Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
233/15.5T8PVZ-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ATAÍDE DAS NEVES
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
Nº do Documento: RP20161110233/15.5T8PVZ-A.P1
Data do Acordão: 11/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 75 DE FLS.41-49 VRS.)
Área Temática: .
Sumário: I – A pretensão indemnizatória formulada contra a entidade expropriante pelo proprietário do imóvel onerado por acto expropriativo que veio a ser anulado por decisão superior transitada em julgado, tem natureza civil privatística, não constituindo litígio emergente de relações jurídicas administrativas, como tal devendo ser julgada pelos tribunais comuns e não pelos tribunais administrativos.
II - Decretada a anulação de acto expropriativo, é da competência dos tribunais comuns o julgamento de acção de reivindicação instaurada pelos expropriados contra a expropriante e outras entidades que tenham ocupado o imóvel expropriado, em que aqueles cumulam, com os pedidos de declaração do seu direito de propriedade e entrega dos imóveis, o pedido de indemnização pelos danos sofridos em consequência das ilícitas expropriação e ocupação daqueles imóveis.
III - Podendo peticionar-se em processo comum, tramitado desde o seu início perante os tribunais judiciais, o arbitramento da justa indemnização devida pelos danos decorrentes da constituição lícita de servidões administrativas (vide Acórdão do Tribunal de Conflitos proferido no processo 09/14 em 19 de Junho de 2016), não é a circunstância de se tratar de ocupação ilícita decorrente da anulação do acto expropriativo, que poderá retirar a competência material do tribunal comum para apreciar e julgar o pedido de indemnização pelos prejuízos sofridos pelos proprietários dos imóveis onerados com aquele acto expropriativo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação 233/15.5T8PVZ-A.P1
Relator: Ataíde das Neves
Ex.mos Desembargadores Adjuntos:
Amaral Ferreira; Deolinda Varão

Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Os autores B… e C… instauraram contra EP – Estradas de Portugal, SA, e D…, SA, pedindo que sejam os Réus:
a) Condenados a reconhecer serem os autores os donos dos prédios descritos nos art. 10º, 11º, 12º, e 27º
b) Condenados a entregarem aos Autores os prédios referidos em a), no estado em que se encontravam à data da sua tomada de posse administrativa;
Cumulativamente, serem os condenados a pagar aos autores:
c) a quantia de €88.532,00 em capital;
d) a quantia de €3.235,00 mensais, contados desde Fevereiro de 2015 até à data da entrega dos prédios ou de nova declaração de utilidade pública dos mesmos;
e) juros sobre estas importâncias à taxa legal de 4%, contados desde a citação até pagamento.

Para tanto alegam em suma serem os únicos e universais herdeiros de E… e F…. Mais alegam a inscrição de aquisição de alguns prédios reivindicados a favor dos decujos, a sua aquisição derivada, fundada em sucessão, e ainda factos configurativos da aquisição de tais prédios, por usucapião.
As rés D…, S.A. e EP – Estradas de Portugal, S.A. ocuparam parcelas de tais prédios mediante adjudicação em expropriação declarada nula por acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte, aí edificando infra-estruturas rodoviárias que passaram a integrar a SCUT do … – … – Sublanço nó do …/… – nó do …, com tal conduta causando prejuízos aos Autores, que estes enumeram, pedindo a condenação das Rés no seu pagamento.
A Ré D… veio invocar a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria, pugnando pela sua absolvição da instância

Apreciando a excepção de incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria, considerou o tribunal, para além do mais, o seguinte:
“…
Constata-se assim a incompetência absoluta deste tribunal, em razão da matéria, nos termos e com os efeitos previstos nos art. 96.º, alínea a), 97.º, n.º 1, e 99.º, n.º 1, do CPC, quanto aos pedidos de indemnização supra enunciados em c).

No entanto, esta incompetência absoluta, em razão da matéria, verifica-se apenas em relação a uma parte do objecto da acção, o que nos transporta para a questão a cumulação ilegal de pedidos.

Nos termos do art. 555.º, n.º 1, do CPC, pode o autor deduzir cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação.

Nos termos do art. 37.º, n.º 1, do CPC, a coligação não é admissível quando aos pedidos correspondam formas de processo diferentes ou a cumulação possa ofender regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia.

Deduzindo os autores pedidos da competência dos tribunais comuns cumulados com pedidos da competência dos tribunais administrativos e fiscais, estamos sem dúvida perante uma cumulação ilegal de pedidos nos termos resultantes das disposições supra.

Não acolhemos aqui, em face das normas citadas, a interpretação doutamente sustentada pelos autores, no sentido de que a cumulação destes pedidos levaria a uma absorção do pedido da competência dos tribunais administrativos pelos tribunais comuns, com o argumento de que o pedido de indemnização é acessório do de reivindicação.

Em sentido contrário, e sancionando a interpretação aqui seguida, decidiu o Tribunal de Conflitos em acórdãos de 3/03/1988, proc. n.º 00197, de 15/03/2005, proc. n.º 015/04, e de 28/11/2007, proc. n.º 06/07, disponíveis em www.dgsi.pt.

O acórdão deste mesmo tribunal de 16/02/2012, proc. nº 020/11, disponível na mesma base de dados, citado pelos autores, apreciou sem dúvida uma cumulação entre uma reivindicação de propriedade e um pedido de indemnização por danos derivados da violação de tal direito, mas decidiu que na situação concreta não estava em causa tal cumulação porque o pedido de indemnização não fora formulado. Aliás é aí referido que os autores em tal acção declaravam expressamente pretenderem formular tal pedido de indemnização junto da jurisdição administrativa. O aresto em questão não põe assim em causa o entendimento que aqui se segue.

A lei não é expressa quanto à consequência jurídica emergente da cumulação ilegal de pedidos, mas a maioria da doutrina e jurisprudência inclinam-se para encará-la como excepção dilatória atípica, que leva à absolvição do réu de instância quanto ao pedido em relação ao qual se verifica a incompetência em razão da matéria (António Geraldes, no seu Temas da Reforma de Processo Civil, vol. I, 2.ª edição, p. 148, cita alguns arestos neste sentido, e refere a apologia de Anselmo de Castro, Abílio Neto, Teixeira de Sousa e Castro Mendes).

Aceitamos modestamente esta construção, única que se harmoniza com a clara estrutura de pressuposto processual que assume a legalidade de cumulação de pedidos.”
Acabando por decidir nos termos seguintes:
“…
A) Julgar improcedente a pretendida absolvição total da instância dos réus com fundamento em incompetência absoluta, em razão da matéria;
B) Conhecer da excepção de cumulação ilegal de pedidos e, em consequência, absolver os réus de instância quanto ao pedido de condenação dos réus no pagamento de indemnização no valor de €88.532,00, acrescidos de €3.235,00 por mês, desde Fevereiro de 2015 até à data da entrega dos prédios ou de nova declaração de utilidade pública dos mesmos, e ainda juros de mora, contados desde a citação até integral pagamento, a que se reportam as alíneas C), D), e E), do petitório.”

Inconformados com tal decisão, dela vieram os Autores apelar para este Tribunal da Relação, oferecendo as suas alegações, que terminam com as seguintes conclusões:
1.- A competência do tribunal em razão da matéria afere-se pelos termos ou forma como o autor configura a acção, definida pelo pedido e causa de pedir.
2.- Tendo os recorrentes formulado, como pedido (principal), a condenação dos réus a reconhecerem que aqueles são donos e legítimos possuidores dos prédios identificados na petição inicial, bem como a sua condenação a restituírem os mesmos no estado em que se encontravam à data da posse administrativa, em decorrência da anulação do acto de declaração de utilidade pública da expropriação desses imóveis por Acórdão do Tribunal Central Administrativo, o que determinou a extinção da sujeição à expropriação dos prédios dos Recorrentes, a questão principal traduz-se na reivindicação de propriedade privada.
3.- Razão por que o conhecimento do pedido formulado cabe na jurisdição do Tribunal Comum.
4.- Este Tribunal é igualmente competente para conhecer do pedido cumulativo com aquele deduzido de indemnização pela ocupação dos referidos bens.
5.- Não é a circunstância de ter sido cumulado com o pedido principal um pedido indemnizatório contra as entidades demandadas - pessoas colectivas de direito público e/ou uma pessoa colectiva de direito privado no exercício de prerrogativas de poder público ou regida por normas e princípios de direito administrativo - que impõem concluir-se que a apreciação deste compete à jurisdição administrativa.
6.- Enquadrando-se o litígio numa acção de reivindicação de um terreno privado intentada contra a Infraestruturas de Portugal, S.A. e a concessionária D…, fundada em violação do direito de propriedade sem que esteja em causa a aplicação de qualquer norma ou princípio de direito administrativo, é irrelevante ter sido cumulado um pedido de indemnização, fundado em responsabilidade extracontratual, não consistindo o ilícito na violação de acto ou norma de direito administrativo.
7.- A “expressão “incidentes” ínsita no art.91.º/1 do CPC deve ser tomada em sentido amplo, englobando os pedidos dependentes formulados em acumulação real (como acontece no pedido de indemnização em acção de reivindicação), na extensão de competência ou competência conexa.
Nestes termos, deve o douto despacho ser revogado por violação, entre outros, dos arts.1311.º, 483.º, 562.º do CC, 91.º/1 do CPC, e ser julgado o tribunal comum o competente para julgar o pedido indemnizatório formulado pelos Recorrentes.
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Apontemos as questões objecto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal apreciar e conhecer de matérias que naquelas se não encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso (art. 684º nº 3 e 690º nºs 1 e 3 do CPC), acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

I – Em primeiro lugar, considerando que os autores instauram uma acção de reivindicação, haverá que ponderar se quanto ao pedido indemnizatório formulado em c), se, tal como entendeu o tribunal recorrido, se deverá entender-se que o mesmo não tem competência, em razão da matéria, para a sua apreciação e julgamento.
Vejamos:
As causas que não sejam atribuídas por lei a alguma jurisdição especial são da competência do tribunal comum atento o preceituado nos arts 66º e 26º, respectivamente, do CPC e da LOFTJ na redacção dada pela Lei nº 52/2008, de 28.08, sendo que a competência se fixa no momento em que a acção é proposta – art. 24º, nº1, da LOFTJ.
Nos termos do art. 212º, nº 3, da CRP, compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
O art. 4º, nº 1, alínea i), do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro alterada pelas Leis nº 4-A/2003, de 19 de Fevereiro e 107- D, de 31 de Dezembro) estabelece que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto (…): al. i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Existem diversas categorias de tribunais - que se situam no mesmo plano horizontal -, de acordo com a natureza da matéria das causas. A aposta na especialização com a criação de tribunais afectos a diferentes áreas do direito tem aprofundado a questão central da delimitação de competências de cada uma das jurisdições especificamente vocacionadas.
Estando em causa um princípio da especialidade é dele que decorre a instituição de diversas espécies de tribunais e da demarcação da respectiva competência (Manuel Andrade, ih Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 94).
Os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e, por isso, gozam de competência não discriminada (competência genérica), enquanto os restantes tribunais, constituindo excepção, têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas. Aos tribunais judiciais caberá sempre a competência residual na estrita medida em que a eles cabem as acções que não estejam atribuídas especificamente aos outros tribunais; esta competência residual decorre do artigo 211.º, n.º 1, da CRP e do artigo 66° do CPC que postula serem da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (a regra mantém-se agora no art. 64º do NCPC).
Por sua vez, no que toca à competência dos tribunais administrativos e fiscais, estabelece o artigo 212° nº 3, da CRP que «Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais». No mesmo sentido, em obediência ao comando constitucional, estabelece o artigo 1° nº 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, então aplicável, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro (rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 14/2002, DR, I Série-A, n.º 67, de 20 de Março, e pela Declaração de Rectificação n.º 18/2002, DR, I Série-A, n.º 86, de 12 de Abril, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 4-A/2003, de 19-02, Lei n.º 107-D/2003, de 31-12, Lei n.º 1/2008, de 14-01, Lei n.º 2/2008, de 14-01, Lei n.º 26/2008, de 27-06, DL n.º 166/2009, de 31-07, Lei n.º 52/2008, de 28-08, Lei n.º 59/2008, de 11-09, Lei n.º 55-A/2010, de 31-12 e Lei n.º 20/2012, de 14/05), entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2004 (artigo 9.°), que «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais».
Finalmente, a atribuição de competência baseia-se essencialmente num critério material, assente na natureza das relações jurídicas em causa no caso concreto e não na dos respectivos titulares.
Os termos da acção - tal como ocorre como qualquer pressuposto processual - aferem-se em face do "thema decidendum" concatenado com a causa de pedir, ou seja, com a natureza da relação material em litígio, tal como configurada pelo autor.
Neste sentido, entre outros, pondera o Acórdão do STJ de 03-02-1997 (processo n.º 74338, publicado no BMJ n.º 364, pág. 591 a 603), com larga recensão de doutrina, onde se afirma que a competência determina-se, em princípio, em função do pedido do autor, segundo a versão apresentada por este em juízo.
A matéria atinente ao conflito de jurisdição entre um tribunal da jurisdição comum e outro da jurisdição administrativa tem assento nos artigos 101º e 109º do novo CPC (a que correspondiam, à data dos factos, os 107° n° 2 e 115.° e seguintes do CPC então aplicável), aplicando-se indistintamente aos casos de conflito positivo e aos casos de conflito negativo, sendo que estes últimos se vêm manifestando em número significativamente superior.
Revertendo ao caso dos autos, o que aqui importa decidir prende-se com a questão de saber qual o tribunal que será competente para conhecer da acção introduzida em juízo pelos Autores, já não quanto aos pedidos de declaração do seu direito de propriedade sobre os enunciados prédios e condenação das Rés a reconhecer tal direito, mas sim quanto ao pedido indemnizatório que contra as mesmas é formulado pelos Autores. Ou seja, se quanto a este pedido formulado pelos Autores cumulativamente com os primeiros, serão competentes os tribunais comuns, como pretendem os apelantes, ou antes os tribunais administrativos, como postulou a Ré D… e decidiu o tribunal recorrido.
Tradicionalmente, a delimitação da competência material entre os tribunais da jurisdição administrativa e os da jurisdição comum fazia-se em torno da dicotomia “acto de gestão pública” ou “acto de gestão privada” do Estado, reservando apenas para os primeiros a atribuição de competência aos tribunais administrativos e deixando os segundos, residualmente, sob a alçada dos tribunais comuns.
Foi entendimento da doutrina e da jurisprudência que a distinção entre jurisdição comum e jurisdição administrativa estava na diferença entre actos de gestão pública e actos de gestão privada. Neste contexto, sustentava o Prof. Freitas do Amaral[1], que a gestão privada era a actividade que a Administração pública desenvolve sob a égide do direito privado e a gestão pública é, por seu turno, a actividade que ela desempenha nos termos do direito público.
Na actualidade, segundo os citados artigos 212º nº 3 da CRP e 1° nº 1 do ETAF, a competência dos tribunais administrativos e fiscais dependerá da ponderação sobre se se está, ou não, perante um pleito de ordem administrativa, derivados de relações jurídicas administrativas.
Importará saber em que consistirá essa relação jurídica administrativa.
No Acórdão do Tribunal de Conflitos de 4.4.2006 (processo nº 27/05, disponível in www.dgsi.pt) escreve-se que “a distinção entre relações jurídicas administrativas e relações jurídicas privadas decorre, grosso modo, dessa relação provir da prática de actos de gestão pública ou de actos de gestão privada” aí se considerando as relações jurídicas administrativas “como aquelas que são regidas por normas que regulam as relações estabelecidas entre a Administração e os particulares no desempenho da actividade administrativa de gestão pública, sendo esta, em síntese, e como já foi referido, a actividade que compreende o exercício de um poder público, integrando, ela mesma, a realização de uma função pública da pessoa colectiva, independentemente de envolver ou não o exercício de meios de coerção e independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devam ser observadas”.
Há assim que concluir, à semelhança do que se fez no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21.1.2010 (proc. nº 2861/09.9 TJVNF, disponível in www.dgsi.pt), cuja exposição temos vindo a seguir, que a noção e caracterização da relação jurídica administrativa assentam nos seguintes pressupostos:
a) É uma relação estabelecida com a Administração que, emergindo do exercício (por parte da Administração) de um poder público e da realização de uma função pública e assentando na prevalência do interesse público sobre o particular, confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração;
b) É uma relação regulada, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo.
Consequentemente, não configura uma relação jurídica administrativa aquela em que a pessoa de direito público aparece despida do seu poder público, actuando numa posição de paridade com os particulares e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas de direito privado.
Como refere Mário Aroso de Almeida, in Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, pág. 57, “as relações jurídico-administrativas não devem ser definidas segundo critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teleológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis”. Ou seja, segundo se crê, serão relações jurídicas administrativas as derivadas de actuações materialmente administrativas, praticadas por órgãos da Administração Pública ou equiparados.
Gomes Canotilho e Vital Moreira[2] a propósito das relações jurídico-administrativas, dizem que “esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal (cf. ETAF, art. 4º)».
Perante a reforma de 2002 e a actual amplitude das várias alíneas do n° 1 do artigo 4.° do TAF, resulta à evidência um alargamento das competências dos tribunais administrativos.
No dizer dos Profs. Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, a valorização da justiça administrativa verificada desde a revisão de 1989 da CRP (nomeadamente as alterações aos artigos 210.°, 212.° e 217.°, constitucionalizando a justiça administrativa), a publicação de diplomas que alteraram significativamente alguma da legislação processual administrativa de maior envergadura (ETAF e CPTA) e ampliação da rede de tribunais administrativos implicou uma «redefinição dos critérios de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa, designadamente em confronto com a jurisdição dos tribunais judiciais (...) no sentido de que, tendencialmente, a apreciação jurisdicional das questões materialmente administrativas não deve ser subtraída aos tribunais administrativos para ser atribuída à competência de outras ordens de tribunais”[3]
Nos termos da actual redacção do artigo 4° n° 1 alínea i), do ETAF, compete aos tribunais administrativos conhecer das acções que tenham por objecto «Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público».
Na interpretação do preceito, Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, in ob. cit., pág. 38, opinam que «continua a ser relevante, para o efeito de determinar se um litígio é da competência dos tribunais administrativos ou dos tribunais comuns, saber se o facto constitutivo de responsabilidade se encontra ou não submetido à aplicação de um regime específico de direito público».
No presente caso não se levanta qualquer dúvida que os AA., depois de formularem perante as Rés os pedidos principais típicos da acção de reivindicação de propriedade sobre os prédios que identificam, designadamente a condenação dos Réus a reconhecer que aqueles são os donos dos mesmos e ainda a condenação das Rés a restituírem aos Autores aqueles mesmos prédios no estado em que se encontravam à data da sua tomada de posse administrativa – pedidos estes em relação aos quais não existem dúvidas quanto à competência do tribunal recorrido em razão da matéria -, pedem a condenação das Rés com base em responsabilidade extracontratual destes (violação do seu direito de propriedade sobre os seus prédios, em consequência da perda de rendimentos que sofreram por causa do acto expropriativo das Rés, que mensuram à razão mensal de €3.235,00, desde 21 de Outubro até á efectiva entrega dos prédios em questão).
Significa isto que a competência dos tribunais administrativos e fiscais abrangerá as questões atinentes à responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados desde que a eles deva ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Ora, parece não ser este o caso, uma vez que, embora os invocados prejuízos tenham nascido do acto expropriativo que foi declarado anulado, as normas que ao tribunal cumpre aplicar com vista a tal diferendo não se compaginam no quadro legal próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Por outro lado, a questão indemnizatória em apreço. Sendo regulada pelas normas do Código Civil (art. 483º e segs) não se configura como questão materialmente administrativa cuja apreciação não possa ou não deva ser subtraída aos tribunais administrativos para ser atribuída à competência do tribunal comum.
Continuando a nossa tarefa, diremos que com a Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, foi aprovado o “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas”, publicado em anexo. Estabelece o artigo 1.º, n.º 5, que «As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo».
Assim, resulta desta nova lei, que a jurisdição administrativa pode conhecer, em matéria de responsabilidade civil extracontratual, de litígios entre particulares. Necessário será que as acções ou omissões geradoras de responsabilidade sejam levadas a cabo “no exercício de prerrogativas de poder público”, ou que sejam “regulados por disposições ou princípios de direito administrativo”, isto é, desde que as pessoas colectivas de direito privado actuem em moldes de direito público deve aplicar-se às suas acções e omissões o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo.
E isto acontece porque, hoje, a Administração pode actuar na esfera de direito público ou na esfera do direito privado, pode praticar actos de gestão pública e/ou actos de gestão privada.
Como se observa no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 20-06-2012, a propósito dos requisitos para a atribuição de competência material aos tribunais administrativos, “Necessário será que as acções ou omissões geradoras de responsabilidade sejam levadas a cabo no “exercício de prerrogativas de poder público”, isto é, desde que as pessoas colectivas de direito privado actuem em moldes de direito público deve aplicar-se às suas acções e omissões o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado.”
Voltando ao nosso caso, como claramente decorre da decisão recorrida, o tribunal de 1.ª instância julgou-se materialmente incompetente para conhecer a presente causa quanto ao pedido indemnizatório formulado pelos Autores, por ter entendido que a relação material controvertida configurada pelos AA. contra as Rés, no que toca à responsabilidade civil extracontratual destas, se funda “em prerrogativas próprias de poder público ou que sejam reguladas por disposições de direito administrativo”.
Considera o tribunal recorrido que “
“Quanto à ré Estradas de Portugal, S.A., é a própria lei que traça as coordenadas. Nos termos do art. 10.º, n.º 2, alínea h), do Decreto-Lei n.º 374/2007, de 7 de Novembro, para o desenvolvimento da sua actividade, a EP – Estradas de Portugal, S. A., detém os poderes, prerrogativas e obrigações conferidos ao Estado pelas disposições legais e regulamentares aplicáveis no que respeita: (…) À responsabilidade civil extracontratual, nos domínios dos actos de gestão pública.

Resulta da lei ser aplicável a esta ré o regime específico da responsabilidade do Estado em matéria extracontratual, tendo poderes e prerrogativas próprios do Estado, designadamente em matéria de expropriação, como resulta do mesmo art. 10.º, n.º 2, alínea a).

Já quanto à ré D…, S.A., actua enquanto concessionária de domínio público, que é um direito emerge de um contrato administrativo, e que em concreto tem por base disposições de direito administrativo. É o que resulta da Base II, n.º 3, Base III, e Base IX, n.ºs 1 e 3, do Decreto-Lei n.º 189/2002, de 28 de Agosto. Os autores imputam a esta ré o apossamento de um prédio sua propriedade, a sua integração no domínio público, enquanto terreno integrante da auto-estrada, sendo nulos os actos administrativos legitimadores de um tal apossamento. Estamos no âmbito do supracitado art. 1.º, n.º 5, do RRCEEEP, e portanto na área de competência da jurisdição administrativa, tal como é delimitada no art. 4.º, n.º 1, alínea i), do ETAF.”
Daqui concluindo, como dissemos:

“Constata-se assim a incompetência absoluta deste tribunal, em razão da matéria, nos termos e com os efeitos previstos nos arts. 96.º, alínea a), 97.º, n.º 1, e 99.º, n.º 1, do CPC, quanto aos pedidos de indemnização supra enunciados em c).”

Continuando a nossa apreciação, diremos que compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais – artigo 212, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.
Este preceito estabelece "o critério de delimitação do âmbito material da jurisdição administrativa". Esta jurisdição justifica-se "por razões que se prendem com a vastidão e complexidade do universo das relações jurídicas que são disciplinadas pelo Direito Administrativo e pelo Direito Fiscal" e o critério de delimitação assenta, por isso, numa "lógica de especialização: trata-se, na verdade, de reservar para uma jurisdição própria a incumbência de administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais" (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, 2007, págs. 147/148).
Será defensável que a dúvida sobre a natureza do litígio confira ao legislador a possibilidade da sua inserção na competência dos tribunais administrativos e fiscais[4], naturalmente, afirmando-o com a clareza que impõe a definição de competências de uma jurisdição especializada.
Neste enquadramento, compreende-se a atribuição de competência material aos tribunais administrativos, decorrente do artigo 4.º do ETAF e, nomeadamente das alíneas c), e), g) e l) do seu n.º 1. A alínea g), concretamente, na redação introduzida pela Lei 107-D/2003, de 31.12, atribui-lhes essa competência material para apreciação de "Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa".
A essa pretensão corresponde, aliás, a previsão do artigo 37, n.º 2, alínea f) do CPTA, ao dizer que seguem a forma da ação declarativa comum os processos que tenham por objeto litígios relativos a "Responsabilidade civil das pessoas coletivas, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, incluindo ações de regresso".
Esta responsabilidade civil que justifica a atribuição de competência à jurisdição administrativa pode derivar, desde logo, do regime previsto na Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, mas igualmente, nos termos gerais, e por aplicação do princípio contido no artigo 483º do Código Civil, quando o facto "caracterizado como ilícito, possa ser imputado à Administração a título de dolo ou mera culpa" e tenha produzido "um dano indemnizável e subsista um nexo de causalidade entre esse dano e o facto".[5]
Importará assim saber se no caso presente está em causa a imputação de uma responsabilidade civil extracontratual às Rés, na veste que lhes é conferida pelos diplomas invocados na decisão recorrida, ou seja no âmbito das atribuições e dos contratos de concessão pública que aqueles diplomas configuram, nesse caso sendo a questão da alçada dos tribunais administrativos, ou antes na sua veste privatística, neste caso sendo competente o tribunal comum.
A resposta, dada a partir da pretensão formulada pelos Autores e dos fundamentos que a suportam, ou seja, a partir da configuração da acção proposta, bem analisada a mesma, deverá, quanto a nós, enquadrar-se na segunda vertente.
De facto, não deixa de ser certo que os danos invocados tiveram a sua génese no acto expropriativo que foi declarado anulado pelo Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 15.10.2013, transitado em julgado, acto expropriativo levado a cabo pela Ré EP Estradas de Portugal, o qual permitiu ou viabilizou a realização de obras diversas sobre os prédios em causa, obras essa plenamente concluídas, designadamente as vias rodoviárias por onde circulam viaturas há mais de 10 anos, usufruindo a Ré D… das mesmas, porquanto á mesma foi atribuída a concepção, construção, financiamento, exploração e conservação em regime de portagens da obra em causa, o certo é que tais danos.
Porém, esse acto administrativo já não releva no domínio factual que agora se encontra controvertido nos autos, ou seja, já não contende com a factualidade subjacente aos prejuízos que os Autores alegam ter sofrido, sendo uma realidade pretérita distinta da que agora se pretende discutir.
Ou seja, a responsabilidade civil extra-contratual aqui invocada contra as Rés já não dimana de relações jurídicas administrativas, não dependendo a sua apreciação e julgamento das relações jurídico-administrativas havidas entre as partes e que foram declaradas anuladas, não havendo a necessidade de aplicação de normas de direito administrativo, antes se centrando a controvérsia no plano puramente privado e civilístico, bastando á decisão o ordenamento jurídico decorrente do Código Civil.
Dito de outro modo, a relação material controvertida, envolvente dos prejuízos sofridos pelos Autores, não provém da prática de actos de gestão pública, assentando sim no âmbito das relações de natureza privatística que entre as partes surgiram após a anulação daquele acto expropriativo.
Aliás, tendo acto expropriativo sido anulado, assim tendo deixado de existir, mal se compreenderia que a pretensão indemnizatória formulada pelos Autores ainda pudesse ter assento na esfera jurídico-administrativa que se exauriu com aquela decisão anulatória.
A pretensão dos demandantes e a causa em que a mesma assenta visa, assim, a defesa do direito de propriedade dos AA. sobre o seu prédio, que consideram afectado por actos praticados pela Rés, concretizando-se as pretensões formuladas no pedido de reconhecimento da propriedade sobre os ditos prédios, qualificando-se tal pretensão juridicamente ao nível do direito civil, bem como na condenação das Rés a pagar-lhes a indemnização pelos danos invocados, configurando-se esta pretensão já não no espaço administrativo em que se fundou o acto expropriativo, mas sim, uma vez anulado tal acto, em espaço puramente civilístico, porquanto os danos invocados não decorrem de acto de gestão pública praticado pelas Rés, surgindo muito para além do mesmo.
Assim, a questão indemnizatória radica no quadro das relações jurídico-civis emergentes entre as partes, em si causadoras dos danos invocados pelos demandantes, não assentando em condicionalismos de facto e de direito de natureza administrativa, não constituindo um litígio emergente de relações jurídico-administrativas, cuja resolução imponha a aplicação de normas de direito administrativo.
Em sentido amplo se vem pronunciando o Tribunal de Conflitos no sentido da competência dos tribunais comuns, quando:
Entre outros o Acórdão do Tribunal de Conflitos de proferido no processo 956/96, segundo o qual a competência do tribunal comum é clara a partir do momento em que é remetido para o mesmo a fim de se proceder à adjudicação da propriedade e da posse ao expropriante:
“Na verdade, a fase de expropriação litigiosa compreende, como momento fundamental, a arbitragem (artigos 37º e 42º e ss. do Código das Expropriações). Finda a arbitragem, o processo é remetido ao tribunal competente, para ser adjudicada ao expropriante a propriedade e a posse e, simultaneamente, ordenada a notificação da decisão arbitral, quer ao expropriante, quer aos diversos interessados (nº 4 do artigo 50º do citado Código). Dessa arbitragem cabe recurso, previsto e regulado nos artigos 51º e 56º e ss. do mesmo diploma, para o tribunal da comarca da situação dos bens a expropriar ou da sua extensão.
Segundo parte da doutrina, estar-se-á, então, na presença de uma relação jurídica suscitada por um conflito entre os interesses dos sujeitos envolvidos na fixação do valor global da indemnização. A composição desse conflito (entendido como um verdadeiro conflito de interesses) deverá ser, nessa perspectiva, da competência dos tribunais judiciais, na medida em que estará em causa a determinação do montante da “justa indemnização” pelo sacrifício do direito de propriedade do particular e é vedada à jurisdição administrativa a competência para dirimir litígios relativos a direitos reais de natureza privada [artigo 4º, nº1, alínea f), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei nº129/84, de 27 de Abril].
Para quem assim pense, já não estará em causa, neste momento, em primeira linha, o interesse colectivo prosseguido pelo Estado com a expropriação. O Estado não surgirá, na determinação do montante indemnizatório, munido de poderes de autoridade. Tratar-se-á agora da conversão do direito de propriedade, extinto em consequência da expropriação, num valor pecuniário, que conferirá ao litígio emergente um cariz eminentemente privado (cf. Alves Correia, As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública, 1982, pp.154/155).
Mesmo que assim se não entenda, segundo uma outra linha argumentativa sempre se admitirá a competência dos tribunais comuns por ter sido esta a nossa tradição jurídica, desde a entrada em vigor da primeira lei sobre o processo expropriativo (a Lei de 23 de Julho de 1850), intervindo sempre o juiz comum para decidir a matéria da indemnização (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 746/96, de 29 de Maio de 1996, inédito, e na doutrina, Alves Correia, ob.cit., passim, a propósito dos aspectos históricos do conceito de expropriação; e António Pais de Sousa e Manuel Fernandes da Silva, Da Justa Indemnização nas Expropriações de Utilidade Pública, 1980, dando notícia, a p. 27 e ss., da legislação portuguesa e das características da sua evolução, e considerando aquela lei de 1850” … a trave-mestra e ponto obrigatório de referência de todo o direito legislado posteriormente sobre expropriação”).
Em suma: a consideração de que a relação jurídica em análise não possuirá natureza administrativa permitiria concluir, desde logo, que as normas em crise não violariam o disposto no artigo 214º, nº 3, da Constituição.” (bold e sublinhado nosso)

Também no Acórdão do mesmo Tribunal proferido no processo 09/14 em 19 de Junho de 2016, relatado por Lopes do Rego[6], se propugna uma visão alargada da competência dos tribunais comuns em matéria indemnizatória subsequente ao acto expropriativo, assim:
“No caso ora em apreciação, os AA. trataram de efectivar o seu direito à indemnização pelos danos resultantes da constituição da servidão administrativa através da imediata propositura de uma acção condenatória, na forma ordinária, sem que lançassem mão da arbitragem prevista no art. 37º do DL 43335 — norma reguladora da fixação da contrapartida indemnizatória atinente à constituição de uma servidão no quadro da concessão respeitante à Rede Eléctrica Nacional, nos termos da qual os proprietários dos terrenos ou edifícios utilizados para o estabelecimento de linhas eléctricas serão indemnizados pelo concessionário ou proprietário dessas linhas sempre que daquela utilização resultem redução de rendimento, diminuição da área das propriedades ou quaisquer prejuízos provenientes da construção das linhas”.
O valor destas indemnizações será determinado de comum acordo entre as duas partes e, na falta de acordo, poderá ser fixado por arbitragem, desde que assim o requeira um dos interessados” (corpo do artigo 38°).
E, relativamente à matéria dos recursos respeitantes à fase de arbitragem, dispõe o art. 42° desse diploma legal que das decisões proferidas pelos árbitros haverá sempre recurso, nos termos do artigo 8° da Lei nº 2063, de 3 de Junho de 1953, esclarecendo o § único que o prazo para o recurso é de oito dias, a contar da notificação da decisão arbitral feita pela Direcção-Geral dos Serviços Eléctricos.
Ou seja: não estamos aqui confrontados com um recurso jurisdicional de decisão arbitral - caso em que a competência dos tribunais judiciais se poderia fundar, sem esforço, numa qualificação como dinâmica (para o actual Código das Expropriações) da remissão que o citado art. 42° historicamente fazia para a Lei 2063, reguladora, em 1953, dos recursos em matéria de expropriações por utilidade pública (veja-se o Ac. de 5/6/07, proferido pela Relação de Coimbra no P. 269/06.7TBALB-A.C1) — mas perante uma acção autónoma, em que se visa, nos termos do processo comum, efectivar a obrigação de indemnizar do concessionário por danos (desvalorização do imóvel afectado) decorrentes da constituição de servidão administrativa, cuja legalidade se não controverte.
Na verdade, no caso dos autos, embora a constituição da servidão administrativa em causa nada tenha a ver com a anterior pendência de um processo de expropriação - não tendo a servidão de passagem aérea sido imposta como decorrência de um precedente acto expropriativo - nem tendo os AA lançado mão do procedimento arbitral previsto no art. 37° do DL 43335 — de configuração essencialmente equiparável ao processo expropriativo, nomeadamente na fase de recurso da decisão arbitral (art. 42° desse diploma legal) optando antes pela propositura de uma acção de condenação, na forma de processo comum, — o que é facto é que o objecto desta acção visa, em termos substanciais, o arbitramento da justa indemnização devida ao proprietário do prédio serviente pela oneração imposta ao seu direito de propriedade, implicando substancial degradação do valor venal do imóvel: tal como ocorre na fase do processo expropriativo tradicionalmente atribuída aos tribunais judiciais, o objecto da presente acção visa apurar e efectivar a obrigação de indemnização de uma entidade que exerce funções administrativas por acto lícito, que determinou a ablação ou oneração da propriedade em nome da realização de um interesse público, gerando uma desvalorização do bem - que carece de ser ressarcida, de modo a assegurar-se a tutela efectiva do direito de propriedade.
Ora, deverá considerar-se que a competência atribuída aos tribunais judiciais em sede de arbitramento da justa indemnização devida ao proprietário lesado com actos de prossecução lícita do interesse público é uma competência determinada em razão da forma de processo, só abrangendo as pretensões que devam ser apreciadas no âmbito da especial tramitação que caracteriza o processo expropriativo, apenas competindo aos tribunais comuns a apreciação dos recursos interpostos de decisões arbitrais (art.38°, n°1, do C. Expropriações)?
Ou pelo contrário, numa perspectiva mais abrangente e substancialista, deverá antes entender-se que compete também aos tribunais judiciais a apreciação e julgamento dos litígios que incidam sobre o arbitramento da justa indemnização ao proprietário dos bens afectados pela lícita ablação ou oneração da propriedade, em nome da realização do interesse público — cabendo-lhes a respectiva preparação e julgamento independentemente da forma do processo desencadeado pelo lesado: ou seja, mesmo que — como sucedeu no caso dos autos - ele tenha optado pela propositura de uma acção de condenação, tramitada na forma comum, em vez de ter desencadeado o procedimento de arbitragem (previsto nos arts. 37° e 42° do citado DL 43335) equiparável à peculiar tramitação do processo de expropriação, obtendo primeiramente uma decisão arbitral — e só desta recorrendo para o tribunal judicial?
Considera-se que é esta segunda a solução abrangente que deve ser adoptada, por se afigurar que a competência tradicionalmente atribuída aos tribunais judiciais em sede de arbitramento da justa indemnização ao proprietário, perspectivada como meio de tutela efectiva desse direito fundamental, não deve permanecer circunscrita e delimitada em função do tipo ou da tramitação do processo, abrangendo também os casos em que o lesado optou pela propositura de acção comum (e não apenas aqueles em que a causa comportou a prolação inicial de um juízo arbitral, do qual se pode recorrer para o tribunal comum competente.
É este entendimento amplo que, aliás, tem encontrado apoio na jurisprudência, nomeadamente deste Tribunal de Conflitos: veja-se a situação dirimida no Ac. de 20-10-2011, proferido no conflito 010/11, em que se considerou competente a ordem dos tribunais judiciais para apreciar a questão do pagamento de uma indemnização pela constituição de uma servidão non aedificandi por virtude da expropriação, apesar de esta pretensão se mostrar efectivada em processo comum.
Em idêntico sentido, pode citar-se o Ac. de 24-05-2011, proferido no conflito 02/11, em que se considerou pertencer à jurisdição dos tribunais judiciais a fixação da justa indemnização devida ao expropriado, num caso em que havia sido proposta acção condenatória em que se não questionava a legalidade do acto ablativo da propriedade, apenas se pretendendo a determinação do montante concreto da justa indemnização a atribuir ao particular, fixada segundo critérios que se prendem essencialmente com o valor real dos bens ou do direito pertencente ao interessados.
Saliente-se ainda que em acções, perfeitamente análogas à dos presentes autos, em que se peticiona em processo comum, tramitado desde o seu início perante os tribunais judiciais, o arbitramento da justa indemnização devida pelos danos decorrentes da constituição lícita de servidões administrativas, vem sendo apreciado o respectivo mérito, inclusivamente pelo STJ, que (ao menos de modo implícito) admite a competência material da ordem dos tribunais judiciais para o respectivo julgamento (cfr. por ex., o ac. de 4/10/11, proferido no P. 3409.05.0TbPRD.P1.S1, in CJ n°235, pag. 59; e o ac. de 10/11/11, proferido no P. 1168/06.8TBMCN.P1.S1).
Situam-se, pois, no âmbito da competência material da ordem dos tribunais judiciais as acções que — independentemente da forma de processo escolhida pelo autor e da circunstância de ter ou não havido um prévio juízo arbitral, impugnado em via de recurso pelo interessado — têm como objecto o arbitramento da justa indemnização devida ao proprietário pela oneração do seu direito, determinante da desvalorização do bem pela constituição lícita de uma servidão administrativa por acto de entidade concessionária de serviço público, mesmo que aquela não seja decorrência de um precedente processo expropriativo.”
Ora, perante tal visão abrangente da competência em razão da matéria dos tribunais civis para a fixação da justa indemnização devida aos proprietários pela oneração do seu direito de propriedade em caso de invasão lícita do mesmo por força de acto expropriativo, em momento anterior ou posterior ao acto expropriativo, não se vislumbra que essa mesma competência seja cerceada a tais tribunais só porque se impõe ponderar a ilicitude do acto praticado por determinadas entidades públicas e subsequente averiguação dos danos com o mesmo causado e correspondente indemnização.
Temos, pois, como clara a competência material do tribunal recorrido para apreciação e julgamento do pedido formulado pelos apelantes sob a alínea c) do pedido, inexistindo qualquer cumulação ilícita dos pedidos, tal como declarada pelo tribunal na decisão recorrida, decisão esta que será revogada, procedendo a apelação.
Sumário nos termos do art. 663º nº 7 do CPC:
1 – A pretensão indemnizatória formulada contra a entidade expropriante pelo proprietário do imóvel onerado por acto expropriativo que veio a ser anulado por decisão superior transitada em julgado, tem natureza civil privatística, não constituindo litígio emergente de relações jurídicas administrativas, como tal devendo ser julgada pelos tribunais comuns e não pelos tribunais administrativos.
2 - Decretada a anulação de acto expropriativo, é da competência dos tribunais comuns o julgamento de acção de reivindicação instaurada pelos expropriados contra a expropriante e outras entidades que tenham ocupado o imóvel expropriado, em que aqueles cumulam, com os pedidos de declaração do seu direito de propriedade e entrega dos imóveis, o pedido de indemnização pelos danos sofridos em consequência das ilícitas expropriação e ocupação daqueles imóveis.
3 - Podendo peticionar-se em processo comum, tramitado desde o seu início perante os tribunais judiciais, o arbitramento da justa indemnização devida pelos danos decorrentes da constituição lícita de servidões administrativas (vide Acórdão do Tribunal de Conflitos proferido no processo 09/14 em 19 de Junho de 2016), não é a circunstância de se tratar de ocupação ilícita decorrente da anulação do acto expropriativo, que poderá retirar a competência material do tribunal comum para apreciar e julgar o pedido de indemnização pelos prejuízos sofridos pelos proprietários dos imóveis onerados com aquele acto expropriativo.
DECISÃO

Por todo o exposto, Acordam os Juízes que compõem a 2ª secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, nos presentes autos de apelação em que são apelantes B… e C… e apelados o Ministério da Economia e do Emprego, EP – Estradas de Portugal, SA, e D…, SA, em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e em sua substituição proferindo decisão que julga improcedente a excepção de incompetência do Tribunal recorrido em razão da matéria, declarando competente o tribunal recorrido para o julgamento do presente pleito, devendo os autos seguir os ulteriores termos legais.
Custas pela apelada D…, por ter arguido excepção em que decaiu.
Registe e notifique.

Porto, 10 Nov. 2016
Ataíde das Neves
Amaral Ferreira
Deolinda Varão
____
[1] In A responsabilidade da administração do direito português, Separata da RFDL, vol. XXV, pág. 20.
[2] In Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição, Agosto de 2010, volume II, págs. 566/7.
[3] In Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3.ª edição, Almedina, 2004, págs. 25 e ss.
[4] Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 8.ª edição, Almedina, 2006, pág. 114.
[5] Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Dicionário de Contencioso Administrativo, Almedina, 2006, págs. 54/58.
[6] In www.dgsi.pt