Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
395/15.1TXPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: DECLARAÇÃO DE CONTUMÁCIA
PRISÃO SUBSIDIÁRIA
TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DE PENAS
Nº do Documento: RP20150916395/15.1TXPRT-A.P1
Data do Acordão: 09/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A declaração de contumácia decorrente do artigo 97º, nº 2, do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade é aplicável a uma situação de prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pr395/15.1TXPRT-A.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – O Ministério Público veio interpor recurso do douto despacho do 1º Juízo do Tribunal de Execução das Penas do Porto que não declarou a contumácia de B…, condenado em pena de multa que não pagou e veio, por isso, a ser convertida em prisão subsidiária.

Da motivação do recurso constam, em síntese, as seguintes conclusões:
- a decisão recorrida é alicerçada no facto de a pena de prisão subsidiária ser uma pena de multa na sua natureza e na sua essência, natureza e essência que se mantém mesmo que em cumprimento em estabelecimento prisional (uma vez que não cabe na previsão do artigo 97º, nº 2, do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade, o qual só abrange a pena de prisão aplicada a título principal).
- No entanto, não há qualquer distinção prática entre o cumprimento de uma pena de prisão a título principal e o de uma prisão subsidiária correspondente a uma pena de multa.
- Mal se compreenderia que o Estado, no exercício do seu ius punendi, não consagrasse para a prisão subsidiária a possibilidade de, como nas outras penas de prisão, ser declarada a contumácia, para aquele condenado que dolosamente se subtraia, total ou parcialmente, ao cumprimento;
- Tal representaria um prémio para todos aqueles que se eximam dolosamente ao cumprimento dessa pensa.
- A declaração de contumácia pode verificar-se ainda antes de qualquer condenação numa pena; não parece que não possa aplicar-se a uma situação como a presente.
- A aplicação de penas curtas de prisão também é importante na perspetiva da prevenção geral.
- Deve, pois, o despacho recorrido ser revogado, sendo substituído por outro, que aprecie a possibilidade de declaração de contumácia, uma vez que foi violado o artigo 97º, nº 2, do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se deverá ser declarada a contumácia de B…, condenado em pena de prisão subsidiária resultante da conversão de pena de multa.

III – É o seguinte o teor do douto despacho recorrido:

«Veio o processo da condenação solicitar ao TEP a prolação de declaração de contumácia relativamente a condenado (a) em pena de multa cujo pagamento não efectuou, circunstância que determinou, naquele processo, a prolação de despacho que fixou e determinou a execução da correspondente prisão subsidiária a cumprir.
Cumpre apreciar.
A prisão subsidiária não constitui, em sentido formal, uma pena de substituição, antes se tratando de uma medida que visa conferir consistência e eficácia à pena de multa, a qual pode, ainda assim, ser paga a todo o tempo, no todo ou em parte – artigo 49º, nº 2, do CP.
Ou seja, mesmo após a conversão da multa em prisão subsidiária, a pena aplicada na sentença continua a ter a natureza de multa.
Esta realidade suscita desde logo a questão de saber se, nestes casos, é constitucionalmente admissível proceder à restrição de direitos do(a) condenado(a) que a declaração de contumácia implica – cf. os artigos 335º e 337º do CPP.
Desde já se afirma que não.
Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 18º, n.º 2[1], 26º, n.º 1[2], ambos da CRP, e 97º.º, n.º 2, do CEP, afigura-se que apenas em caso de existência de uma pena de prisão ou de uma medida de segurança de internamento para cumprir, total ou parcialmente, se afigura justificável o recurso à figura da contumácia, instituto que produz na esfera do destinatário os efeitos gravosos previstos nas disposições legais acima citadas.
Na verdade, somente no quadro de execução de reações penais de extrema ratio, cuja efectivação importe, necessariamente, o encarceramento, se tem como legitimada, à luz dos princípios aludidos, a aplicabilidade da figura da contumácia. Só aqui estaremos na presença de um interesse específico suficientemente legitimador em termos de permitir a afirmação da concordância prática do exercício da ação penal (com abrangência da execução da reação criminal) com restrição de direitos do cidadão contumaz[3].
No processo em presença, como já se viu, não estamos perante uma medida desse tipo.
Em função do exposto, entendo que, in caso, não há lugar à aplicação do disposto no artigo 138.º, n.º 4, alínea x), do CEP (com a alteração da Lei n.º 40/2010, de 3 de Setembro), pelo que determino, após trânsito em julgado do presente despacho, o arquivamento dos autos.
Notifique e comunique ao processo da condenação.»

IV – Cumpre decidir.
Considera o douto despacho recorrido, na esteira do acórdão da Relação de Coimbra de 25 de março de 2015 (proc. nº 95/11.1GATBU-A.C1, relatado por Luís Teixeira), que a declaração de contumácia decorrente do artigo 97º, nº 2, do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade, representa uma fórmula de intrusão em direitos, liberdades e garantias (designadamente o direito à capacidade civil), apenas consentido (à luz do artigo 18º, nº 3, da Constituição) na presença de um interesse legal específico relativo ao exercício da ação penal na sua vertente de aplicação, como sua extrema ratio, de uma pena de prisão ou medida de internamento, sendo que a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa não se confunde com uma pena de substituição dessa pena de multa, representa uma simples forma de constrangimento do pagamento dessa pena de multa, que se mantém como tal e, por isso, pode ser paga a todo o tempo. Ou seja, e por esses motivos, a declaração de contumácia decorrente do artigo 97º, nº 2, do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade será aplicável a uma pena de prisão aplicada como pena principal, não a uma pena de prisão subsidiária resultante da conversão de uma pena de multa.
Invoca, pois, o referido acórdão da Relação de Coimbra de 25 de março de 2015 a diferente natureza da pena de prisão aplicada como pena principal e a pena de prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa. Cita, nesse sentido, a opinião autorizada de Jorge Figueiredo Dias (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2005, pgs. 146 a 148). E também vários acórdãos que, nessa linha, consideram, porque a pena de multa se mantém e não é substituída pela prisão subsidiária, a relevância da condenação em pena de multa, e não da conversão desta em prisão subsidiária, para efeitos de prescrição da pena.
Vejamos.
Não suscita dúvidas a diferente natureza da pena de prisão aplicada a título principal, por um lado, e da prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa, por outro lado. Essa diferente natureza há de refletir-se em várias aspetos dos respetivos regimes. A questão está, porém, em saber se a declaração de contumácia em caso de recusa dolosa de execução dessas penas é, ou não, um dos aspetos em que se justifica essa diferença de regimes.
Considera o douto despacho recorrido, na esteira do acórdão da Relação de Coimbra citado, que essa diferença se impõe por a declaração de contumácia, com o que implica de restrição de direitos fundamentais, se justificar apenas quando está em causa a aplicação de uma pena de prisão como pena principal, enquanto extrema ratio do sistema penal, não quando está em causa a aplicação de uma pena de multa, mesmo que esta venha a ser convertida em pena de prisão subsidiária.
Há que considerar a este respeito, porém, o seguinte.
A declaração de contumácia não está, em termos gerais, reservada a situações que envolvam a aplicação de penas de prisão. Os artigos 335º a 337º do Código de Processo Penal são aplicáveis a qualquer processo penal, independentemente da gravidade do crime, ou da maior ou menor probabilidade de aplicação de penas de prisão. E nunca se suscitou a dúvida sobre a conformidade constitucional dessa aplicação alargada a qualquer processo e a qualquer crime.
Mas, para além dessa questão genérica, importa saber, mais especificamente, se se justifica, ou não, a aplicação do artigo 97º, nº 2, do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade, e da declaração de contumácia aí prevista, às situações de prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa. Ou seja, se este é, ou não, um dos aspetos em que se justifica a diferença de regimes entre as penas de prisão aplicadas a titulo principal e as penas de prisão subsidiária resultantes da conversão da pena de multa.
Afigura-se-nos que não se justifica essa diferença de regimes. Num e noutro caso, estamos perante uma “prisão” e é apenas à “prisão” que se refere o preceito em apreço. Num e noutro caso, estamos perante uma fortíssima privação da liberdade. Apesar de ao crime em causa ter sido aplicada uma pena de multa, o legislador admite e impõe essa privação de liberdade. Se admite esta tão grande restrição de um direito fundamental, não se vislumbra por que não há de admitir a privação de outros direitos fundamentais (não despiciendos, mas de relevo menor) que resulta da declaração de contumácia.
E é assim mesmo que a finalidade da prisão subsidiária seja a de constranger ao pagamento da multa. Se essa finalidade impõe a privação da liberdade, também impõe o recurso a mecanismos que assegurem efetivamente essa privação da liberdade. A intenção de evitar que condenados se subtraiam à execução da prisão, frustrando desse modo a condenação de que foram alvo e a eficácia do sistema judicial em geral, aplica-se, pois, quer a penas de prisão aplicadas a título principal, quer a penas de prisão subsidiárias resultantes da condenação em pena de multa.
Deve, pois, ser concedido provimento ao recurso.

V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, determinando que o douto despacho recorrido seja substituído por outro, que considere a possibilidade de declaração de contumácia de B…, nos termos do artigo 97º, nº 2, do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade.

Notifique

Porto, 16/9/2015
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo
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[1] “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
[2] Norma que, entre outros direitos, reconhece o relativo à capacidade civil.
[3] Neste sentido, cf. o acórdão do TRC de 25.05.2015, proferido no processo n.º 95/11.1GATBU-A.C1, relatado por Luís Teixeira (Juiz Desembargador).