Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1839/18.6PIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOANA GRÁCIO
Descritores: CONEXÃO DE PROCESSOS
QUEIXAS RECÍPROCAS
Nº do Documento: RP202304191839/18.6PIPRT.P1
Data do Acordão: 04/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO E ASSISTENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Quando temos queixas recíprocas de violência doméstica, relativas a um mesmo pedaço de vida dos envolvidos, dificilmente se fará um julgamento com efetivo apuramento da verdade se se coartar a possibilidade de julgar a globalidade da situação em causa, abrindo-se, neste caso, a porta a decisões contraditórias sobre a mesma questão de fundo.
II - Analisados os fundamentos previstos no artigo 30.º do Código de Processo Penal, para determinar a separação de processos no caso vertente, não encontramos neles qualquer argumento que conceda prevalência à posição de uma vítima face a outra, pois se uma tem direito e interesse em ver julgado o mais rapidamente possível o arguido, este, na qualidade de assistente, também tem direito a ver julgados o mais rapidamente possível os factos que a ela imputou – sendo essa a solução a que se chegue em sede de instrução – e em ser julgado conjuntamente com aquela, para que a verdade dos factos e a pretensão punitiva do Estado possam ser efetivamente alcançadas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1839/18.6PIPRT-G.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Instrução Criminal do Porto – Juiz 2

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito dos autos de Inquérito n.º 1839/18.6PIPRT-G.P1, a correr termos na 2.ª Secção do DIAP Regional do Porto, foi proferido, em 03-01-2021, despacho de arquivamento quanto ao apuramento da responsabilidade criminal da denunciada AA pela eventual prática do crime violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a), do CPenal (sendo queixoso BB) e despacho de acusação contra BB pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, al. a), e 2, do CPenal, em que é ofendida AA.
Perante este despacho, BB arguiu, em 15-03-2021, a verificação de nulidade, pela circunstância do Ministério Público não ter procedido à realização das diligências probatórias necessárias para a descoberta da verdade material, pugnando pela invalidade do despacho de arquivamento e pelo suprimento daquela, com a análise da prova documental e pericial, bem como pelas diligências probatórias requeridas.
Veio ainda, na qualidade de assistente, requerer, a 29-03-2021, a abertura da instrução relativamente ao arquivamento do processo na parte em que era apurada a responsabilidade criminal da denunciada AA pela eventual prática do crime violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a), do CPenal.
E requereu, na qualidade de arguido, a abertura de instrução quanto à acusação de que foi alvo.
Por despacho de 09-04-2021, a Senhora Juiz de Instrução decidiu não reconhecer a nulidade arguida e ainda rejeitar por inadmissibilidade legal o requerimento para abertura da instrução relativo ao arquivamento dos autos.
Deste despacho de 09-04-2021 recorreu o arguido e assistente BB, vindo o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 08-09-2021, a considerar que «o JIC não se pronunciou sobre a alegada insuficiência do inquérito que fora invocada atempadamente pelo recorrente (…), tendo lavrado o seu despacho com base num erro de interpretação do requerido» e que «[a] omissão de pronúncia no caso concreto, perante um requerimento que expressamente arguia uma nulidade, é de tal modo grave que o despacho recorrido se deverá considerar inexistente, no que a esta questão diz respeito», razão pela qual determinou que os autos baixassem à 1.ª Instância para que fosse proferido despacho sobre o requerimento do recorrente que arguiu nulidade ocorrida na fase de inquérito, ficando prejudicada a segunda questão relativa à rejeição do requerimento para abertura da instrução (doravante, RAI).
Enquanto decorria esta tramitação, paralelamente, por decisão de 13-07-2021 foi ainda pronunciado o arguido nos termos da acusação contra si deduzida e determinado o prosseguimento dos autos para julgamento.
Veio o mesmo arguir a nulidade/irregularidade do procedimento, uma vez que não havia sido proferido qualquer despacho de determinar a separação de processos, pugnando pela extemporaneidade da remessa do processo para julgamento.
Por despacho de 09-11-2021, a Senhora Juiz do julgamento entendeu que assistia razão ao arguido, atento para além do mais o teor do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08-09-2021, e determinou a remessa dos autos ao Tribunal Central de Instrução Criminal.
Aí, por despacho de 30-11-2021, a Senhora Juiz de Instrução, dando cumprimento à decisão do Tribunal da Relação do Porto, apreciou o requerimento respeitante à arguição de nulidade do inquérito e concluiu, de novo, que a mesma não se verificava, logo decidindo que a decisão não admitia recurso e determinando a remessa do processo para julgamento.
O arguido BB, para além de invocar várias nulidades respeitantes à tramitação do processo, veio, em 05-01-2022, apresentar recurso do despacho de 30-11-2021.
Por despacho de 22-01-2022 a Senhora Juiz de Instrução entendeu que já havia decidido que o despacho de 30-11-2021 não era recorrível e que nada mais tinha a apreciar a tal propósito.
O arguido reclamou dessa decisão e por decisão de 20-04-2022 a Senhora Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto entendeu que assistia razão ao reclamante, tendo revogado o despacho reclamado e determinado a sua substituição por outro que admitisse o recurso interposto.
Cumprida esta decisão e subido o recurso, o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 21-09-2022, veio dar parcial razão ao recorrente, considerando quanto à questão da suscitada nulidade do inquérito que «é inegável o aqui recorrente BB suscitou a nulidade por insuficiência de inquérito mas dirigiu o requerimento ao juiz de instrução criminal.
No entanto, perante a substância do requerimento e pese embora o mesmo lhe fosse dirigido, devia a M.ma JIC ter imediatamente determinado, salvo o devido respeito por opinião diversa, a sua remessa ao Ministério Público para apreciação e decisão, por ser este o competente para o efeito, tal como assinala nos argumentos que desenvolveu na decisão recorrida, reforçados até com citação de jurisprudência[1].
Todavia, não o tendo feito e interpretando-o como RAI, interpretação essa que o arguido/assistente BB acabou por subscrever expressamente, é óbvio que a única conclusão que se pode extrair é a de que a invocada nulidade de insuficiência de inquérito se mostra sanada por não ter sido atempadamente suscitada perante a autoridade judiciária competente, ou seja aquela que praticou o acto, nada mais havendo a ordenar a tal propósito, porquanto o próprio interessado ao aceitar que a sua peça processual correspondia a um requerimento de abertura de instrução (bem como a subsequente tramitação nesse sentido, v.g. a realização de debate instrutório), impossibilitou que se considere agora que o requerimento devia ser submetido à apreciação do Ministério Público por estar mal dirigido ao JIC.
Ademais, como resulta do anteriormente exposto, nunca este Tribunal ad quem poderia determinar a nulidade do despacho de arquivamento formulado pelo Ministério Público e ordenar que este analisasse a prova documental e pericial e realizasse as diligências probatórias pretendidas pelo recorrente, já que nem os actos de inquérito encabeçados pelo Ministério Público estão sujeitos a impugnação por via de recurso, nem os juízes podem ordenar ao titular do inquérito a realização de diligências probatórias ou sequer indicar-lhe quais os actos que deve praticar com vista à concretização das finalidades inscritas no art. 262º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal.
Improcede, por conseguinte, a pretensão do recorrente nesta sede.»
E quanto à rejeição do RAI entendeu que «é perfeitamente claro que a narração factual (…) possibilita a responsabilização criminal, não havendo dúvidas sobre a identidade da arguida que se pretende ver pronunciada, o grau de participação nos factos e respectivo contexto, lugar e tempo em que se verificaram, nem sobre as disposições legais que o aqui recorrente entende aplicáveis ao caso já que as citou expressamente, tal como especificou as provas que, em seu entender, já constam dos autos e sustentam a imputação, sem prejuízo das demais provas cuja produção requereu, não cabendo aqui apreciar se tal tese colhe merecimento ou não já que tal juízo só pode ser feito na decisão instrutória. Ou seja, a narrativa que consta do RAI não só enquadra suficientemente, como também deixa transparecer, a existência de actuação criminosa que pode, justificadamente, ser imputada, à arguida, a título de facto e de direito (alega-se factualidade que densifica os requisitos típicos da infracção, para além do elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo)», razão pela qual revogou o despacho que decretou a inadmissibilidade legal da instrução que o mesmo formulou nos autos e determinou a sua substituição por outro «que declare aberta a instrução e dê seguimento aos devidos trâmites e actos de tal fase processual, mantendo no mais o decidido embora por razões diversas das invocadas pelo tribunal a quo

Em face do assim decidido, o arguido BB veio, por requerimento de 22-09-2022, requerer, uma vez mais, o regresso da parcela do processo que havia seguido para seu julgamento ao Juízo de Instrução Criminal e a desmarcação da data já designada para a audiência de julgamento.
A assistente, AA, manifestou a sua oposição ao assim requerido.
Com vista no processo, o Ministério Público junto do Juízo Local Criminal considerou que «[a]tendendo ao teor da decisão que julgou parcialmente procedente o recurso interposto pelo assistente/aqui arguido BB e decidiu revogar o despacho que decretou a inadmissibilidade da instrução e que ordenou que fosse substituído por outro que declare aberta a instrução e dê seguimento aos devidos trâmites e atos de tal fase processual, considero que tal tem repercussões nos presentes autos pelo que, por uma questão de economia processual promovo a remessa dos autos ao Tribunal de Instrução Criminal.»
E por despacho de 18-10-2022 a Senhora Juiz do Juízo Local Criminal que presidiria ao julgamento entendeu que «em face do teor do teor do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, e perante todas as vicissitudes que os presentes autos têm vindo a conhecer, pese embora nos encontrarmos perante um processo que se reveste de carácter urgente, entendemos que os mesmos devem em face da aludida decisão superior regressar ao Tribunal de Instrução Criminal, por se entender que os factos pelos quais vem o arguido BB acusado, não podem ser apreciados sem que, primeiramente, se aprecie da eventual responsabilidade criminal de AA, em sede de instrução.
De facto, pese embora o assistente BB pretender ver, no final da instrução, pronunciada a arguida AA da prática de um crime de violência doméstica, perpetrado na sua pessoa e, encontrar-se acusado da prática de um crime de idêntica natureza perpetrado na pessoa desta, por factos que são diferentes mas que terão ocorrido no mesmo período temporal, em nosso modesto entendimento, atendendo à natureza jurídica complexa de que o crime de violência doméstica se reveste, não podemos deixar de apreciar os factos conjuntamente, importando saber-se, antes de mais, o desfecho da fase da instrução, no âmbito da qual será apreciada a conduta imputada pelo assistente à arguida AA.
Deste modo, em face do exposto, remetam-se os autos ao Tribunal de Instrução Criminal, para os fins aí tidos por convenientes, dando-se consequentemente sem efeito as datas que se mostravam agendadas para a realização da audiência de julgamento.»
Dessa decisão foi expedida notificação nessa mesma data aos intervenientes.

Remetida aquela parte do processo ao Juízo de Instrução Criminal em 28-10-2022, e aberta vista ao Ministério Público, veio este, contrariamente à posição assumida pela mesma entidade no Juízo Local Criminal, manifestar o entendimento de que devia ser declarada a separação de processos, prosseguindo de imediato para julgamento o processo em que BB era arguido, tramitando-se em separado o processo, em fase de instrução, em que é arguida AA.
Por despacho de 29-11-2022, a Senhora Juiz de Instrução Criminal proferiu o despacho que é objecto do presente recurso e que é do seguinte teor:
«Pela Sr.ª Juiz do Juízo Criminal Local de Valongo foi proferido o despacho com a referência 441269099, datado de 18/10, onde se refere, “De facto, pese embora o assistente BB pretender ver, no final da instrução, pronunciada a arguida AA da prática de um crime de violência doméstica, perpetrado na sua pessoa e, encontrar-se acusado da prática de um crime de idêntica natureza perpetrado na pessoa desta, por factos que são diferentes mas que terão ocorrido no mesmo período temporal, em nosso modesto entendimento, atendendo à natureza jurídica complexa de que o crime de violência doméstica se reveste, não podemos deixar de apreciar os factos conjuntamente, importando saber-se, antes de mais, o desfecho da fase da instrução, no âmbito da qual será apreciada a conduta imputada pelo assistente à arguida AA.
Deste modo, em face do exposto, remetam-se os autos ao Tribunal de Instrução Criminal, para os fins aí tidos por convenientes, dando-se consequentemente sem efeito as datas que se mostravam agendadas para a realização da audiência de julgamento”.
Sobre tal posição pronunciou-se o MºPº nos seguintes termos:
“Nestes autos BB, encontra-se acusado pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art.º 152.º do Cód, Penal, na pessoa da ofendida AA.
Por seu turno, BB denunciou AA, pela prática de factos que, poderiam, eventualmente, constituir crime idêntico.
Findo o inquérito o Ministério Público determinou o arquivamento dos autos nesta parte e, é relativamente a esta, que os autos se encontram agora em fase de instrução.
Acresce que foi já interposto recurso da decisão que anteriormente rejeitou o RAI, encontrando-se estes autos pendentes desde 16.11.2018, ou seja, há 4 anos.
Este processo reveste natureza urgente no que respeita a ambas as denúncias, embora uma delas, por força das reações do assistente se encontre pendente, não sendo de todo desejável que arraste consigo a totalidade do seu objeto, antevendo-se, ou pelo menos, sendo ainda possíveis outras reações que poderão adiar ainda mais o seu desfecho e tornar a decisão inútil no que a acusação já deduzida respeita.
Com efeito, prevê o art.º 30.º do Cód. de Proc. Penal que “oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou do lesado, o tribunal faz cessar a conexão e ordena a separação de algum, alguns ou de todos os processos sempre que:
a) …
b) A conexão puder representar um risco para a realização da justiça em tempo útil, para a pretensão punitiva do Estado ou para o interesse do ofendido, do assistente ou do lesado;
c) ….
d) ….”
Por tudo o exposto entendemos que deve ser ordenada a extração de certidão de todo o processado e remetida para julgamento a parte atinente à acusação proferida contra BB, até porque o objeto das denúncias é autonomizável”.
Concordamos totalmente com a sua posição, acrescentando apenas que, qualquer das decisões que vier a ser proferida no âmbito da instrução requerida por BB na qualidade de assistente (pronúncia ou não pronúncia) é sindicável através de recurso, pelo que ao extenso período em que o mesmo, na qualidade de arguido, não é julgado por crime de natureza urgente, acresce todo um período de instrução, sindicância do despacho que vier a ser proferido, prazos do recurso e decisão superior.
Como bem refere o MºPº, com o tempo já decorrido, em breve se torna inútil o julgamento do arguido…
Assim, extraia certidão de todo o processado para efeitos de instrução e remeta para julgamento o processo original para julgamento de BB, conforme acusação e despacho de pronúncia, há muito regularmente produzidos.
DN (atenta a natureza urgente dos autos, não se aguarda o trânsito em julgado da presente decisão).»
*
Inconformado com esta decisão, recorreu o assistente, solicitando que seja revogado o despacho recorrido, apresentando nesse sentido, as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
I. O despacho proferido, vem no seguimento do Douto Acórdão, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, datado de 21/09/2022, com a referência Citius 16102577, Tribunal da Relação do Porto julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo assistente BB e revogar o despacho que decretou a inadmissibilidade da instrução que o mesmo formulou nos autos, o qual deve ser substituído por outro que declare aberta a instrução e dê seguimento aos devidos trâmites e actos de tal fase processual, mantendo no mais o decidido embora
II. O despacho recorrido, pelo qual o Mmº Juiz de Instrução Criminal pretende a separação de processos é o primeiro despacho proferido após o mencionado Acórdão e após o trânsito do processo para o JIC, ainda antes de ter declarada aberta a instrução, conforme ordenado no mencionado Acórdão.
III. Sendo, também por esse motivo, demasiado cedo para aferir da existência do motivo risco para a realização da justiça em tempo útil, para a pretensão punitiva do Estado ou para o interesse do ofendido, do assistente ou do lesado” e não tendo, salvo sempre o devido respeito, que é muito, por opinião diversa, qualquer fundamento ou justificação legal para ter sido proferido.
IV. Para além de que, o atraso verificado decorre, em primeiro lugar, de vários erros na fase de inquérito, mas principalmente, dos atrasos para os quais diversas decisões do JIC determinadamente contribuíram para o arrastar dos presentes autos, obrigando o ora Recorrente a ter de interpor já dois recursos e uma reclamação contra a não admissibilidade de um desses recursos. Recursos e reclamação essa, que deram origem aos Doutos Acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação do Porto, datados de 08/09/2021 e 21/09/2022, com as referências Citius 14911652 e 16102577, respetivamente e da, igualmente Douta, Decisão singular, datada de 20/04/2022, com a Referência 15664138, a qual deferiu “a reclamação apresentada pelo assistente/reclamante com a consequente revogação do despacho reclamado que deve ser substituído por outro que admita o recurso interposto.”, isto quanto ao segundo daqueles recursos.
V. A separação de processos é um mecanismo legal que deve ser utilizado de forma restritiva e com parcimónia. No caso em apreço, é por demais evidente que a separação dos processos causará sérios prejuízos que resultam da duplicação de julgamentos sobre os mesmos factos (testemunhas há, que terão que se deslocar do estrangeiro, com os transtornos daí decorrentes), que ocorrerá, quando, estamos certos, a Arguida AA for igualmente pronunciada, dados os inúmeros indícios já carreados para os autos e da prova que ainda se espera venha a ser produzida em sede de instrução.
VI. Por outro lado, para além do princípio da boa gestão e economia processual, que justifica o instituto da conexão de processos neste tipo de casos, a separação dos mesmos é a solução que pior se coaduna com os fins do processo penal e para a questão fundamental da descoberta da verdade.
VII. A separação dos processos não é a regra e está delimitada aos casos previstos taxativamente no art. 30º, nº 1 do C.P.P..
VIII. Ora, não se vislumbra, no caso sub judice, elementos concretos que permitam o preenchimento de qualquer um desses casos, designadamente o da alínea b) invocada no despacho de que se recorre: “A conexão puder representar um risco para a realização da justiça em tempo útil, para a protensão punitiva do Estado ou para o interesse do ofendido, do assistente ou do lesado”.
IX. Ao separar os arguidos em dois processos o Mmº JIC violou a denominada vinculação temática e o principio da identidade do processo, segundo o qual, o objeto do processo deve manter-se o mesmo até ao trânsito em julgado do processo, sendo que a separação tolhe de forma decisiva e injustificadamente o cabal exercício dos direitos de defesa do ora Recorrente, com uma clara violação do disposto no artigo 32º, nº 1 da Constituição, na medida que impede a avaliação em simultâneo dos factos que efetivamente foram praticados pelos aqui dois Arguidos e as respetivas responsabilidades.
X. O arrastar do processo não pode ser imputado ao ora Recorrente, que se tem limitado a exercer o seu legítimo direito de defesa, com sucessivas decisões do JIC a serem revogadas pelos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto, nem este pode ser prejudicado por um atraso de que não tem qualquer culpa pois, a ser assim, verifica-se uma clara violação do princípio do fair trial, do acesso equitativo ou da lide leal, tal como prevista nos artigos 20º, nº 4 e 32º, nº 1 da nossa Constituição!
XI. Sendo que, também o Assistente, ora Recorrente, tem o direito ali previsto, a uma decisão em prazo razoável!
XII. Correndo-se mesmo o risco, com a separação dos processos e decorrendo da prova que venha a ser produzida em cada um desses processos, de haver contradição entre os factos que se consideram, ou não, provados em ambos os processos e com condenações ou absolvições contraditórias nos dois processos separados.
XIII. Note-se que, sendo os factos em apreço nestes autos praticados no mesmo período temporal e estando relacionados entre si, compare-se o RAI do Assistente e Acusação proferida contra o Recorrente, veja-se o caso paradigmático dos factos mencionados no ponto 9º, da acusação proferida contra o ora Recorrente. Sendo essencial a prova de quem efetivamente enviou essas mensagens, se o ora Recorrente, como refere a acusação, ou se foi a Arguida AA, quem as enviou a si mesmo, decorrente do facto de ter acesso a um cartão gémeo associado ao número utilizado pelo aqui Recorrente. A separação dos processos, vai criar a necessidade de duplicar a prova, correndo-se o risco de decisões contraditórias, quanto a estes mesmos factos.
XIV. Assim, os prejuízos muito significativos que resultam da multiplicação de julgamentos sobre os mesmos factos, em termos de economia, mas também para a descoberta da verdade, apontam obviamente para a maior contenção no uso desta faculdade.
XV. A própria fundamentação do despacho aqui colocado em crise.
XVI. Quanto à natureza urgente, ambos os crimes, têm essa natureza urgente e estão umbilicalmente relacionados, não se vislumbrando qualquer necessidade na separação dos processos - o usual nestas situações e com crimes desta natureza, é ambos serem conjuntamente sujeitos a um único julgamento e, volta-se a repetir, o tempo decorrido, não decorre da responsabilidade do aqui Recorrente.
XVII. De igual forma, não se entende o comentário constante do despacho em apreço lugar porque, do que se tem conhecimento, é entende, porque nem se quer é explicado, de que forma é que o tempo decorrido pode em breve tornar inútil o julgamento do arguido ou em que medida pode a decisão ser inútil no que à acusação já deduzida respeita (trata-se, nos dois casos de afirmações meramente conclusivas e nem sequer concretizadas)?...
XVIII. Esta logica permitiria também concluir, que o tempo decorrido também torna inútil o julgamento da Arguida AA?...
XIX. No sentido do supramencionado, entre outros, o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido no âmbito do processo n.º: 26/08.6IDSTB-A.E1, consultável em http://www.dgsi.pt/, cujo sumário refere:
1. A separação de processos deve ser exercida de forma deveras restritiva. Os prejuízos muito significativos que resultam da multiplicação de julgamentos sobre os mesmos factos, em termos de economia, mas também para a descoberta da verdade, apontam para a maior contenção no uso desta faculdade.
2. O Juiz de Instrução Criminal deve ser o juiz que acautela as liberdades dos cidadãos face à impetuosidade da investigação criminal, mas não tem de ser o juiz das dificuldades sistemáticas para a investigação criminal.
XX. Por conseguinte, não existe qualquer motivo legal que fundamente a separação dos processos, devendo a mesma ser admitida com todas as legais consequências, incidente.
XXI. Por todo exposto, entende o ora Recorrente que o Mmº JIC no despacho de que se recorre fez uma errada interpretação da lei, com violação, designadamente, do art. 30º, nº 1 alínea b), do C.P.P. e do disposto nos artigos 20º, nº 4 e 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.»
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O Ministério Público junto do Tribunal recorrido pugnou pela improcedência do recurso e pela manutenção do despacho recorrido.
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Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente, secundando e desenvolvendo a resposta apresentada pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido.
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Notificados nos termos do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, o recorrente comunicou que renunciava ao prazo de resposta e a assistente veio manifestar a sua adesão à posição do Ministério Público.
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Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.
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II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[2].
A única questão que cumpre apreciar é a de saber se perante o contexto processual dos autos se justifica ou não a decisão de separação de processos.

Já enunciámos de forma particularizada as vicissitudes do processo, estando enunciados no essencial os elementos necessários à decisão.
A primeira observação que a tramitação dos autos nos suscita é a de que a decisão recorrida proferida em 29-11-2022 pela Senhora Juiz de Instrução Criminal procurou contornar o decidido pela Senhora Juiz de julgamento, por despacho de 18-10-2022, naquela data já transitado em julgado, de que não podia «deixar de apreciar os factos conjuntamente, importando saber-se, antes do mais, o desfecho da fase de instrução, no âmbito da qual será apreciada a conduta imputada pelo assistente à arguida AA»[3].
Tendo a Senhora juiz de julgamento, em consonância, aliás, com a posição assumida pelo Ministério Público junto do Juízo Local Criminal respectivo, não se compreende que, perante exactamente o mesmo contexto processual[4], não só o Ministério Público junto do Juízo de Instrução Criminal venha contrariar posição anteriormente assumida por outro magistrado, como, principalmente, a Senhora Juiz de Instrução Criminal venha procurar anular aquela primeira decisão decretando a separação do processo, quando é certo que nessa altura a magistrada titular do processo em fase de julgamento já havia decidido, por despacho transitado em julgado, que iria aguardar a decisão instrutória relativamente à parte do processo objecto do arquivamento.
E mesmo a entender-se que processualmente a Senhora Juiz de Instrução Criminal poderia proferir o despacho recorrido – inutilmente, em face do decidido pelo Tribunal de julgamento –, sempre se dirá que os argumentos do Tribunal a quo, procurando fazer recair sobre o recorrente o odioso da demora do processo, são uma falácia.
As queixas apresentadas pelo recorrente, e das quais o mesmo dá nota no seu requerimento para abertura da instrução, datam de 11-11-2018, 11-12-2018, 03-02-2019 e 10-02-2019, como se comprova também pela consulta dos autos.
No despacho de arquivamento datado de 01-03-2021 é abordada a questão da clonagem pela denunciada AA do cartão de telemóvel do recorrente, mas nem uma palavra se profere a propósito do demais que foi pelo mesmo participado.
E compulsados os autos, até ao momento, não há qualquer apreciação de mérito dessa parcela das participações.
Por incúria do Ministério Público e manifesta pressa em tramitar os autos e remetê-los para a fase seguinte por parte da Senhora Juiz de Instrução Criminal, como as decisões do Tribunal da Relação do Porto proferidas nos autos dão nota, até ao momento, isto é, ao longo de mais de quatro anos, ninguém analisou verdadeiramente uma parcela significativa das participações apresentadas pelo recorrente, que se viu obrigado a um calvário processual para que finalmente alguém se pronuncie em termos de mérito sobre esses factos, independentemente do resultado que a final, com o trânsito em julgado da decisão instrutória que será proferida, se vier a apurar.
É que, processualmente, tanto é vítima AA como o é o recorrente e tanto tem aquela direito a uma Justiça célere como a tem este.
E se foi percorrido um longo caminho ao longo destes mais de quatro anos até se chegar à fase de instrução requerida pelo arguido face ao arquivamento decidido, basta compulsar os autos para ver que a responsabilidade por esses atrasos não são imputáveis ao recorrente, que, como alega, apenas quis fazer valer os seus direitos, antes e apenas a uma incorrecta tramitação processual em fase de inquérito e de instrução, como, repete-se, dão nota veemente as anteriores decisões proferidas neste Tribunal da Relação do Porto.
A Senhora Juiz do julgamento tem toda a razão ao afirmar que os factos são complexos e que quando temos queixas recíprocas de violência doméstica, relativas a um mesmo pedaço de vida dos envolvidos, dificilmente se fará um julgamento com efectivo apuramento da verdade se se coartar a possibilidade de julgar a globalidade da situação em causa, abrindo-se, neste caso, a porta a decisões contraditórias sobre a mesma questão de fundo.
Analisados os fundamentos previstos no art. 30.º do CPPenal para determinar a separação de processos não encontramos neles qualquer argumento que conceda prevalência à posição de uma vítima face a outra, pois se AA tem direito e interesse em ver julgado o mais rapidamente possível o arguido, este, na qualidade de assistente, também tem direito a ver julgados o mais rapidamente possível os factos que imputou à arguida – sendo essa a solução a que se chegue em sede de instrução – e em ser julgado conjuntamente com aquela, para que a verdade dos factos e a pretensão punitiva do Estado possam ser efectivamente alcançadas.
Ademais, não há arguidos privados de liberdade (al. a)), os interesses dos dois ofendidos e da pretensão punitivo Estado só se realizam cabalmente com o eventual julgamento conjunto dos factos globais (als. b) e c)), inexistindo qualquer situação prevista na al. d).
E qualquer questão de natureza cautelar que possa surgir será necessariamente tratada no âmbito de processo autónomo, já que respeitará a factos que são posteriores aos apreciados nestes autos.
Assim, e sem prejuízo da possibilidade de uma reavaliação da situação descrita, em face da posterior tramitação dos autos, que tem de ficar sempre salvaguardada, não se justifica neste momento, processual e substancialmente, a decisão de separação de processos, que deve ser revogada, devendo, sim, ser imprimida celeridade à realização da fase de instrução, com salvaguarda dos direitos de defesa do arguido. E finda a fase de instrução e transitada em julgado a decisão instrutória que haverá de ser proferida, serão então os autos remetidos para julgamento do arguido e, eventualmente, sendo esse a decisão, da arguida.
*
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso apresentado pelo arguido BB e, em consequência, revogar o despacho recorrido, mantendo-se a conexão de processos.
Sem tributação.
Notifique.

Porto, 19 de Abril de 2023
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
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[1] A nota de rodapé assumiu diferente numeração com a inserção do excerto do texto neste acórdão, correspondendo-lhe originalmente o número de ordem 10 e sendo do seguinte teor: «O simples facto do requerimento estar mal dirigido não obsta ao seu conhecimento pela autoridade competente como, aliás, acontece noutros casos, designadamente quando um sujeito processual interpõe recurso para o STJ e é da competência do Tribunal da Relação ou vice-versa
[2] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[3] Sublinhado da relatora.
[4] Naturalmente que uma alteração relevante das circunstâncias processuais poderá conduzir a uma reapreciação da decisão, sendo certo que caberá sempre ao juiz do julgamento a última palavra sobre qual o adequado âmbito do julgamento.