Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
944/12.7TBAMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AUGUSTO DE CARVALHO
Descritores: BENEFICIÁRIO DE APOIO JUDICIÁRIO
MODALIDADE DE DEFRIMENTO DE PAGAMENTO DAS CUSTAS PROCESSUAIS
CIRE
Nº do Documento: RP20180924944/12.7TBAMT.P1
Data do Acordão: 09/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 680, FLS.386-389)
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTIGO 248º DO CIRE
Sumário: I - Desde que se apresente à insolvência e formule o pedido de exoneração do passivo restante, de forma automática, o devedor passa a beneficiar do diferimento do pagamento das custas do processo.
II - O apoio judiciário concedido ao abrigo do disposto no artigo 248º do CIRE prevalece sobre o regime geral previsto na Lei nº 34/2004, de 29.7, não só por se tratar de uma norma especial, mas também porque essa prevalência é expressamente imposta pelo seu nº 4.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 944/12.7TBAMT.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
B… requereu a declaração de insolvência e em simultâneo a exoneração do passivo restante.
Foi concedido ao requerente o benefício do apoio judiciário, na modalidade de dispensa total de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
Admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, veio este benefício a ser concedido em definitivo por decisão de 1.5.2018.
Existindo rendimento objeto de cessão, foi o Fiduciário notificado para dar cumprimento ao disposto no artigo 241º do CIRE, verificando-se previamente a existência de custas em dívida.
Elaborada a conta, foi o insolvente notificado da nota de custas, no valor de €3.419,49.
O insolvente veio referir que beneficiava de apoio judiciário e, portante, requerer que fosse dada sem efeito a conta apresentada.

Foi proferida a seguinte decisão:
«Atento o teor do artigo 248º do CIRE, afigura-se-nos que o regime previsto no artigo 248º do CIRE é especial e prevalece sobre o regime geral previsto na lei geral do apoio judiciário (Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho), ficando assim afastada a aplicação do regime geral previsto na Lei do Apoio Judiciário, retirando-se do disposto no referido artigo que o devedor que apresente um pedido de exoneração do passivo restante fica impedido de beneficiar de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
Assim, o devedor, por ter apresentado pedido de exoneração do passivo restante, beneficiou do diferimento do pagamento das custas e do reembolso ao IGFEJ até à decisão final desse pedido, nos termos do artigo 248º, nº 1, do CIRE. Por essa razão, nos termos do nº 4 do mesmo artigo, ficou afastada a concessão à mesma de qualquer outra forma de apoio judiciário, salvo quanto à nomeação e pagamento de honorários de patrono, nos termos do artigo 248º, nº 4, do CIRE.
Consequentemente, deixou o devedor de beneficiar do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo que lhe tinha sido concedido, mantendo-se apenas o apoio nas modalidades de pagamento da compensação de patrono e atribuição de agente de execução.
Nestes termos, indefere-se a pretensão do devedor de 11.06.2018, na parte em que solicita que a conta seja dada sem efeito».

Inconformado, o insolvente recorreu para esta Relação, formulando as seguintes conclusões:
1. A questão que se pretende submeter à sábia e prudente apreciação das V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto, é a de saber se o tribunal a quo, ao abrigo do disposto no artigo 248º pode afastar a concessão do benefício de apoio judiciário ao insolvente que tenha desde o início do processo de insolvência obtém deferimento do benefício na modalidade de dispensa de pagamento de taxas de justiça e demais encargos com o processo.
2. Ora, apesar do artigo 248º do CIRE ter como epígrafe “Apoio judiciário”, não estamos perante uma situação de apoio judiciário propriamente dita, na aceção prevista na Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, alterada pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto (L.A.J.), mas perante um efeito similar ao visado pelo apoio judiciário.
3. De facto, o referido artigo aplica-se tão só ao período compreendido entre a formulação do pedido de exoneração do passivo restante a decisão final desse pedido, em que o insolvente está dispensado do pagamento das custas cujo pagamento se difere para depois deste momento; depois de proferida a decisão final é chamado a pagar as custas que não tenham sido pagas pela massa e pelo rendimento disponibilizado ao abrigo da cessão feita ao fiduciário.
4. Isto é, aplica-se a todas e quaisquer custas do processo de insolvência que devam ser pagas ou adiantadas pelo devedor.
5. O regime previsto no artigo 248º do CIRE prevalece sobre o regime do apoio judiciário, durante o período supra referido, mas não o afasta ou exclui tanto mais que o benefício de apoio judiciário tem como fim “assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido (….) por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos” – artigo 1º, nº 1, da L.A.J. e artigo 20º da CRP.
6. Aliás, esta ideia de que se trata de realidades distintas e conciliáveis já ressalta do acórdão de 17.05.2012 do Tribunal da Relação de Guimarães, in www.dgsi.pt, bem como os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 06.02.2018, processo nº 749/16.6T8OAZ.P2; Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 3198/13.4TBMTJ.L1, de 30.06.2015.
7. Revertendo ao caso em apreço, verificamos que o devedor, antes de se apresentar à insolvência, requereu o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos, o qual lhe foi deferido, tendo o mesmo junto tal documento comprovativo à petição inicial.
8. Tendo na petição requerido a exoneração do passivo restante, ao abrigo do disposto no artigo 248º, nº 1, do CIRE, ficou aquele dispensado do pagamento das custas até à prolação da decisão final do pedido de exoneração.
9. E proferida esta decisão, volta a beneficiar de apoio judiciário inicialmente concedido, não obstante ser elaborada a conta, encontrando-se desta feita o insolvente dispensado do pagamento das custas.

O Ministério Público apresentou contra-alegações, concluindo pela confirmação da decisão.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

São apenas as questões suscitadas pelos recorrentes e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do novo C.P.C.
A questão a decidir consiste em saber se o devedor/pessoa singular, a quem foi concedido o benefício da exoneração do passivo restante após a declaração de insolvência, é responsável pelo pagamento das custas do processo de insolvência.

I. Antes de se apresentar à insolvência, o devedor requereu o benefício do apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos, benefício que lhe foi deferido.
O devedor/apelante vem defender que, tendo requerido a exoneração do passivo restante, ao abrigo do disposto no artigo 248º, nº 1, do CIRE, ficou dispensado do pagamento das custas até à prolação da decisão final do pedido de exoneração. Mas, proferida aquela decisão, não obstante ter sido elaborada a conta, o insolvente encontra-se dispensado do pagamento das custas, uma vez que beneficia de apoio judiciário.
A decisão recorrida prosseguiu o entendimento de que, por força do disposto no artigo 248º, nºs 1 e 4, do CIRE, para além de ficar afastado o benefício do apoio judiciário que tenha sido concedido, o insolvente/devedor passa a beneficiar do diferimento das custas que não tenham sido pagas por inexistência ou insuficiência de receita da liquidação até à decisão final do pedido de exoneração.
O objetivo do processo de insolvência é definido no artigo 1º do CIRE, disposição nos termos da qual este “…é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista no plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente.
É um processo sujeito a custas, nomeadamente a pagamento de taxa de justiça, como resulta do disposto nos artigos 302º a 304º do CIRE e artigos 1º e 14º do Regulamento das Custas Processuais.
O devedor requereu a exoneração do passivo restante, permitindo ser-lhe concedida, nos termos do artigo 235º do CIRE, a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não foram pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
Como se refere no ponto 45 do preâmbulo do DL 53/2004, de 18 de Março, «o princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A efetiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos – designado período de cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos.
(…) No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento».
Dispõe o artigo 248º do CIRE:
1. O devedor que apresente um pedido de exoneração do passivo restante beneficia do diferimento do pagamento das custas até à decisão final desse pedido, na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível durante o período de cessão sejam insuficientes para o respetivo pagamento integral, o mesmo se aplicando à obrigação de reembolsar o Cofre Geral dos Tribunais (actual Instituto de Gestão Financeira e Infraestruturas da Justiça, I.P.) das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do fiduciário que o Cofre tenha suportado.
2. Sendo concedida a exoneração do passivo restante, o disposto no artigo 33º do Regulamento das Custas Processuais é aplicável ao pagamento das custas e à obrigação de reembolso referida no número anterior.
3. Se a exoneração for posteriormente revogada, caduca a autorização do pagamento em prestações, e aos montantes em dívida acrescem juros de mora calculados como se benefício previsto no nº 1 não tivesse sido concedido, à taxa previstas no nº 1 do artigo 33º do Regulamento das Custas Processuais.
4. O benefício previsto no nº 1 afasta a concessão de qualquer outra forma de apoio judiciário ao devedor, salvo quanto à nomeação e pagamento de honorários de patrono.
Do nº 1 do citado preceito resulta que, requerendo a exoneração do passivo restante, o devedor passa a beneficiar do diferimento do pagamento de custas. Desde que se apresente à insolvência e formule o pedido de exoneração do passivo restante, de forma automática o devedor fica dispensado do prévio pagamento da taxa de justiça respetiva.
Então, o devedor passa a beneficiar do diferimento do pagamento de custas até à decisão final do pedido de exoneração do passivo restante.
E do nº 4 do mesmo artigo, ao referir-se expressamente que o benefício previsto no nº 1 afasta a concessão de qualquer outra forma de apoio judiciário ao devedor, só pode colher-se o entendimento de que torna inútil e sem qualquer efeito o benefício do apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e de custas, que àquele possa ter sido concedido pela Segurança Social.
Ou seja, o apoio judiciário concedido ao abrigo do disposto no artigo 248º do CIRE prevalece sobre o regime geral previsto na Lei nº 34/2004, de 29.7, e posteriores alterações, não só por se tratar de uma norma especial, mas também porque essa prevalência foi expressamente imposta pelo seu nº 4.
É este o entendimento que foi perfilhado no acórdão do STJ, de 15.11.2012: «Trata-se de um regime que encontra coerência com o que se dispõe no artigo 248º do CIRE quando criou um regime especial aplicável ao “devedor que requeira a exoneração do passivo restante”, que, assim, prevalece sobre o regime da LAJ». Publicado em www.dgsi.pt.
E, no mesmo sentido, referem Carvalho Fernandes e João Labareda que, «por força do nº 4, da obtenção do benefício de diferimento previsto no nº 1 resulta que ao devedor não pode, em regra, ser concedida qualquer outra modalidade de apoio judiciário, com ressalva, apenas, dos benefícios de nomeação de patrono e de pagamento dos seus honorários». Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pág. 923.
Nem se diga que este entendimento sobre o previsto no citado artigo 248º do CIRE é prejudicial ao insolvente/apelante, no sentido de o impedir de exercer os seus direitos e o acesso à justiça.
Na verdade, como refere o Magistrado do Ministério Público, o artigo 248º do CIRE consubstancia em si mesmo um benefício especial ou específico do apoio judiciário, tendente a permitir que qualquer pessoa que se encontre em situação de insolvência possa pedir ao tribunal a respetiva declaração, sem necessidade de se dirigir à Segurança Social e sem estar dependente de prévia decisão desta entidade, nem das exigências e formalidades exigidas na Lei 34/2004, de 29/07, que contém as normas gerais reguladoras do acesso ao direito e aos tribunais.
Improcede, deste modo, o recurso do devedor/insolvente B….
Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, consequentemente confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.
Sumário:
.............................................................
.............................................................
.............................................................

Porto, 24.9.2018
Augusto de Carvalho
Carlos Gil
Carlos Querido