Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
476/13.6EAPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: CRIME DE EXPLORAÇÃO ILÍCITA DE JOGO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE DA SENTENÇA
Nº do Documento: RP20141203476/13.6EAPRT.P1
Data do Acordão: 12/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NULIDADE DA SENTENÇA
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Constitui omissão de pronúncia geradora da nulidade da sentença, não fazer constar da sentença como facto provado ou facto não provado a descrição do funcionamento da máquina de jogo, constante do relatório pericial, para cuja descrição a acusação remete, nos termos do artº 389º 1 e 2 CPP.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 476/13.6EAPRT.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Sumário que corre termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Espinho com o nº 476/13.6EAPRT, foi submetida a julgamento a arguida B…, tendo a final sido proferida sentença, depositada em 09.12.2013, que condenou a arguida, pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo p. e p. nos artºs. 1º, 3º, 4º nº 1 e 108º nºs 1 e 2 do Dec-Lei nº 422/89 de 02.12, na redação dada pelo Dec-Lei nº 10/95 de 19.01, na pena de 4 meses de prisão substituída por 120 dias de multa e na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 5,50 e na pena única de 150 dias de multa à referida taxa diária.
Inconformada com a sentença condenatória, dela veio a arguida interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. A sentença recorrida violou os artigos 154º a 155º do C.P.P.;
2. De facto, o Mmº. Juiz a quo nunca poderia ter dado como provado o Relatório Pericial, uma vez que o mesmo não respeitou o princípio do contraditório e não permitiu que a arguida estivesse presente em parte da perícia realizada, o que inquina todo o Relatório Pericial;
3. Conforme se extrai da prova produzida em sede de audiência de julgamento e confirmado pelo próprio perito (gravação de 00,00 a 26.48), parte da peritagem foi realizada sem a presença da arguida, ou de eventual consultor técnico, como permite o artigo 155º do C.P.P.;
4. A parte da peritagem que não foi efetuada na presença da mandatária da arguida poderá ter sido adulterada e manipulada, não permitindo o exercício do contraditório por parte da arguida;
5. Assim, existe uma clara violação por parte do Sr. Perito e do órgão que a ordenou, do disposto nos artºs. 154º e 155º, que constitui, pelo menos uma irregularidade processual por violação do princípio do contraditório, que ora se invoca;
6. Por outro lado, o Relatório Pericial que, como se referiu serviu como prova principal para a condenação da arguida/recorrente, tendo sido diretamente para a prolação da sentença, ora posta em crise, não se encontra devidamente motivada, isto é, clara a sua falta de fundamentação, estando o mesmo eivado de suposições e conclusões do Sr. Perito;
7. De facto, um relatório pericial necessita, para além das conclusões a que o Sr. Perito chegou, de indicar especificadamente os motivos do respetivo laudo. Só estando devidamente motivado o juízo técnico é que a arguida poderia exercer o contraditório, a fim de poder refutar a justeza ou não das referidas conclusões;
8. Como o relatório pericial foi determinante para a condenação da arguida/recorrente, a falta de fundamentação do mesmo constitui uma manifesta irregularidade processual, que ora se invoca;
9. Esta irregularidade processual, inquina a validade da audiência de julgamento realizada na primeira instância, cuja reparação pode/deve ser oficiosamente ordenada pelo Tribunal a quo, conforme doutamente se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 18/02/2013, Proc. nº 232/10.3GAEPS.G1, in www.dgsi.pt;
10. A sentença recorrida erra quanto à qualificação do jogo em causa, já que qualifica tal jogo como de fortuna ou azar, quando na realidade tal jogo deve ser qualificado como modalidade afim de fortuna ou azar, e neste sentido os doutos Acs. Do Venerando Tribunal da Relação do Porto de 26/10/1994, in www.dgsi.pt; do Tribunal da relação do Porto de 14/07/1999, in www.dgsi.pt, numa modalidade de jogo afim de fortuna ou azar exatamente igual à dos presentes autos, sendo este douto aresto muito esclarecedor acerca desta matéria; Tribunal da Relação de Lisboa nos Recursos nºs. 7974/98 da 3ª secção, de 11710/2000, Rec. 4140/97, 3ª secção, de 12/11/1997, Rec. 442/96, 3ª secção, de 29/10/1997 e de entre muitos outros 9689/04, da 3ª secção, de 16/02/2005 e com maior expressividade e clareza o mais recente acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02/02/2011 no âmbito dos autos 21/08.5FDCBR.C2, 100/07.6TACCH.E1 e 372/07.6PHLRS.L1, de entre muitos outros.
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Na 1ª instância o Ministério Público respondeu às motivações de recurso, concluindo que lhe deve ser negado provimento.
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Neste Tribunal da Relação do Porto a Srª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em sentido concordante com a resposta do Mº Pº na 1ª instância.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
A sentença sob recurso considerou provados os seguintes factos: (transcrição)
«No dia 28.10.2013, pelas 12h e 10m, no estabelecimento de bebidas do café “C…” sito na Rua …, …, …, Espinho, a arguida tinha em seu poder, em pleno funcionamento, uma máquina designada “…” (simplificadamente), a qual continha no seu interior software acessível através da introdução de um código para os clientes.
Esta máquina situava-se na sala de arrumos do estabelecimento, localizada no lado direito do corredor que vai desde o balcão de atendimento às casas de banho. Encontrava-se ligada à eletricidade desenvolvendo na mesma jogos de fortuna ou azar, do tipo “slot machines” denominadas respetivamente “Halloween” e “Golden Island” através da qual foi possível chegar ao desenvolvimento dos jogos referidos conforme documentaram aqui os senhores inspetores da ASAE.
Por outro lado, a arguida tinha, portanto, como já se disse a exploração dos referidos jogos da aludida máquina, a qual tinha aí sido colocada com a sua autorização. Este jogo era utilizado pelos clientes em geral, que frequentavam aquele café que a mesma geria e era por si responsável. Estava assim a mesma colocada à disposição do público que a procurava para tal prática.
A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que explorava os jogos de fortuna ou azar, fora dos locais legalmente autorizados, para assim auferir lucros patrimoniais, que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Provou-se ainda que a arguida é casada, reside com o marido e com uma filha menor, de 11 anos de idade, é comerciante, aufere na sua atividade o valor equivalente ao salário mínimo nacional. Tem o 10º ano de escolaridade e paga de renda do café que explora 1250,00 euros mensais. A arguida não possui antecedentes criminais.»
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A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: (transcrição)
«O Tribunal teve em conta a prova produzida em sede de audiência de julgamento, devidamente conjugada entre si e apreciado de acordo com as regras de experiência comum e razoabilidade e designadamente, o depoimento sincero e isento dos senhores inspetores da ASAE, que descreveram aqui nos autos conforme se encontra documentado nesta gravação, a forma como detetaram a existência da máquina, a sua localização, a sua forma de funcionamento e relataram a forma também como documentaram a mesma que consta do auto de exame direto de folhas 5 a 8 dos autos, confirmando ainda o teor do auto de notícia de folhas 3 e 4 dos autos.
Referiram ainda que procederam a fotografias do contrato de arrendamento que se encontra a fls. 8, 8 verso, 9, 9 verso e 10 dos autos e procederam à apreensão da máquina conforme consta também do auto de apreensão de folhas 11 e 12 do processo.
Relativamente à titularidade da exploração daquele estabelecimento comercial atendeu-se, portanto, ao teor do contrato de arrendamento junto também aos autos, como já aqui dissemos e ainda ao teor da factura simplificada junta também como documento a folhas 13 do processo. Nestas folhas consta também o código de acesso ao software da máquina em causa e que permitia aceder aos jogos de fortuna e azar.
Por outro lado, relativamente às características da máquina e à sua caracterização como máquina de fortuna e azar, o Tribunal teve em conta o teor do auto de exame direto de folhas 21 a 23 que concluiu que à referida máquina é aplicável o disposto no artº 1º e 3º e 4º, 9º e 68º do Dec-Lei nº 422/89 portanto, quem fizer exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais regularmente autorizados será punido com prisão até 2 anos e multa até 200 dias.
Concluiu-se assim que estamos perante jogos de fortuna e azar, entendimento este e conclusão esta que veio a ser confirmada pela segunda perícia efetuada que consta de folhas 128 a 133 destes autos.
Este exame foi devidamente confirmado pelo Sr. Perito D…, o qual de forma isenta e sincera, aqui explicou e de forma detalhada, o procedimento que adotou para a identificação do tipo de software e de jogo que estava em causa no funcionamento desta máquina. Na verdade, o mesmo referiu que o exame foi feito nas instalações da ASAE no Porto, foi realizado nos dias 4 e 5 de Novembro de 2013. Que a Srª. Drª. Defensora da aqui arguida esteve presente nesses dias e aquando da realização do exame e que depois, posteriormente, o relatório que veio a ser elaborado foi efetuado no seu local de trabalho em …, daí a referência a …, 8 de Novembro de 2013, constante de folhas 133 verso dos autos. Referiu também e de forma detalhada, como já dissemos, com conhecimento de causa que não foi possível colocar em funcionamento a máquina, pelo que retirou o disco da mesma e procedeu à sua leitura no computador de serviços da Inspeção de Jogos.
Explicou também que o disco continha no seu interior um software que apenas foi acessível através da introdução de uma password que descobriu após pesquisas efetuadas de acordo com os conhecimentos desta Inspeção de Jogos e não teve dúvidas em classificar os jogos identificados como jogos de fortuna ou azar.
Efetivamente, disse que estes jogos são jogos que dependem única e exclusivamente da sorte da pessoa que o está a utilizar e que conforme refere nas suas conclusões de folhas 133 verso, constatou portanto que a existência destes ficheiros que se encontravam no disco, previamente encriptados levam a concluir que aquela máquina estava apta a desenvolver jogos de fortuna ou azar designadamente, “Poker, Slot e Bingo”.
Quanto ainda às condições sócio-económicas da arguida teve-se em conta as suas declarações que se mostraram sinceras e verosímeis e quanto à ausência de antecedentes criminais, o seu CRC junto aos autos».
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
Das conclusões de recurso é possível extrair a ilação de que a recorrente delimita o respetivo objeto à apreciação das seguintes questões:
-irregularidade processual por violação do princípio do contraditório no que respeita à realização da perícia por ter sido efetuada sem a presença da arguida, da sua mandatária ou de consultor técnico;
- irregularidade processual por falta de fundamentação do relatório pericial;
- qualificação do jogo em causa como modalidade afim de fortuna ou azar.
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Considerando, porém, o tipo de ilícito criminal imputado à arguida, importa determinar, antes de mais, se os factos considerados provados na sentença recorrida integram os elementos objetivos e subjetivos do crime de exploração ilícita de jogo de fortuna ou azar p. e p. nos artºs. 1º, 3º, 4º nº 1 e 108º nºs. 1 e 2 do Dec-Lei nº 422/85 de 02.12.
Podendo a decisão recorrida padecer de nulidade, a respetiva apreciação deverá preceder a apreciação de eventuais vícios a que alude o artº 410º nº 2 do C.P.P. bem como o conhecimento das questões suscitadas no recurso.
Com efeito, como se decidiu no acórdão desta Relação do Porto de 22.01.1992[3], “I - O conhecimento das causas da nulidade da sentença precede a averiguação da existência dos vícios indicados no número 2 do artigo 410 do Código de Processo Penal, pois, considerada nula a sentença, perdera interesse apurar a suposta existência desses vícios. II - Se a sentença não se pronunciar sobre factos essenciais descritos na acusação, tal omissão de pronúncia envolve nulidade de sentença (artigos 374 numero 2 e 379 alínea a) daquele Código) mais do que o vício da alínea a) do número 2 do artigo 410 do mesmo diploma: insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. …”
Desde já adiantamos que a sentença sob recurso padece de nulidade por omissão de pronúncia.
Dispõe o artigo 1º do Dec-Lei nº 422/89 de 02.12 na redação introduzida pelo Dec-Lei nº 10/95 de 19.01, que “jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte. ”O art. 3º, nº 1, preceitua que “a exploração e a prática de jogos de fortuna ou azar só são permitidas nos casinos existentes em zonas de jogo permanente ou temporário, criadas por decreto-lei ou, fora daqueles, nos casos excecionados nos artigos 6º a 8º“. Tais casos excecionados nos artigos 6º a 8º do referido diploma reportam-se à “exploração de jogos em percursos turísticos e aeroportos” e em “estabelecimentos hoteleiros ou complementares, em localidades em que a atividade turística seja predominante” sempre dependendo a respetiva exploração da concessão por parte do Governo, ouvida a Inspecção - Geral de Jogos e a Direcção Geral de Turismo. O artigo 8º refere-se ao “jogo do Bingo” a explorar nos termos de legislação especial.
Quanto ao artigo 4º, nº 1, referindo-se aos tipos de jogos de fortuna ou azar prevê que “nos casinos é autorizada a exploração, nomeadamente, dos seguintes tipos de jogos de fortuna ou azar: jogos bancados e não bancados e jogos em máquinas, pagando diretamente prémios em fichas ou moedas ou que, não pagando diretamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar, ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte”.
Por fim, o artigo 108º, nº 1 do mesmo diploma pune quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados. Isto significa que a disciplina legal respeitante aos jogos pretendeu conciliar a vantagem de se conseguir receitas com utilidade social, explorando o jogo de fortuna ou azar em moldes estritamente regulamentados, com a necessidade de impedir os efeitos socialmente perniciosos de uma liberalização de tais jogos.
A definição legal de jogos de fortuna ou azar encontra-se assim no art. 1.º da vulgarmente denominada “Lei do Jogo”, considerando-se como tal “aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte”. Mediante este ilícito pretende-se acautelar a integridade das explorações dos jogos de fortuna ou azar, circunscrevendo-as a zonas devidamente autorizadas.
Trata-se de um tipo totalmente aberto, cujo núcleo central corresponde a uma autêntica cláusula geral, que tem vindo a suscitar sérias dificuldades interpretativas, quando se pretende distinguir este ilícito criminal dos ilícitos contra-ordenacionais que correspondem a modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar e outras formas de jogo quando estas não se encontrem autorizadas, da previsão do art. 159.º e 160.º.
Antes de mais, importa salientar o que caracteriza os “jogos de fortuna ou azar”, na medida em que dessa caracterização depende a sua integração na previsão normativa.
A intenção do legislador, passa pelo entendimento de se considerar que os jogos que dependem essencialmente do acaso e da sorte do jogador, são aqueles em que este não tem qualquer possibilidade de influenciar ou condicionar o resultado do respetivo jogo.
Poder-se-á definir um jogo de fortuna ou azar como aquele em que o domínio de um evento desencadeado ou induzido pela ação humana escapa à capacidade de controle e de previsão muito provável de que a uma causa sucede um determinado efeito desde que cumpridos e induzidos factores certos e conjugados. Isto é, a uma causa objetivamente estruturada com factores e elementos pré-determinados e empiristicamente testados não se segue necessária e inevitavelmente o efeito pretendido e motivado.
A concetualização bipolar utilizada pelo legislador, “fortuna ou azar”, colhe o seu fio identificador e a argamassa uniformizadora dos conceitos na definição de acaso. Afinal tanto para a fortuna como para o azar experienciados na álea do jogo intervém o factor acaso ou uma probabilidade indeterminada e não controlada da parte de quem introduz o elemento desencadeador, no caso das máquinas utilizados neste tipo de jogos, uma moeda, ficha ou peça equivalente e, no caso de cartas, a respetiva distribuição.
Convém ainda realçar que o que está em causa nos “jogos de fortuna ou azar” é a aposta, o ganho, o prémio. A perspetiva de, apostando pouco, ganhar muito. Por isso se chamam “jogos de fortuna ou azar”. Fortuna para o ganho (existência de prémio); azar para a perda (ausência de prémio).
Não é, pois, compaginável um “jogo de fortuna ou azar” sem que se perspetive a possibilidade de ganho. Este só tem significado se reportado à natureza do prémio. Sem o prémio não há apelo à aposta e ao jogo.
Seja como for, para sabermos se o resultado de determinado jogo depende exclusiva ou fundamentalmente da sorte, necessário se torna saber como se processa o respetivo funcionamento e se os jogadores têm possibilidade de influenciar o resultado através da respetiva perícia ou se o mesmo é deixado ao acaso, à sorte.
Assim, no que respeita à prática do crime imputado à arguida, impunha-se que a sentença recorrida fizesse uma descrição pormenorizada do funcionamento dos jogos do “tipo slot machines, denominados Halloween e Golden Island”, para se poder concluir pela sua caracterização ou não como jogos de fortuna ou azar.
Aliás, por força do princípio do acusatório e da vinculação temática, com consagração constitucional (artº 35º nº 2 da CRP), o tribunal só pode investigar e julgar dentro dos limites que lhe são postos pela acusação. É esta que define e fixa, perante o Tribunal o objeto do processo. É ela que delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e é nela que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade e da consunção do objeto do processo penal.
Há, pois, uma inultrapassável identidade entre os conceitos de “objeto do processo” e “factos”, assim como há outra intransponível imbricação entre os conceitos de “crime” e de “factos”. Sem factos não há crime nem objeto do processo. Os factos são a base indispensável de um processo mas, naturalmente, têm que ser normativamente relevantes. Sendo normativamente relevantes têm que ser esgotantemente apreciados.
Cristalizando-se o objeto do processo com os factos que constam da acusação – e nessa medida se entendem como normativamente relevantes, o que quer significar que, constando da acusação têm um significado enquanto conduta humana subsumível ao ordenamento penal – o princípio da unidade ou indivisibilidade (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente), impõe que os factos que constavam da acusação tenham um destino[4].
Ora, no que respeita ao modo de funcionamento dos referidos jogos, a acusação remete para o auto de notícia e para o exame direto que o complementa, junto a fls. 21 a 23, bem como para o relatório de exame pericial junto a fls. 98 a 107 [cfr. fls. 119], tal como lhe é permitido pelo disposto no artº 389º nºs 1 e 2 do C.P.P.
E o certo é que o exame direto que faz parte integrante do auto de notícia [cfr. fls. 3 vº] contém o modo de funcionamento e desenvolvimento dos dois jogos tipo “slot machine” visualizados pelos inspetores da ASAE que lavraram o auto.
Tal descrição (do modo de funcionamento dos jogos), porém, não foi considerada provada ou não provada na sentença recorrida, a qual é totalmente omissa a esse respeito. Não é, assim, possível saber em que medida é que a sorte ou a perícia do jogador podem influenciar as partidas e o respetivo resultado, uma vez que não se descreve o seu funcionamento, de forma a que, quem não conheça o jogo em causa, possa perceber o relevo que o “acaso” pode ter no desfecho das apostas ou em que medida a perícia de cada jogador pode determinar a “fortuna” ou o “azar”.
Com efeito, constituindo o funcionamento do jogo condição indispensável à sua caracterização como de “fortuna ou azar” e, por isso, integrando os elementos do tipo de crime em causa, não constando da sentença recorrida tais elementos objetivos, pese embora os mesmos constassem da acusação (embora por remissão) e sobre eles tivesse sido produzida prova testemunhal e pericial, deixou o tribunal a quo de emitir pronúncia sobre os mesmos, facto que determina a nulidade da sentença recorrida nos termos dos artºs 379º nº 1 al. c) e 374º nº 2 do C.P.P.
Tratando-se de factos relevantes que constavam da acusação, imprescindíveis para se poder concluir pela responsabilidade criminal da arguida, e sobre os quais a decisão recorrida não se pronunciou, é de concluir que esta padece do vício de omissão de pronúncia.
E não se diga que a referência genérica a «jogos de fortuna ou azar do tipo “slot machines” denominadas Halloween e Golden Island» é suficiente para a integração do tipo.
Como se refere no Acórdão do STJ de 10.12.2009[5], “…A afirmação genérica, vazia de qualquer argumentação substancial, traduz-se numa omissão de pronúncia sobre a questão concreta que era proposta. Na verdade, como se refere em Acórdão deste Supremo Tribunal de 16 de Setembro de 2008 a omissão de pronúncia constitui uma patologia da decisão que consiste numa incompletude [ou num excesso] da decisão, analisado por referência aos deveres de pronúncia e decisão que decorrem dos termos das questões suscitadas e da formulação do objeto da decisão e das respostas que a decisão fornece. Quando se configura a existência de omissão está subjacente uma omissão do tribunal em relação a questões que lhe são propostas. Admitindo que a decisão se consubstancia num silogismo assente na conclusão inferida de duas premissas a omissão de pronúncia implica que uma daquelas premissas está incompleta– artigo 379º, nº 1, alínea c) do CPP”.
Considerando, relativamente à questão em causa nos presentes autos, que a mesma constitui o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, pronunciou-se o STJ de 17.02.2003[6], nos seguintes termos: “… A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é a que decorre da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados pela acusação ou defesa ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão. …”.
No mesmo sentido se pronunciaram os acórdãos da Rel. Évora de 28.11.2012[7], e da Rel. Guimarães de 01.09.2006[8], relatado por Fernando Monterroso, dos quais citamos: “…Mas, se a sentença não dá como «provado», nem como «não provado» algum facto relevante, que devia ter sido investigado, a questão não é de nulidade da sentença, mas da existência do vício do art. 410 nº 2 al. a) do CPP – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Este vício verifica-se quando há omissão de pronúncia pelo tribunal relativamente a factos alegados por algum dos sujeitos processuais ou resultantes da discussão da causa, que sejam relevantes para a decisão…”.
No sentido de que uma tal omissão constitui o vício de nulidade da sentença, previsto no art.º 379º nº 1 al. c) do CPP, decidiu o acórdão do STJ de 14.05.2008, relatado por Maia Costa, in www.gde.mj.pt, processo 08P1130, de cujo sumário citamos: “…I - Numa situação em que o Tribunal da Relação considerou a prova insuficiente relativamente a dois dos crimes pelos quais o arguido foi condenado, absolvendo-o dos mesmos, mas sem que previamente procedesse à fixação (definitiva) dos factos provados e não provados – operação que antecedia a decisão sobre a absolvição do recorrente, pois a decisão em matéria de direito é, no iter decisório, necessariamente subsequente à fixação dos factos –, é nulo o acórdão proferido por aquele Tribunal, por omissão de pronúncia sobre a matéria de facto (art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP) posta em causa no recurso interposto pelo recorrente, e que à Relação competia estabelecer em definitivo, por força do art. 428.º do CPP. …”
Entendemos, porém, como o Ac. Rel. Lisboa de 10.01.2013[9], que aqui seguimos de perto, no sentido de que “a patologia em causa constitui o vício de nulidade da sentença por omissão de pronúncia porque entendemos que a apreciação das causas de nulidade da sentença tem precedência lógica e legal sobre a averiguação dos vícios da apreciação da prova. Sem sabermos se o tribunal recorrido considera provado ou não provado determinado facto, não podemos determinar se, relativamente a esse facto, há um vício de apreciação da prova. Por outro lado, só este entendimento é coerente com o de que todos os vícios de apreciação da prova previstos no art.º 410º/2 do CPP têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Na verdade, salvo se na decisão recorrida se reproduzirem a acusação ou a pronúncia e a contestação, o que não é legalmente exigido, nem constitui prática comum, a omissão de decisão sobre se se consideram provados ou não provados factos alegados naquelas peças, não pode resultar do texto da decisão recorrida por si só, sendo necessário recorrer às referidas peças”.
Não há assim dúvida de que a omissão, na sentença recorrida, como “provados ou não provados”, dos factos alegados (ainda que por remissão) na acusação sobre o funcionamento dos jogos na máquina apreendida constitui nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artº 379º nº 1 al. c) do C.P.P.
A nulidade da sentença é de conhecimento oficioso – artº 379º nº 2 do C.P.P.[10], devendo ser suprida pelo tribunal que a proferiu – nºs 2 e 3 do mesmo preceito[11].
Há por isso que declarar a nulidade da sentença sob recurso, que deve ser substituída por outra que considere os factos alusivos ao funcionamento dos jogos, como descritos no auto de exame de fls. 21 a 23, integrando-os na matéria de facto provada ou não provada para, finalmente classificar os jogos em causa como de “fortuna ou azar” ou não, efetuando o respetivo enquadramento jurídico.
Fica assim prejudicada a apreciação das questões suscitadas no recurso.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em declarar a nulidade da sentença recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que considere os factos referentes ao funcionamento dos jogos como provados ou não provados e proceda ao subsequente enquadramento jurídico.
Sem tributação.
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Porto, 03 de Dezembro de 2014
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Lobo
Alves Duarte
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Proferido no Proc. nº 9150789, Des. Castro Ribeiro e sujo sumário está disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cfr., neste sentido, Ac. Rel. Évora de 03.12.2013, Des. João Gomes de Sousa, Proc. nº 864/03.6TAPTM.E1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Proferido no Proc. nº 22/07.0GACUB.E1.S1, Cons. Santos Cabral e disponível em www.dgsi.pt.
[6] Proferido no Proc. nº 04P771, Cons. Pereira Madeira, disponível em www.dgsi.pt.
[7] Relatado pela Des. Ana Bacelar, disponível em JusNet 6700/2012.
[8] Relatado pelo Des. Fernando Monterroso, no Proc. nº 1311/06-1, disponível em www.dgsi.pt.
[9] Proferido no Proc. nº 905/05.2JFLSB.L1-9, Des. João Abrunhosa de Carvalho, disponível em www.dgsi.pt.
[10] Cfr., neste sentido, Ac. do STJ de 12.09.2007, relatado pelo Cons. Raul Borges, no Proc. nº 07P2583,; Ac. da RPorto de 25.03.2009, relatado pelo Des. Cravo Roxo, no Proc. nº 0740063; Ac. da RPorto de 29.9.2004, Proc. nº 0442419, relatado pelo Des. António Gama; Ac. da RCoimbra de 24.02.2004, Proc. nº 2701/04, relatado pelo Des. João Trindade; ac. da RPorto de 21.01.2002, relatado pelo Des. Ernesto Nascimento, Proc. nº 0846847, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[11] No mesmo sentido parece inclinar-se, ainda que não expressamente, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, Verbo, 2009, a pág. 299. Também nesse sentido decidiu o acórdão da RL de 27.01.2010, relatado por Maria José Costa Pinto, proc. nº. 649/08.3PQLSB.L1-3:“…IV - Constatando-se a omissão de pronúncia, não pode a Relação substituir-se ao tribunal recorrido e suprir a nulidade, pois de outra forma suprimir-se-ia o único grau de recurso ao dispor do arguido, violando-se a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição prevista no art. 32.º da CRP”.