Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
613/19.7GDVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO COSTA
Descritores: CRIME DE MAUS TRATOS
ANIMAL CANINO
PRINCÍPIO "IN DUBIO PRO REO"
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
PROVAS EVIDENTES
CÃO DE CAÇA
ANIMAL DE COMPANHIA
Nº do Documento: RP20220928613/19.7GDVFR.P1
Data do Acordão: 09/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: CONCEDER TOTAL PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO.
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I – A decisão recorrida revela que o Tribunal “a quo” ficou em dúvida quanto ao reflexo da prova produzida no sentido a atribuir à factualidade provada e não provada, concretamente que ficou na dúvida se devia ter dado como provada ou como não provada a matéria de facto aqui impugnada, reconhecendo que a prova produzida só podia ter conduzido a tal estado de dúvida.
II – Todavia, a decisão proferida pelo Tribunal a quo, perante a diversidade de hipotéticos cenários de ocorrência dos factos em resultado da prova produzida, regra dos julgamentos, não podia implicar um estado de dúvida, que não se justificava, por contrariar as regras da experiência e, ademais, por ser ainda alicerçado em razões que não são entendíveis, nem admissíveis.
III – Um canídeo pode desempenhar uma função dupla de cão de caça e de animal de companhia.
IV – Um animal pode considerar-se de companhia se apenas frequentar parte de um espaço que integre a zona habitacional, como é caso de um anexo de uma habitação, nutrindo-se por ele grande afeto e convivendo com ele.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 613/19.7GDVFR.P1

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito do Processo Comum Singular, a correr termos no Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira-Juiz 1, por sentença, foi decidido:
«A) Absolver a arguida AA da prática em autoria material, na forma consumada, como dolo directo de um crime de maus tratos a animais de companhia, p.e.p. pelo artigo 387º, n º 1 e nº 2 do Código Penal;
B) Julgar o pedido de indemnização civil improcedente por não provado e em consequência absolver a demandada AA do pedido;(…)
*
Inconformado, o M.P. interpôs recurso, solicitando a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que condene a arguida da prática do crime pelo qual foi acusado apresentado nesse sentido as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):

«1) Vem o presente recurso interposto da sentença que absolveu a arguida AA da prática de um crime de maus tratos a animais de companhia, p. e p. pelo artigo 387.º, n.º 1 e 2, do Código Penal.
2) Circunscreve-se o objeto do recurso à impugnação da matéria de facto da douta sentença proferida, concretamente no que se refere à autoria da factualidade, entendendo o recorrente Ministério Público existir erro de julgamento, por violação do princípio da livre apreciação da prova; consequentemente, o recurso também abrange matéria de Direito.
3) Foram incorretamente julgadas as alíneas a), b), c), d), e), f), g), h), i) e o) dos factos não provados, as quais deveriam e devem ser todas julgadas como provadas.
4) Mais deve ser aditado à matéria de facto provada o seguinte facto: “As lesões descritas em 8. e 10. são compatíveis com traumatismo craniano”.
5) Em suporte da pretensão de recurso do Ministério Público, são as seguintes as concretas provas que impõem decisão da matéria de facto diversa da recorrida:
a. o auto de notícia, de fls. 4 a 6;
b. declaração da Clínica Veterinária ... com descrição das lesões sofridas e a decisão de eutanásia, de fls. 16;
c. certidão negativa de notificação da arguida, em que dois militares da GNR declaram ter visualizado a arguida a “gesticular com uma foice que transportava na mão direita”, quando recusou assinar uma notificação, de fls. 77;
d. o interrogatório da arguida AA, passagens de minutos 04:30m a 08:00m, 09:20m a 10:30m, 11:05m a 14:00m, (da sessão de julgamento de 08/03/2022), do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática Media Studio, com referência à ata da sessão de julgamento de 08/03/2022, na qual se consignou que o seu início ocorreu pelas 14 horas e 48 minutos e o seu termo pelas 15 horas e 09 minutos.
e. as declarações do demandante BB, passagens de minutos 26:00m a 30:05m e 33:00m a 35:30m (da sessão de julgamento de 08/03/2022), do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática, com referência à ata da sessão de julgamento de 08/03/2022, na qual se consignou que o seu início ocorreu pelas 15 horas e 10 minutos e o seu termo pelas 15 horas e 53 minutos.
f. as declarações da testemunha CC, passagem de minutos 08:50m a 09:55m (da sessão de julgamento de 08/03/2022), do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática, com referência à ata da sessão de julgamento de 08/03/2022, na qual se consignou que o seu início ocorreu pelas 16 horas e 09 minutos e o seu termo pelas 16 horas e 19 minutos.
g. as declarações da testemunha DD, passagem de minutos 04:05m a 05:45m (da sessão de julgamento de 08/03/2022), do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática, com referência à ata da sessão de julgamento de 08/03/2022, na qual se consignou que o seu início ocorreu pelas 16 horas e 20 minutos e o seu termo pelas “14 horas e 30 minutos” (sic, ata de 08/03/2022).
6) Da análise destes meios probatórios, que ficou feita na Motivação e para onde se remete, resulta que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, por incorreta avaliação e valoração da prova e ofensa irreparável das regras da experiência comum, omitindo a apreciação de prova indireta ou indiciária, afastando-se e violando os critérios da livre apreciação, tal como estão prescritos no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
7) A arguida teve a oportunidade, os meios e motivo para infligir a agressão ao animal que provocou as lesões descritas nos factos provados n.º 8 e 10, na medida em que:
a. o cão entrou no terreno da arguida sem qualquer lesão;
b. esteve durante um período temporal curto na presença da arguida, o que foi admitido pela própria;
c. a arguida não gostou de ver o animal invadir o seu terreno e mostrou-se “aflita” e apavorada;
d. neste ínterim, o canídeo ganiu, o que foi ouvido pelo dono - facto provado n.º 7;
e. não existia qualquer outra pessoa no terreno em contacto com o cão, o que também foi admitido pela arguida;
f. uma vassoura não era suscetível de provocar as lesões dadas como provadas quando o animal foi encontrado inanimado no terreno contíguo à casa da arguida – factos 8 e 10;
g. tais lesões resultaram de traumatismo causado por objeto contundente e também não poderiam ser provocadas por qualquer chapas metálicas que se encontravam no terreno da arguida;
h. a arguida tinha na sua posse uma sachola com uma extremidade pontiaguda, entre outros utensílios.
8) Considerando todos estes elementos indiciários, é de excluir a intervenção de outrem que não a arguida AA na provocação das lesões no animal.
9) As lesões constatadas nos factos provados n.º 8 e 10 não surgiram do nada e, atenta a sua descrição, localização, contundência e natureza, têm explicação em ato de terceiro; por manifesta exclusão de partes e inferência lógica, esse terceiro só pode ser a arguida.
10) A partir dos indícios/factos – o cão entrou sem lesões no terreno da arguida; esteve na presença exclusiva desta, que não tolerou a invasão e tinha objeto contundente (utensílio agrícola pontiagudo); neste ínterim, o cão ganiu; as lesões, com perfuração no focinho com objeto pontiagudo – é legítimo e lógico inferir que, não havendo outra pessoa no terreno, nem sendo possível tais lesões serem provocadas por quaisquer outros objetos, a arguida foi a autora das agressões.
11) No caso em apreço, não existe ambiguidade nos indícios, nem a inferência obtida a partir deles é ilógica ou de tal modo ampla que, em si mesma comporte, uma tal pluralidade de conclusões alternativas ao ponto de nenhuma delas poder dar-se por provada.
12) Acresce que, na ausência de prova direta, o Tribunal pode e deve efetuar inferências lógicas a partir de factos conhecidos, usando das regras das presunções naturais e da experiência comum, não devendo limitar-se ao diretamente dito/visto ou não dito/não visto pelas testemunhas em audiência de julgamento ou conformar-se com a mera existência de duas versões ou com a constatação do interesse na causa por parte de algum ofendido.
13) Nos termos do disposto no artigo 431.º, alínea b), do Código de Processo Penal, pode e deve a Relação modificar a decisão recorrida no sentido propugnado nas antecedentes conclusões e na motivação, para a qual se remete.
14) Os elementos subjetivos do crime (cf. alíneas g), h) i) dos factos não provados), incluindo a atuação voluntária e livre determinação do agente, têm de ser extraídos da demais factualidade, sendo o estado interior da arguida resultante a partir de inferência das regras da experiência e da normalidade.
15) Sendo essa, como se espera, a decisão deste Venerando Tribunal, resulta claríssimo que a arguida tem de ser condenada pela prática de um crime de maus tratos a animais de companhia, p. e p. pelo artigo 387.º, n.º 1 e 2, do Código Penal, com aplicação de uma pena em conformidade com os critérios previstos nos artigos 40.º, 70.º e 71.º do mesmo diploma.
16) Atendendo às necessidades de prevenção geral (nível médio-elevado) e de prevenção especial (mediano), atendendo à ausência de antecedentes criminais e aos critérios de determinação da pena, releva-se ainda adequada a aplicação de uma pena de multa, entendendo-se como justa e adequada uma pena concreta entre 200 e 240 dias de multa e a fixação de um montante diário entre €5,00 e €6,00.
17) Foram violados, incorretamente interpretados e aplicados os artigos 127.º do Código de Processo Penal e 387.º, n.º 1 e 2, do Código Penal.»
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A arguida não apresentou resposta ao recurso.
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Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer onde acolheu a posição do Ministério Público, pugnando pela procedência total do recurso.
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É do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados e respetiva motivação (transcrição):
«
A) FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A.1) FACTOS PROVADOS
Com interesse para a boa decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
1. Desde 28/02/2014 que BB era proprietário e detentor de um animal canídeo, do sexo masculino, de raça podengo, de cor vermelha e branca, de nome “Scott”.
2. O referido animal residia com o seu dono, BB, em anexo à residência deste, sita em Rua ..., ....
3. No dia 13/07/2019, pelas 10h30, BB abriu o canil onde se encontrava o “Scott” para proceder à sua limpeza daquele.
4. Aproveitando distração do dono, o Scott fugiu, seguindo BB no seu encalce.
5. BB decidiu não entrar no terreno situado nas traseiras da residência da arguida AA de imediato, por não ser de sua propriedade e não lhe ter sido dada autorização.
6. Não obstante o referido em 5., BB chamou incessantemente pelo animal, em tom de voz elevado e perfeitamente audível a dezenas de metros.
7. BB ouviu o canídeo a ganir e porquanto, apesar dos chamamentos de BB, o canídeo não regressasse e porque a arguida não abriu a porta da sua residência ao BB, temendo que o Scott estivesse severamente ferido,
8. penetrou no terreno referido em 5. e encontrou o canídeo no interior daquele terreno, praticamente inanimado, com o crânio furado em dois sítios e coberto de sangue, por baixo de umas chapas metálicas.
9. De imediato BB prestou socorro ao animal, tendo transportado o mesmo para a Clínica Veterinária ....
10. Aquando do referido em 9. Scott este apresentava-se politraumatizado, com lacerações na região orbitária, nasal e no membro anterior direito. Mais apresentava estado mental alterado, em decúbito lateral, com presença de epistaxe, anisocoria, sem reflexo pupilar à luz bilateral e reflexo de ameaça ausente, traumatismo craniano, membro anterior direito fraturado na região distal e taquicardia.
11. Perante a gravidade das lesões referidas em 10., não sendo provável a sua sobrevivência, foi o Scott eutanasiado naquela mesma data, 13/07/2019.
12. Até à eutanásia e perante o referido em 10. o Scott padeceu de sofrimento.

Mais se provou que:
13. Não havia qualquer marca de sangue no local.
14. Scott logo após o seu nascimento começou a ser ensinado pelo demandante para a caça.
15. A raça podengo está destinada para a caça, tendo o demandante durante anos despendido horas em treinos com o animal,
16. tendo providenciado por vacinas, licenças e seguros,
17. Scott era um exímio cão de caça.
18. Scott encontrava-se registado na Junta de Freguesia ..., sendo o demandante possuidor de livrete do mesmo.
19. O demandante nutria pelo Scott afeição muito grande, acompanhando o demandante em fins de semana quando decidia praticar a caça.
20. O demandante era e é caçador.
21. O demandante sofreu desgosto com a morte do Scott.
22. O facto de o demandante ter acompanhado as últimas horas de vida do canídeo, vivenciando o sofrimento que o mesmo passou até ao momento de ser eutanasiado criou no demandante desgosto e sentimento de perda, angústia, frustração e inquietação.
23. O demandante despendeu na assistência hospitalar ao Scott €65,70.
24. A arguida tem a 4.ª classe, não desempenha actividade profissional, vive sozinha em casa própria, vivendo da ajuda de familiares e do cultivo.
25. A arguida não tem antecedentes criminais.

A.2) FACTOS NÃO PROVADOS
a) Após o referido em 4., o Scott saltou um muro para um terreno situado nas traseiras da residência da arguida AA.
b) No local referido em 5. encontrava-se a arguida, que foi visualizada por BB.
c) Nessa altura, BB proferiu as seguintes expressões dirigidas para a arguida: “Não me mates o cão que eu pago qualquer estrago que ele faça”.
d) Não obstante ter ouvido BB, motivada por razões não apuradas, a arguida muniu-se de objecto não concretamente apurado, mas presumivelmente uma sachola, abeirou-se do canídeo e desferiu-lhe, com tal objecto, várias pancadas no focinho, pernas e corpo.
e) O referido em 7. ocorreu na sequência do referido em d) e foi audível pela vizinhança.
f) O referido em 12. ocorreu desde o referido em d).
g) A arguida actuou de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito de maltratar, molestar física e psicologicamente e tirar a vida ao animal de raça canina do ofendido, com recurso a objecto perfurante, indiferente ao facto de ser um animal senciente, de lhe causar lesões mortais, sem qualquer motivo, provocando-lhe dor física e psicológica e a sua morte.
h) A arguida ao espancar o canídeo com objecto perfurante, admitiu como altamente provável que da sua conduta viesse a resultar a morte do animal, como se verificou, resultado que pretendeu e com o qual se conformou.
i) A arguida bem sabia ainda que tal animal era doméstico, pertença do ofendido BB, que agiu contra a vontade deste, e que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
j) O Scott nasceu no canil que o demandante possui na sua habitação.
k) Scott era cão de companhia do demandante no dia a dia na sua habitação e agregado familiar.
l) O referido em 21. ocorreu desde o referido em d).
m) Um caníneo da raça Podengo chega a ultrapassar os €3.000,00.
n) O Scott atacou e matou animais que se encontravam no terreno da arguida.
o) A arguida estava apavorada e com medo que o cão a atacasse.
p) A arguida apenas ficou a observar o canídeo à distância.
q) O canídeo andava tresloucado e desvairado a tentar apanhar os animais da arguida.
r) O terreno da arguida é aberto e não tem qualquer portão.
s) O canídeo saiu sozinho do terreno da arguida.
t) A arguida tem elevada estima e gosto por animais.

O mais constante da acusação, pedido de indemnização cível e contestação, não consta da decisão supra por se tratar de matéria, genérica, conclusiva, de direito ou sem interesse para a boa decisão da causa.
*
A.3) MOTIVAÇÃO
Nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador.
Assim, enunciados os factos, cumpre apreciar criticamente as provas, não bastando uma mera enumeração dos meios de prova, sendo necessária “ a explicitação do processo de formação da convicção do Tribunal” - cfr. Ac. TC nº680/98, de 02.12, in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19980680.html, por forma a resultar claro para os destinatários a compreensão do porquê da decisão e do processo lógico - mental que permitiu alcançar a decisão proferida.
Na fixação da matéria de facto o Tribunal atendeu de forma crítica, conjugada e concatenada à prova produzida.
Concretizando,
Quanto à prova relacionada à propriedade, nome, raça, características do canídeo e local de residência, fuga do animal e postura do demandante quanto à sua relutância em entrar no terreno e razões associadas, a convicção do Tribunal assentou nas declarações do demandante conjugadas com os documentos de fls. 8 a 15 e no qual ademais se fez fé, na medida em que não contrariado por outra prova, bem assim considerando o auto de notícia no quer respeita à data da ocorrência.
Para prova do facto relacionado com o chamamento do animal o Tribunal teve em consideração uma vez mais as declarações do demandante, na medida em que conjugadas com o depoimento da testemunha CC, na qual pela razão de ciência invocada se fez fé.
Os factos constantes em 7. e 8. resultaram provados tendo em conta uma vez mais as declarações do demandante, no qual se fez fé neste estrito particular, conjugadas com os depoimentos das testemunhas CC e DD – na parte em que descreveram o estado em que o animal se encontrava – e, bem assim, porquanto conformes às regras da experiência, sendo crível – considerando situações de natureza similar – que, encontrando-se o animal com as lesões descritas por demandante e testemunhas e constantes de fls. 16, haja o mesmo ganido, tendo o demandante nessa sequência adoptado o comportamento dado por provado.
Para prova da assistência hospitalar ao canídeo e valor que tal importou a convicção do Tribunal assentou uma vez mais nas declarações do demandante, críveis neste estrito particular na medida em que corroboradas pelos documentos de fls. 16 e 127, bem assim se socorrendo do doc. de fls. 16 para dar como provadas as lesões constantes em 10. dos factos provados e o resultante em 11., sendo que o constante em 12. resultou por apelo às regras da experiência e da livre apreciação, por ser compatível com a normalidade do acontecer em situações de natureza similar.
O facto constante em 13. resultou provado por apelo ao depoimento da testemunha EE, militar da GNR, no qual atentas as funções desempenhadas e a razão de ciência invocada se fez fé, conjugado nesta parte com o teor do auto de notícia de fls. 4 a 6, o qual faz fé em juízo quanto aos factos directamente percepcionados pela entidade documentadora –cfr. art. 169.º CPP e 363.º n.º2 CC.
No que respeita aos factos relacionados com o treino do animal, licenças, vacinas, seguros, actividade de caçador do demandante, registo e livrete do animal, sentimentos nutridos pelo demandante e os experienciados com as lesões que o canídeo sofreu e morte do mesmo o Tribunal teve em consideração mais uma vez as declarações do demandante, críveis neste estrito particular, ademais corroboradas pelos documentos de fls. 8 a 15.
Para prova dos factos relativos às condições sócio económicas da arguida, o Tribunal teve em consideração as suas declarações, nas quais fez fé neste estrito particular, não se vendo que neste circunspecto o mesmo tivesse qualquer interesse em faltar à verdade e não se vêm contrariadas por outra prova.
Quanto à ausência de antecedentes criminais, o Tribunal socorreu-se do CRC.

Os factos não provados resultaram assim em face de falta, insuficiência de prova e/ou prova produzida em sentido contrário.
Com efeito, resultaram da prova produzida duas versões quanto à imputação dos factos: por um lado, a trazida pela arguida negando a prática dos factos imputados; por outro a trazida pelo demandante.
Ora, não se pode perder de vista que tanto arguida como demandante têm manifesto interesse no desfecho da acção.
Por outro lado, nenhuma das testemunhas inquiridas revelou conhecimento acerca da concreta factualidade imputada à arguida.
Tudo o mais quanto foi referido pelas testemunhas DD e CC é meramente circunstancial, não permitindo ao Tribunal a conclusão de que a arguida foi autora da factualidade imputada e danos causados no animal, ainda que a arguida tenha admitido ter estado na presença do mesmo. Acresce que se percepcionou nas testemunhas DD e CC alguma hostilidade para com a arguida, o que não abona à sua isenção, imparcialidade e credibilidade.
Soma-se a isto o facto de os militares da GNR não terem encontrado quaisquer ferramentas agrícolas no terreno da arguida ou vestígios de sangue.
Ora, a versão do demandante, por si só, não basta para prova da factualidade imputada, tanto mais que o mesmo sequer viu a arguida a praticar os factos imputados, apenas referindo ter ouvido a sua voz.
A factualidade não provada no que respeita à autoria dos factos pela arguida e factos respeitantes ao elemento subjectivo e conexão às lesões sofridas pelo animal, resulta por isso, em virtude de o Tribunal se deparar com uma dúvida insanável quanto à mesma. Dúvida essa, que ao abrigo do princípio in dubio pro reo, tem necessariamente ser julgada em benefício da arguida.
Com efeito, acompanhando a jurisprudência, designadamente do STJ, entende-se que “O princípio in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto (…)” – Ac. STJ de 03.12.2009, P.07P1769, in www.dgsi.pt.
De facto, não pode o Tribunal concluir com absoluta certeza e sem margem para dúvida que a arguida tenha praticado os factos imputados.
Face a tal circunstância, a prova não permite, como referido, ultrapassar a dúvida insanável em que o Tribunal se encontra relativamente à factualidade não provada neste particular, a qual, como referido terá de ser decidida em favor da arguida.”
*
II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso, embora de forma pouco precisa e algo confusa, são:

- Erro de julgamento na apreciação da prova;
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Vejamos.
Inexistem quaisquer vícios do art. 410º, n º 2 do CPP.
Erro de julgamento na apreciação da prova
Segundo o recorrente na sua motivação, em causa está a apreciação e valoração da prova oral produzida em audiência, a qual, conjugada com a prova documental registo clínico veterinário, concorreria no sentido de permitir formar a convicção no sentido de decisão condenatória, devendo dar-se como provadas as als. a), b), c), d), e), f), g), h), i) e o) dos factos não provados e aditar-se à matéria de facto provada que “ As lesões descritas em 8. E 10. São compatíveis com traumatismo craniano.

Resulta do texto do art. 412.º, n.º 3, do CPPenal que não é uma qualquer divergência que pode levar o Tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto.
As provas que o recorrente invoque e a apreciação que sobre as mesmas faça recair, em confronto com as valoradas pelo Tribunal a quo, ou melhor, com a valoração que esse Tribunal efetuou, devem revelar que os factos foram incorretamente julgados e que se impunha decisão diversa da recorrida em sede do elenco dos factos provados e não provados.
Ou seja, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo Tribunal a quo. Na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstrato, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios.
Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.
É necessário que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido à solução por si pugnada em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada e não à consignada pelo Tribunal.
E na análise da prova que apresenta na sua impugnação da matéria de facto (alargada) tem o recorrente de argumentar fazendo uso do mesmo raciocínio lógico e exame crítico que se impõe ao Tribunal na fundamentação das suas decisões, com respeito pelos princípios da imediação e da livre apreciação da prova.

Esta ideia sobressai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-11-2017, onde se afirmou[2]:
«I - Há uma dimensão inalienável consubstanciada no princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º, do CPP. A partir de um raciocínio lógico feito com base na prova produzida afigura-se, de modo objectivável, ter por certo que o arguido praticou determinados factos. Exige-se não uma certeza absoluta mas apenas e só o grau de certeza que afaste a dúvida razoável, a dúvida suscitada por razões adequadas. O que há-de ser feito mediante uma «valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e das máximas da experiência comum».
II - Percorrido este caminho na fundamentação, a impugnação dos factos há-de ser feita com a indicação das concretas provas que imponham decisão diversa da recorrida sob pena de tal impugnação redundar em mera discordância acerca da apreciação da prova desses mesmos factos, respeitável decerto, mas sem consequências de índole processual.»

E esta posição está igualmente associada à ideia – que é preciso não perder de vista – de que o reexame da matéria de facto não de destina a realizar um segundo julgamento pelo Tribunal da Relação, mas tão-somente a corrigir erros de julgamento em que possa ter incorrido a 1.ª Instância.
Neste sentido, que é pacífico, decidiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-09-2017[3]:
«I - O reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso não constitui, salvo os casos de renovação da prova, uma nova ou uma suplementar audiência, de e para produção e apreciação de prova, sendo antes uma actividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento – art. 412.º, n.º 2, als. a) e b), do CPP.
II - O recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida.
III - O n.º 2 do art. 374.º do CPP, não é directamente aplicável às decisões proferidas, por via de recurso, pelos tribunais superiores, mas só por via de aplicação correspondente do art. 379.º (ex vi artigo 425.º, n.º 4), razão pela qual aquelas decisões não são elaboradas nos exactos termos previstos para as sentenças proferidas em 1.ª instância, uma vez que o seu objecto é a decisão recorrida e não directamente a apreciação da prova produzida na 1.ª instância, e que embora os Tribunais de Relação possam conhecer da matéria de facto, não havendo imediação das provas o tribunal de recurso não pode julgar nos mesmos termos em que o faz a 1.ª instância.
IV - Em matéria de reexame das provas, o tribunal de recurso apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou correctamente aquelas, razão pela qual se entender que a valoração e apreciação feitas se mostram correctas se pode limitar a aderir ao exame crítico efectuado pelo tribunal recorrido.»
Porém, tal apreciação só pode ocorrer dentro dos limites estabelecidos pelo próprio recorrente, no cumprimento do ónus de impugnação especificada, que lhe é imposto pelos nºs 3 e 4 do artigo 412º.
Assim, se o recorrente pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, tem de especificar:
- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, individualizando-os, em face do texto da sentença (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário …, 2ª edição, pg. 1131);
- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, indicando especificamente as provas que impõem decisão diversa da proferida e relacionando o seu conteúdo específico com os factos que considera incorretamente julgados (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, ob. loc. cit.).

Tratando-se de prova gravada, para cumprir o ónus de impugnação especificada, o recorrente deve indicar as concretas passagens dos registos gravados que imponham decisão contrária à proferida, transcrevê-las e relacionar o seu conteúdo específico com os factos que ele entende terem sido incorretamente julgados, explicitando as razões pelas quais considera que aquelas provas impõem decisão diversa da recorrida.
No caso em apreço – examinadas as conclusões do recurso e a respetiva motivação – verifica-se que o recorrente especifica adequadamente os pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, esgrimindo razões para a invocação de erro de apreciação das provas produzidas em audiência, transcrevendo as passagens do registo gravado das declarações e depoimentos que, na sua ótica, imporiam decisão diferente.
Estriba-se também nos documentos registos clínicos.
Imporá a análise da prova versão distinta da encontrada pelo tribunal a quo?
Este a respeito tribunal a quo motivou da seguinte maneira: “Os factos não provados resultaram assim em face de falta, insuficiência de prova e/ou prova produzida em sentido contrário.
Com efeito, resultaram da prova produzida duas versões quanto à imputação dos factos: por um lado, a trazida pela arguida negando a prática dos factos imputados; por outro a trazida pelo demandante.
Ora, não se pode perder de vista que tanto arguida como demandante têm manifesto interesse no desfecho da acção.
Por outro lado, nenhuma das testemunhas inquiridas revelou conhecimento acerca da concreta factualidade imputada à arguida.
Tudo o mais quanto foi referido pelas testemunhas DD e CC é meramente circunstancial, não permitindo ao Tribunal a conclusão de que a arguida foi autora da factualidade imputada e danos causados no animal, ainda que a arguida tenha admitido ter estado na presença do mesmo. Acresce que se percepcionou nas testemunhas DD e CC alguma hostilidade para com a arguida, o que não abona à sua isenção, imparcialidade e credibilidade.
Soma-se a isto o facto de os militares da GNR não terem encontrado quaisquer ferramentas agrícolas no terreno da arguida ou vestígios de sangue.
Ora, a versão do demandante, por si só, não basta para prova da factualidade imputada, tanto mais que o mesmo sequer viu a arguida a praticar os factos imputados, apenas referindo ter ouvido a sua voz.
A factualidade não provada no que respeita à autoria dos factos pela arguida e factos respeitantes ao elemento subjectivo e conexão às lesões sofridas pelo animal, resulta por isso, em virtude de o Tribunal se deparar com uma dúvida insanável quanto à mesma.
Dúvida essa, que ao abrigo do princípio in dubio pro reo, tem necessariamente ser julgada em benefício da arguida.
Com efeito, acompanhando a jurisprudência, designadamente do STJ, entende-se que “O princípio in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto (…)” – Ac. STJ de 03.12.2009, P.07P1769, in www.dgsi.pt.
De facto, não pode o Tribunal concluir com absoluta certeza e sem margem para dúvida que a arguida tenha praticado os factos imputados.
Face a tal circunstância, a prova não permite, como referido, ultrapassar a dúvida insanável em que o Tribunal se encontra relativamente à factualidade não provada neste particular, a qual, como referido terá de ser decidida em favor da arguida”.

Ocorre que este Tribunal ouviu a prova indicada bem como a restante para ficar com uma visão global dos factos e não podemos concluir como o fez a Srª. juiz a quo.
De facto, as regras da experiência comum levam-nos a ter redobrados cuidados nos depoimentos de quem é muito próximo da arguida e do demandante e ter em conta o tipo de relações existentes entre arguida e demais testemunhas. Contudo todo o contexto global da prova leva-nos à evidência de que foi feita uma errada valoração da prova.
Claramente, do nosso ponto de vista, a arguida mentiu e apresentou um discurso incoerente com a evidência dos factos apurados.

Vejamos em pormenor.
O tribunal a quo referiu ter dúvidas e por isso deu como não provado que a arguida desferiu pancadas no focinho e corpo do canídeo “Scott”, mediante a utilização de utensílio agrícola contundente que tinha à sua disposição, as quais, mediante o sofrimento,
determinaram a decisão médica de proceder à eutanásia do animal.
Concretizando o funcionamento do princípio in dubio pro reo à luz da dúvida razoável, afirma-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27-02-2019[4]:

«Por último, o princípio in dubio pro reo constitui um princípio de direito relativo à apreciação da prova/decisão da matéria de facto. Princípio atinente ao direito probatório, como tal relevante em termos da apreciação da questão de facto e não na superação de qualquer questão suscitada em matéria de direito – cfr. entre outros Cavaleiro Ferreira, Direito Penal Português, 1982, vol. 1, 111, Figueiredo Dias Direito Processual Penal, p. 215, Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1967-1968, p. 58. Constituindo um princípio geral de direito (processual penal) cuja violação conforma uma autêntica questão-de-direito – Cfr. Medina Seiça, Liber Discipulorum, p. 1420; Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1974, p. 217 e segs.), criticando o entendimento contrário do STJ.
No entanto a dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética[5]. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável – neste sentido, Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (1966), p. 25.
Assim, mais do que uma limitação da livre convicção pela dúvida razoável, o critério da livre apreciação e o critério da dúvida razoável é idêntico, constituindo o cerne da decisão judicial sobre a prova do facto: a livre apreciação exige a convicção para lá da dúvida razoável; e o princípio in dubio pro reo impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável. Em ambos os casos, após a produção de toda a prova e da sua valoração em conformidade com os critérios de apreciação vinculada e, na falta deles, numa apreciação motivada, razoável, objectiva e racional.
Daí que somente quando, após a discussão da causa e da reflexão, exaustiva, sobre toda a prova produzida, apreciada de forma crítica, objectiva e racional, devidamente traduzida na motivação, persistem várias soluções razoáveis, é legítimo convocar o princípio in dubio pro reo. Também ele sujeito, não só à discussão em audiência, como ainda ao dever de fundamentação na sentença, como ainda, materialmente, à razoabilidade da dúvida perante mais do que uma perspectiva admissível. Somente quando após a produção e discussão de todos os meios de prova pertinentes e da sua apreciação à luz dos critérios legais em vigor, permanece mais do que uma perspectiva probatória razoável cabe invocar a dúvida razoável.»

Tendo presente estes princípios e critérios a que deve obedecer a avaliação da prova quando se suscita alguma dúvida quanto a factos desfavoráveis ao arguido, vejamos como falhou a análise levada a cabo pelo Tribunal a quo.

Tendo presente:
a. o auto de notícia, de fls. 4 a 6;
b. declaração da Clínica Veterinária ... com descrição das lesões sofridas e a decisão de eutanásia, de fls. 16;
c. certidão negativa de notificação da arguida, em que dois militares da GNR declaram ter visualizado a arguida a “gesticular com uma foice que transportava na mão direita”, quando recusou assinar uma notificação, de fls. 77;
d. o interrogatório da arguida AA, passagens de minutos 04:30m a 08:00m, 09:20m a 10:30m, 11:05m a 14:00m, (da sessão de julgamento de 08/03/2022), do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática Media Studio, com referência à ata da sessão de julgamento de 08/03/2022, na qual se consignou que o seu início ocorreu pelas 14 horas e 48 minutos e o seu termo pelas 15 horas e 09 minutos. e. as declarações do demandante BB, passagens de minutos 26:00m a 30:05m e 33:00m a 35:30m (da sessão de julgamento de 08/03/2022), do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática, com referência à ata da sessão de julgamento de 08/03/2022, na qual se consignou que o seu início ocorreu pelas 15 horas e 10 minutos e o seu termo pelas 15 horas e 53 minutos.
f. as declarações da testemunha CC, passagem de minutos 08:50m a 09:55m (da sessão de julgamento de 08/03/2022), do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática, com referência à ata da sessão de julgamento de 08/03/2022, na qual se consignou que o seu início ocorreu pelas 16 horas e 09 minutos e o seu termo pelas 16 horas e 19 minutos.
g. as declarações da testemunha DD, passagem de minutos 04:05m a 05:45m (da sessão de julgamento de 08/03/2022), do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática, com referência à ata da sessão de julgamento de 08/03/2022, na qual se consignou que o seu início ocorreu pelas 16 horas e 20 minutos e o seu termo pelas “14 horas e 30 minutos” (sic, ata de 08/03/2022), impor-se-ia que o tribunal não tivesse dúvidas quanto à prática dos factos por parte da arguida.
O ponto de partida da imputação da factualidade sub judicio à arguida é o facto incontornável de o canídeo “Scott”, ao sair do canil do seu dono, ter entrado no terreno junto à casa da arguida AA, o que até decorre dos factos provados n.º 5 e 8.
Este facto é incontornável e resulta do teor das próprias declarações da arguida e do demandante, proprietário do cão, com passagens acima referenciadas.
Também não pode haver dúvida de que a arguida esteve na presença do “Scott”, quando o mesmo se encontrava no seu terreno atrás das suas galinhas e coelhos, facto admitido pela própria arguida (cf. as suas declarações com passagens acima indicadas), circunstância da qual a sentença recorrida fez eco na fundamentação - cf. pág. 7.
Estão também dadas como provadas as lesões sofridas pelo animal – factos provados n.º 8 e 10.
Ora, atento o local e o curto espaço de tempo decorrido desde o momento em que o cão entrou no terreno da arguida e veio a ser encontrado pelo seu dono, tais lesões só podem ter sido provocadas enquanto esteve no aludido terreno.
Não pode colher a inverosímil explicação, fornecida pela arguida – a qual, sublinhe-se, nem foi acolhida pela decisão recorrida –, de que, estando “aflita” pela presença do cão no seu terreno, se encontrava a varrer o chão com uma vassoura e que apenas disse “xô, xô, xô”, nem sequer tocando no mesmo – cf. as passagens acima indicadas do interrogatório da arguida com referência ao suporte digital.
Também a existência de chapas em metal no terreno anexo à casa da arguida não explica nem, de modo algum, é suscetível de provocar as perfurações no focinho do animal, causadas necessariamente por um objeto contundente e direcionado a essa zona do corpo (ao ponto de lhe retirar um olho da órbita) – cf. as passagens acima indicadas do interrogatório da arguida.
É importante ter em consideração que o relatório de fls. 16 (da clínica veterinária) refere taxativamente que as lesões descritas e dadas como provadas no facto 10: “Estas alterações eram compatíveis com traumatismo craniano”.
O que, como se disse, contende com a causalidade das lesões verificadas e resultantes expressamente do teor de fls. 16.
A este respeito, afigura-se também incontornável que não pode corresponder à realidade a afirmação da arguida segundo a qual não detém em sua casa quaisquer utensílios ou ferramentas agrícolas, como enxada, foice ou outros, que pudessem ser utilizados para infligir as lesões que ficaram provadas.
É que:
- a arguida declarou dedicar-se e viver da agricultura;
- em condições de normalidade do acontecer, tal atividade implica necessariamente a posse de utensílios agrícolas para trabalhar a terra;
- na manhã dos factos, o demandante BB visualizou um “sacho” com “cabo em madeira” e uma ponta pontiaguda em metal numa das extremidades, junto à escadaria da casa da arguida, sendo que tal afirmação consta já do auto de notícia elaborado pela GNR – cf. em especial a passagem de 33:00m a 35:30m (da sessão de julgamento de 08/03/2022), do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática, com referência à ata da sessão de julgamento de 08/03/2022, na qual se consignou que o seu início ocorreu pelas 15 horas e 10 minutos e o seu termo pelas 15 horas e 53 minutos, conjugada com o auto de notícia de fls. 4 a 7.
- a testemunha CC, com a razão de ciência de ser vizinha da arguida, confirmou a dedicação da mesma à agricultura e declarou ter visto, em ocasiões anteriores, ferramentas agrícolas na posse da mesma, designadamente uma enxada – cf. passagem de minutos 08:50m a 09:55m (da sessão de julgamento de 08/03/2022), do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática, com referência à ata da sessão de julgamento de 08/03/2022, na qual se consignou que o seu início ocorreu pelas 16 horas e 09 minutos e o seu termo pelas 16 horas e 19minutos.
- a testemunha DD, também com a razão de ciência de ser vizinho da arguida, apesar de só ter visto o estado periclitante em que ficou o canídeo, confirmou que a mesma se dedica a trabalhar um terreno, tendo visto machado, forquilha e sachola, objetos sem os quais “não consegue lavrar” – cf. passagem de minutos 04:05m a 05:45m (da sessão de julgamento de 08/03/2022), do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática, com referência à ata da sessão de julgamento de 08/03/2022, na qual se consignou que o seu início ocorreu pelas 16 horas e 20 minutos e o seu termo pelas “14 horas e 30 minutos” (sic, ata de 08/03/2022).
A propósito das testemunhas CC e DD, refere a sentença recorrida ter percecionado “alguma hostilidade para com a arguida, o que não abona à sua isenção, imparcialidade e credibilidade”. Todavia, só a testemunha CC referiu não ter atualmente boas relações com a arguida. Ainda assim, do seu depoimento gravado apenas decorre que relatou o que viu (quase nada) e ouviu, daí não resultando qualquer imputação negativa para com a arguida, exceto a confirmação de que a mesma se dedica à agricultura e detém utensílios agrícolas.
De igual modo, o testemunho de DD também não aportou qualquer facto diretamente à arguida quanto aos factos perpetrados contra o animal; tão somente relatou que AA se dedica à agricultura e, naturalmente, é detentora de utensílios agrícolas.
Assim, afigura-se equívoca a referência a “alguma hostilidade” por parte destas testemunhas, de modo a poder-se dizer que ficou afetada a sua isenção e imparcialidade.
Neste contexto, perante a versão absolutamente incredível da arguida - não possuir qualquer utensílio agrícola -, e a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, é incontornável concluir que AA tinha à sua disposição objetos aptos a produzir os ferimentos no “Scott”, ainda que não apreendidos.
Deste modo, aquilo que dizem as testemunhas CC e DD não pode ser visto como meramente “circunstancial”, desprovido de valor indiciário, em conjugação com os demais elementos de prova dos autos.
A este respeito, há que atentar ao que consta a fls. 77, reportando-se a uma tentativa de notificação, em fase de inquérito: foi observado e ficou registado por dois militares da GNR em exercício de funções que a arguida lhes gesticulou com uma “foice que transportava na mão direita”, o que constitui utensílio agrícola.
Assim, não é decisiva a circunstância de, no dia dos factos (já pelas 14 horas, quando o episódio se reporta às 10.30 horas), a GNR não ter encontrado o objeto de agressão descrito naquele mesmo dia pelo dono do cão – cf. auto de notícia de fls. 4 a 6.
As lesões no canídeo “Scott” não surgiram do nada, nem são realidade sem qualquer explicação: têm de resultar de um estado de coisas anterior, necessariamente factual.
Pode concluir-se que a arguida teve a oportunidade, os meios e motivo para infligir a agressão ao animal que provocou as lesões descritas nos factos provados n.º 8 e 10, na medida em que:
a. o cão entrou no terreno da arguida sem qualquer lesão;
b. esteve durante um período temporal curto na presença da arguida, o que foi admitido pela própria;
c. a arguida não gostou de ver o animal invadir o seu terreno e mostrou-se “aflita”
e apavorada;
d. neste ínterim, o canídeo ganiu, o que foi ouvido pelo dono - facto provado n.º 7;
e. não existia qualquer outra pessoa no terreno em contacto com o cão, o que também foi admitido pela arguida;
f. uma vassoura não era suscetível de provocar as lesões dadas como provadas quando o animal foi encontrado inanimado no terreno contíguo à casa da arguida – factos 8 e 10;
g. tais lesões resultaram de traumatismo causado por objeto contundente e também não poderiam ser provocadas por quaisquer chapas metálicas que se encontravam no terreno da arguida;
h. a arguida tinha na sua posse uma sachola com uma extremidade pontiaguda, entre outros utensílios.
Considerando todos estes elementos indiciários, é de excluir a intervenção de outrem que não a arguida AA na provocação das lesões no animal.
Tomando em linha de conta estes elementos, correlacionados e conjugados com a manifesta inverosimilhança da versão da arguida (que, ainda assim, admitiu ter estado na presença do animal), significa proceder a uma análise global e integrada da prova produzida no presente processo, apreciando-a de acordo com as regras da experiência comum e da normalidade, em obediência ao regime do artigo 127.º do Código de Processo Penal.
De tudo isto, salvo o devido respeito, resulta o desacerto e erro de julgamento de se considerar que, em face da prova produzida, apenas por existirem duas versões – o que, em regra, ocorre sempre – ocorre uma dúvida insanável quanto à autoria dos factos pela arguida, factos respeitantes ao elemento subjetivo e conexão com as lesões sofridas pelo animal.
As lesões constatadas no animal não surgiram do nada e, atenta a sua descrição, localização, contundência e natureza, têm explicação em ato de terceiro.
Esse terceiro, por manifesta exclusão de partes e inferência lógica, só pode ser a arguida, que desferiu pancadas com objeto contundente no focinho e no corpo do animal, provocando as lesões descritas nos factos provados n.º 8 e 10.
É um facto que inexiste prova direta, na medida em que nenhuma testemunha declarou ter visto a arguida infligir os golpes no focinho e corpo do animal.
Nesta sequência, resta atender à prova indireta, a qual assenta na inferência efetuada a partir do indício, permitindo suportar um facto distinto, com apoio nas regras da experiência:
- os indícios/factos – o cão entrou sem lesões no terreno da arguida; esteve na presença exclusiva desta, que não tolerou a invasão e tinha objeto contundente (utensílio agrícola pontiagudo); neste ínterim, o cão ganiu; as lesões, com perfuração no focinho com objeto pontiagudo;
- a presunção de que, não havendo outra pessoa no terreno nem sendo possível tais lesões serem provocadas por quaisquer outros objetos, foi a arguida a autora das agressões infligidas no animal.
No caso em apreço, não existe ambiguidade nos indícios, nem a inferência obtida a partir deles é ilógica ou de tal modo ampla que, em si mesma, comporte uma tal pluralidade de conclusões alternativas ao ponto de nenhuma delas poder dar-se por provada.
Acresce que o Tribunal pode e deve efetuar inferências lógicas a partir de factos conhecidos, usando das regras das presunções naturais e da experiência comum, não devendo limitar-se ao diretamente dito/visto ou não dito/não visto pelas testemunhas em audiência de julgamento ou conformar-se com a mera existência de duas versões ou com a constatação do interesse na causa por parte de algum ofendido.
É que, além da prova direta, há que ter em consideração a prova indireta, porquanto, na apreciação e valoração da prova, a lei admite que o juiz recorra a regras da experiência ou presunções judiciárias, em ordem a extrair de factos conhecidos um outro ou outros sobre os quais se não fez prova direta – cf. artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Como se refere numa recente síntese jurisprudencial “[s]e exigíssemos que se fizesse a todo o custo prova direta, sem ter em conta que a vida não é absolutamente concreta, mas conjuga-se para existir no seu todo, estaríamos condenados ao fracasso do processo penal não havendo confissão, não havendo testemunhas presenciais, não haveria prova”.
Se os indícios servem para, sendo fortes, levar alguém a julgamento prevendo seguramente uma condenação, então há que conjugar todos os indícios com todas as provas, todas as circunstâncias conhecidas e provadas a partir das quais, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão, firme, segura e sólida de outro facto. Induzir, e deduzir é um exercício de análise que se consegue a partir de indícios, observados e conjugados como prova documental e testemunhal, ou/e outra.
Não podemos esquecer que, na apreciação e valoração da prova, a lei admite que o juiz recorra a regras da experiência ou presunções judiciárias, em ordem a extrair de factos conhecidos um outro ou outros sobre os quais se não fez prova directa – art. 127 do CPP”. cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29-09-2021 (proc. 96/19.1GFVFX.L1-3), relatora Adelina Barradas de Oliveira, disponível em www.dgsi.pt.
Também a título exemplificativo, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 03-02-2015 (proc. 485/09.0GEALR.E1), relator Alberto Borges, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário é útil reter o seguinte: “I - Nada obsta a que a convicção do tribunal se forme apenas com base no depoimento de uma única testemunha, ainda que essa testemunha seja a ofendida ou parte cível, desde que o seu relato, atentas as circunstâncias e modo como é prestado, mereça credibilidade ao tribunal.
II - A prova dos factos não tem que assentar, necessariamente (e muitas vezes assim não acontece, designadamente quando ocorrem no ambiente familiar), em prova direta, em depoimentos de testemunhas presenciais, podendo assentar na chamada prova indireta ou por presunção, ou seja, em indícios ou circunstâncias conhecidas e provadas - no caso, a demais factualidade dada como provada, no que respeita ao controlo que o arguido exercia sobre a ofendida e circunstâncias como a controlava - que, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, permita a conclusão segura e sólida de outro facto, como sua consequência necessária.”
Na verdade, “[h]á que não diabolizar a prova indirecta sob pena de frustrar a perseguição dos crimes em que apenas esta prova é possível e, consequentemente, deixar sem tutela os bens jurídicos por eles protegidos” Cf. Ana Brito, Livre apreciação da prova e prova indirecta, Curso de Temas de Direito Penal e de Processo Penal, ministrado pelo Centro de Estudos Judiciários no âmbito da Formação Contínua, maio de 2013.
Como refere o Ac. da RP de 2/01/2015, da Exm.ª Relatora Maria dos Prazeres Silva, in site www.dgsi.pt, “…Perante a motivação de facto do acórdão recorrido importa assinalar que se julga indubitável que o tribunal não está vinculado à prova directa para alicerçar a sua convicção sobre a matéria de facto, sendo-lhe permitido socorrer-se para o efeito de presunções naturais, como, a propósito, salienta o Supremo Tribunal de Justiça: «Importam, neste âmbito, as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido. As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência; o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. (…) A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros». Logo, o julgador pode justificar a verificação de um facto, mesmo que não directa e imediatamente percepcionado pela prova testemunhal ou evidenciado por outros meios de prova, a partir de presunções naturais, importante é que a convicção se apoie em raciocínio lógico, objectivo e motivado, sem atropelo das normas da vivência comum.
No mesmo sentido vai o Ac. do mesmo Tribunal, de 18/03/2015, Exm.º Relator Neto de Moura, in www.dgsi.pt, onde é afirmado que “Se apenas a prova directa servisse para a condenação, estar-se-ia a abrir caminho à criação de amplos espaços de impunidade. … Quer a prova direta, quer a prova indireta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum. II – Em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do Cód. Proc. Penal), pelo que não pode ser excluída a prova por presunções (art. 349.º do Cód. Civil), em que se parte de um facto conhecido (o facto base ou facto indiciante) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum) recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro. III – O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e, para certos factos, como sejam os relativos aos elementos subjetivos do tipo (doloso ou negligente), não havendo confissão, a sua comprovação não poderá fazer-se senão por meio de prova indireta. IV – A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova direta (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência”.
No mesmo sentido quanto à valoração da prova indireta vai o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 27/05/2010, proc. nº 86/06.0GBPRD.P1.S1, relatado por Soares Ramos (sum. in www. dgsi.pt): «Encontra-se universalmente consagrado o entendimento, desde logo quanto à prova dos factos integradores do crime, de que a realidade das coisas nem sempre tem de ser directa e imediatamente percepcionada, sob pena de se promover a frustração da própria administração da justiça. Deve procurar-se aceder, pela via do raciocínio lógico e da adopção de uma adequada coordenação de dados, sob o domínio de cauteloso método indutivo, a tudo quanto decorra, à luz das regras da experiência comum, categoricamente, do conjunto anterior circunstancial. Pois que, sendo admissíveis, em processo penal, “… as provas que não foram proibidas pela lei” (cf. art. 125.º do CPP), nelas se devem ter por incluídas as presunções judiciais (cf. art. 349.º do CC). As presunções judiciais consistem em procedimento típico de prova indirecta, mediante o qual o julgador adquire a percepção de um facto diverso daquele que é objecto directo imediato de prova, sendo exactamente através deste que, uma vez determinado usando do seu raciocínio e das máximas da experiência de vida, sem contrariar o princípio da livre apreciação da prova, intenta formar a sua convicção sobre o facto desconhecido (acessória ou sequencialmente objecto de prova)».
É sabido que a exigência de “prova” sobre a ocorrência dos factos não é a mesma nas diferentes fases do processo. Enquanto para acusar importa a convicção do Ministério Público no sentido de uma indiciação suficiente, para pronunciar também a indiciação suficiente é bastante, enquanto que para a condenação importa a “prova”. Por indiciação suficiente entende-se a “possibilidade razoável” de ao arguido vir a ser aplicada, em razão dos meios de prova já existentes, uma pena ou medida de segurança; a “prova”, diferentemente, é a “certeza dos factos”.
Consequentemente, o juízo de prova que, in casu, deve ser realizado não é outro senão o que permite (ou não) chegar à referida certeza dos factos.
De resto, já vai distante o entendimento de que a prova indirecta, apenas porque o é, não é susceptível de fundamentar uma condenação, já que, na linha de Claus Roxin - Derecho Procesal Penal, Editores del Puerto, Buenos Aires, 2000, página 106 -''uma prova indiciária, em particular com meio probatórios materiais, pode, em certas circunstâncias, inclusivamente, proporcionar uma prova mais segura que as declarações das testemunhas do facto.'' Ac. TRG, de 19/01/2009, do Exmº Relator Cruz Bucho, in www.dgsi.pt)
Citando o Acórdão da Relação do Porto de 07.11.2007 proferido no processo JTRP00040734, disponível em www.dgsi.pt. – “O nosso ordenamento jurídico-penal entendeu não disciplinar especificamente as condições de operatividade da prova indiciária. Contudo, a aceitação da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, embora sendo uma convicção pessoal, (…) terá que ser sempre objectivável e motivável”.

Por último, como refere o Ac. da RL de 15-05-2018 (proc. nº 889/16.1PFSXL.L1-5) “A prova indirecta ou indiciária reporta-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova – presunções naturais.

A factualidade considerada provada pode não ter correspondência directa nos depoimentos concretos prestados em audiência de julgamento – as testemunhas não identificaram o arguido como um dos intervenientes – ou das declarações do arguido durante o inquérito, mas pode extrai-se da concatenação lógica dos elementos probatórios que mereceram a confiança do tribunal, alicerçando-se na verificação de uma relação de normalidade entre os indícios e a presunção que deles se extraiu, dando-se a conhecer na sentença sob censura de forma cristalina o raciocínio através do qual, partindo de tais indícios, se concluiu pela verificação dos factos objecto da crítica.

A convicção pode resultar de prova que, apreciada na globalidade, se mostra suficiente, valorada com razoabilidade e de acordo com um raciocínio lógico-dedutivo que não fere as regras da experiência comum, tendo sido os elementos apontados na sentença como relevantes para a decisão de facto coerentemente explanados.”

Tudo para concluir que, nos termos do disposto no artigo 431.º, alínea b), do Código de Processo Penal, se impõe a alteração da matéria de facto - alíneas a), b), c), d), e), f), g), h), i) e o) dos factos não provados -, nos termos acima aludidos, devendo todas elas passar a ser julgadas como provadas, no sentido da imputação da prática dos factos à arguida.
Também neste contexto, quanto à causalidade, mostra-se crucial para a boa decisão da causa aditar o seguinte facto à matéria dada como provada: “As lesões descritas em 8. E 10. são compatíveis com traumatismo craniano”.

Os elementos subjetivos do crime (cf. alíneas g), h) i) dos factos não provados), incluindo a atuação voluntária e livre determinação do agente, têm de ser extraídos da demais factualidade, sendo o estado interior da arguida resultante a partir de inferência das regras da experiência e da normalidade.
Posto isto, em função de tudo o que acima alegámos, concluímos portanto que as provas invocadas pelo tribunal a quo para dar como não provados os factos impugnados neste recurso impõem decisão diversa da recorrida.
Ao ficar numa situação de dúvida em relação à prática dos factos pela arguida, quando não devia ter ficado, o tribunal a quo violou o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, bem como o princípio in dubio pro reo.
Pelo que, impõe-se a modificação da decisão proferida na sentença recorrida sobre a matéria de facto impugnada neste recurso, dando-se a mesma como provada.

A decisão recorrida revela que o Tribunal a quo ficou em dúvida quanto ao reflexo da prova produzida no sentido a atribuir à factualidade provada e não provada, concretamente que ficou na dúvida se devia ter dado como provada ou como não provada a matéria de facto aqui impugnada, reconhecendo que a prova produzida só podia ter conduzido a tal estado de dúvida.
Todavia, a decisão proferida pelo Tribunal a quo, mostra-se incorreta atendendo às razões indicadas, sendo certo, como supramencionado, que a diversidade de hipotéticos cenários de ocorrência dos factos em resultado da prova produzida sendo a regra dos julgamentos neste caso não pode implicar um estado de dúvida, que no caso não se justifica e contraria as regras da experiência.
A justificação dada pelo Tribunal de julgamento das razões por que concluiu pela dúvida não são entendíveis e admissíveis. O Tribunal a quo deveria ter tido mais cuidado na concatenação e avaliação do conjunto da prova e contexto envolvente onde os factos ocorreram, concordando-se, pois, com a argumentação do recorrente.

Deve, pois dar-se como provados, retirando-os da matéria fáctica não provada:

“26) Após o referido em 4., o Scott saltou um muro para um terreno situado nas traseiras da residência da arguida AA.
27) No local referido em 5. encontrava-se a arguida, que foi visualizada por BB.
28) Nessa altura, BB proferiu as seguintes expressões dirigidas para a arguida: “Não me mates o cão que eu pago qualquer estrago que ele faça”.
29) Não obstante ter ouvido BB, motivada por razões não apuradas, a arguida muniu-se de objeto não concretamente apurado, mas presumivelmente uma sachola, abeirou-se do canídeo e desferiu-lhe, com tal objeto, várias pancadas no focinho, pernas e corpo.
30) O referido em 7. ocorreu na sequência do referido em d) e foi audível pela vizinhança.
31) O referido em 12. ocorreu desde o referido em d).
32) A arguida atuou de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito de maltratar, molestar física e psicologicamente e tirar a vida ao animal de raça canina do ofendido, com recurso a objeto perfurante, indiferente ao facto de ser um animal senciente, de lhe causar lesões mortais, sem qualquer motivo, provocando-lhe dor física e psicológica e a sua morte.
33) A arguida ao espancar o canídeo com objeto perfurante, admitiu como altamente provável que da sua conduta viesse a resultar a morte do animal, como se verificou, resultado que pretendeu e com o qual se conformou.
34) A arguida bem sabia ainda que tal animal era doméstico, pertença do ofendido BB, que agiu contra a vontade deste, e que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
35) A arguida estava apavorada e com medo que o cão a atacasse.

E aditar-se à matéria de facto provada que:
36) “As lesões descritas em 8. e 10. são compatíveis com traumatismo craniano”.
*
A arguida vem acusada da prática em autoria material, na forma consumada, com dolo direto de um crime de maus tratos a animais de companhia, p. e p. pelo artigo 387.º n.º 1 e n.º 2 do Código Penal.
Tendo presente que a data dos factos se situa em julho de 2019 estava vigente o disposto no artigo 387.º do C.P.
“Maus tratos a animais de companhia
1 - Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.
2 - Se dos factos previstos no número anterior resultar a morte do animal, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.
Aditado pelo seguinte diploma: Lei n.º 69/2014, de 29 de Agosto

Atualmente a redação dada pelo seguinte diploma: Lei n.º 39/2020, de 18 de Agosto é a seguinte: “Artigo 387.º
Morte e maus tratos de animal de companhia
1 - Quem, sem motivo legítimo, matar animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 2 anos ou com pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o limite máximo da pena referida no número anterior é agravado em um terço.
3 - Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 1 ano ou com pena de multa de 60 a 120 dias.
4 - Se dos factos previstos no número anterior resultar a morte do animal, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção, ou se o crime for praticado em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 6 meses a 2 anos ou com pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
5 - É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se referem os n.os 2 e 4, entre outras, a circunstância de:
a) O crime ser de especial crueldade, designadamente por empregar tortura ou ato de crueldade que aumente o sofrimento do animal;
b) Utilizar armas, instrumentos, objetos ou quaisquer meios e métodos insidiosos ou particularmente perigosos;
c) Ser determinado pela avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou por qualquer motivo torpe ou fútil.”
Donde resulta que, tendo presente o disposto no art. 387º, vigente à data da prática dos factos é concretamente mais favorável à arguida, pelo que será o regime a aplicar-lhe, cfr. disposto no art. 2º, n º 4 do Cód. Penal.
No que respeita ao bem jurídico protegido, segundo Teresa Quintela de Brito (em Crimes Contra Animais: os novos Projectos-Lei de Alteração do Código Penal, Anatomia do Crime, nº 4, Jul-Dez 2016, p. 104), cit Ac. TRE de 18.06.2019, P.90/16.4GFSTB.E1.E1, inwww.dgsi.pt, trata-se de “bem colectivo e complexo que tem na sua base o reconhecimento pelo homem de interesses morais directos aos animais individualmente considerados e, consequentemente, a afirmação do interesse de todos e cada uma das pessoas na preservação da integridade física, do bem-estar e da vida dos animais, tendo em conta uma inequívoca responsabilidade do agente do crime pela preservação desses interesses dos animais por força de uma certa relação actual (passada e/ou potencial) que com eles mantém.
Em causa está uma responsabilidade do humano, como indivíduo em relação com um concreto animal, e também como Homem, i.e., enquanto membro de uma espécie, cujas superiores capacidades cognitivas e de adaptação estratégica o investem numa especial responsabilidade para com os seres vivos que podem ser (e são) afectados pelas suas decisões e acções”.
O tipo objetivo consiste em se matar animal de companhia, sem motivo legítimo, na sequência de comportamento que infligiu dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos.
Quanto ao tipo subjetivo, trata-se de um crime doloso em qualquer das suas modalidades – dolo direto, necessário ou eventual (arts. 13º e 14º CP).

E o que são animais de companhia? O art. 389º do C.P define-o.
1 - Para efeitos do disposto neste título, entende-se por animal de companhia qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia.
2 - O disposto no número anterior não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial, assim como não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de espetáculo comercial ou outros fins legalmente previstos.
3 - São igualmente considerados animais de companhia, para efeitos do disposto no presente título, aqueles sujeitos a registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC) mesmo que se encontrem em estado de abandono ou errância.
De acordo com a Convenção Europeia para a Proteção dos Animais de Companhia – cf. Artigo 1º (diploma este que foi aprovado e ratificado pelo Decreto nº 13/93), “entende-se por animal de companhia qualquer animal possuído ou destinado a ser possuído pelo homem, designadamente, em sua casa, para seu entretenimento e enquanto companhia” – nº 1. O Decreto-Lei nº 276/2001, de 17.10., veio estabelecer as normas legais tendentes a pôr em aplicação em Portugal a Convenção Europeia para a Proteção dos Animais de Companhia e um regime especial para a detenção de animais potencialmente perigosos.
No seu artigo 2º, nº 1, alínea a), estabelece uma noção de animais de companhia idêntica à da Convenção definindo-os como “qualquer animal detido ou destinado a ser detido pelo homem, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia”.
Por seu turno, o Decreto-Lei nº 315/2009 de 29 de Outubro aprovou o regime jurídico da detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos enquanto animais de companhia, tendo sido alterado pela Lei nº 42/2013, de 4 de Julho e pela Lei nº 110/2015, de 26 de Agosto. Ou seja, os animais qualificados como potencialmente perigosos ou perigosos também podem ser detidos como animais de companhia.
Como se verifica, trata-se de uma noção ampla, que abrange uma diversidade enorme de espécies, comummente aceites como animais de companhia: cães, gatos, peixes de aquário, coelhos, roedores de diversa natureza, aves anfíbios, répteis, desde que não abrangidos por legislação especial que proíba a sua detenção.
Naturalmente que poderão existir animais que exerçam uma dupla função, ou seja, que sejam detidos para entretenimento e companhia dos donos, mas igualmente para auxílio em determinadas tarefas profissionais – pense-se nos cães pastores, cães de caça ou nos chamados “animais da quinta”, em ambiente doméstico (burros/cavalos). Ou noutros animais que tradicionalmente não são destinados a ser de companhia, como sucede com coelhos, galinhas ou porcos, mas que poderão ser integrados no ambiente familiar em condições de proximidade idêntica às dos cães ou dos gatos.
Por sua vez entendemos que o bem-estar animal, ao menos na dimensão de tutela da respectiva integridade física e psicológica e mesmo da sua vida, é um bem constitucionalmente tutelado.
Portanto, o bem jurídico da vida e da integridade física do animal de companhia são protegidos independentemente da vontade do proprietário ou detentor do animal. A questão é saber se a tutela criminal tem fundamento constitucional bastante. Nem a motivação do projeto de lei, nem a discussão parlamentar revelam qual foi esse fundamento, preferindo antes sublinhar que "A dignidade e o respeito atribuídos à vida animal são princípios integradores do léxico da política legislativa da União Europeia" e, em particular, no Protocolo relativo à proteção e ao bem-estar dos animais anexo ao Tratado de Amesterdão. Pode, contudo, ainda entrever-se uma tutela constitucional dos bens jurídicos da vida e a da integridade física do animal de companhia, autónoma da vontade e do interesse do proprietário ou detentor do animal. Tal como a CEDH, a CRP protege a vida animal como um efeito derivado do direito de propriedade e, nos casos de animais sem proprietário ou detentor, do direito a um ambiente saudável, equilibrado e sustentável (ver, no contexto da CEDH, a minha opinião junta ao caso Herrmann v. Alemanha (GC), de 26.6.2012: the protection of animal life and welfare has also been upheld under the Convention, although this protection is still viewed as a derivative effect of a human right to property or to a healthy, balanced and sustainable environment). Assim, a proteção criminal da vida animal tem uma dupla cobertura constitucional: ou na disposição do artigo 62. ou na do artigo 66º. da CRP. A incriminação dos novos crimes dos artigos 387. e 388.° do CP funda-se nesta última (sobre a admissibilidade da tutela penal dos animais e da natureza enquanto "elementos ambientais concretos absolutamente imprescindíveis para o livre e saudável desenvolvimento da personalidade dos homens de hoje", FARIA COSTA, 2013 b: 171). Para efeitos do disposto neste título, entende-se por animal de companhia qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia. Comentário do Código Penal, 3ª ed. Paulo Pinto de Albuquerque.
Está em causa a própria relação que se estabelece entre pessoas e animais de companhia, por se tratar (na medida em que se trate, suficientemente) de relação valiosa sob o ponto de vista da promoção do bem- estar humano nos planos do desenvolvimento, socialização (em especial de crianças) e até sanitário. Próxima deste entendimento parece estar em data mais recente TERESA QUINTELA DE BRITO (Anatomia do Crime, 4, 2016, p. 104; IDEM, RevCEDOUA, 2, 2016, p. 17), referindo-se a “uma relação actual (passada e/ou potencial)” entre os animais protegidos e humanos.

Ora, tendo- se provado que a arguida desferiu com um objeto contundente várias pancadas no focinho, perna e corpo do canídeo Scott e que ao fazê-lo, espancando-o com recurso a um objeto perfurante, indiferente ao facto de ser um animal senciente, provocou-lhe dor física e psicológica ao furar-lhe o crânio em dois sítios, politraumatizando-o com lacerações na região orbitrária, nasal e no membro anterior direito, partindo-lhe a perna em dois sítios, admitindo como altamente provável que da sua conduta viesse a resultar a morte do animal, como se verificou, resultado que pretendeu e com o qual se conformou, agiu de forma extremamente censurável e incompatível com o dever de respeito pela integridade e vida de um ser vivo, como foi o caso do Scott.
Resulta da matéria dada como provada que o Scott era um animal utilizado para a caça e treinado para tal, sendo um exímio cão de caça.
Também resulta que o seu dono nutria pelo canídeo grande afeição, acompanhando-o em fins de semana quando decidia praticar caça. Prática que do ponto de vista do caçador é um entretenimento.
Essa afeição resulta do grande desgosto que sentiu com a sua morte e sentimento de perda, angústia, frustração e inquietação que sentiu com a agressão e consequente morte de que foi alvo o Scott.
Efetivamente a audição da prova permitiu perceber, até pelo depoimento emocionado do demandante, que Scott era visto como seu companheiro -”companheiro de caça”, como afirmou.

Donde resulta, que este canídeo desempenhava um função dupla de cão de caça e animal de companhia.

Esta conclusão não entra em contradição com a al. k) dos factos não provados, já que a mesma para além de conclusiva quanto ao termos “cão de companhia” se refere ao facto do Scott não frequentar a casa do demandante, ali convivendo (lá dentro) com ele e seu agregado familiar, podendo perfeitamente um animal considerar-se de companhia se apenas frequentar parte de um espaço que integre a zona habitacional como é caso de um anexo de uma habitação, nutrindo-se por ele grande afeto e convivendo com ele.
Se com aquele destino (caça) concorrer um tratamento e relação objetivados que potenciem ou mesmo gerem uma relação de companhia (o que não será raro, mas dependerá sempre de prova que se produzir), então e porque o bem jurídico pressuposto continua a estar em causa, não poderá deixar a previsão legal de abranger os maus-tratos que sobre ele forem infligidos.

Breve apontamento relativamente ao uso de algum conceito mais indeterminado relativamente aos termo “ou quaisquer outros maus tratos físicos” e “ animal de companhia”.
A este propósito cabe referir que em direito penal, o princípio da legalidade tem várias vertentes ou concretizações, o seu conteúdo essencial traduz-se em que “não pode haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa” (Figueiredo Dias, “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, pág. 164).
Trata-se de um dos princípios constitucionais básicos em matéria de punição criminal e analisa-se, entre outros aspetos, na reserva de lei da Assembleia da República na definição de “crimes, penas, medidas de segurança e seus pressupostos, só podendo o Governo legislar sobre essas matérias mediante autorização daquela” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, págs. 494).
Projecção ou corolário do princípio de legalidade, consagrado no artigo 29.º, n.º 1, da CRP, é o princípio da tipicidade, que exige (a)«suficiente especificação do tipo de crime (ou dos pressupostos das medidas de segurança), tornando ilegítimas as definições vagas, incertas, insusceptíveis de delimitação»; (b) «proibição da analogia na definição de crimes»; (c)«exigência de determinação de qual o tipo de pena que cabe a cada crime, sendo necessário que essa conexão decorra directamente da lei» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, idem).
Em suma, na descrição da conduta proibida, a lei penal tem de ser certa, clara, precisa e rigorosa, ou seja, a tipicidade penal exclui «tanto as fórmulas vagas na descrição dos tipos legais de crime, como as penas indefinidas ou de moldura tão ampla, que em tal redunde» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ibidem).
Mas, uma coisa, é esse ideal de certeza e precisão e outra, bem diferente, é a realidade. E a realidade é que, por mais apurada e cuidadosa que seja a técnica legislativa, é inevitável que as exigências de sentido ínsitas no princípio da legalidade não sejam integralmente cumpridas.
Com efeito, na descrição da conduta proibida, é muito difícil, senão mesmo impossível, evitar o uso de expressões que não sejam equívocas ou ambíguas, é normal que, na definição dos tipos legais, o legislador não consiga renunciar à utilização de elementos normativos[2], de conceitos indeterminados, de cláusulas gerais de valor.
É até frequente a utilização de conceitos indeterminados: a “especial debilidade da vítima” (n.º 1-d)) e o “significado importante” para o desenvolvimento tecnológico ou económico (n.º 2, al. b)) do art.º 204.º, “grave abuso de autoridade” (art.º 158.º), “motivo torpe ou fútil” e “meio insidioso” (art.º 132.º) do Cód. Penal.
Na técnica dos exemplos-padrão, usada para a qualificação de crimes, recorre-se a uma cláusula geral extensiva para descrever um tipo de culpa agravado em que, inevitavelmente, são utilizados conceitos indeterminados. Assim sucede com os conceitos de “especial censurabilidade ou perversidade” do agente, a que se refere o n.º 1 do art.º 132.º do Cód. Penal.
Mas, além da utilização de elementos vagos e portadores de indeterminação conflituante com os desideratos garantísticos da tipicidade, são frequentes (sobretudo no direito penal secundário e por força da complexidade e da inconstância da regulamentação de algumas atividades submetidas ao direito penal) as normas penais em branco, em que a lei incriminadora remete para uma outra fonte normativa o preenchimento dos seus próprios pressupostos, aquelas normas que cominam penas para comportamentos que não descrevem, mas se alcançam através de uma remissão da norma penal para leis, regulamentos ou mesmo atos administrativos, ou, como mais sinteticamente as define Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código Penal”, 2.ª edição atualizada, UCE, 54), normas que prevêem a sanção, mas omitem a factispecie, remetendo a definição dos elementos do crime para uma norma extra-penal.
Quando assim sucede, é óbvio que, em certa medida, o princípio da legalidade é desrespeitado, mas a doutrina tem entendido que, assim mesmo, não é posto em causa pela norma penal em branco, desde que se verifique uma dupla condição: que a norma sancionadora conste de lei ou decreto-lei autorizado e que a norma complementar tenha um carácter, apenas, concretizador, e não inovador, em relação à norma sancionadora (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Ob. Cit., 54).
No que tange aos conceitos indeterminados, também se entende que não há violação do princípio da legalidade e da sua teleologia garantística, mas é indispensável que a sua utilização não obste à determinabilidade objetiva das condutas proibidas e demais elementos de punibilidade requeridos.
Como adverte o Professor Figueiredo Dias (Ob. Cit., 173/174), no plano da determinabilidade do tipo legal (ou tipo de garantia), “importa que a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma punição seja levada até um ponto em que se tornem objetivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos” e “o critério decisivo para aferir do respeito pelo princípio da legalidade (e da respectiva constitucionalidade da regulamentação) residirá sempre em saber se, apesar da indeterminação inevitável resultante da utilização destes elementos, do conjunto da regulamentação típica deriva ou não uma área e um fim de proteção da norma claramente determinados”. Ver ac. RL de 29.11.11, in www dgsi.pt.
Ora, no caso presente isso ocorre, pois que é sentimento comum saber o que são maus tratos físicos realizados a um animal, havendo uma parafernália de situações que o legislador não pode e nem tem que tipificar, cabendo antes ao julgador, no caso concreto enquadrar.
Isso acontece com o crime de violência doméstica do art. 152º, n º 1 do C. Penal e não é por isso que se considera o mesmo violador dos princípios da tipicidade e da legalidade.
O mesmo vale para o conceito de animais de companhia, existindo até legislação comunitária que nos ajuda a integrar o conceito.

Portanto, mesmo sabendo que se tratava de um animal doméstico e companhia, pertença de BB, a arguida agiu contra a sua vontade e sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, ao agredir violentamente o canídeo com objeto perfurante, furando-lhe o crânio por das vezes e partindo-lhe uma das patas em dois sítios, pelo que com o seu comportamento preencheu todos os elementos do tipo – objetivos e subjetivos – do crime de maus tratos a animais de companhia p. e p. pelo artigo 387º, n º 1 e 2º, n.º l do Código Penal, punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.

Determinação da pena.

Visto o crime cometido pela arguida cumpre determinar a pena.
A moldura penal abstrata para o crime em causa situa-se na prisão até dois anos ou pena de multa até 240 dias.
A este tipo legal de crime é, assim, aplicável uma pena de prisão ou uma pena de multa, o que implica, previamente, a escolha da espécie da pena.
O artigo 70.º, do Código Penal, fornece o critério de escolha da pena, de acordo com o qual “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Por seu lado, o artigo 40.º, do Código Penal, estabelece a proteção de bens jurídicos (prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial) como finalidades das penas e das medidas de segurança.
Resulta evidente que o artigo 70.º, do Código Penal, dá prevalência à pena não privativa da liberdade, sendo as penas detentivas ou privativas da liberdade encaradas claramente como exceção e ultima ratio. Isto é, o tribunal deve dar preferência à pena de multa sempre que for formular um juízo positivo sobre a sua adequação às finalidades de prevenção geral e de prevenção especial.
No caso em apreço, ao nível das necessidades de prevenção geral, é de considerar existirem a um nível que se pode qualificar médio-elevado, considerando a relativa frequência com que se tem verificado a prática deste tipo de crime.
Tudo isto vale por dizer que se impõe zelar pela tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada.
No plano das necessidades de prevenção especial, ainda que a arguida tenha negado a factualidade e, por isso, não seja possível concluir pelo seu arrependimento e vontade em não voltar a delinquir, é de ter em especial atenção que a mesma não tem antecedentes criminais, pelo que se situam as respetivas necessidades num plano mínimo.
Nestes termos, não se afigura que as finalidades da punição reclamem a aplicação de uma pena de prisão, entendendo-se que ficarão suficientemente asseguradas com a aplicação de uma pena de multa.
Tal será suficiente para que a arguida compreenda a desadequação da sua conduta, abstendo-se no futuro de infringir normas jurídicas.
E será também adequada a aplicação de multa para que se cumpra a finalidade de prevenção geral, pois a comunidade sentirá a norma violada como ainda válida e vigente.
Na determinação da medida da pena concreta, o Tribunal tem de considerar designadamente as circunstâncias que, não fazendo parte do crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, designadamente as previstas no artigo 71.º. n.º 2, do Código Penal, mais concretamente o grau da ilicitude do facto, a intensidade do dolo, os fins ou motivos que determinaram o agente à prática do crime, as condições pessoais do agente, a sua situação económica, a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime.
No caso concreto, há ter em conta principalmente:
- a atuação com dolo direto;
- o facto de a arguida ter atuado também por causa de algum receio que tinha para com o canídeo;
- o grau de ilicitude acima da média, atendendo às consequências da sua conduta, o grau e quantidade de lesões que praticou no animal, não obstante lhe ter sido pedido para o não fazer, e que acabou por resultar na morte de um animal;
- o tempo decorrido desde a data da prática dos factos; e
- a ausência de antecedentes criminais.
Considerando que a pena de multa abstratamente aplicável oscila entre 10 e 240 dias, entende-se como adequada uma pena concreta entre 120 dias de multa – artigo 47.º, n.º 1, do Código Penal.
No que concerne ao quantitativo diário, atendendo às condições económicas da arguida provadas na sentença, mostra-se adequada a fixação no montante entre €5,50 artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal, sendo que o limite mínimo é aplicável apenas para situações de pessoas indigentes, perfazendo assim o total de €660,00 (seiscentos e sessenta euros), quantia que consideramos já implicar um sacrifício para a arguida.
*
Do pedido de indemnização civil

Quanto ao pedido de indemnização civil, o demandante não recorreu da decisão pelo que, nada se nos afigura fixar, não fazendo parte do objeto do presente recurso.
*
DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder total provimento ao recurso e, em consequência, decidem:

- Revogar a sentença recorrida, na parte em que absolveu o arguido.
- Modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos que se deixaram suprafixados e que aqui se dão por reproduzidos.
- Condenar a arguida AA pelo cometimento de um crime de maus tratos a animais de companhia, p. e p. pelo artigo 387º n.º 1 e 2 do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de €5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), tudo perfazendo, €660,00 (seiscentos e sessenta euros).
*
Custas:
Parte criminal: vai a arguida condenada em 3 UC de taxa de justiça e nas custas do processo (artigo 513º do CPP e 8º d RCP).
*
Notifique.
(Elaborado e revisto pelo relator – art. 94º N.º 2, do CPP)

*
Sumário (exclusiva responsabilidade do relator)
…………………….
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Porto, 28 de setembro de 2022
(Texto elaborado e integralmente revisto pelo relator)

Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha

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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Proc. n.º 146/14.8GTCSC.S1 - 5.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[3] Proc. n.º 772/10.4PCLRS.L1.S1 – 3.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[4] Relatado por Belmiro Andrade no âmbito do Proc. n.º 107/17.5PBCVL.C1, acessível in www.dgsi.pt.
[5] O negrito e o sublinhado não constam do texto original e foram usados nesta decisão apenas para salientar a situação que ocorre neste processo.