inicial, conforme melhor consta de fls. 28 dos autos.
O respectivo A/R foi devolvido e junto aos autos, assinado e datado, dele constando que a destinatária recebeu a carta no dia “13/10/08”.
Em 15/10/2008, através de telecópia, a ré dirigiu aos autos a comunicação constante de fls. 31 (original a fls. 33), datada de 15/10/2008, redigida em francês (cuja tradução se encontra a fls. 327), donde consta:
“(…)
Somos a informar que nós não compreendemos o Português e que não entendemos a que se referem a carta e o documento anexos.
De qualquer modo contestamos quer a forma, quer o conteúdo destes documentos.
(…)”
Conforme consta de fls. 32, em 16/10/2008, foi expedida notificação dando conhecimento à autora da junção deste requerimento, constando, ainda, da notificação, o seguinte: “Mais se notifica para proceder à tradução do requerimento que se junta, assim como de toda a PI e documentos.”
Em 24/09/2009, a autora juntou aos autos o requerimento de fls. 322 a 329, juntando tradução do documento referido, requerendo que, após audição da ré, se conclua pela validade da citação, com as consequências daí resultantes.
Notificada a ré (cfr. fls. 331), nada disse.
Em 16/12/2009, foi proferido despacho (certificado a fls. 335 a 340), através do qual o tribunal apreciou a validade da citação da ré, concluindo que “…a citação mostra-se regularmente efectuada, produzindo todos os efeitos legais.”
Mais decidiu que, em face da não contestação da ré, se consideram confessados os factos articulados pela autora, ordenando a notificação das partes em cumprimento do artigo 484.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (CPC).
Em 07/01/2010, a ré juntou aos autos procuração forense e requereu a confiança dos autos.
Em 22/01/2010, a ré fez chegar ao processo o requerimento de fls. 353 a 363, arguindo a falta de citação e pedindo a declaração de nulidade de todo o processado depois da petição inicial.
Ao requerido respondeu a autora através do requerimento que se encontra junto a fls. 409 a 413, pugnando pela improcedência do requerido.
Em 03/05/2010, foi proferido o despacho que se encontra junto a fls. 415, através do qual o tribunal considerou que nada mais havia a acrescentar ao despacho de 16.12.2009, que considerou transitado em julgado, através do qual apreciou a validade da citação.
Na sequência do convite dirigido pelo tribunal à autora para explicitar a discrepância entre o valor do pedido e o valor dos prejuízos e perda do ganho mencionados na petição inicial, veio a autora juntar o requerimento junto a fls. 440 a 444, que o tribunal qualificou como correspondendo a uma alteração do pedido e da causa de pedir (cfr. fls. 445), pelo que, após audição da parte contrária (que se pronunciou pelo indeferimento – cfr. fls. 448 a 455), julgou inadmissível a ampliação do pedido e da causa de pedir, indeferindo o requerido pela autora (cfr. fls. 115 a 116).
Proferiu, ainda, sentença que, analisando o peticionado, com base nos factos tidos por confessados perante a não contestação da ré, julgou a acção parcialmente procedente e declarou resolvido o contrato celebrado entre autora e ré, por incumprimento definitivo desta, e condenou-a a pagar à autora, a indemnização de €1.317.700,00, a título de lucros cessantes, e de €266.874,89, a título de danos emergentes.
Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação da sentença e do despacho intercalar que julgou inadmissível a alteração do pedido e da causa de pedir.
Por sua vez, também a ré interpôs recurso de apelação da sentença e do despacho intercalar proferido em 16.12.2009, que considerou regular a sua citação.
As partes motivaram os respectivos recursos e responderam aos recursos da contraparte.
Já nesta Relação, foi ordenada a junção de certidão do processado após a citação da ré, por os autos não conterem todos os actos processuais relevantes à apreciação dos recursos.
Tendo em conta a precedência lógica da apelação da ré, impugnativa do despacho intercalar relativo à validade da citação, impõe-se que, em primeiro lugar, seja apreciado esse recurso.

Conclusões da apelação da ré referentes ao despacho intercalar proferido em 16/12/2009:
“1. O despacho de 16.12.2009 é aqui recorrível ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 691.º do CPC, por não integrar nenhuma das situações previstas no n.º 1 e no n.º 2 do mesmo artigo.
2. A Recorrente, uma sociedade francesa que declarou não entender a língua portuguesa, tinha direito, ao abrigo do disposto no artigo 8.º do Regulamento (CE) n.º 1348/2000, de 29 de Maio de 2000, a recusar a citação feita em língua portuguesa, acompanhada de cópia da petição inicial não traduzida para francês.
3. A primeira actualização do dito Regulamento, publicada em 18.07.2011 no Jornal Oficial das Comunidades Europeias, que estabelece que, “no que diz respeito ao artigo 14.º, o facto de um Estado-membro não ter comunicado quaisquer disposições linguísticas significa implicitamente que são aplicáveis as disposições linguísticas do artigo 8.º, constitui parte integrante do Regulamento e, como tal, direito aplicável na ordem interna portuguesa.
4. O despacho de 16.12.2009 violou o disposto no artigo 8.º do referido Regulamento, tornando-se, assim, desconforme com legislação comunitária aplicável na ordem interna.
5. Nos termos do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, este Tribunal da Relação, porque, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 721.º do CPC, decide em última instância a validade da recusa da citação ao abrigo do artigo 8.º do citado Regulamento comunitário, tem o dever de submeter essa questão ao julgamento do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).
Sem prescindir,
6. O despacho de 16.12.2009 é nulo, por violação do caso julgado formal constituído ela notificação de fls. 32 da Recorrida para proceder à tradução da petição inicial e dos documentos a esta juntos, confirmada pelo despacho de fls. 34.
7. O mesmo despacho é ilícito por violar, nos termos referidos, o artigo 8.º do citado Regulamento, aplicável como direito interno, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que reconheça o direito da Recorrente de ser citada em língua francesa ou outra que entenda.
8. Mesmo que estivesse em causa a falta de citação ou a mera nulidade de citação, ambas são arguíveis neste recurso, porque a reclamação da Recorrente feita a fls. 31 não permitiu que ficassem processualmente sanadas.
9. É inconstitucional a interpretação feita pelo Tribunal a quo do artigo 14.º do Regulamento n.º 1348/2000, do Conselho, segundo a qual é legítimo que uma pessoa seja citada em língua que não entende por ser essa a língua oficial do Estado-membro onde o processo foi instaurado, por violação do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), ou seja, denegação do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, na modalidade de um processo justo e equitativo.
(…)
28. O despacho recorrido violou os artigos 8.º, n.º 5, e 20.º da Constituição da República Portuguesa e o artigo 8.º do Regulamento (CE), n.º 1348/2000 e os artigos 247.º e 672.º do Código de Processo Civil.
(…)”

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objecto do Recurso:
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objecto do recurso nos termos dos artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º 1 do CPC, redacção actual, sem prejuízo do disposto no artigo 660.º, n.º 2 do mesmo diploma legal, neste recurso importa decidir da regularidade da citação da ré.

B- De Facto:
Os elementos fácticos a ter em conta na apreciação deste recurso, constam do antecedente relatório.

C- De Direito:
Embora a questão essencial a decidir se prenda com a regularidade da citação da ré, esta suscita nas suas conclusões algumas subquestões que também analisaremos. Assim:

1. Da recorribilidade do despacho proferido em 16/12/2009:
Aplicando-se à presente acção o regime recursório decorrente das alterações introduzidas ao CPC através do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24/08, já que a mesma foi intentada após a entrada em vigor do mesmo (cfr. artigos 11.º e 12.º deste diploma), os despachos intercalares que não sejam passíveis de impugnação autónoma por não estarem elencados na previsão taxativa do n.º 2 do artigo 691.º do CPC, como é o caso do despacho que conhece da arguição de nulidades processuais, são impugnáveis apenas com a decisão final, havendo-a, como ocorreu no caso presente, por aplicação do n.º 3 do citado artigo 691.º do CPC. Daqui decorre que o mesmo não transitou em julgado, impondo-se a sua reapreciação.

2. Da nulidade do despacho recorrido por violação do caso julgado formal:
Defende a apelante a nulidade do despacho recorrido por violar o caso julgado formal constituído pela notificação de fls. 32.
Através desta foi a autora notificada do requerimento da ré junto aos autos após o recebimento da citação (cuja tradução foi transcrita no relatório deste acórdão), e, ainda, para apresentar a tradução da petição inicial e documentos juntos com a mesma.
Não descortinamos nos autos, quer na “versão” enviada a esta Relação aquando da remessa dos mesmos, quer na “versão” electrónica certificada após a nossa solicitação, que tenha havido despacho judicial a ordenar a junção da tradução. E, sendo, assim, não existindo despacho judicial de suporte a tal notificação, não se pode falar de caso julgado (artigos 671.º e 672.º do CPC).

3. Do reenvio prejudicial:
Defende a apelante que não havendo recurso deste acórdão quanto à concreta questão da regularidade da citação, conforme decorre do regime previsto no n.º 5 do artigo 721.º do CPC, e por estar em causa a interpretação e aplicação do artigo 8.º do Regulamento (CE) n.º 1348/2000, do Conselho de 29/05/2000, o artigo 267.º (que corresponde ao artigo 234.º do TUE) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que passaremos a designar por TFUE), impõe-se a este Tribunal da Relação o dever de submeter, através do reenvio prejudicial, a apreciação da questão ao Tribunal de Justiça da União Europeia (que passaremos a designar por TJUE).
Dispõe, no que ora releva, o actual artigo 267.º do TFUE, do seguinte modo:
“O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:
(…)
b) Sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.
(…)
Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.”

Decorre deste segmento do preceito que se impõe aos tribunais nacionais, cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial de acordo com as regras de direito interno, a obrigatoriedade de suscitarem a questão prejudicial ao TJUE, desde que a interpretação da norma comunitária (ou a apreciação da sua validade) seja relevante para o julgamento da causa.
Assim, cabe dentre da previsão deste preceito a colocação de questões relacionadas com a interpretação das normas de um Regulamento, por se tratar de um acto emanado pelos órgãos comunitários (artigo 288.º do TFUE, ex-artigo 249.º do TCE).
Por outro lado, em face do direito nacional, o Tribunal da Relação decide em última instância as questões suscitadas num despacho intercalar impugnável com a sentença final (artigo 721.º, n.º 5 do CPC), e, embora a decisão a proferir não emane de órgão situado na cúpula do sistema jurisdicional português, o TJUE firmou jurisprudência, apelando a um critério concreto, de acordo com o qual estarão enquadrados no reenvio prejudicial obrigatório todos os órgãos jurisdicionais nacionais que decidam em última instância[1], pelo que, no caso presente, a situação se enquadra no reenvio obrigatório.
Porém, a obrigação de reenvio que impende sobre os tribunais nacionais comporta excepções que o próprio TJUE tem reconhecido, resumindo-se as mesmas, conforme refere MOTA CAMPOS[2], a três situações: (i) falta de pertinência da questão suscitada no processo; (ii) existência de interpretação já anteriormente fornecida pelo TJUE; e (iii) total clareza da norma em causa.[3]
Também os tribunais nacionais têm proferido decisões no sentido do juiz nacional, mesmo que da decisão não caiba recurso, apenas ficar obrigado a suscitar a questão prejudicial junto do TJUE se ocorrer dúvida sobre a interpretação ou sobre a validade de concreta norma ou acto comunitário que seja relevante ao julgamento da causa.[4] Sempre será de excluir a obrigação de reenvio prejudicial quando o TJUE já tenha, a título prejudicial e num caso análogo, decidido uma questão materialmente idêntica[5] ou quando a aplicação das normas de direito comunitário não se afigure controversa.[6]
Por conseguinte, antes de nos podermos pronunciar sobre a necessidade do reenvio prejudicial, importará analisar se, no caso presente, ocorre alguma das excepções mencionadas, o que impõe que se analise se o acto de citação foi ou não validamente realizado.

4. Da aferição da regularidade do acto de citação:
Por a ré ter sede em França, a acção ter sido intentada num tribunal português, prescreve o artigo 247.º, n.º 1 do CPC, que na citação observar-se-á o que estiver estipulado nos tratados e convenções internacionais.
No caso, considerando que a acção deu entrada em juízo no dia 18/09/2008, aplica-se o Regulamento (CE) n.º 1348/2000, do Conselho de 29 de Maio de 2000, que entrou em vigor no dia 31/05/2001, já que o Regulamento (CE) n.º 1393/2007, do Parlamento Europeu e do Conselho de 13/11/2007, também relativo à citação e notificação dos actos judiciais e extrajudiciais em matéria civil e comercial nos Estados-Membros («citação e notificação de actos»), que revogou o anterior, só entrou em vigor em 13/11/2008 (artigos 25.º, n.º 1 e 26.º do Regulamento n.º 1393/2007[7]).
O Regulamento n.º 1348/2000 prescreve várias formas de proceder à transmissão de actos judiciais e, entre elas, a citação ou notificação pelo correio[8], dispondo o artigo 14.º, n.º 1, que “Cada Estado-Membro tem a faculdade de proceder directamente, por via postal, às citações e às notificações de actos judiciais destinados a pessoas que residam num outro Estado-Membro”, esclarecendo o n.º 2 do mesmo artigo que “Qualquer Estado-Membro pode precisar, nos termos do n.º 1 do artigo 23.º, sob que condições aceitará as citações e notificações por via postal.”
Este artigo 23.º prevê, por sua vez, o dever dos Estados-Membros comunicarem à Comissão as informações a que se refere, entre outros, o artigo 14.º, que as publicará no Jornal Oficial das Comunidades Europeias.
No que diz respeito à tradução dos actos importa, ainda, ter em conta o artigo 5.º, n.º 1 (vd. considerando 10 do Regulamento), que prescreve o seguinte: “ O requerente é avisado pela entidade de origem competente para a transmissão, de que o destinatário pode recusar a recepção do acto se este não estiver redigido numa das línguas previstas no artigo 8.º.”
As línguas referidas neste preceito são: n.º1, alínea a)- A língua oficial do Estado-Membro requerido (ou existindo várias, a oficial ou uma das oficiais do local da efectuação do acto); n.º 1, alínea b)- Uma língua do Estado-Membro de origem que o destinatário compreenda.
O desvio a esta prescrição determina, conforme refere o n.º 1 do artigo 8.º, a possibilidade do destinatário recusar a recepção do acto, devendo a entidade requerida avisar o destinatário.
Importa mencionar, para total compreensão dos preceitos, que o artigo 5.º e o artigo 8.º estão inseridos na Secção I do Capítulo II, que regula a transmissão dos actos judiciais directamente entre as entidades designadas conforme o disposto no artigo 2.º do Regulamento.
No tocante à citação ou notificação pelo correio prevista no artigo 14.º, Portugal comunicou não ter quaisquer reservas a formular, enquanto a França comunicou o seguinte: “Carta registada com aviso de recepção do qual constem os documentos enviados, ou qualquer outro meio que permita identificar as datas de envio e de recepção, bem como o respectivo conteúdo.”[9]
O que resulta desta comunicação por parte da França, como noutra sede, mas em situação análoga, o STJ concluiu, é que “em relação à citação por carta registada com aviso de recepção de pessoas domiciliadas em França é que do aviso de recepção devem constar os documentos enviados, ou algum modo que permita a identificação da data do envio e da recepção da carta, bem como o respectivo conteúdo.”[10]
Esta conclusão, obviamente, também se aplica à citação das sociedades, dada a identidade de procedimentos.
Do exposto emerge a conclusão clara que em relação à citação de uma sociedade francesa, com sede naquele país, realizada por carta registada com aviso de recepção enviada por um tribunal português, como ocorreu nestes autos, não resulta do Regulamento n.º 1348/2000, que a petição inicial e os documentos que a acompanham tenham de estar traduzidos para a língua francesa.
Também foi esta a conclusão a que chegou o despacho recorrido, contra o qual se insurge a apelante.
Em nosso entender, e na interpretação que fazemos do citado Regulamento, a conclusão que também retiramos é que a norma comunitária não impõe a tradução numa situação com a configurada nos autos.
Porém, importa analisar outra vertente da questão, que o tribunal a quo não curou, e que se reporta à necessidade de interpretação integrada de todas as normas do Regulamento considerando, ainda, a finalidade do mesmo.
Desde logo, resulta dos considerandos 6 a 8 do Regulamento que, apesar da eficácia e celeridade subjacente à utilização de todos os meios adequados à transmissão dos actos, não se descura a possibilidade, ainda que em situações excepcionais, de recusa da citação ou notificação de actos. Por outro lado, o considerando n.º 10 não esqueceu a defesa do interesse dos destinatários, já que o princípio da efectividade o exige, e que se traduz no direito que assiste ao destinatário de recusar um acto realizado numa língua que não seja reconduzível ao prescrito no artigo 8.º.
Acresce que na primeira actualização das comunicações dos Estados-Membros em conformidade com o disposto no artigo 23.º do Regulamento (CE) n.º 1348/2000[11], foi aditado um parágrafo à introdução inserta na Comunicação dos Estados-Membros[12] mencionada, com o seguinte teor:
“No que diz respeito ao artigo 14.º, o facto de um Estado-Membro não ter comunicado quaisquer disposições linguísticas específicas significa implicitamente que são aplicáveis as disposições linguísticas do artigo 8.º.”
Por via deste aditamento, que se integra no próprio Regulamento, fica patenteado que foi o próprio legislador comunitário que sentiu a necessidade de esclarecer que, mesmo que o Estado-Membro não tenha comunicado a necessidade de tradução do acto para as línguas referidas no artigo 8.º, o destinatário tem o direito de recusar[13] a recepção do acto se este não estiver redigido em conformidade com o preceito, impondo à entidade de origem o dever de avisar o destinatário nesse sentido.
E concretizando-se a apontada recusa do conteúdo veiculado, por haver essa inadequação linguística, o procedimento a seguir, necessariamente adaptado aos casos de transmissão pelo correio, é o que consta no n.º 2 do artigo 8.º, ou seja, necessidade de se proceder à tradução da documentação expedida.
Em apoio deste entendimento, julgamos ser de invocar a jurisprudência do TJUE no acórdão Götz Leffler contra Berlin Chemie AG, proferido em 08/11/2005[14], que, apreciando uma questão prejudicial, interpretou o n.º 1 do artigo 8.º do Regulamento (CE) n.º 1348/2000, do seguinte modo: deve ser “interpretado no sentido de que, quando o destinatário de um acto o recusar por não estar redigido numa língua oficial do Estado-Membro requerido ou numa língua oficial do Estado-Membro de origem que esse destinatário compreenda, o remetente pode sanar essa deficiência enviando a tradução solicitada… no prazo mais curto possível.”
Acrescentando, ainda, em sede de fundamentação da interpretação adoptada, que o juiz do Estado-Membro deve sobrestar na decisão a tomar enquanto não se provar que o vício do acto foi sanado pelo envio de uma tradução e que esta foi recebida pelo réu em tempo útil para apresentar a sua defesa, sublinhando que esta “obrigação resulta igualmente do princípio referido no artigo 26.º, n.º 2, do Regulamento n.º 44/2001 e o controlo da sua observância é prévio ao reconhecimento da decisão, de acordo com o artigo 34.º, ponto 2, do mesmo regulamento.”
Ademais, no mesmo acórdão, o TJUE, ciente de que o Regulamento não resolve todos os problemas relacionados com a forma como se deve sanar a falta de tradução[15], remeteu para o direito processual nacional, do seguinte modo: “…cabe ao juiz nacional aplicar o direito processual nacional respectivo, zelando por que seja assegurada a plena eficácia do referido regulamento, no respeito pela sua finalidade.”
Chegados a este ponto da análise, estamos em condições de decidir o caso concreto submetido à apreciação deste tribunal.
Assim, por força do disposto no artigo 14.º do Regulamento em aplicação, não é obrigatório a tradução da petição e dos documentos que a acompanham, por estar em causa a citação de uma sociedade com sede em França, para os termos de uma causa pendente num tribunal português, por a França não ter comunicado qualquer reserva em relação à utilização da língua do país de origem.
Porém, por aplicação dos artigos 5.º e 8.º do mesmo regulamento, interpretados à luz dos considerandos n.ºs 6 a 10 do Regulamento e do aditamento introduzido pela primeira actualização das comunicações dos Estados-Membros referenciada, impunha-se ao tribunal português avisar a ré, aquando da citação, que podia recusar a recepção do acto por o mesmo não estar redigido em francês, sendo certo que nada nos autos indicia que a ré compreenda a língua portuguesa, bem pelo contrário, já que expressou nos mesmos, em francês, que não compreende o português (comunicação do dia 15/10/2008).[16]
Esta comunicação, a nosso ver, deve ser interpretada como adequada e suficiente para produzir o efeito de recusa prevista no artigo 8.º do regulamento, já que é esse o sentido nela expresso. É certo que também ali se menciona que se “contesta” a forma e o conteúdo do acto. Porém, em face do direito interno português tal declaração não corresponde formalmente nem a uma contestação, por não obedecer aos requisitos dos artigos 487.º e 488.º do CPC, nem à confissão dos factos articulados, já que a falta de impugnação dos factos prevista artigo 490.º do CPC pressupõe a compreensão do conteúdo da petição inicial e dos documentos que a acompanham, o que não sucede no caso sub judice.
Em face da recusa do destinatário, que chegou aos autos dentro do decurso do prazo que o mesmo tinha para se defender, impunha-se que o tribunal ex officio providenciasse junto da autora no sentido desta proceder à tradução da petição inicial e da documentação junta[17], dentro de um prazo razoável, mais o mais curto possível, enviando-a, posteriormente à citanda, com a menção que a partir da data da sua recepção se iniciaria a contagem do prazo legal para contestar.
No caso nada disto sucedeu. Para além da citanda não ter sido avisada que poderia recusar o acto dada a inadequação linguística, e apesar da omissão, ter feito saber nos autos que não compreendia a língua usada na prática do acto, o tribunal não providenciou pela sanação desta omissão.
Em conformidade com a jurisprudência do caso Göztz Leffler, cabe ao tribunal nacional interpretar o direito processual interno de forma a superar esta falta, já que o Regulamento não prescreve a forma de o fazer, mormente quando a citação tenha sido feita por via postal.
Em face da lei processual portuguesa, por as omissões referidas configuram preterição de formalidades essenciais, determinam a nulidade da citação, conforme prescreve o n.º 1 do artigo 198.º do CPC.[18]
No tocante à arguição desta nulidade, rege o disposto no artigo 198.º, n.º 2 do CPC, que deve ser adaptado à situação em apreço. Por conseguinte, para além da possibilidade da ré poder arguir a nulidade da citação, na primeira intervenção no processo, o tribunal ex officio devia conhecer da mesma, já que nada nos autos indicia que se encontrava sanada (artigos 202.º e 206.º do CPC).
Não tendo assim procedido, impunha-se que fosse atendida a arguição de nulidade de citação formalmente invocada pela ré no requerimento de 22/01/2010.
Em conclusão, dada a nulidade da citação, impõe-se a revogação do despacho recorrido, devendo ser proferido outro que ordene a obtenção da tradução da petição inicial e dos documentos que a acompanham, concedendo-se à autora um prazo razoável, mas o mais curto possível, para o efeito, procedendo-se, após estar junta aos autos a tradução, à remessa da documentação traduzida ré, iniciando-se a contagem do prazo da contestação, nos termos legais, a partir dessa notificação (cfr. artigo 198.º-A do CPC).
Por conseguinte, daqui decorre a anulação de todo o processado após a junção do requerimento da ré datado de 15/10/2008 (fls. 31, original a fls. 33), incluindo o processado referente ao requerimento da autora de fls. 440 a 440 (aquele que o tribunal qualificou como correspondendo a uma alteração do pedido e da causa de pedir), por um dos fundamentos do indeferimento ser a extemporaneidade do mesmo, o que fica prejudicado em face da anulação do processado.
Também decorre de todo o exposto, e revertendo, agora, à questão do reenvio, que a situação se enquadra numa das excepções previstas quanto à não obrigatoriedade de reenvio prejudicial, por o TJUE, no citado acórdão Götz Leffler, já se ter pronunciado, interpretando o artigo 8.º do Regulamento, nos termos que a apelante pretendia ver apreciados através do pedido de reenvio prejudicial.
Decorre, ainda, da anulação processado nos termos referidos, que fica prejudicada a apreciação dos demais fundamentos deste recurso, bem como das apelações relativamente à sentença proferida, incluindo o recurso da decisão intercalar impugnada pela autora.

Em síntese (n.º 7 do artigo 713.º do CPC):
I- Nos termos do artigo 14.º do Regulamento (CE) n.º 1348/2000 do Conselho de 29/05/2000, não é obrigatório a tradução da petição inicial e dos documentos enviados com a mesma, quando um tribunal português cita uma sociedade com sede em França, através de carta registada com aviso de recepção, por a França não ter comunicado qualquer reserva em relação à utilização da língua do país de origem.
II- Porém, por aplicação dos artigos 5.º e 8.º do mesmo Regulamento, interpretados à luz dos seus considerandos n.ºs 6 a 10 e do aditamento introduzido pela primeira actualização das comunicações dos Estados-Membros, em 18.07.2001, impunha-se ao tribunal português avisar a ré, aquando da citação, que podia recusar a recepção do acto por o mesmo não estar redigido numa das línguas referidas naquele artigo 8.º.
III- Em face da recusa do destinatário, que chegou aos autos dentro do decurso do prazo que o mesmo tinha para se defender, impunha-se que o tribunal ex officio providenciasse junto da autora no sentido desta proceder à tradução da petição inicial e da documentação junta, dentro de um prazo razoável, mais o mais curto possível, enviando-a, posteriormente à citanda, com a menção que a partir da data da sua recepção se iniciaria a contagem do prazo para contestar.
IV- A omissão do dever de proceder ao referido aviso, bem como à obtenção da tradução, configura preterição de formalidades essenciais, determinativas da nulidade da citação.

III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar revogar o despacho intercalar proferido em 16.12.2009, anulando-se o processado nos termos e com a finalidade acima referida, ficando prejudicado todas as demais questões colocadas nos recursos das apelantes.
Custas pelo vencido a final.

Porto, 14 de Novembro de 2011
Maria Adelaide de Jesus Domingos
Ana Paula Pereira de Amorim
José Alfredo de Vasconcelos Soares de Oliveira
__________________
[1] Neste sentido, MIGUEL GORJÃO-HENRIQUES, Direito Comunitário, 2.ª ed., Almedina, 2003, pp. 313-314, mencionado a este propósito o acórdão Da Costa en Schaak NV Jacob Meijer NV e Hoechst-Holland NV contra Administração Fiscal neerlandesa, de 27.03.1963, procs. 28 a 30/62, Rec., 1963, I, pp. 59 e ss.
[2] MOTA CAMPOS, Manual de Direito Comunitário, Fundação Calouste Gulbenkian, 2.ª ed., 2001, p. 411-413. Veja-se, no mesmo sentido, FAUSTO QUADROS e ANA MARIA GUERRA MARTINS, Contencioso Comunitário, Almedina, 2002, pp. 67-69.
[3] Em relação às situações de total clareza da norma, releva especialmente a teoria do acto claro adoptada no acórdão de 06.10.1982, proferido no caso Cilfit, proc. 283/81, Rec., 1982, 9, pp. 59 e ss, onde se conclui que não há obrigatoriedade de reenvio quando o tribunal conclua que “a aplicação correcta do direito comunitário se impõe com tal evidência que não deixa lugar a qualquer dúvida razoável.”
[4] Ac. STJ, de 25.02.2009, proc. 08S2309 e Ac. STJ, de 03.10.2007, proc. 07S922, em www.dgsi.pt.
[5] Ac. STJ, de 10.07.2008, proc. 07B2944 e Ac. STJ, de 29.04.2010, proc. 622/081TVPRT.P1.S1, em www.dgsi.pt.
[6] Ac. STJ, de 20.01.2009, proc. 08B2777, em www.dgsi.pt.
[7] Sobre as alterações introduzidas por este Regulamento, veja-se o estudo de CARLOS MELO MARINHO, As citações e Notificações no Espaço Europeu Comum, in Julgar, n.º 14, Maio-Agosto 2011, pp. 29-46.
[8] Não existindo qualquer hierarquia entre os meios de transmissão e de notificação previstos nos artigos 4.º a 11.º e o previsto no artigo 14.º do Regulamento, conforme já decidido pelo TJUE no C-473/04.
[9] Jornal Oficial das Comunidades Europeias, C 151/7, de 22.05.2001.
[10] Ac. STJ, de 26.02.2004, proc. 04B277, em www.dgsi.pt.
[11] Publicada no Jornal Oficial das Comunidades, C- 202/10 a C-202/15, de 18.07.2001.
[12] Publicada no Jornal Oficial das Comunidades, C- 151/4 a C-151/17, de 22.05.2001.
[13] Parece discordar SALAZAR CASANOVA, ob. cit., pp. 799-800, quando refere que “Parece que o Regulamento subtrai ao destinatário o direito de recusar a recepção do acto não traduzido nos casos de citação por via postal, salvo se o Estado-Membro emitir declaração em contrário”, embora de seguida, questione o regime, por o destinatário, desconhecedor da língua usada, não compreender o significado do próprio acto de citação, frustrando-se nessa modalidade todos cuidados postos quando a citação é realizada por intermédio das respectivas autoridades centrais.
[14] C-443/03, Colectânea de Jurisprudência, 2005, I, p.09611 e disponível em http://eur-lex.europa.eu
[15] Veja-se que o Regulamento (CE) n.º 1393/2007, já prescreve o modo de correcção da omissão (artigo 8.º, n.º 3), não se deixando de sublinhar que o n.º 4 desse preceito manda aplicar o n.º 3 aos meios de transmissão e de citação ou notificação previstos na secção 2, onde se inclui a transmissão por via postal, fazendo notar CARLOS MELO MARINHO, ob. cit., p. 39, que tal redacção se inspira na jurisprudência fixada no caso Götz Leffler.
[16] Conforme faz notar SALAZAR CASANOVA, Regulamento (CE) n.º 1348/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000. Princípios e Aproximação à Realidade Judiciária, in ROA, Ano 62, Dezembro 2002, p. 789, não será sequer de admitir a discussão sobre se o destinatário que recusa o acto, conhece ou não a língua, já que “poderia levar a que, processualmente, se impusesse a audição de quem afinal recusou a citação e, mais grave, parece-nos, considerar citado quem usou de um direito consagrado no Regulamento.” No mesmo sentido, Ac. RL, de 06.03.2008, proc. 898/2008-8, em www.dgsi.pt.
[17] Enfatizando que a tradução corresponde a um ónus do demandante, que a deve promover, veja-se Ac. RE, de 18.01.2007, proc. 1803/06-2, em www.dgsi.pt.
[18] Neste sentido, veja-se SALAZAR CASANOVA, ob. cit., pp. 796-797. Foi também o entendimento expresso no Ac. RL, de 17.11.2009, proc. 3003/08.3TVLSB-A.L1-7 e no Ac. RL, de 16.10.2008, proc. 6515/2008-6, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.