Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
434/21.7PBMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOANA GRÁCIO
Descritores: CRIME DE FURTO
CONSUMAÇÃO DO CRIME
Nº do Documento: RP20230308434/21.7PBMTS.P1
Data do Acordão: 03/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Nos estabelecimentos comerciais, a transposição da linha das caixas registadoras, sem realização do pagamento devido pelos produtos transportados, é o limite que separa o domínio de facto do ofendido e o domínio de facto do agente, representando o momento em que se dá a transferência da disponibilidade da coisa do seu titular para o agente e este passa a detê-la de forma relativamente pacífica, ainda que não totalmente segura, consumando o crime de furto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 434/21.7PBMTS.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Criminal de Matosinhos – Juiz 3

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito do Processo Comum Singular n.º 434/21.7PBMTS, a correr termos no Juízo Local Criminal de Matosinhos, Juiz 3, por sentença de 23-06-2022, foi decidido:
«1. Condenar a arguida AA pela prática, em coautoria, de um crime de furto, p. e p. pelo art.º 203.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (cinco euros), perfazendo a quantia global de €480,00 (quatrocentos e oitenta euros).
2. Condenar o arguido BB pela prática, em coautoria, de um crime de furto, p. e p. pelo art.º 203.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 5 (cinco) meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação, com fiscalização por vigilância eletrónica.
3. Julgar o pedido cível deduzido pela «A..., SA» procedente por provado e, consequentemente, condenar os arguidos acima identificados, a pagarem solidariamente à demandante aquantiade€19,69(dezanove euros, e sessenta e nove cêntimos), pelos danos patrimoniais causados, acrescida de juros moratórios, vencidos e vincendos, calculados à taxa legal em vigor, contados desde a notificação do pedido até efetivo e integral pagamento.
4. Condenar os arguidos acima identificados no pagamento das custas processuais da parte criminal, fixando, para cada um, a taxa de justiça em 2(duas) unidades de conta, reduzida a metade.
5. Julgar os demandantes isentos do pagamento das custas processuais na parte cível.
6. Manter os arguidos sujeitos às obrigações decorrentes dos TIR, já prestados, até extinção das respetivas penas.
*
Fixa-se, desde já, que a prisão em regime de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, aqui fixada ao arguido, durará 5 (cinco) meses, devendo ser cumprida na praceta ..., n.º ..., 2.º, Centro, Frt., ... ..., onde reside com a arguida, sua companheira.»
*
Inconformado, o arguido BB interpôs recurso, solicitando a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que proceda à alteração da forma do crime, de consumado para tentado, e à aplicação de uma pena não privativa da liberdade, apresentando em apoio da sua posição as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«I. Ao recorrente vem imputada a prática do crime de furto na forma consumada.
II. Porém, face à factualidade descrita na douta sentença ora recorrida, entendemos estar perante um crime de furto na forma tentada.
III. O recorrente não chegou a abandonar as instalações da ofendida, foi abordado pelo vigilante logo após transpor a caixa.
IV. Tem sido defendido pela doutrina e jurisprudência mais recente, que para a consumação do crime de furto não é suficiente a remoção da coisa do lugar onde se encontra, exigindo-se a transferência da coisa para fora da esfera de domínio do sujeito passivo. A consumação do crime de furto exige que a coisa entre, de uma maneira minimamente estável, no domínio de facto do agente da infração (tese da tendencial estabilidade).
V. Seguindo o entendimento do Professor Faria Costa, o crime de furto só se considera consumado quando o agente tem um mínimo de possibilidade de disposição da coisa subtraída.
VI. No mesmo sentido, Paulo Saragoça da Mata defende que a “subtração se verifica e o furto se consuma quando a coisa entra no domínio de facto do agente da infração com tendencial estabilidade plausível, ainda que não absoluta (posse pacífica), de fruição e disposição da coisa subtraída” (vd. Ac. Tribunal da Relação do Porto, de 12.05.2010, processo nº36/08.3GHVNG.P1. in www.dgsi.pt)
VII. Ora, uma vez que o recorrente foi abordado logo após a linha das caixas, entendemos que a coisa furtada não entrou no domínio de facto do agente da infração, com tendencial estabilidade.
VIII. Não há consumação pelo facto de a coisa ter sido removida do respetivo lugar de origem, mas pelo facto de ter sido transferida para fora da esfera de domínio do seu fruidor pretérito, o que não se verificou.
IX. A posse instantânea não é suficiente para a consumação do crime.
X. O furto não se pode dizer consumado senão quando a custódia de vigilância, direta ou indireta, exercida pelo proprietário, tenha sido totalmente iludida. (Ac. Tribunal Relação de Évora de 27.06.2017).
XI. No caso em apreço, o recorrente não chegou a ter um domínio de facto sobre tais bens, que não chegaram a sair do controlo / vigilância da sua legítima proprietária, pelo que não pode o crime de furto imputado ao arguido ter-se como consumado.
XII. Perante o exposto, o recorrente só pode ser punido pela tentativa.
(…)
*
O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, considerando que o mesmo não merece provimento e pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
*
Neste Tribunal da Relação do Porto, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer onde acompanhou e desenvolveu a argumentação da resposta ao recurso do Ministério Público junto do Tribunal recorrido, pugnando igualmente pelo não provimento do recurso e pela manutenção da sentença recorrida.
*
Notificado nos termos do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, o recorrente não apresentou resposta.
*
Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.
*
II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as de saber i) se no caso concreto não ocorreu consumação do crime de furto (…)
*
Para análise da questão que importa apreciar releva desde logo a factualidade subjacente, sendo do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados que consta da sentença recorrida (transcrição):
«III.Fundamentação de Facto
Realizou-se audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo prescrito por lei, tendo, em abono da verdade material resultado os seguintes
III.1.Factos provados
1) No dia 25 de abril de 2021, por volta das 12h05, os arguidos dirigiram-se ao estabelecimento comercial “B...”, sito na Rua ..., Matosinhos, pertencente à demandante «A..., S.A.», a fim de se apoderarem de objetos que aí se encontrassem para venda sem proceder ao respetivo pagamento.
2) Aí, os arguidos, de comum acordo e em conjugação de esforços, retiraram dos expositores/prateleiras um polvo cozido, no valor de 19,69€ e um ambientador, no valor de 2,90€ e colocaram-nos dentro de uma mochila que transportavam consigo.
3) Na posse de tais objetos e seguindo o plano traçado entre ambos, os arguidos passaram pelas caixas registadoras daquele estabelecimento sem proceder ao respetivo pagamento daqueles objetos.
4) Os arguidos agiram de forma livre, voluntária, consciente, de comum acordo e em conjugação de esforços, bem sabendo que tais objetos não lhes pertenciam e que atuavam contra a vontade e sem o consentimento da sua dona.
(…)

Vejamos.
Como resulta das conclusões do recurso, e da motivação subjacente, o recorrente não questiona a matéria de facto provada, mas apenas a qualificação jurídica dos mesmos e a medida concreta da pena aplicada, que considera excessiva, pelo que centraremos aí a análise que é reclamada.
Quanto à questão do momento da consumação do crime de furto, como bem salienta a Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal recorrido, a posição do recorrente «padece de um viés de raciocínio entre a doutrina de que se socorre e a conclusão que apresenta».
Com efeito, o recorrente alega que «[e]xiste alguma clivagem doutrinária e jurisprudencial a propósito do momento da consumação do furto, que se traduz em três posições fundamentais:
a. A tese da posse instantânea - doutrina tradicional - que se basta com a consumação formal, sendo suficiente que a coisa subtraída passe para a esfera do poder do agente criminoso para se considerar que ocorreu a efetiva lesão do interesse tutelado, não sendo necessário verificar-se o exaurimento total do plano do agente, nem carecendo a detenção da coisa de qualquer período temporal;
b. A tese da posse pacífica da coisa apropriada exigindo a detenção em pleno sossego ou estado de tranquilidade, encabeçada por Eduardo Correia em reação ao primeiro entendimento citado;
c. A tese da tendencial estabilidade, surgida mais recentemente, que centra a questão na perda do domínio de facto por parte do anterior fruidor, podendo dizer-se que, em regra, «a subtração se verifica, e o furto se consuma, quando a coisa entra no domínio de facto do agente da infração, com tendencial estabilidade, isto é, não pelo facto de ela ter sido removida do respetivo lugar de origem, mas pelo facto de ter sido transferida para fora da esfera de domínio do seu fruidor pretérito».

Esta exposição mostra de forma clara e sucinta, mas correcta, a descrita realidade jurídica, por isso a acolhemos sem necessidade de maior argumentação.
O recorrente afirma de seguida que «[a] doutrina e jurisprudência mais recente tem entendido que deve ser seguida esta terceira orientação, pois é a perda da possibilidade de domínio de facto do prévio detentor sobre a coisa que justifica a consideração da consumação do crime de furto (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23.06.2021, relator Maria Deolinda Dionísio, processo nº 805/18.6PDVNG.P1, in www.dgsi.pt), teoria que acompanhamos.»
Também aqui acompanhamos o recorrente, ressalvando apenas que o acórdão invocado tem por contexto uma situação diferente da aqui apreciada, isto é, não trata de saber se a consumação do crime de furto em espaço comercial se dá com a passagem das linhas de caixa sem que seja efectuado o respectivo pagamento ou apenas quando o agente abandona as instalações onde opera aquele estabelecimento.
É apenas na concretização, na transposição para o caso concreto, da tese da tendencial estabilidade, que também acolhemos, que divergimos da alegação do recorrente.
A jurisprudência tem assumido quanto a esta temática, de forma relativamente pacífica, o entendimento de que, em termos objectivos, nos estabelecimentos comerciais a transposição da linha das caixas registadoras, sem realização do pagamento devido pelos produtos transportados, é o limite que separa o domínio de facto do ofendido e o domínio de facto do agente, representando o momento em que se dá a transferência da disponibilidade da coisa do seu titular para o agente e este passa a detê-la de forma relativamente pacífica, ainda que não totalmente segura.
Nesse sentido, entre outros, vejam-se os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 16-05-2012, relatado por Artur Oliveira no âmbito do Proc. n.º 5017/10.4TAMTS.P1, e de 07-02-2018, relatado por Horácio Correia Pinto no âmbito do Proc. n.º 3397/15.4T9PRT.P1.
O mesmo sentido se detecta na doutrina na posição de José Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, págs. 50 e 51, e se encontra, de forma mais evidente, porque expressa, na análise de Paulo Saragoça da Matta, in Subtracção de coisa móvel alheia, inserido na obra Liber Discipulorum para Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, págs. 1025 e 1026.

Esta é também a posição que assumimos.
No caso em análise, o recorrente ultrapassou a linha de caixa de pagamento do estabelecimento comercial de onde subtraiu os bens indicados na matéria de facto provada, pelo que se impõe concluir, como fez a sentença recorrida, que estamos perante um crime de furto consumado.
Uma última nota para realçar que no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27-06-2017, proferido no âmbito do Proc. n.º 158/15.4PBFAR.E1, que é invocado pelo recorrente em apoio da sua tese, existe uma pequena nuance que faz toda a diferença. Entendeu-se nesse caso que o crime de furto não se consumou, condenando-se o agente pelo crime na forma tentada, dado que quando este passou as caixas registadoras da loja sem mostrar quaisquer bens aos funcionários que aí operavam e sem efectuar o respetivo pagamento acionou os alarmes existentes nas mesmas, tendo sido abordado pelos seguranças da loja, que o intercetaram e recuperaram os objetos que trazia consigo.
Neste caso, em rigor, a linha de caixa, que incluía os alarmes, não foi transposta na sua totalidade, o que permite afirmar que a detenção dos referidos bens por parte do agente não atingiu o grau de sossego necessário.

Este contexto não se coloca no caso dos autos, nada impedindo a validade da interpretação exposta.
Improcede, pois, este segmento do recurso.
*
(…)
*
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar total provimento ao recurso interposto pelo arguido BB e em confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça (arts. 513.º, n.ºs 1 e 3, do CPPenal e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa).
Notifique.

Porto, 08 de Março de 2023
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
_______________
[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.