Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2076/12.9TASTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MOTA RIBEIRO
Descritores: OMISSÃO DE INSTRUÇÃO
OMISSÃO DE REALIZAÇÃO DO DEBATE INSTRUTÓRIO
CRIME DE ABUSO DE PODER
Nº do Documento: RP202002192076/12.9TASTS.P1
Data do Acordão: 02/19/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Enquanto a nulidade (insanável) prevista no art.º 119.º, al. d), do Código de Processo Penal pressupõe a supressão de uma fase processual penal legalmente obrigatória (como são os casos do inquérito e da instrução, esta quando legalmente requerida), já a nulidade (sanável) a que alude o artigo 120.º, n.º 2, d), do mesmo Código tem com aquela uma relação de subsidiariedade, porquanto só poderá ocorrer se a primeira não se verificar, pressupondo, portanto, que haja inquérito ou instrução e que, tendo tido estas fases processuais de algum modo lugar, nestas não haja sido praticado qualquer ato que a lei considera obrigatório praticar (como acontece, na instrução, com o debate instrutório).
II - Verifica-se a nulidade (sanável) prevista no artigo 120.º, n. 2, d), do Código de Processo Penal quando, no decurso do debate instrutório, face à comunicação de alteração não substancial de factos e à junção de novos meios de prova pela arguida, não foi adiado e posteriormente reaberto tal debate, tendo sido apenas marcada data para a leitura da decisão instrutória.
III - O crime de abuso de poder configura um crime de intenção ou de resultado cortado, crimes nos quais se exige, para além do dolo do tipo, a intenção de produção de um resultado que, todavia, não faz parte do tipo objetivo de ilícito.
IV - O bem jurídico protegido através do tipo de crime de abuso de poder é a autoridade e credibilidade da administração do Estado, bem esse que é atingido quando este vê afetada a imparcialidade e eficácia dos seus serviços.
V - No caso em apreço, relativo à conduta de uma diretora de agrupamento escolar que terá interferido, no sentido de beneficiar uma sua filha, no procedimento de concurso para contratação por tal agrupamento de um técnico especializado, estão indiciados os elementos objetivos e subjetivos do crime de abuso de poder.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2076/12.9TASTS.P1 – 4.ª Secção
Relator: Francisco Mota Ribeiro
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
1. RELATÓRIO
1.1 Por despacho proferido a 11/09/2019, nos autos de instrução com o Proc.º nº 2076/12.9TASTS, que correu termos no Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos, Juiz 1, Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi decidido não pronunciar a arguida B… pela autoria de um crime de abuso de poder, previsto e punível pelo art.º 382º do Código Penal (CP).
1.2. Não se conformando com tal decisão, dela interpôs recurso a assistente C…, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões:
1.a - Os elementos de facto que fundamentaram a alteração da primeira decisão instrutória, determinando o arquivamento dos autos, relativamente à arguida B…, ou seja, conforme resulta da decisão recorrida, os documentos de fls. 1336 a 1338, não existiam no processo no momento em que foi realizado o debate instrutório.
2.ª - Sendo os elementos juntos aos autos posteriormente ao debate instrutório e à "primeira decisão instrutória" fundamentais para a alteração da decisão, teriam, obrigatoriamente, que poder ser objeto de discussão, oral e contraditória, no local e momento próprios, ou seja, o debate instrutório.
3.ª - Não houve, portanto, debate instrutório, na medida em que os elementos de facto e de direito fundamentadores da decisão instrutória não foram submetidos a contraditório, mediante discussão oral, perante o juiz.
4.a - Sendo a fase processual da instrução formada por um conjunto de atos de instrução que o juiz entenda levar a cabo e por um debate instrutório obrigatório, oral e contraditório, podendo, mesmo, a instrução ser enformada, apenas, pelo debate instrutório, a omissão do debate equivale à falta de instrução, constituindo, assim, uma nulidade insanável - artigo 119º, d), do Código de Processo Penal.
5.ª – Deve, pois, ser declarada nula a decisão instrutória recorrida, sendo marcada data para realização de debate instrutório, seguindo-se os ulteriores termos legais.
Não se entendendo assim:
6.ª Os documentos de fls. 1336 a 1338 mais não são do que a reação de inconformismo dos membros do júri, face à circular emitida pela Direcção-Geral da Administração Escolar que proibia a utilização dos critérios impostos pela Diretora para o segundo concurso e ao telefonema do Inspetor D…, da Inspeção-Geral de Educação e Ciência, aconselhando que "o Júri deveria reler a circular, procurando justificar a sua conduta através da busca do apoio de alguma entidade que, eventualmente, a pudesse sufragar.
7.ª - Objetivamente, o júri, tendo tido conhecimento de uma circular emitida pela Direção-Geral da Administração Escolar que proibia a utilização dos critérios impostos pela Diretora para o segundo concurso, bem como do telefonema do Inspetor D…, da Inspeção Geral de Educação e Ciência aconselhando que "o júri deveria reler a circular», deliberou dar cumprimento às orientações da arguida B…. Diretora da Escola, permitindo que o fim tido em vista por esta, com o propósito de beneficiar a sua filha fosse atingida em vez de procurar seguir as orientações da Direcção-Geral.
8.ª - A fundamentação inovadora da segunda decisão instrutória, em relação à primeira, refere-se, única e exclusivamente, à conduta dos arguidos que já não haviam sido pronunciados na primeira decisão, não havendo nada de aos autos que se refira à conduta da arguida B….
9.ª - A decisão recorrida, ao afirmar que não foi encontrada prova documental de que arguida tivesse conhecimento da ilegalidade do critério, não se pode ter fundamentado na prova junta aos autos após o debate instrutório, uma vez que, dos documentos que invoca como seu fundamento, nenhum faz referência à arguida ou às suas convicções íntimas.
10. ª - Assim, tendo a primeira decisão instrutória concluído, nomeadamente, que "a inclusão do estágio em Psicologia da Justiça num dos subcritérios relativos à experiência profissional/funções exercidos, em paridade com os estágios em Psicologia Escolar e Psicologia Clínica", "coincide precisamente com uma das habilitações académicas apresentadas por E…" (a filha da arguida B…], que "esses critérios foram aprovados em reunião do Conselho Pedagógico, órgão presidido pela arguida B… cfr. a respetiva ata de fls. 780 a 782", que "da referida ata consta que “foram apresentados os subcritérios para a contratação de um psicólogo, tendo sido aprovados por este conselho». o que indicia que foi a arguida a responsável pela apresentação daqueles subcritérios", que "Acresce que no segundo concurso foram alterados os subcritérios relativos ao conhecimento do meio escolar, sem qualquer deliberação do Conselho Pedagógico e sem qualquer justificação plausível", e, ainda, que "No nosso entender, essa alteração terá tido por objetivo afastar a possibilidade de a assistente ser pontuada com 30 pontos como havia sucedido no primeiro concurso"; tais conclusões não podem ser afastadas pelos documentos de fls. 1336 a 1338, que, recorde-se, no entender exposto na decisão recorrida, "indiciam que os membros do júri do segundo concurso não reconheceram como lesivos dos princípios da legalidade e da igualdade as subcritérios relativos ao conhecimento do meio escolar e da comunidade".
11.ª - Não são, pois, minimamente suficientes tais documentos para abalar a óbvia conclusão de que, conforme consta na primeira decisão instrutória, a arguida "cometeu um crime de abuso de poder na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 382º e 30º nº 2, do Código Penal".
12.ª - A arguida B…, lembre-se, não fazia parte do júri.
13.ª - A alegada a inexistência de motivo económico para a prática do abuso de poder, "designadamente, que a arguida suportasse despesas para auxiliar economicamente a sua filha", não resulta, também ela, obviamente, dos documentos juntos aos autos após o debate instrutório, como não pode deixar de ser considerado evidente, notório e do mínimo e elementar bom senso que o salário, o currículo, o tempo de carreira e de desconto para a segurança social, inerentes ao desempenho das funções cujo para o exercício das quais foi aberto o procedimento concurso! são compensações económicas para a filha da arguida, terceira beneficiária ilegítima do rendimento correspondente.
14.ª - Deve, em consequência, ser revogada a decisão instrutória, sendo a arguida B… pronunciada pela prática do crime de abuso de poder, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 382º e 30º, nº 2, do Código Penal.
15.ª - A sentença recorrida violou os artigos 382º e 30º, nº 2, do Código Penal, e 119º, d), e 298º do Código de Processo Penal.”
1.3. O Ministério Público respondeu, concluindo nos seguintes termos:
Pese embora não tenha sido observado o contraditório e os novos elemento de prova não tenham afastado a indiciação feita, entende o MP que o RAI não continha os factos e o elemento subjetivo necessário para a pronúncia da arguida pela prática de um crime de abuso de poder, na forma continuada, p. e p. pelo art.º 382º e 30º do Cód. Penal.
Entende-se, assim, que os novos factos comunicados à arguida, importam uma alteração substancial de factos, que inviabilizam a prolação de despacho de pronúncia.
Nestes termos, deve ser negado o provimento ao presente recurso”
1.4. A arguida também respondeu ao recurso, concluindo:
I. Analisando o recurso interposto com base numa incorreta interpretação das exigências normativas do art.º 303º, nº 1, do CPP, invocando a Recorrente a omissão do debate instrutório, que configura uma nulidade insanável (119, d)), a Recorrida entende que a atuação do JIC, bem como o douto despacho de não pronúncia não merece qualquer juízo de censura e que, por isso, deve ser integralmente mantido, conforme infra melhor se exporá.
II. A Recorrente invoca não ter sido notificada do exercício do contraditório pela Arguida quanto à alteração não substancial dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução por meio de alegações e junção dos respetivos documentos, tendo-lhe sido vedado o respetivo contraditório.
III. A Recorrida refuta opõe-se em absoluto a tal teoria, porquanto clara a opção do legislador pela exigência da comunicação apenas e só ao Arguido da alteração não substancial dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução por forma a garantir o exercício do direito de defesa.
IV. Tanto mais que, uma vez realizado o debate instrutório, o momento processualmente adequado para que a Recorrente se pronunciar quanto a novos indícios, de forma contraditória, perante o JIC, seria o momento imediatamente anterior ao da leitura da decisão instrutória, em que não compareceu.
V. Pelo que vai expressamente rejeitado o argumentado nesta matéria, carecendo a atuação do JIC, sempre em atento cumprimento das exigências legais, de qualquer reparo ou juízo de reprovação.
VI. Cumpre, por último, concluir pela absoluta discordância face alegada "magra fundamentação", da "segunda decisão instrutória".
VII. Da análise da fundamentação do douto despacho de não pronúncia, é inequívoco concluir o dever de especificação considera-se suplantado.
E a este respeito prescindimos de mais considerandos, por se entender que o despacho de não pronúncia é suficientemente claro e objetivo.
VIII. No mais, perfilha a Recorrida o sempre mui douto entendimento sufragado na decisão recorrida, pugnando assim peia sua confirmação.”
1.5. O Sr. Procurador-Geral-Adjunto, junto deste Tribunal, emitiu douto parecer, concluindo pela procedência parcial do recurso.
1.6. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
1.7. Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto e os poderes de cognição deste Tribunal, importa apreciar e decidir as seguintes questões:
1.7.1. Existência ou não da nulidade insanável, prevista no art.º 119º, al. d), do CPP;
1.7.2. Verificação ou não de indícios suficientes da prática do crime de abuso de poder, que a assistente pretende ver imputado à arguida, e assim determinar-se ou não a sujeição desta a julgamento, revogando-se ou confirmando-se a decisão recorrida.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Factos a considerar
2.1.1. A 14/02/2014 o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento do inquérito instaurado contra os arguidos F…, G… e H…, por considerar não existirem nos autos quaisquer indícios que permitam imputar-lhes a prática de qualquer ilícito criminal e designadamente a autoria de um crime de abuso de poder, previsto e punido pelo art.º 382º do Código Penal.
2.1.2. Notificada de tal decisão, veio a assistente C… requerer a abertura de instrução, concluindo deverem ser pronunciados os arguidos pela prática do crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.º 382º do CP.
2.1.3. Realizadas as diligências instrutórias, foi designado o dia 21/09/2018 para realização do debate instrutório, no qual, após usarem da palavra os sujeitos processuais presentes, foi proferido despacho a designar uma outra data para leitura da decisão instrutória;
2.1.4. Proferida e lida a 08/11/2018, em tal decisão foi decidido o seguinte:
“Pelo exposto e decidindo, nos termos do art.º 308º do Código de Processo Penal, não pronuncio os arguidos F…, G… e H…, ordenando nesta parte o arquivamento dos autos contra os mesmos.
Diferentemente, considerando o supra exposto tudo o mais alegado no requerimento de abertura de instrução, que aqui se dá por reproduzido nos termos e para os efeitos dos art.ºs 307º e 308º do Código de Processo Penal, considero suficientemente indiciados os seguintes factos adequados a fundamentar uma decisão de pronúncia da arguida B…:
(…)
Pelo exposto, cometeu um crime de abuso de poder, na forma continuada, previsto e punível pelos art.ºs 382º e 30º, nº 2, do Código Penal.
Porque tais factos constituem uma alteração não substancial dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução, concedo à arguida um prazo de oito dias para exercer o seu direito de defesa nos termos e para os efeitos previstos nomeadamente no art.º 303º, nº 1, do CPP.
Consequentemente, a leitura de uma decisão definitiva de pronúncia ou não pronúncia relativamente à arguida B… fica adiada sine die.”
2.1.5. A arguida pronunciou-se de fls. 1286 a 1328, concluindo que a alteração propugnada é uma alteração substancial e não uma mera alteração não substancial dos factos, invocando ainda razões pelas quais entende inexistir fundamento para a decisão de pronúncia pelo crime que lhe foi imputado na alteração operada pelo Tribunal a quo, juntando os documentos que constituem fls. 1329 a 1356;
2.1.6. Proferido despacho a 26/11/2018, aí se consignou: “para melhor apreciação, foi determinada a solicitação à I… da junção de movimentação bancária relativamente a contas tituladas ou co-tituladas pela arguida”; documentação essa que veio a ser remetida ao processo, a 12/07/2019, ficando junta aos autos de fls. 1362 a 1430;
2.1.7. Por despacho de 12/07/2019 foi designada a data de 11/09/2019, pelas 15H00 “para leitura da decisão instrutória relativa à arguida B…”, aí se consignando que não era obrigatória a comparência da arguida, nem da assistente, tendo sido os sujeitos processuais notificados de tal despacho;
2.1.8. Na data designada procedeu o Tribunal a quo à leitura da decisão instrutória, junta ao processo de fls. 1437 a 1439 – decisão ora recorrida.
2.1.9. Na respetiva ata fez-se constar que se encontravam presentes os convocados aí identificados, à exceção da arguida, da assistente e do respetivo mandatário, e ainda o seguinte: “pelo Mmº Juiz de Instrução foi declarada aberta a presente audiência, tendo de seguida procedido à leitura explicada da decisão instrutória que antecede.”
2.2. Fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos
2.2.1. Da existência ou não da nulidade insanável, prevista no art.º 119º, al. d), do CPP.
A assistente vem invocar no presente recurso a existência de nulidade insanável, por falta de instrução, a que se refere o art.º 119º, al. d), do CPP, alegando como fundamento, em síntese, o facto de o Tribunal a quo ter designado data para leitura da decisão instrutória sem que previamente tivesse determinado a realização de novo debate instrutório ou a continuação do anteriormente realizado, bem como a circunstância de o mesmo Tribunal ter proferido decisão instrutória com base em elementos de prova que não existiam no processo no momento em que havia sido realizado o primeiro debate instrutório, e determinado o seu adiamento, sine die. Concluindo a recorrente que a omissão do debate instrutório equivale à falta de instrução, e esta falta, por força do disposto no art.º 119º, al. d), do CPP, constitui nulidade insanável.
Importa agora decidir.
Sendo a falta de inquérito ou de instrução, uma omissão de realização dessas fases essenciais do processo penal (contanto que relativamente à segunda, porque legalmente facultativa, só existirá omissão, com o sentido de violação da obrigatoriedade da sua realização, para assim poder integrar a nulidade ali prevista, quando tal instrução haja sido requerida e no caso seja legalmente admissível[1]), então tal nulidade só ocorrerá quando estivermos “perante inexistência de facto ou de direito daquela fase processual.”[2] Só assim podendo também fazer sentido, aliás, a distinção entre o vício de falta de inquérito ou de instrução, gerador da nulidade insanável, a que alude o art.º 119º, al. d), do CPP, daqueloutro de insuficiência do inquérito ou da instrução, gerador de um outro tipo de nulidade, dependente de arguição e, também por isso, sanável, a que alude o art.º 120º, nº 2, al. d), do mesmo diploma. Neste último caso, tal nulidade ocorrerá quando no inquérito ou na instrução não sejam praticados atos legalmente obrigatórios.
Ou seja, enquanto a nulidade prevista no art.º 119º, al. d), pressupõe a supressão de uma fase processual penal legalmente obrigatória, como é o caso do inquérito, enquanto “conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação” (art.ºs 262º, nºs 1 e 2, do CPP), ou o caso da instrução (quando requerida, nos termos supra referidos), isto é, um conjunto de atos de instrução que o juiz entenda dever levar a cabo e, obrigatoriamente, um debate instrutório, oral e contraditório (art.ºs 286º, nºs, 1 e 2, 287º, nº 3, e 289º, nº 1, do CPP), já a nulidade a que alude o art.º 120º, nº 2, al. d), tem com aquela uma relação de subsidiariedade, porquanto só poderá ocorrer se a primeira não se verificar, pressupondo, portanto, que haja inquérito ou instrução e que, tendo tido estas fases processuais de algum modo lugar, nelas não haja sido praticado qualquer ato que a lei considera obrigatório praticar. Como acontece, na instrução, com o debate instrutório.
Chegados a este ponto é bom de ver que no caso dos autos, além de ter sido declarada aberta a instrução, que havia sido requerida pela assistente, foram nela realizados diversos atos instrutórios e foi ainda designada data para realização do debate instrutório, que ocorreu, pelo menos num primeiro momento, a 21/09/2019, data em que foi designado o dia 09/10/2018 para leitura da decisão instrutória.
Assim sendo, afigura-se-nos insustentável poder afirmar-se que nos autos ocorreu o vício de falta de instrução, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 119º, al. d), do CPP. Assim como, pelas razões supra referidas, não se nos afigura possível a equivalência pretendida pela recorrente entre a alegada omissão de um determinado ato instrutório com a falta de instrução em sentido próprio, acima referida, e já que, como vimos supra, a omissão de um ato que a lei considere obrigatório é espécie de vício diferente daquela outra, com a qual se encontra numa relação de subsidiariedade, pressupondo, portanto, que não ocorra a falta de instrução. Subsidiariedade essa que se manifesta ademais pela consequência legal que, para cada um dos vícios referidos, a lei impõe, traduzindo-a no primeiro caso numa nulidade insanável, oficiosamente cognoscível, e no segundo numa nulidade sanável, dependente de arguição – art.º 119º, nº 1, al. d), versus art.º 120º, nº 2, al. d), do CPP.
Podendo agora dizer-se, portanto, que de modo evidente não ocorre nos autos a nulidade a que alude o art.º 119º, al. d), do CPP invocada pela recorrente.
Assim sendo, e verificada que foi a realização da fase instrutória do processo, importaria agora apurar se foi efetivamente realizado ou não o debate instrutório legalmente imposto, para assim também sabermos se ocorreu ou não a nulidade que resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 120º, nº 2, al. d), e 289º, nº 1, do CPP. Questão que, aparentemente, poderia merecer uma resposta negativa, dada a circunstância de ter havido debate instrutório, na data para tal inicialmente designada, ou seja, 21/09/2018, findo o qual, isto é, depois de ter sido dada a palavra aos sujeitos processuais presentes, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 302º, nº 4, do CPP, foi designado o dia 09/10/2018 para leitura da decisão instrutória. Resposta negativa essa que, porém, não se nos afigura possível.
Na verdade, o que se retira dos autos é que, após a realização do debate acima referido, e na data aí designada para leitura da decisão instrutória, veio o Tribunal a constatar a existência de uma alteração não substancial dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução, limitando-se o Tribunal a quo, como resulta da respetiva “ata de leitura da decisão instrutória”, a ler tal decisão, na qual, no final, fez constar: “Consequentemente, a leitura de uma decisão definitiva de pronúncia ou não pronúncia relativamente à arguida B… fica adiada sine die”. Não atendendo ao disposto no art.º 303º, nº 1, do CPP, que nestes casos determina o adiamento do debate instrutório, se necessário, querendo obviamente, com a expressão “se necessário”, a lei dizer que só assim não será se não se justificar tal adiamento, nomeadamente por o arguido não requerer prazo para preparação da sua defesa. Mas a expressão “adiamento” do debate instrutório tem as mesmas implicações que a do adiamento da audiência de julgamento, isto é, incumbiria ao juiz designar uma outra data para ele se reiniciar[3], e no caso dos autos porque, notificada que foi dessa decisão, a arguida veio manifestar relativamente a ela a sua discordância, oferecendo novos meios de prova, que necessariamente implicavam a reabertura do debate instrutório, nos termos legais.
Ora, além de não ter sido designada nova data para realização de debate instrutório, face à alteração não substancial dos factos operada pelo Tribunal a quo, não foi sequer notificada a assistente da defesa deduzida pela arguida, incluindo a documentação com ela oferecida, limitando-se o Tribunal a designar uma outra data para leitura da nova decisão, agora para 11/09/2019, fazendo constar no respetivo despacho que não era obrigatória a comparência da arguida, nem da assistente. Procedendo na data apontada à leitura do despacho, agora de não pronúncia, e assim de sentido antagónico à pronúncia que anteriormente havia apresentado como proposta plausível, face aos elementos probatórios até aí recolhidos. E pese embora arvorasse aquela última decisão em novos elementos, entretanto carreados aos autos pela arguida, a verdade é que tais elementos, assim como o articulado de defesa por aquela apresentado, não foi comunicado à assistente, surgindo assim a decisão agora recorrida como uma verdadeira decisão surpresa, em flagrante violação do princípio do contraditório.
Acontece agora que, quer se considere estarmos perante uma falta de realização do debate instrutório, cujo reinício deveria ter tido lugar, por imposição do art.º 303º, nº 1, do CPP, considerando-se equivalente, para efeitos da nulidade que a omissão de tal ato pudesse representar, à luz do art.º 120º, nº 2, al. d), do CPP, tanto a falta absoluta de realização de debate instrutório como a ausência da sua realização nos casos em que o mesmo é legalmente imposto com fundamento no seu adiamento, quer ainda perante uma violação do direito ao contraditório, desde logo pelo não cumprimento, relativamente aos documentos entretanto juntos ao processo, do disposto no art.º 165º, nº 2, do CPP, ambos os vícios se encontram sanados.
De facto, a nulidade prevista no art.º 120, nº 2, al. d), não tendo a assistente estado presente no ato de leitura da decisão recorrida, deveria ter sido arguida no prazo de 10 dias, a contar da notificação daquela decisão, por ter sido através dela que a assistente teve conhecimento da ausência de realização do debate instrutório que previamente a tal decisão deveria ter tido lugar, e já que não podendo haver lugar à determinação do termo final do prazo para arguição de tal nulidade, com base no momento do encerramento do debate instrutório, como meridianamente resultaria da aplicação do disposto no art.º 120º, nº 3, al. c), do CPP, a mesma deveria ter sido suscitada no prazo supletivo legal, previsto no art.º 105º, nº 1, do CPP.[4] Enquanto que a defesa deduzida pela arguida contra a alteração não substancial dos factos anteriormente propugnada pelo Tribunal a quo, assim como a junção aos autos dos documentos que a sustentavam, apresentados pela arguida e considerados na decisão recorrida pelo Tribunal a quo à revelia da assistente, traduz uma irregularidade processual, à luz do art.º 123º do CPP, porquanto referente a vício a que a lei não faz corresponder a cominação de nulidade, sendo por isso classificada como irregularidade, desde logo pelo art.º 118º, nº 2 do CPP, a qual deveria ter sido arguida no prazo de 3 dias a contar da data em que a assistente dela conheceu, ou seja da data da notificação da decisão recorrida – art.º 123º, nº 1, do CPP[5].
Ora, considerando-se a assistente notificada da decisão recorrida no dia 25/09/2019, porquanto da declaração de depósito junta aos autos resulta que a respetiva carta de notificação foi depositada pelo funcionário dos correios a 20/09/2019, tendo-se por isso a assistente como notificada no 5º dia seguinte a esse, nos termos do art.º 113º, nº 3, do CPP, e só tendo depois disso vindo aos autos interpor recurso daquela decisão, por requerimento entrado 30 dias depois, ou seja 25/10/2019, é bom de ver que nesta data já há muito havia decorrido o prazo de arguição da nulidade e da irregularidade acima referidas, as quais se devem considerar sandadas, também para efeitos da possibilidade do seu conhecimento em sede de recurso, ao abrigo do disposto no art.º 410º, nº 3, do CPP, porquanto um tal conhecimento pressupõe que as mesmas se não considerem sanadas[6].
Razão por que, nesta parte irá ser negado provimento ao recurso.
2.2.2. Da verificação ou não de indícios suficientes da prática do crime de abuso de poder que a assistente pretende ver imputado à arguida, e assim determinar-se ou não a sujeição desta a julgamento, revogando-se ou confirmando-se a decisão recorrida
Recordemos que o Tribunal a quo, por decisão proferida a 08/11/2018, propôs aos sujeitos processuais, e em especial à arguida, aquilo que considerou ser uma alteração não substancial dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução deduzido pela assistente, concluindo que, nos termos e para os efeitos do disposto nos art.ºs 307º e 308º do CPP, considerava suficientemente indiciados os seguintes factos (no seu entender adequados a fundamentar uma decisão de pronúncia da arguida B…), os quais passamos de seguida a descrever, incluindo aqueles ali indicados por remissão para o respetivo requerimento de abertura de instrução:
a) A arguida B… era Diretora do Agrupamento de Escolas J… e Presidente do Conselho Pedagógico do mesmo Agrupamento quando, em outubro de 2012, foi aberto o concurso para a contratação, por aquele Agrupamento, de um Técnico Especializado - Licenciado em Psicologia/Psicólogo, para o ano letivo de 2012/2013;
b) Sabedora desse concurso e do interesse da sua filha E…, que se encontrava sem emprego, em concorrer, a arguida, aproveitando-se daquelas funções e da sua posição enquanto Diretora do Agrupamento de Escolas e Presidente do Conselho Pedagógico, nomeou ela própria o júri do concurso constituído pelos seus colegas de escola e de Agrupamento, F…, H… e G…, definiu os subscritores de seleção e classificação dos candidatos que fez aprovar pelo Conselho Pedagógico do Agrupamento, acompanhou os procedimentos relativos ao concurso e influenciou a decisão tomada pelo júri em 06/11/2012, de anular concurso;
c) Para além disso, em 13/11/2012, nomeou outros membros do júri para o segundo procedimento concursal, iniciado em 15/11/2012, reuniu com eles em 19/11/2012, por forma a manter, com algumas alterações, o subcritérios aprovados na reunião do Conselho Pedagógico de 03/10/2012, tudo de forma a prejudicar e favorecer a sua filha, que foi selecionada para o lugar e horário a concurso, com base num critério - conhecimento do meio escolar e da comunidade J… - e nos respetivos subcritérios, que haviam sido alterados para prejudicarem a assistente e que vieram a ser declarados ilegais pela DGAE, ilegalidade de que tinha conhecimento;
d) Não contente com tal designação, procedeu, ela própria, à alteração dos subcritérios a aplicar ao concurso;
e) Esta alteração de critérios beneficiou, objetivamente, a filha da arguida, em termos de que esta tinha perfeito conhecimento.
f) De facto, onde, no primeiro concurso, constava “Conhecimento do meio escolar e da comunidade J…: Conhecimento direto do meio escolar (funções de SPO) do concelho e conhecimento direto da comunidade e meio envolvente - 30 pontos; Conhecimento direto do meio escolar do concelho (funções de SPO) e conhecimento indireto da comunidade e meio envolvente - 15 pontos; Conhecimento da comunidade através de contextos de trabalho variados indiretamente ligados com a educação - 10 pontos; Sem conhecimento direto do meio escolar e da comunidade envolvente - 5 pontos”; no segundo concurso, passou a constar: “Conhecimento do meio escolar e da comunidade J…: Conhecimento direto do meio escolar- funções de SPO no mínimo a meio tempo em escolas do concelho - e conhecimento direto da comunidade e meio envolvente - 30 pontos; Funções de SPO no mínimo a meio tempo em escolas fora do concelho e conhecimento direto da comunidade e meio envolvente. – 20 pontos”;
g) Ou seja, passou a ser critério, pontuado com 30 pontos, “meio tempo de serviço” em escolas do concelho. Só quem tivesse trabalhado em escolas do concelho, no mínimo a meio tempo, e residisse em J… é que poderia ser avaliado com 30 pontos;
h) O Júri e a Diretora do Agrupamento de Escolas tinham perfeito conhecimento, em virtude do anterior concurso, da declaração de tempo de serviço da Escola J1…, de J…, onde a requerente (assistente) tinha desempenhado funções de SPO, sabendo, também, que a requerente (assistente), no mesmo período, estivera a trabalhar a tempo inteiro no SPO de uma escola de outro concelho (ainda que confinante: K…).
i) Não poderia, portanto, ter desenvolvido tal trabalho a meio tempo, na Escola J1… (desenvolveu-o em regime de prestação de serviços).
j) Já a filha da arguida, tendo trabalhado, conforme consta do deu portefólio, na Escola L…, como psicóloga, e sendo residente em J… é que podia ser avaliada com os 30 pontos correspondentes ao critério.
k) Posteriormente, no dia 26 de novembro de 2012, a própria arguida recusou à ofendida e ao Advogado de que esta se fez acompanhar, para o efeito, Sr. Dr. M…, o exame e a consulta dos processos administrativos, tendo permitido, apenas, o acesso aos documentos que ela própria, arguida, entendeu dever permitir.
l) A arguida agiu não só como se fizesse parte do Júri, mas, verdadeiramente, como quem, de facto, determinasse a vontade de tal órgão colegial.
m) A arguida agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de fazer com que a sua filha viesse a aceder às funções e lugar em concurso, em clara violação dos deveres de isenção e imparcialidade inerentes às suas funções, que tal constituía um benefício ilegítimo para a sua filha em detrimento de outros candidatos;
n) A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei;
Pelo exposto, cometeu um crime de abuso de poder na forma continuada previsto e punível pelos artigos 382º e 30º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Ora, a factualidade acima descrita, que o Tribunal a quo, num primeiro despacho, considerou suficientemente indiciada, encontra fundamento probatório direto e indireto nos meios de prova referidos naquela mesma decisão, desde logo o documento junto de fls. 859 a 901, acórdão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, de 19/03/2015, proferido no processo nº 98/13.1BEPNF, movido pela ora assistente contra o Ministério da Educação, no qual se considerou que os argumentos apresentados pela Escola eram “de molde a justificar a anulação do concurso e à abertura de um novo, tratando-se de uma medida desproporcionada cujo interesse público não justifica”. Aí se acrescentando que “a publicação das listas definitivas quando ainda não havia decorrido o prazo de dez dias destinado à reclamação dos candidatos excluídos”, apresentada como justificação pelo Júri para anular o concurso, “não justifica a anulação de todo o procedimento concursal, pois para sanar essa irregularidade bastaria anular a publicitação da lista definitiva e conceder prazo aos candidatos para exercerem o seu direito de audição.” Na mesma decisão se considera que as demais justificações apresentadas pelo Júri “não são suficientes para sustentar a anulação de todo um procedimento concursal, pois a existirem essas deficiências o Júri deveria ter-se limitado a reformular a atribuição das ponderações a cada um dos subcritérios alterando a lista de ordenação final.” E mais adiante se diz ainda: “Ora, todos os argumentos invocados pelo Júri não são de molde a justificar a anulação do concurso não se vislumbrando que interesse público pretendeu o júri prosseguir com tal anulação. Todos os argumentos avançados pelo Júri justificam tão só a reformulação da pontuação da candidata e publicação de uma nova lista.” E ainda: “Se o agrupamento de Escolas necessitava daquele docente não se justifica anular um concurso com o qual já tinham sido despendidos recursos do Estado e se volta ao início publicitando um novo concurso. E muito menos se justifica como publicita um novo procedimento concursal para satisfazer a mesma necessidade alterando os critérios definidos no primeiro concurso.” E mais adiante, após análise dos critérios definidos pelo Júri na reunião de 04/10/2012, cotejando-os ademais com as disposições legais aplicáveis, nomeadamente o art.º 39º, nº 11, do DL nº 132/2012, de 27/06 (que estabelecia o novo regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário e de formadores e técnicos especializados), a Portaria nº 83-A/2009, de 22/01/2009, que regulava a tramitação do procedimento concursal, nos termos do nº 2 do art.º 54º da Lei nº 12-A/2008, de 27/02, assim como outras disposições legais pertinentes, concluiu o mesmo Tribunal que a Autora, ora assistente, e a contrainteressada não poderiam ter obtido a mesma pontuação, devendo ser atribuída à primeira a pontuação de 35 pontos, por ser detentora de um tempo de serviço na área educacional de mais de 8 anos e essa pontuação seria bastante para que, a ora assistente ficasse em primeiro lugar, “tendo por referência a primeira grelha de registo da entrevista ao candidato a psicólogo.”
Acontece que numa reunião de 05/11/2012, o Júri decidiu reapreciar o portefólio da ora assistente, retificando aquilo que qualificou como erros de pontuação, sendo certo que tal reunião se destinava a apreciar a reclamação da ora assistente. Considerando-se na sentença em referência que tal aproveitamento da reunião pelo Júri merece censura, sendo ainda que “padece de erro grosseiro a apreciação do Júri em avaliar com zero pontos o critério ‘experiência profissional/funções exercidas’, uma vez que a autora (aqui assistente) desenvolveu projetos no âmbito da educação especial/insucesso escolar, comprovando-os, descrevendo-os e apresenta evidências concretas da existência dos mesmos, pelo que o Júri do procedimento não logrou afastar a pontuação de 12% que havia dado anteriormente. No que respeita ao critério ‘conhecimento do meio escolar e da comunidade de J…’, a atuação do Júri do procedimento de considerar que a Autora (ora assistente) foi avaliada com 30 pontos na primeira opção e deverá ser avaliada com dez pontos (terceira opção), visto que não prova as funções de SPO em escolas do concelho, já que exerceu a sua profissão num externato doutro concelho, padece de ilegalidade, por estarmos perante um critério que viola o princípio da igualdade, como se passa a explanar.”
Concluindo-se de seguida no mesmo aresto que “a Autora deveria ter obtido uma pontuação superior à da contrainteressada assistindo-lhe o direito a ser graduada em primeiro lugar e ao respetivo recrutamento no concurso para a contratação de Técnico Especializado – Licenciado em Psicologia/Psicólogo, horário nº …, de …../2013, Agrupamento de Escolas J…, código ……, publicado através de aviso, na página eletrónica do Agrupamento de Escolas J…, no dia 06 de novembro de 2012.”
Os factos referidos no acórdão acabado de citar estão ancorados nos documentos juntos aos presentes autos, e pese embora, como bem referiu o Tribunal a quo, a respetiva decisão não faça caso julgado, relativamente aos sujeitos processuais dos presentes autos, o cotejo da mesma e das ilegalidades nela registadas, alicerçadas ainda nos documentos juntos ao processo, fazem com se mostrem indiciadas as violações da lei cometidas pelo Júri, nos termos aí referidos.
A questão está agora em saber até que ponto as ilegalidades cometidas pelo Júri, do qual não fazia parte a arguida, podem também ser objetivamente imputadas a esta e de modo a podermos afirmar que se mostra suficientemente indiciado que a mesma preencheu, com a sua conduta, o tipo objetivo do crime de abuso de poder, previsto e punido pelo art.º 382º do Código Penal.
Isto é, antes de procurarmos saber se ocorre nos autos a específica intencionalidade com que possa ter agido a arguida, na grave violação dos deveres que lhe incumbia, enquanto elemento subjetivo adicional, exigido por aquele tipo legal[7], que o legislador considerou essencial para o apuramento da responsabilidade penal do agente, ao dizer ser necessário que este tenha agido com a intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, exigindo-se, portanto, que a sua conduta seja orientada “em ordem a atingir esse mesmo resultado”[8], com o sentido, desde logo, de ficar afastado o dolo eventual, precisamente por o crime de abuso de poder estar estruturado como um crime de intenção ou de resultado cortado, crimes nos quais se exige, para além do dolo do tipo, a intenção de produção de um resultado, que, todavia, não faz parte do tipo objetivo de ilícito[9], antes disso importará saber se esse dolo do tipo existe, e se este, isto é, o tipo objetivo se mostra efetivamente preenchido. O que implica saber se ocorre a possibilidade, face à prova recolhida nos autos, de imputar objetivamente à arguida as condutas que integram as ilegalidades cometidas no processo de recrutamento através de concurso para a contratação de Técnico Especializado – Licenciado em Psicologia/Psicólogo, para o Agrupamento de Escolas J…, nos termos supra referidos.
Para nos auxiliar na compreensão do que concretamente está em causa nos autos, importa ter presente o bem jurídico que aquele tipo-de-ilícito visa proteger, o qual vem sendo entendido como “a autoridade e credibilidade da administração do Estado”, bem esse que é atingido quando o Estado vê “afetada a imparcialidade e eficácia dos seus serviços”. Sendo o mesmo reflexo da exigência de um princípio fundamental da organização do Estado, consagrado constitucionalmente nos art.ºs 266, 268º e 269º, nº 1, da CRP, em particular no nº 2 do art.º 266º, ao referir que “os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade”[10].
A prova produzida nos autos, numa primeira e muito perfunctória análise, levar-nos-ia a afirmar não ser possível imputar à arguida as ilegalidades diretamente apontadas ao funcionamento do Júri, acima referidas e suficientemente indiciadas nos autos, das quais resultou um claro prejuízo para a assistente, em benefício da filha da arguida, como se concluiu no acórdão acima referido, pois a arguida não integrou esse mesmo Júri. Porém, a intervenção da arguida no processo que marcou as ilegalidades do procedimento do concurso, incluindo os resultados consequenciais das decisões do Júri – cujas deliberações sobre o concurso, nomeadamente as listas de graduação dos candidatos, das quais saiu ilegalmente beneficiada a filha da arguida e prejudicada a assistente - foi marcada, ela própria, por diversas ilegalidades.
Ora, resultam dos autos claramente indiciados os seguintes factos (os quais a própria arguida invoca, ou não põe em causa, como se pode constatar, nomeadamente da declaração por si assinada, junta a fls. 946 e documentos a ela anexos):
- O primeiro aviso de concurso para contrato de trabalho a termo resolutivo incerto, para o ano letivo de 2012/2013, tendo em vista a prestação de serviços de psicologia e orientação, teve a data de 08/10/2012 – doc. de fls. 953;
- A 11/10/2012, a arguida enviou ao Diretor Regional de Educação do Norte o email junto a fls. 962, no qual, fazendo referência ao nº 1 do art.º 47º do Código de Procedimento Administrativo, declarava o seu impedimento de participar no processo de seleção de um psicólogo, concurso aberto por oferta de escola, por se enquadrar no descrito na al. b) do art.º 46º do Código de Procedimento Administrativo (CPA). Aí acrescentando que havia dado conhecimento do seu impedimento ao Júri de seleção.
Aproveitemos para referir que o art.º 44º, nº 1, al. b), do CPA, à data em vigor, sob a epígrafe “Casos de impedimento”, estabelecia que nenhum titular de órgão ou agente da Administração Pública podia intervir em procedimento administrativo ou em ato ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública, entre outros casos, “quando, por si ou como representante de outra pessoa, nele tenha interesse o seu cônjuge, algum parente ou afim em linha reta ou até ao 2.º grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem viva em economia comum”.
Registe-se que a filha da arguida, E…, é precisamente parente em linha reta da arguida, porque desta descendente – art.º 1580º, nº 1, do CC. Definição de parentesco esta que é do conhecimento geral.
Ou seja, tudo apontando para que, pelo menos nessa data, a arguida já soubesse que a sua filha iria concorrer.
Sendo que por força do art.º 45º do mesmo diploma incumbia à arguida comunicar qualquer impedimento, como aliás o veio a fazer, ao seu superior hierárquico, nos termos supra referidos, assim como, nos termos impostos pelo art.º 46º, nº 1, deveria suspender a sua atividade no procedimento, logo que fizesse essa comunicação.
Ou seja, logo a partir do dia 11/10/2012, deveria a arguida suspender qualquer atividade que direta ou indiretamente pudesse ter influência no andamento do procedimento do concurso.
- Apesar disso, foi aberto um 2º concurso, a 15 de novembro de 2012, sendo o despacho de nomeação do Júri, isto é dos docentes que o integravam, de 13 de novembro de 2012, assinado pela arguida, na qualidade de Diretora do Agrupamento de Escolas J… – doc. de fls. 956;
- Vindo a arguida, por despacho de 22/11/2012, a delegar no Subdiretor as suas competências para praticar atos de homologação ou outros necessários, da sua competência, decorrentes do concurso aberto para Psicólogo, oferta de escola – doc. de fls. 957;
- E a 23/11/2012, a comunicar, mais uma vez, ao Diretor Regional de Educação do Norte, o seu impedimento em participar no processo de seleção de um psicólogo, por se enquadrar no descrito na al. b) do art.º 46º do CPA. Aí acrescentando, novamente, que havia dado conhecimento do seu impedimento ao Júri de seleção – fls. 962.
Ora, sabendo como já sabia, e não podia ignorar, como aliás resulta do primeiro email por si remetido ao Diretor Regional, a comunicar o seu impedimento, que não podia intervir no procedimento concursal, sob pena de pôr em causa a credibilidade, isenção e imparcialidade que legalmente é exigível à administração do Estado, e a quem nele exerce funções, e devendo além disso suspender a partir daquela comunicação, ocorrida a 11/10/2012, qualquer atividade por si protagonizada relacionada com um tal recrutamento, outra razão se não vislumbra para a sua atuação senão a de pretender manter, por um lado, a realização de procedimentos de aparente legalidade, a um certo nível formal, como as comunicações de impedimento ao superior hierárquico que foi fazendo, mas, por outro lado, acabando na prática por adotar uma conduta ilegal de intervenção ao longo de todo o processo de recrutamento, procurando claramente influenciá-lo, ora nomeando os respetivos elementos do júri, ora intervindo na reunião em que foram discutidos critérios de seleção. Não se vislumbrando que em tais intervenções pudesse haver uma outra razão que não fosse a intenção de favorecer a sua própria filha, E…, como aliás veio efetivamente a acontecer. Não sendo crível que, tendo a filha da arguida vivido na casa desta, indiciariamente pelo menos até 20/02/2012, como se deduz do contrato de arrendamento junto de fls. 832 a 835, denotando ademais esta última, nas declarações que prestou, como bem referiu o Tribunal a quo, conhecer pormenorizadamente os sucessos profissionais daquela, incluindo uma avaliação elogiosa que havia recebido numa entrevista recente, e não soubesse a arguida que a sua filha iria concorrer àquele emprego. Sendo, aliás, apesar da data em que comunicou pela primeira vez o seu impedimento ao superior hierárquico, muito improvável que antes disso não soubesse já que a sua filha iria concorrer, tanto mais que esta exercia funções a tempo parcial na Escola EB 2/3 J2…, escola onde a arguida também trabalhava, e na qual, como resulta da ata de fls. 780 a 782, na reunião do Conselho Pedagógico, ali ocorrida a 03 de outubro de 2012, presidida pela arguida, entre outros assuntos, foram estabelecidos os critérios do concurso, no qual a filha da arguida acabou por se candidatar. Sendo por isso também plausível que a razão da inclusão do subcritério, aí decidido, referente ao estágio na área da Psicologia da Justiça, em paridade com os critérios em Psicologia Escolar e Psicologia Clínica, visasse adaptar o concurso ao currículo da candidata filha da arguida, já que se trata de subcritério não ponderado em concursos idênticos, ao contrário do que a arguida veio alegar nos autos, isto é, que o mesmo tenha sido colocado usando exemplo seguido em concurso numa Escola N…, sendo certo que tal facto resulta negado pelo teor dos documentos juntos a fls. 794, 795 e 805 a 809 dos autos, como bem havia referido o Tribunal a quo no despacho de fls. 1268 dos autos.
Podendo assim concluir-se que indiciados se mostram nos autos os pressupostos típicos objetivos e subjetivos do crime de abuso de poder, a que alude o art.º 382º do CP. Desde logo, porque a arguida, na qualidade de funcionária, nos termos previstos no art.º 386º do CP, violou deveres inerentes às suas funções de funcionária, tendo agido, sabendo e querendo agir nos termos em que fez, acima descritos, e assim com dolo direto, relativamente ao preenchimento da conduta típica objetiva – art.º 14º, nº 1, do CP. E sendo certo que o preenchimento de tal tipo de crime não se basta com a violação dos deveres inerentes às funções exercidas pelo funcionário, nos termos em que o mesmo resulta conformado pelas disposições conjugadas dos art.ºs 382º e 386º do CP, exigindo além disso que o agente haja levado a cabo a respetiva conduta com uma específica intencionalidade, isto é, com o objetivo de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é bom de ver que, desde logo, o benefício ilegítimo, que em concreto poderá assumir natureza patrimonial ou não patrimonial, porquanto o que a lei exige é que tal benefício seja ilegítimo[11], também se mostra indiciado, na medida em que dos autos resulta suficientemente indiciado, face aos meios de prova recolhidos, que a arguida, ao agir como agiu, fê-lo com a específica intenção de beneficiar ilegitimamente a sua filha, E….
Como decorre do disposto no art.º 308º, nº 1, do CPP, só a recolha, até ao encerramento da instrução, de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, permite a prolação de um despacho de pronúncia. Caso contrário o juiz deverá proferir despacho de não pronúncia.
A articulação lógica dos meios de prova disponíveis, tendo em conta ademais as regras da experiência comum, usando, por outro lado, como se impõe em casos como o dos autos, a chamada prova indireta, indiciária ou por presunção, que permitindo a demonstração da realidade de factos que não integram o tema da prova, nos termos em que este resulta definindo no art.º 124º do CPP, permitem, todavia, através da lógica e das regras da experiência, chegar à demonstração da realidade destes últimos, levam-nos a concluir, para além de qualquer dúvida relevante ou razoável, que no caso dos autos se mostram suficientemente indiciados os factos imputados à arguida pela assistente no requerimento de abertura de instrução, com as alterações operadas no despacho de fls. 1265 a 1270. Conclusão esta tirada desde logo com base nos meios de prova e nas ilações probatórias a partir deles extraídas, nos termos acima expressos. E de molde a podermos concluir como verificada nos autos a existência de indícios suficientes, a que alude o art.º 308º, nº 1, do CPP, ou seja, a possibilidade razoável de à arguida vir a ser aplicada uma pena, como resulta do art.º 282º, nº 2, do CPP para a dedução da acusação, ou, num sentido mais próximo do ensinamento do Professor Castanheira Neves, isto é, tendo por base “um critério de certeza probatória (o critério de verdade prática)”, segundo o qual deverá “exigir-se aquele tão alto grau de probabilidade prática quanto possa oferecer a aplicação esgotante e exata dos meios utilizáveis para o esclarecimento da situação – um tão alto grau de probabilidade que faça desaparecer a dúvida (ou logre impor uma convicção) a um observador razoável e experiente da vida ou, talvez melhor, a um juiz normal”[12] –, também somos levados a concluir no sentido da probabilidade prática razoável de a arguida vir a ser condenada, e em termos tais que não subsistem dúvidas relevantes relativamente à probabilidade de uma tal condenação.
Diga-se, por fim, que ao contrário do sustentado pela arguida, a alteração ao acervo factual descrito no requerimento de abertura de instrução, operada pelo Tribunal a quo, através do despacho de 08/11/2012, já acima referido, constitui uma mera alteração não substancial dos factos descritos naquele requerimento, porquanto, para que fosse substancial necessário seria que, nos termos do art.º 1º, al. f), do CPP, a mesma tivesse por efeito a imputação à arguida de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. O que não aconteceu. Mantendo-se, além disso, todos os factos objeto da alteração no âmbito do “acontecimento ou pedaço de vida”, relativamente ao qual vinha referido, desde o início, o concreto “juízo de subsunção jurídico-penal”, isto é, a autoria pela arguida de um crime de abuso de poder, previsto e punido pelo art.º 382º do CP.
Por outro lado, em relação a uma tal alteração, exerceu a arguida o seu direito ao contraditório, de harmonia com o disposto no art.º 303º, nº 1, do CPP, e nos termos que constam de fls. 1286 e ss., juntando ainda os documentos de fls. 1329 a 1356, cujo teor, assim como o teor dos documentos posteriormente remetidos ao processo, não vislumbramos que permitam pôr em causa os indícios probatórios acima referidos.
Razão por que irá ser concedido provimento ao recurso interposto pela assistente, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-se a mesma por outra que pronuncie a arguida pelos factos descritos no requerimento de abertura de instrução, com as alterações oportunamente determinadas nos autos.
3. DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação do Porto em:
a) Concedendo provimento ao recurso interposto pela assistente C…, revogar a decisão recorrida e, consequentemente, com os fundamentos de facto e de direito constantes do requerimento de abertura de instrução, com as alterações determinadas no despacho de fls. 1269 e 1270, nos termos acima referidos no ponto 2.2.2., al. a) a n), e os fundamentos de facto e de direito supra referidos, pronunciar a arguida B…, pela autoria, na forma consumada, de um crime continuado de abuso de poder, p. e p. pelos art.º 382º e 30º, nº 2, do Código Penal.
Sem custas.

Porto, 19 de fevereiro de 2020
Francisco Mota Ribeiro
Elsa Paixão
__________
[1] José Souto de Moura, Jornadas de Direito Processual Penal, Livraria Almedina, Coimbra, 1989, p. 118; Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, I Volume, 2ª edição, Editora Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 604; e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008, p. 304; e Ac. do STJ, de 02/02/1994, BMJ, 434, 423.
[2] Ac. do STJ, de 11/07/2007, Pº n.º 07P1610, 3ª Secção.
[3] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008, p. 799, em anotação ao art.º 304º do CPP, e p. 851.
[4] Neste sentido, João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Almedina, Coimbra, 2019, p. 1261, § 48.
[5] João Conde Correia, Idem, p. 1296.
[6] Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, p. 1359, e João Conde Correia, Idem, p. 1299, § 28
[7] Recordemos que o art.º 382º do Código Penal, sob a epígrafe “Abuso de poder”, diz o seguinte: “O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
[8] Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 780.
[9] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, p. 379 a 381.
[10] Paula Ribeiro de Faria, Idem, p. 774.
[11] Paula Ribeiro de Faria, Idem, p. 778.
[12] Sumários de Processo Criminal (1967-68), dactilografados por João Abrantes, Coimbra, 1968, p. 53 e 54.