Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
26936/15.6T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA ALMEIDA
Descritores: ERRO MÉDICO
NECESSIDADE DE PROVA PERICIAL
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP2019030826936/15.6T8PRT.P1
Data do Acordão: 03/08/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULAÇÃO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 691, FLS 240-266)
Área Temática: .
Sumário: I - Da natureza cogente ou objetiva do ónus da prova e dos princípios subjacentes ao atual sistema processual civil resulta para o julgador o poder-dever de ordenar as diligências que considere necessárias à descoberta da verdade material.
II - A prova da responsabilidade civil do médico, no caso de dificuldades probatórias ou de persistência da dúvida, vislumbra-se como um momento essencial do processo judicativo. Porque assim é, não pode o juiz limitar-se a afirmar que ao lesado ou suposto lesado, porque onerado com a demonstração da ilicitude (e, dependente das situações, também da culpa), cabe conformar-se com as consequências de um possível erro que não demonstra, sem que mobilize todo o conjunto de meios de prova (mormente pericial) que se vislumbre possível em cada situação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 26936/15.6T8PRT.P1

Sumário do acórdão, elaborado pela sua relatora, nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
AUTORA: B..., com domicílio na Av. ..., n.º ..., ....
RÉUS: C..., médico neurocirurgião, com domicílio profissional no Hospital da D..., sito na ..., Porto
E... – Companhia de Seguros, SA (atualmente F...), com sede na Av. ..., lote ..., 4.º, Lisboa.

Por via da presente ação declarativa pretende a A. obter a condenação dos RR. a pagarem-lhe o valor global de € 255.519,45, a título de indemnização por danos não patrimoniais e patrimoniais que alega ter sofrido mercê de lesão causada pelo primeiro R. aquando da intervenção cirúrgica que realizou à A.
Alega que da atuação do R. resultou para A. lesão traumática medular, o que sucedeu quando este médico procedia à discetomia e extirpação de duas hérnias discais cervicais de que padecia a demandante.
A Ré será responsável porque para si foi transferida a responsabilidade pelos danos decorrentes da atuação profissional do facultativo.

Contestando, o R. considera não ter sido alegada na petição qual o erro por si cometido, sendo que a A. sabia não ser a cirurgia isenta de riscos, que lhe foram comunicados. Ademais, em momento algum do procedimento, o R. perdeu o domínio do gesto, não tendo exercido qualquer pressão traumática sobre a medula.

Por sua vez, a Ré seguradora, em contestação, alude à existência de franquia no contrato de seguro e à falta de elementos que permitam firmar a responsabilidade extracontratual do co-R.

Foi apresentado segundo articulado pela A., após o que foi realizada audiência prévia que, de imediato, designou data (s) para julgamento.

Foi proferida sentença, datada de 1.6.2018, a qual julgou a ação improcedente e absolveu os RR. do pedido.
Foram aí dados como provados e não provados os factos seguintes:
Provados
1.º Na 1.ª quinzena de Novembro de 2012, a Autora consultou o 1.º R., médico neurocirurgião da cidade do Porto, no Consultório sito na Avenida ..., após ter sentido dor na omoplata direita.
2.º A Autora apresentava um quadro de dor irradiada ao longo do membro superior direito com cerca de 7 semanas de evolução.
3.º O quadro de dor tinha-se demonstrado resistente aos diversos tratamentos conservadores efectuados, nomeadamente, fisioterapia e prescrição medicamentosa, e interferia com a qualidade de vida da Autora.
4.º Realizado exame neurológico, era evidente um défice motor do tricípede sem défice sensitivo.
5.º A RMN demonstrou uma hérnia discal C6-C7 responsável pela dor e outra hérnia C5-C6.
6.º Neste contexto de dor com boa correlação clínico-imagiológica, o 1º R. indicou à A. o tratamento cirúrgico para a cura.
7.º Na consulta médica que antecedeu a cirurgia, que teve lugar no dia 19 de Novembro de 2012, a Autora perguntou ao 1º R. que tempo levaria a recuperação da cirurgia.
8.º Ao que o 1.º R. respondeu que seriam 15 dias e que após esses 15 dias poderia retomar o trabalho de escritório, uma hora de manhã e outra de tarde, e que ao fim de um mês, teria praticamente liberdade para trabalhar a tempo inteiro.
9.º No dia 19 de Novembro de 2012 a A. foi internada no Hospital D... e sujeita à intervenção cirúrgica proposta pelo 1.º Réu.
10.º Os procedimentos cirúrgicos consistiram em: discectomia C6-C7, extirpação de hérnia discal C6-C7, colocação de cage cervical C6-C7, discectomia C5-C6, extirpação de hérnia discal C5-C6 e colocação de cage cervical C5-C6.
11.º A cirurgia propriamente dita decorreu sem qualquer intercorrência aparente.
12.º No período pós-operatório precoce, segundo lhe transmitiu o 1º R., a A. fez episódio hipotensivo severo (60-20 mm Hg) com algum distress respiratório.
13.º Quando acordou da anestesia, a A. apenas disse ao 1º R. “salve-me”…
14.º A A. apresentava uma paresia dos membros direitos.
19.º O 1.º R. havia explicado à A. da possibilidade de ter sofrido um AVC no período pós-operatório precoce, ou um edema pulmonar.
20.º Em 25 de Janeiro de 2013, a A. foi submetida a RMN cerebral e cervical.
21.º O exame cerebral apresentava-se normal, sem alterações de relevo.
22.º Já o exame cervical permitiu concluir pela existência de um foco de sofrimento medular direito em C5-C6, com evidente nexo de causalidade com os sintomas de paresia dos membros direitos apresentada.
23.º O 1.º R. admitiu a existência de uma “complicação cirúrgica”.
24.º Em 17 de Abril de 2013 e em 19 de Novembro de 2013, a A. repetiu RX cervical e o RMN cervical de controlo.
25.º A Autora consultou o Professor Doutor G..., médico especialista em neurocirurgia, professor catedrático, de competência reconhecida nacional e internacionalmente.
26.º O Professor Doutor G... elaborou o relatório médico em que refere que procedimento cirúrgico realizado era o que estava indicado na situação clínica que a A. apresentava.
27.º No caso da A., verificou-se um quadro motor neurológico e sensorial incapacitante que afectou os membros direitos.
28.º A responsabilidade civil por actos médicos praticados pelo 1º R. encontrava-se à data transferida para a 2.ª Ré por contrato de seguro com apólice nº ..........., sendo o capital seguro de € 300.000,00.
29.º O sinistro foi participado à 2ª R. pelo 1.º R.
30.º A autora apresenta:
Pescoço: cicatriz rosada, linear, de características cirúrgicas, não aderente aos planos profundos, não hipertrófica, sensivelmente horizontal, na transição da região cervical lateral direita com a anterior, com 5 cm de comprimento
31.º A data da consolidação das lesões se situa em 28 de Abril de 2014
32.º Foi fixado à A. um quantum doloris de grau 4 numa escala crescente de 7 graus.
33.º E um dano estético de grau 1 numa escala crescente de 7 graus.
34.º Em termos de danos permanentes foram atribuídos à A. 19 pontos de Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica, tendo a avaliação sido efectuada com base na Tabela Nacional de Incapacidades, devido às queixas álgicas constantes da coluna cervical, com limitação funcional, e à hemiparesia de grau IV nos membros direitos.
35.º O estado da Autora é compatível com o exercício da actividade habitual de contabilista, mas implicam esforços suplementares, nomeadamente ao escrever ao computador ou à mão por períodos prolongados.
36.º Em termos de repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer, foi fixado o grau 1 numa escala crescente de 7 graus.
37.º A Autora deslocou-se ao Porto 4 vezes ao consultório do 1.º R.
38.º A A. ficou internada no Hospital da D... durante 4 dias, tendo regressado ao domicílio com indicação para usar cadeira de rodas.
39.º Em casa necessitou desde logo da ajuda do marido.
40.º A A. realizou sessões de fisioterapia na “H...” e na D....
41.º Desde essa data e até ao presente, a Autora realiza sessões de fisioterapia e hidroterapia.
42.º Desde a cirurgia, a A. não retomou a actividade laboral.
43.º A Autora foi acompanhada na especialidade de psiquiatria.
44.º A Autora sente-se irritável, com menos paciência, mais triste.
45.º Sente dores desde a metade medial do 3º dedo e na totalidade do 4º e 5º dedos da mão direita, irradiando para o cotovelo pelo bordo medial do antebraço e face posterior do braço até à omoplata e coluna, cervical, sentindo agravamento com a humidade e o frio.
46.º A Autora apresenta:
Tórax: contractura muscular do terço superior da face posterior do tórax, sendo mais acentuada à direita.
47.º Membro superior direito: ausência de atrofia muscular ao nível bicipital e braquio-radial, força muscular ligeiramente diminuída conseguindo vencer a resistência (grau IV);
hiperreflexia dos reflexos bicipital, tricipital e braquiorradial; hipersensibilidade da face posterior do braço e antebraço; parestesias do bordo cubital da mão, do 4.º e 5.º dedos e bordo medial do 3.º dedo.
48.º Membro inferior direito apresenta: ausência de atrofia muscular; força muscular ligeiramente diminuída conseguindo vencer a resistência (grau IV); sinais de Lasegue e Braggard negativos; hiperreflexia ao nível rotuliano em comparação ao contralateral; reflexo aquiliano presente e simétrico; hipersensibilidade táctil da coxa em comparação com a contralateral, quer na face anterior, quer na face posterior; parestesias ao nível da face anterior e posterior da perna.
49.º A A. necessitará ainda de tratamentos médicos regulares até ao fim da sua vida, designadamente, tratamento fisiátrico continuado e prescrição de medicação analgésica, assim como de tratamento psiquiátrico até melhoria da sintomatologia.
50.º A. Autora teve necessidade de contratar uma empregada doméstica para limpar a casa, tratar das roupas e cozinhar.
51.º A A. teve que suportar diversas despesas médicas e medicamentosas.
52.º A Autora recebeu a A., a título de subsídio de doença, a quantia total de € 11.903,44.
53.º Antes da cirurgia, a A. auferia um vencimento mensal de € 575,00 por mês.
54.º Para realização de consultas médicas, exames e tratamentos, a A. teve que efectuar inúmeras deslocações.
55.º A Autora, uma vez recebida a informação assinou declaração de consentimento informado.
56º. Ainda nessa data foi pedida a emissão de termo de responsabilidade geral à AdvanceCare, a qual veio a ser emitida com data de 19.11.2015.

Factos não provados
(1) [1] O Réu durante a cirurgia provocou uma lesão medular na Autora.
(2) A A. era uma pessoa jovem e saudável, mãe de dois filhos, em exercício pleno de todas as capacidades físicas e mentais.
(3) Exercia a sua profissão de técnica de contas com todo o brio, empenho, dedicação, sendo muito bem-sucedida.
(4) A A., depois da intervenção cirúrgica, ficou impossibilitada de saltar e correr, tem dificuldades em subir e descer escadas, caminhar em pisos irregulares ou em piso plano mais de 15 minutos seguidos, começando a mancar após os mesmos;
(5) Está impossibilitada de realizar esforços com o membro superior direito, despoletando-lhe dor o facto de pegar em pesos superiores a 2 Kg; realiza a pinça fina, digito-pulpar, mas com dificuldade;
(6) Tem dificuldade em escrever ao computador ou com uma caneta por períodos prolongados;
(7) Toma diariamente medicação (Lyrica 200 três vezes por dia) e Clonix quando sente dores mais intensas;
(8) Sente um formigueiro constante desde a metade medial do 3º dedo à totalidade do 4.º e 5.º dedos da mão direita irradiando para o cotovelo pelo bordo medial do antebraço;
(9) Sente contracturas da musculatura cervical e das costas;
(10) Sente “espasmos” musculares na perna e no 4º e 5º dedo da mão direita, aliviando ao esticar;
(11) Tem dificuldade em sentir a temperatura com a mão direita, nomeadamente, a água quente.
(12) Quanto aos actos da vida diária, a A. tem dificuldade em vestir o soutien, apertar os botões das calças, calçar-se e realizar todas as tarefas que precisem de realizar uma pinça fina; está impossibilitada em pegar nos sacos das compras; tem dificuldade em dormir por sentir dor na região cervical, com as almofadas; tem dificuldade em realizar as tarefas domésticas, como lavar louça (pela postura e por não conseguir pegar com firmeza na mesma), estender a roupa e tirar a roupa da máquina, passar o aspirador; tem dificuldade em mudar as fraldas e dar banho ao filho mais novo; só conduz em carros de mudanças automáticas.
(13) Com a ajuda de terceira pessoa, a A. gastou até à presente data a quantia de € 10.504,12 (dez mil quinhentos e quatro euros e doze cêntimos)
(14) A A. continuará a necessitar da empregada doméstica, devendo a R. responsabilizar-se pelo valor de total de € 673,17 (seiscentos e setenta e três euros e dezassete cêntimos) por mês, actualizável, a título de danos futuros.
(15) Por se encontrar impossibilitada de trabalhar, a A. teve que contratar os serviços de contabilidade da “I..., Lda.” e “J...”, que lhe têm vindo a prestar assessoria com vista à manutenção da carteira de clientes que tanto custou a conseguir, a quem paga € 492,00 (quatrocentos e noventa e dois euros) por mês, mais um extra de € 615 (seiscentos e quinze euros) com o gastou até à presente data a quantia de € 16.851,00 (dezasseis mil oitocentos e cinquenta e um euros).
(16) A A. teve que suportar diversas despesas médicas e medicamentosas, no valor total de € 6.087,73 (seis mil e oitenta e sete euros e setenta e três cêntimos).
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Quanto à motivação da decisão de facto, lê-se na sentença recorrida, entre o mais, o seguinte:
(…) o tribunal teve à sua disposição meras testemunhas ou consultores técnicos que emitiram “pareceres” numa área técnico-científica que estão sujeitos à regra da livre apreciação da prova e não perícias médico legais.
No caso específico dos documentos importa referir que do documento de fls. 5 (doc. nº 10) datado de 07 de Outubro de 2013 e assinado pelo Prof. Doutor G... consta a seguinte opinião “Foi-me facultada uma ressonância magnética cervical que mostrou sinal medular sugestiva de lesão traumática sequelar. Esta lesão e causadora do quadro neurológico”.
No documento de fls. 52 (resposta directa a questões colocadas pelo Exmo. Advogado da Autora na sequencia de uma comunicação da Ré seguradora que declinou a sua responsabilidade com fundamento de se tratar de uma intercorrência normal do acto cirúrgico) adianta que “na sua opinião as consequências observadas deveriam ser consideradas como algo que não devia ter ocorrido com uma execução tecnicamente perfeita da intervenção em causa”.
Na verdade, estes dois elementos probatórios situam-se no domínio da opinião que não pode ser contraditada devido ao falecimento do subscritor dos mesmos.
A formulação hipotética e vaga (“sinal medular sugestivo” e “algo que não devia ter ocorrido”) da opinião emitida por um reputado neurocirurgião só com base uma ressonância magnética cervical, e sem discriminar como deveria ser a execução tecnicamente perfeita da intervenção em causa e o que na realidade falhou, é do ponto de vista do tribunal insuficiente para se concluir com segurança pela inobservância da legis artis por parte do médico reu.
Ainda no que concerne à prova nas acções que se destinam a apreciar a existência de negligência médica, adianta-se que, em regra, os peritos e os médicos emitentes de pareceres médicos afirmam, sem sombra de justificação, que determinada actuação médica “está de acordo com as leges artis”.
Não há, pois, uma preocupação, por parte dos peritos ou emitentes de pareceres médicos de esclarecer quais sejam essas “leges artis”, como se esse juízo de concordância entre o “dever-ser” e o concreto praticado fosse conhecimento “esotérico” próprio da classe médica e arredado do conhecimento “vulgar” dos operadores judiciários.
Neste particular ponto não basta afirmar que as condutas estão de acordo com as leges artis: é necessário dizer quais elas sejam para que o tribunal possa formular um juízo (o seu próprio juízo) de adequação das condutas dos arguidos ao seu dever de agir. E, no caminho para esse juízo judicial, só a clara e completa explanação das leges artis permite a sua plena elucidação por todos os intervenientes processuais e um pleno exercício do contraditório.
Apurar se foram, ou não cumpridas as legis artis não é objecto da perícia, sem prejuízo de a perícia se poder pronunciar sobre o seu teor em contraposição com o comportamento verificado.
Assim como é, necessariamente e prima facie, uma questão de facto, não uma questão de direito ou de opinião.
Logo, haverá que ouvir pessoas que as delimitem de forma clara e isenta e/ou juntar linhas de orientação ou guidelines de actuação no campo de actuação médica em análise, pois que só essa completa exposição permite uma clara assunção de existência ou inexistência de ilicitude e culpa do agir médico.
Toda a restante prova, não passa de uma opinião, como aconteceu na presente acção com excepção do relatório elaborado pelo INML, mas que não se pronuncia sobre a questão a violação ou não da legis artis por parte do Réu.
Não se pode deixar de salientar que na petição inicial não foram descriminadas as condutas que estão de acordo com as leges artis e que em concreto não foram observadas.

A A. não concorda com a solução achada em primeira instância razão pela qual, visando a condenação dos RR. no pedido por si formulado, apresentou recurso que concluiu do modo que se expõe:
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O R. contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, expondo as seguintes conclusões:
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O recurso foi recebido nos termos legais e, já nesta Relação, os autos correram Vistos.
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Cumpre conhecer do mérito da apelação.
Sobre a prolixidade das conclusões:
Aduz o recorrido não ter sido cumprido o disposto no art. 639.º/1 CPC, por serem extensíssimas as conclusões, devendo o recurso ser rejeitado.
De facto, as conclusões de recurso ocupam mais de três dezenas de páginas e esta extensão poderá bem resultar em desfavor da pretensão da recorrente uma vez que adensa desnecessariamente a complexidade da matéria e do processo decisório que se quer simples e escorreito.
Todavia, tem sido entendimento dominante da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça o que considera que as conclusões prolixas, que alguns assimilam à caraterística de complexidade (conceito que o n.º 3 do art. 639.º CPC elege entre os casos de convite ao aperfeiçoamento),[2] justificarão, quando muito, despacho-convite ao aperfeiçoamento, dependendo da gravidade da falta cometida[3]. E isto mesmo quando inexistam conclusões a se, mas meras reproduções do corpo das alegações.
A opção por este modo paternal de abordagem do processo civil será defensável - dizem - em função de critérios como a celeridade e eficácia ou, mais prosaicamente, porque a prática mostra que, mesmo perante convite ao aperfeiçoamento, “são frustrantes os resultados que geralmente se obtêm”[4].
Perante tal perspectiva do n.º1 do art. 639.º CPC, a solução da rejeição do recurso terá de ser afastada, assim se indeferindo o pretendido pelo recorrido.

Questões a decidir:
Da prova dos factos relativos às lesões e sequelas decorrentes para a A. da cirurgia levada a cabo pelo R., na sua qualidade de neurocirurgião.

FUNDAMENTAÇÃO
De facto
A decisão sobre quais os factos que os autos permitem, ou não, considerar demonstrados não dispensa um excurso prévio sobre a especificidade da prova nas ações em que se apura negligência médica.
A gravidade da situação alegada pela A. e o modo tabelar como foi enquadrada em primeira instância impõem-no.
Na verdade, até há poucas décadas, os temas médicos, em particular o da responsabilização por práticas erróneas, era questão pouco aflorada quer pelos próprios médicos, quer por juristas.
Contava-se neste domínio com o peso de um paradigma ancestral herdado da tradição hipocrática centrado na sacralização do campo médico e na assimilação da figura do facultativo à de sacerdote ou de mestre espiritual que recebeu o seu poder e competência diretamente de um plano transcendente e insindicável[5].
Sucederam-se vários séculos durante os quais “o exercício da medicina era visto como uma espécie de sacerdócio e os médicos mantinham-se tão próximos do divino quanto a própria doença. Inevitavelmente, quando pouco se sabia acerca do mal que acometia as pessoas, a palavra de um sábio tinha o peso semelhante à vontade dos céus, situando-se, portanto, em plano superior ao da “humana prestação de contas”[6].
Mas a medicina hodierna é desempenhada em moldes distintos. Quer em meios e técnicas, quer em estruturas organizatórias.
Concomitantemente, alterou-se a superestrutura das mentalidades e, necessariamente, também a jurídica e a judiciária.
A postura tradicional de aceitação do infortúnio teve de dar lugar a uma atitude de crítica e de sindicância de atuações que passaram a ser vistas como secularizadas.
Evoluiu-se para um modelo de relação médico-paciente em que a este último se reconhece uma ampla autonomia e um estatuto ativo que não se compadecem com os muros sombrios da muta ars[7], maxime quando estão em causa terapias e procedimentos que espelham avanços técnico-científicos nem sempre aceites de forma pacífica no seio da própria comunidade médica, sendo disso exemplo, v.g., os casos de recurso a técnicas de inseminação artificial, as cirurgias de redesignação sexual ou de mudança de sexo, e – parece ser esse o caso dos autos – a técnica que a testemunha K... disse designar-se de ACDF ou Anterior Cervical Discectomy and Fusion.
Aumentou-se, por isso, a probabilidade de erro médico[8].
Neste contexto, a prova da responsabilidade civil do médico, no caso de dificuldades probatórias ou de persistência da dúvida, vislumbra-se como um momento essencial do processo judicativo.
E porque assim é, não podemos sem mais limitarmo-nos a afirmar que ao lesado ou suposto lesado, porque onerado com a demonstração da ilicitude (e, dependente das situações, também da culpa), cabe conformar-se com as consequências de um possível erro que não demonstra, sem que mobilizemos todo o conjunto de meios de prova que se vislumbre possível em cada situação.
O ónus da prova tem um papel preponderante no direito civil, mas a demonstração da realidade dos factos que a prova visa não se centra na certeza absoluta. Tão-só na razoabilidade essencial à aplicação do direito, na certeza relativa que se confunde, afinal, com a convicção do julgador[9].
Por isso se encontra subjacente à ideia objectiva[10] de ónus de prova um critério de natureza pública.
O art. 8.º do Código Civil (e também o art. 3.º, n.º 2, do Estatuto dos Magistrados Judiciais[11]), ao proibir um non liquet impede o julgador de se abster de julgar nomeadamente por dúvida insanável acerca dos factos em litígio.
É por força desta natureza cogente dos princípios subjacentes ao onus probandi que o atual sistema processual civil, assente no princípio do dispositivo no que tange à alegação dos factos pelas partes, reconhece ou impõe ao juiz o poder-dever de ordenar as diligências que considere necessárias à descoberta da verdade material (arts. 264.º, n.º 2, 519.º, n.º1, 532.º, 543.º, n.º 1, 612.º, n.º 1, e 645.º, todos do Código de Processo Civil).
Este poder de iniciativa judicial aliado à consideração de que os factos não têm que ser provados por quem os alegou, já que uma vez demonstrados devem considerar-se na decisão final (princípio da aquisição processual), já valeu ao ónus de prova a desqualificação de imperfeito[12] pois que se se entende por ónus uma obrigação com vista ao resultado de uma atividade (a probatória). Se existe inatividade da parte sobre a qual recai o ónus e, não obstante, os factos se demonstram, não pode falar-se de ónus.
No campo que hoje nos convoca – o da negligência médica – a consideração desta dimensão material-objetiva do ónus da prova reveste-se de extrema importância, maxime ali onde se permite ao julgador a promoção das diligências objetivamente necessárias à indagação instrutória, com particular acuidade na determinação da prova pericial ou de outra (veja-se a figura da testemunha-perito[13] ou o papel dos pareceres emanados de órgãos especializados).
De igual modo importa nesta área observar critérios de resolução nos casos de non liquet que resultem da falta ou insuficiência de prova (inopia probationum).
Nas situações em que se considere que a obrigação é de meios e se opere a regra geral do ónus da prova – cabendo ao lesado a demonstração da culpa do lesante (e também da ilicitude da atuação) – prova que, como se sabe, é difícil para o paciente, considerando a especificidade técnica das matérias em presença, a falta de acesso à documentação clínica, o decurso do tempo, a fragilidade pessoal criada pela situação etc...-, este encargo pode bem ser atenuado.
Sê-lo-á, desde logo, pelo funcionamento das presunções naturais ou hominis, isto é, da avaliação que o julgador faça dos factos conhecidos para extrair os desconhecidos em termos de normal sucessão de acontecimentos (prova prima facie). Por exemplo, a queimadura subsequente ao Raio-X é o facto conhecido; desconhecida é a origem da mesma, podendo presumir-se, se tal dano ocorrer no imediato, que foi produzido por excesso de radiação.
Nestes casos, cabe ao médico demonstrar que não existe nexo de causalidade entre o dano e erro da sua parte.
Em matéria de causa-efeito é, aliás, muito comum o recurso a presunções naturais quando falamos de negligência médica[14].
Outra situação de mitigância do ónus da prova por parte do lesado reside na teoria da «res ipsa loquitur», ou seja, na evidência que fala por si mesma: a morte, a consolidação viciosa da fractura, a SIDA contraída após transfusão, a compressa ou instrumento cirúrgico esquecidos no campo operatório, a intoxicação alumínica em doente hemodialisado, etc..., casos em que se presume a culpa do médico por ser evidente que o dano resultou de negligência grosseira.
A assunção desta regra acaba por exprimir orientações internacionais constantes de textos legislativos que são diretamente aplicáveis em espaço português, como sucede com o art. 24.º da Convenção de Oviedo que prevê a reparação do dano injustificado: A pessoa que tenha sofrido um dano injustificado resultante de uma intervenção tem direito a uma reparação equitativa nas condições e de acordo com as modalidades previstas na lei[15].
A definição do que é ilicitude para efeitos do disposto no art. 483.º CC, no segmento lesão de interesses alheios, na forma de violação ou ofensa de direito de outrem, foi já objeto de regulação especial no que toca à responsabilidade médica em termos muito semelhantes aos que resultam da Convenção de Oviedo (e do Código Civil italiano), obrigando à indemnização quem, com dolo ou mera culpa, causasse a outrem um dano injusto[16].
Existem situações em que, não obstante poder considerar-se recair sobre o lesado ónus da demonstração da culpa do médico, a posição processual e substancial do demandante encontra-se facilitada pela ocorrência de circunstâncias que transferem para o facultativo o ónus de demonstrar a inexistência de culpa da sua parte.
Ocorre um destes casos quando o médico tiver atuado com dolo ou negligência tornando impossível ou excessivamente difícil a prova por parte do paciente (conforme regra do art. 344.º, n.º 2 do Código Civil).
Assim sucede quando o médico extravie ou destrua a ficha clínica do doente, pois o médico está obrigado a “registar cuidadosamente os resultados que considere relevantes das observações[17]”, considerando-se mesmo que existe o dever jurídico de documentação[18], uma vez a documentação permite reconstituir a sequência e interligação entre o diagnóstico e a terapêutica ensaiada, constituindo um importante elemento de prova, embora refutável.
A documentação dos historiais clínicos é necessária para assegurar a transparência da atividade médica, pelo que o não cumprimento de tal obrigação ou o seu cumprimento inexato ou incompleto poderá frustrar a prova a cargo do lesado e, destafeita, transferir para o médico o onus probandi.
Considerando a natureza específica do tema sub iudice, assume particular relevo nestes processos o recurso à prova pericial[19].
A prova pericial visa a percepção ou a apreciação dos factos - emissão de juízos de valor sobre factos[20] - e é essencial sempre que sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem.
A grande dependência da decisão de facto do juiz relativamente ao laudo do perito impõe por parte deste uma consciência aguda da relevância do seu papel e das exigências deontológicas do mesmo, sendo certo que a cientificidade da prova pericial contribui para uma redução da álea e do desacerto da decisão de facto.
O papel do perito será o de, de modo equidistante, agir como tradutor da realidade, respeitando os factos e fazendo uso dos seus conhecimentos técnicos, de forma a tornar acessível para todos, incluindo para o julgador, a vertente técnica da matéria sob apreciação.
Quando está em causa a apreciação da atuação profissional de colegas de profissão, os peritos devem abster-se de raciocínios corporativos, de defesa da classe, esperando-se dos seus laudos a maior objetividade, acompanhada de rigor técnico e da fundamentação suficiente das conclusões a que chegam.
Também no âmbito do estabelecimento da causalidade adequada é importante o contributo pericial, pois também aqui o julgador se encontra desprovido de meios para verificar a causa do dano, em abstrato e em concreto, ou a concorrência de causas.
Sabendo que também aqui se não labora no plano das certezas e que os peritos, em especial os peritos médicos, podem não oferecer respostas exatas, nem por isso poderá o julgador dispensar o contributo pericial, ainda que se discuta qual o grau razoável de certeza médica que deve presidir à elaboração do relatório pericial[21].
Finalmente, cumpre referir que a perícia médica é, nos termos dos arts. 568º, n.º 12, Código de Processo Civil e 6.º, n.º 2 al. a) do DL 131/2007, de 27.4, requisitada ao Conselho Médico-Legal do Instituto Nacional de Medicina Legal, não sendo de dispensar, em situações de particular dificuldade, o contributo dos Colégios de Especialidades da Ordem dos Médicos, disciplinados pelo Regulamento n.º 628/2012, de 6.7, os quais, sendo órgãos consultivos daquela Ordem são constituídos por todos os médicos detentores do respetivo título de especialista ou de competência que neles se encontrem inscritos (art. 2.º, n.º1).
Tendo por princípio estas ideias gerais vejamos do recurso sobre a matéria de facto.
AA. começa por centrar a sua observação relativamente à matéria do consentimento informado.
Em retas contas, porém, o que deveria começar por se indagar seria se na cirurgia a que foi submetida se concretizou algum risco, depois, se esse risco era previsível e, então, se essa possibilidade foi transmitida à paciente.
A questão não é despicienda até porque foi referido em audiência - e o R. também o assume em contestação, quando junta literatura especializada relativamente aos riscos associados ao que parece ser um procedimento relativamente recente – que são descritos na literatura casos de pacientes aos quais sobrevêm défices após a cirurgia, nomeadamente mercê de episódios hipotensivos, sendo difícil distinguir as situações de lesão isquémica medular e de lesão traumática. Por se tratar de uma técnica cirúrgica relativamente recente, disse a testemunha K... que “o risco ainda não está classificado”.
Ora, cabendo a prova da transmissão das informações relevantes – incluindo dos riscos[22] do procedimento – ao prestador do cuidado de saúde, haverá que apurar se o procedimento levado a efeito (o descrito na contestação do R. no art. 12.º) é recente e tem entre os seus riscos, mesmo remotos, as sequelas de que ficou a padecer a A. Recorde-se que a violação de um dever de precaução, consubstanciada numa omissão de informação, (…) permite se prescinda do nexo de causalidade entre uma ação médica e um dano em ordem a estabelecer uma obrigação ressarcitória, pois que mesmo não estabelecidos cientificamente os riscos de certa atividade, caso o profissional de saúde omita o dever de informação de riscos incertos, mas plausíveis e graves segundo determinado setor dissonante da maioria (minority repport),(…) verifica-se dever de indemnizar em caso de dano[23].
Há, ainda, que apurar se esses riscos foram transmitidos à A., sendo certo que não basta alertar para “as consequências mais frequentes e previsíveis dos procedimentos propostos” (art. 23.º da contestação).
Depois, é também necessário apurar se ao doente foi transmitida a existência de terapêuticas alternativas ao procedimento que se lhe propõe.
Ora, da simples afirmação retórica tem noção que faço estas cirurgias todas as semanas é evidente nada resultar, como também é inócuo afirmar-se que a cirurgia tem um risco semelhante a uma viagem de automóvel (?) ou que o médico em causa é uma pessoa experiente.
Certo é que, tendo sido alegada a matéria da transmissão (ou ausência desta) à A. dos riscos próprios (ou outros) associados à cirurgia, a matéria de facto dada como provada e não provada em primeira instância é omissa na descrição do apurado a este respeito o que, por si, já viciaria a sentença por omissão de pronúncia (art. 615.º, n.º 1 al. d) CPC).
a) No caso dos autos, o que pretende saber-se é se do procedimento levado a efeito [discectomia C6-C7, extirpação de hérnia discal C6-C7, colocação de cage cervical C6-C7, discectomia C5-C6, extirpação de hérnia discal C5-C6 e colocação de cage cervical C5-C6] poderia resultar paresia dos membros direitos e foco de sofrimento medular direito em C5-C6, quadro motor neurológico e sensorial que determine incapacidade de 19%.
b) E, porque também é referido nos autos, há que apurar se a lesão descrita pela A. (que o faz por referência ao relatório médico que junta e para o qual remete[24]) – lesão traumática sequelar da medula, causadora do quadro neurológico – é também um risco possível, mesmo que remoto, da cirurgia e se esse risco foi transmitido à doente e se esta, perante tais informações, aceitou de igual modo submeter-se ao procedimento.
Não indagar deste jeito e fazer decorrer o desfecho da ação do jogo acrítico do ónus da prova é, pelo menos, ignorar décadas de evolução desde a muta ars até aos tribunais de Nuremberga e, destes, até ao séc. XIX.
c) De modo que se impõe apurar se:
- do procedimento que consiste discectomia C6-C7, extirpação de hérnia Odiscal C6-C7, colocação de cage cervical C6-C7, discectomia C5-C6, extirpação de hérnia discal C5-C6 e colocação de cage cervical C5-C6 pode resultar paresia dos membros direitos e foco de sofrimento medular direito em C5-C6, quadro motor neurológico e sensorial determinante de incapacidade;
- a lesão traumática sequelar da medula, causadora daquele quadro neurológico, é um risco possível, mesmo que remoto, da cirurgia;
- tal lesão pode resultar de episódio hipotensivo com distress respiratório decorrido depois da cirurgia;
- esse tipo de episódio é uma consequência possível, mesmo que remota, deste tipo de cirurgia;
- qual a percentagem de risco de ocorrência de lesões medulares;[25]
- estes riscos foram transmitidos pelo R. à doente antes da prestação de consentimento por esta à submissão ao procedimento;
- perante tais informações, a A. aceitou submeter-se ao procedimento;
Para este efeito, os autos deverão regressar à primeira instância, a fim de ser produzida prova sobre estes temas e, com a prova já recolhida, elaborar nova sentença que contemple estes pontos.
Claro que subjacente a este elenco factual está, desde logo, um pressuposto técnico centrado nas consequências reais que do procedimento resultaram para a A. e esta indagação não dispensa a mobilização do auxílio técnico de que carece o tribunal e que está à sua disposição. Referimo-nos aos pareceres que podem ser produzidos pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e pela Ordem dos Advogados, tendo em conta os órgãos específicos de que dispõem para o efeito.
Na verdade, mais importante que os depoimentos testemunhais, em muitos casos, produzidos numa dupla qualidade de testemunha e perito, haverá que obter pareceres do Colégio da Especialidade de Neurocirurgia da Ordem dos Médicos e do Conselho Médico-Legal do INML, remetendo para o efeito toda a pertinente documentação junta aos autos.
d) Só assim se poderá afirmar, com algum grau de rigor, se durante a cirurgia foi causada lesão medular traumática à A.; se esta lesão é traumática ou isquémica; se no pós-operatório, mormente imediato, face ao episódio hipotensivo, deveria a A. ter sido submetida a uma ressonância magnética cervical como se sugere no relatório do TAC cervical; se tal exame estava contra-indicado; se tal ressonância permitira ver com clareza a origem e natureza da lesão; se da cirurgia decorre o quadro motor neurológico e sensorial incapacitante observado na A.
e) Ao Conselho Médico-Legal deverá, ainda, pedir-se que explique se tal quadro impede a A. de escrever ao computador ou à mão por períodos prolongados - como afirmou o seu marido, L..., em audiência e a fisioterapeuta, M... - e em que medida se reflete o mesmo na sua atividade de contabilista.
Aquelas duas testemunhas e, ainda, o irmão, N..., e a amiga, O..., descreveram um conjunto de limitações que observam à A., nomeadamente quanto à marcha e mesmo na execução de tarefas básicas como vestir-se ou tratar da lida da casa.
f) De modo, que deverá pedir-se ao INML que esclareça o seguinte:
- a A. ficou impossibilitada de saltar e correr, tem dificuldades em subir e descer escadas, caminhar em pisos irregulares ou durante mais de 15 minutos seguidos, começando a mancar após os mesmos;
- está impossibilitada de realizar esforços com o membro superior direito, causando-lhe dor o facto de pegar em pesos superiores a 2 Kg;
- realiza movimentos de pinça fina, digito-pulpar, como vestir o soutien, apertar os botões das calças, calçar-se e outras tarefa, mas com dificuldade.
- está impossibilitada de pegar nos sacos das compras.
- tem dificuldade em dormir por sentir dor na região cervical com as almofadas.
- tem dificuldade em realizar as tarefas domésticas, como lavar louça, pela postura e por não conseguir pegar com firmeza na mesma, estender a roupa e tirar a roupa da máquina, passar o aspirador.
- tem ou teve dificuldade em mudar as fraldas e dar banho ao filho mais novo.
- apenas pode conduzir veículos com mudanças automáticas (neste segmento foi mencionado em audiência o medo da A. em conduzir por força das limitações que sente, pelo que deverá o INML avaliar a extensão das sequelas psíquicas/psicológicas produzidas ocasionadas à A. pelas lesões físicas de que é portadora, até porque se pretende no recurso se dê como provado achar-se a A. acompanhada em consultas de psiquiatria sendo relevante verificar se tal acompanhamento sucede, mas sobretudo, se se justifica face a um eventual quadro de depressão ou alteração comportamental não relatado pelo INML);
- sente formigueiro constante desde a metade medial do 3.º dedo à totalidade do 4.º e 5.º dedos da mão direita, irradiando para o cotovelo pelo bordo medial do antebraço;
- tem dificuldade em sentir a temperatura com a mão direita, nomeadamente, à água quente;
- sente contraturas da musculatura cervical, costas e tórax;
- tem espasmos musculares na perna e no 4.º e 5.º dedos da mão direita os quais se identificam com híper-reflexia;
- toma diariamente medicação (Lyrica 200, três vezes por dia) e Clonix quando sente dores mais intensas.
- o Lyrica é prescrito para o tratamento da dor neuropática (dor devido à lesão e/ou mau funcionamento dos nervos e/ou do sistema nervoso);
- o Clonix está indicado no tratamento da dor de diversas etiologias, tais como reumatismos crónicos degenerativos, algias neurológicas e neuromusculares, periartrites, tendinites, tenossinovites e bursites, posologias coerentes com o quadro de dor que sente diariamente.
Quanto a outros danos não provados:
f) Deverá ser junta aos autos certidão de assento de nascimento da A.
Este documento será importante caso seja necessário calcular perda da capacidade de ganho, além de ser objetivo na apreciação do que deve entender-se por pessoa jovem (1.º facto não provado[26]) e, bem assim, g) dos filhos, posto que alegada impossibilidade de realizar tarefas no convívio com estes.
Resulta do cômputo dos testemunhos, quer das pessoas já mencionadas que convivem direta e intimamente com a A., quer ainda do depoimento de P..., médico de família, que a A. era uma pessoa saudável antes da cirurgia pelo que este facto se considera desde já como provado (1).
Nada resulta quanto ao empenho, dedicação e sucesso que colocava no exercício da sua actividade de contabilista, indeferindo-se o recurso nesta parte.
No que respeita à contratação de terceira pessoa, empregada doméstica, para além do constante em 50.º dos factos provados, deve acrescentar-se ter a A. suportado gastos com remuneração da mesma, em valor não concretamente apurado, mas não inferior aos valores constantes dos documentos de fls. 74 a 91[28], que aqui se dão por reproduzidos (2).
No que respeita à contratação dos serviços de terceira empresa que auxiliou a A. na sua contabilidade, não apenas a mesma o refere em declarações, como tal depoimento foi coonestado pelos prestados por N..., L... que confirmaram a impossibilidade de a A. efetuar todo o serviço de contabilidade, tendo contratado uma sociedade, depois de ter contado com o apoio inicial e gratuito de um colega.
O serviço desta sociedade foi remunerado e facturado à A. conforme documentação que consta dos autos (fls. 92 e ss.), inexistindo motivo para a considerar desconforme com a verdade.
Assim, considera-se desde já provado que, entre 26.3.2013 (data da primeira fatura) e 25.7.2015 (data da última), a A. pagou à I..., Ld.ª, pela realização de serviços de contabilidade que cabia à A. realizar no âmbito da sua actividade profissional, os valores constantes das facturas de fls. 92 a 143 que aqui se dão por reproduzidos (3).
Do mesmo modo, aquelas testemunhas e documentação junta demonstram de forma sobeja despesas com consultas, tratamentos e fisioterapia.
Assim, considera-se provado que a A. suportou despesas com consultas, tratamentos e fisioterapia os valores documentados nos docs. de fls. 144 a 272 e de fls. 339 a 346, que aqui se dão por reproduzidos (4).
Dos documentos de fls. 276 a 313 resulta o seguinte, que se dá como provado:
- A Autora esteve de baixa médica, desde 19.11.2012 a 22.7.2015 (5).
Tudo isto sem prejuízo do que consta a este respeito no relatório do INML e que, neste segmento, se tem como provado, para além do que consta do ponto 31.º dos factos já provados (cfr. período de défice funcional temporário e de repercussão temporária na actividade profissional, fls. 66).
Se este valor é de imputar na totalidade ou em parte aos RR. já dependerá do que se apurar quanto à responsabilidade por eventual lesão, extensão desta e sequelas no exercício da actividade profissional, tendo em conta que as lesões se consideraram consolidadas em 28.4.2014 (ponto 31.º dos factos assentes).
Quanto ao que consta provado em 53.º dos factos provados, nenhum elemento dos autos permite se considere tal ganho por 14 meses, como referido pela recorrente, sendo certo que as declarações de IRS de fls. 314 e ss. não permitem descer a tal pormenor.
Assim, em rigor e objetivamente, apenas poderá ser dado como provado o teor das declarações de IRS do ano anterior à cirurgia (2011), no ano desta (2013) e no anos seguinte (2013), no que tange a rendimentos declarados pela A.:
- Na declaração de IRS relativa a 2013, a A. declarou rendimento de trabalho dependente de € 3.635,77 (anexo A), um resultado líquido tributável corresponde a rendimentos de categoria B (profissionais, comerciais e industriais) de € 22.223,70; na declaração de IRS de 2012, a A. declarou rendimento de trabalho dependente de € 6.059,62 (anexo A) e um resultado líquido tributável corresponde a rendimentos de categoria B (profissionais, comerciais e industriais) de € 16.074,50; no ano de 2013[29], a A. não declarou rendimento de trabalho dependente e declarou um resultado líquido tributável corresponde a rendimentos de categoria B (profissionais, comerciais e industriais) de € 13.591,98 (6).
Tanto basta para considerar os eventuais danos tidos pela A. durante o período em que terá estado impossibilitada de trabalhar.
Outros factos que a A. pretende ver como provados (fls. CXXUIV) – sem prejuízo dos que respeitam a sequelas a apurar junto do INML conforme acima determinado – não encontram respaldo no relatório do INML, não tendo a prova testemunhal sido conclusiva, pelo que se indefere o pretendido.
Quanto a despesas com deslocação, não resulta da prova produzida toda a quantidade de deslocações efetuadas e valores despendidos, pelo que apenas poderá ser dado como provado o seguinte:
- AA. efectuou gastos com deslocações para tratamentos e consultas em valor não concretamente apurado (7).

De direito
No caso de ocorrência de erro médico é importante que se estabeleça a natureza de responsabilidade em presença, extracontratual ou contratual, uma vez que nesta última, a par de outras diferenças[30], se verifica uma presunção de culpa por parte do devedor/lesante que resulta do disposto no 799.º, n.º 1 do Código Civil.
Nesta situação, o paciente/lesado, podendo contar com a presunção de culpa do profissional de saúde, apenas terá que provar os demais pressupostos da responsabilidade, com relevo para a ilicitude. Cabendo ao médico, para evitar a sua responsabilização, demonstrar que não lhe era exigível outro tipo de atuação, assim afastando de si o nexo de imputação subjetiva.
Se o médico atua depois de ser procurado pelo doente em situação de oferta dos seus serviços, por ex., no seu consultório particular, existe aí um encontro de vontades com vista à produção de um efeito jurídico.
O contrato em causa, consensual (porque não sujeito a forma – artº 219º CC), tem um cunho pessoal (existe, em princípio, uma escolha do médico pela confiança que inspira), é, em regra, de execução continuada (não se esgota num único acto, porquanto, desde o diagnóstico até à concretização terapêutica medeiam, geralmente, vários actos.
Se não sofre dúvida, em tese, a natureza contratual da responsabilidade que emerge de erro médico que ocorra no contexto acabado de descrever, há já situações de natureza dúbia, como sucede no caso de ofensas corporais, que podem mesmo merecer repressão criminal (veja-se a ofensa à integridade física por negligência prevista no art. 148.º, n.ºs 1 e 2 al. a) do Código Penal).
O médico que avalia erradamente a condição do paciente ou negligencia a terapêutica e, com isso, vem a causar-lhe danos, responde pelas duas vias: por incumprimento (ou cumprimento defeituoso) do contrato de prestação de serviços e pela violação do dever de respeito da integridade física/vida do paciente[31].
Vaz Serra, aquando da preparação do actual Código Civil, propôs a possibilidade de se cumularem as regras das duas responsabilidades[32], solução que não foi acolhida.
Não obstante, Figueiredo Dias e Sinde Monteiro[33] consideram que “se as partes concluíram um contrato, isso significa que querem que para as relações entre elas valham apenas as regras que disciplinam esse contrato (…), Mas, em sentido contrário, pode argumentar-se que o facto de terem concluído um contrato não tem de forma alguma de significar que se presuma terem querido renunciar à protecção que em geral lhes é garantida pela lei (…). Pensamos que, na inexistência de uma norma que especificamente venha dizer o contrário, se deve aceitar, como a “solução natural”, a da concorrência (rectius, cúmulo) de responsabilidade[34].
No campo da responsabilidade médica, tem-se considerado que a remessa do lesado para a responsabilidade extracontratual, além de o onerar com a prova da culpa, não responde à especificidade da situação pois no caso de atuação do médico, este não está sujeito apenas (embora também o esteja) a um dever geral de abstenção de lesão dos direitos e interesses de outrem (o paciente), estando igualmente vinculado a uma prestação positiva de facere ligada à finalidade do contrato que o liga ao paciente.
Contudo, casos há em que se verifica uma presunção de culpa nos termos do n.º 2 do art. 493.º do Código Civil (atividade perigosa por natureza ou pela natureza dos meios utilizados), como sucede quando o médico usa aparelhos perigosos (aparelhos de ressonância magnética, de anestesia, de hemodiálise, incubadoras, etc...)[35].
Na situação que nos ocupa, porém, o ponto crucial é apurar se a lesão apresentada pela A. é traumática, isto é, se foi produzida durante a cirurgia ou, mesmo tendo sido depois, se a mesma resultou de má prática médica (a).
Depois, apurar se o risco de tal lesão se conta entre os próprios (remotos ou próximos da cirurgia) – (b) e se essa informação foi transmitida à A (c).
Para apurar esta factualidade importa obter prova suplementar, mormente pericial – para os dois primeiros segmentos (a e b) – e outra prova (mormente declarações de A. e R.), para o último (c).
Tudo isto sem prejuízo de outros documentos que se consideram também necessários (certidões de assento de nascimento de A. e filhos).
Para tanto, nos termos do art. 662.º, n.º 2 al. c), anula-se a sentença proferida (sem prejuízo dos factos que nela já se acham provados, os quais se mantêm), a fim de ser obtida prova pericial, documental e por declarações sobre a matéria de facto exposta supra.

Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem este coletivo em julgar parcialmente procedente o recurso e, mantendo os factos provados da sentença recorrida, considerar também provados os que acima (na fundamentação de facto) ficaram alinhados sob a numeração de 1 a 7.
No mais, é anulada a sentença recorrida, nos termos do art. 662.º, n.º 2 c) CPC, determinando-se a produção da prova pericial acima indicada (pelo INML e pelo respectivo Conselho Médico-Legal e pelo Colégio da Especialidade de Neurocirurgia da Ordem dos Médicos) e por declarações de A. e R. para apuramento da matéria indicada supra sob as als. a) a e).
Mais se determina seja ordenada a junção aos autos das certidões de assento de nascimento de A. e filhos para determinação da idade de todos aquando da cirurgia (al. f) supra).
Custas pela parte vencida a final.

Porto, 8.3.2019
Fernanda Almeida
António Eleutério
Isabel São Pedro Soeiro
________________
[1] Numeração por nós ora introduzida para facilidade de exposição.
[2] A. Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.º Ed., p. 153.
[3] Vejam-se, por ex., do STJ, acs. de 5.7.2018: O facto de o recorrente ter reproduzido, nas conclusões da alegação, o que constava da motivação não legitima a rejeição imediata do recurso, com fundamento na falta de conclusões, ao abrigo do art. 641º, nº 2, al. b), do CPC. Em tal situação justifica-se que seja formulado despacho de convite ao aperfeiçoamento, nos termos e com os efeitos previstos no nº 3 do art. 639º do CPC. De 8.2.2018: De harmonia com o disposto no art. 639, nº1 do CPC, incumbe ao recorrente, de forma sintética, enunciar as razões que o levam a impugnar a decisão proferida; Para efeitos do disposto no art. 639º, nº3, do CPC, o tribunal não deve utilizar um critério estritamente quantitativo, mas um critério funcionalmente adequado, que tenha em conta – perante a complexidade real do litígio e as questões suscitadas pelo recorrente – o preenchimento ou não preenchimento da função processual cometida à figura das conclusões da alegação de recurso. De 13.7.2017: As conclusões das alegações que, inquestionavelmente, reproduzem o texto das alegações, dão a conhecer o objecto do recurso – art. 635º, nº3, do Código de Processo Civil – o que não pode deixar de ser tido em consideração no juízo de ponderação que importa convocar quanto a saber se, por tal procedimento, é como se não existissem. A equivalência que o Acórdão recorrido faz, considerando não haver conclusões, pelo facto delas serem a reprodução das alegações, parece excessivo. Cumpre ao Tribunal recorrido convidar o recorrente ao aperfeiçoamento das alegações, assinalando a incorreção formal que, drasticamente, serviu para rejeitar o recurso.
[4] Idem, p. 159 e nota 256.
[5] Hipócrates afirmava que “As coisas sagradas não se revelam senão aos homens sagrados, é proibido comunicá-las aos profanos, porque não foram iniciados nos mistérios da ciência”, OLIVEIRA, Guilherme, em O fim da arte silenciosa, in Temas de Direito da Medicina, Coimbra Editora, 1999, pág. 92.
[6] GONÇALVES, Carla, A Responsabilidade Civil Médica: um problema para além da culpa, Centro de Direito Biomédico, nº 14, Coimbra Editora, 2008, pág. 16.
[7] Arte silenciosa era como Virgílio apelidava a Medicina, em OLIVEIRA, Guilherme, cit, pág. 100.
[8] Segundo Relatório publicado nos EUA pelo Institute of Medicine, em 2000, morrem mais pessoas em resultado de erro médico do que de acidente de viação, de cancro da mama ou de SIDA, sendo que um em cada cinco médicos é acusado todos os anos por práticas erróneas, cifrando-se em 25% a percentagem de condenação, BURGOA, Elena, A Cabeça de Jano e a Negligência Médica. O Caso Português, Sub Judice, 13, 1998, pág. 83.
[9] Quanto ao grau de convicção, REIS, Alberto dos, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, págs. 246 e 247, estabelece uma hierarquia no grau de eficácia da prova, distinguindo prova suficiente (aquela que é susceptível de produzir a convicção do juiz), prova da primeira aparência ou prova «prima facie» (aquela que não produz a plena convicção do juiz, mas exprime um juízo de mera probabilidade ou conjectura) e da simples justificação (prova sumária que conduz a um juízo de verosimilhança).
[10] MÚRIAS, Pedro Ferreira, cit. Págs. 21 e ss., define o ónus objectivo como o instituto que determina segundo qual das versões disputadas deve decidir-se quando é incerta a verificação de algum facto pertinente, enquanto no ónus subjectivo ou ónus da produção de prova se prescreve a qual das partes processuais incumbe alguma actividade probatória, sob pena de ver a sua pretensão desatendida. O ónus objectivo prevê um resultado probatório, a incerteza, determinando a decisão; o ónus subjectivo dispõe sobre a actividade probatória, atribuindo-a, para cada matéria, a uma parte.
[11] Outros afloramentos desta dimensão do princípio achamo-los nos arts. 156.º, 288.º, 659.º, n.º2, 660.º, n.ºs 1 e 2, 666.º e 1083.º d), todos do Código de Processo Civil.
[12] Assim, MENDES, Castro, Do Conceito da Prova, pág. 440.
[13] Figura originária dos sistemas de matriz anglo-saxónica e que o ordenamento português não conhece, mas acaba por surgir na prática judiciária, como ocorreu nestes autos. Sobre a figura, CRUZ, Nuno Gundar, A Figura da Testemunha-Perito no Contexto das Acções de Responsabilidade Civil Médica, Lex Medicinae, ano 9, n.º 18, p. 183 e ss.
[14] No contexto da responsabilidade civil médica, «a presunção do nexo de causalidade é particularmente utilizada nos casos em que opera a presunção de culpa fundada na prova prima facie», «A prova prima facie, ou prova de primeira aparência, expressa a ideia de que, segundo os princípios gerais da vida e o normal acontecer das coisas, certos factos só podem ter origem em determinadas causas», de modo que «A tendência nestes casos vai no sentido de presumir, não apenas que o médico actuou culposamente, mas também que aquela violação do dever de cuidado foi adequada à produção do dano em causa, já que segundo a normalidade do acontecer – isto é, se tivessem sido respeitadas as regras técnicas da actividade médica – não teria o mesmo ocorrido» VERA LÚCIA RAPOSO in “Do ato médico ao problema jurídico”, p. 66 e 124. Neste tocante, não pode aceitar-se de forma acrítica a jurisprudência superior como alerta a doutrina. Veja-se o trabalho do CEJ, A Responsabilidade Civil Médica decorrente de actos praticados em hospitais públicos), 2018: A orientação jurisprudencial – prevalecente na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça – segundo a qual, «em sede de causalidade adequada (…), tem de ser provado pelo paciente que certo tratamento ou intervenção foram omitidos ou que os meios utilizados foram deficientes ou errados – determinação dos actos que deviam ter sido praticados e não foram, do conteúdo do dever de prestar – e, por tal ter acontecido, em qualquer fase do processo, se produziu o dano, ou seja, foi produzido um resultado que se não verificaria se outro fosse o acto médico efectivamente praticado ou omitido» (cfr., por todos, o Acórdão do STJ de 18-09-2007 [Revista n.º 2334/07 - 1.ª Secção; Relato – ALVES VELHO] − cujo texto integral está acessível on-line in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf – é insuportavelmente restritiva e exigente, conduzindo, na prática, ao insucesso da esmagadora maioria das acções destinadas a efectivar a responsabilidade civil médica, na medida em que ignora a assimetria da relação entre o médico e o paciente (enquanto o paciente está particularmente enfraquecido, porque física ou mentalmente debilitado por virtude da patologia de que padece, o médico apresenta-se como uma pessoa capaz de lhe dar a protecção e o tratamento de que carece) e faz tábua rasa do desnível de conhecimentos e preparação técnico-científica existente entre ambas as partes (enquanto o médico-devedor é um profissional prestador de assistência médica, o doente-credor é, por via de regra, um leigo nessa matéria), p. 88, disponível em linha.
[15] Esta convenção do Conselho da Europa, de 4.4.97, a que Portugal aderiu, destina-se a proteger a dignidade do ser humano e o respeito pela sua integridade e outros direitos e liberdades fundamentais face às aplicações da biologia e da medicina. A responsabilidade pelo dano injusto não é novidade no sistema português
[16] VARELA, Antunes, Das Obrigações, I, 6.º ed., p. 500 e 501, refere-se exactamente ao Decreto n.º 32 171, de 29.7.1942 cujo art. 28.º previa o dano injusto como origem da obrigação de indemnizar a cargo do médico, explicando que a o principal efeito da noção de dano injusto, no que toca à definição da ilicitude, está “em ela colocar o acento tónico da ilicitude sobre o dano (o efeito da conduta)”.
[17] Artº 100º do Código Deontológico dos Médicos, Regulamento nº 14/2009, DR, IIª Série, 13.1.2009.
[18] Neste sentido, OLIVEIRA, Guilherme de Oliveira, “Auto-Regulação Profissional dos Médicos, RLJ, nº 3923, pág. 36.
[19] O perito distingue-se da testemunha sob vários aspectos. A distinção mais marcante é a de que a testemunha tem uma função passiva, relatando factos passados que percepcionou. Essa percepção pode ser uma percepção qualificada pelos conhecimentos especiais da pessoa que percepciona o facto. No entanto, a testemunha pode também ser chamada a depor sobre factos hipotéticos (tal pode suceder quando está em causa a vontade conjectural de uma parte – artsº 239º, 292º e 293 do Código Civil). Ao contrário, o perito tem em regra uma função activa, embora possa assumir uma função passiva aos ser sujeitos a pedidos de esclarecimento e ao responder a reclamações contra o relatório pericial (artºs 587º, 588º e 652º, nº3 c), do Código de Processo Civil). Além disso, o perito percepciona os factos presentes com base nos conhecimentos especiais que possui e valora-os, formulando juízos conclusivos.
[20] VARELA, Antunes, considera que estes juízos de valor sobre factos emitidos pelos peritos são juízos periciais de factos, in RLJ, 122, nº 3784, pág. 219.
[21] Cfr. ABOTT, Nelson e MAGNUSSON, Landon, An Enigmatic Degree of Medical Certainty, em http://webster.utahbar.org/barjournal/2008/07/an_enigmatic_degree_of_medical.html.
[22] A novidade do procedimento e a importância dos riscos é, de facto, um dos momentos centrais da responsabilidade civil médica e do efeito que sobre a mesma tem o princípio ambientalista da precaução, uma vez que da falta de precaução, adaptada à responsabilidade civil e após a concretização do risco e a produção do dano, o que pode concluir-se é que, ou o dano ocorreria, quaisquer que fossem as medidas proporcionais adequadas, o que exclui a responsabilidade por fatos ilícitos, ou se verifica que o dano resulta da omissão de medidas ou da sua desadequação ao risco grave e hipotético, e a antijuridicidade passa a resultar da não conformidade da conduta ao princípio da precaução imposto pela dúvida científica, o que cabe no segundo segmento ou variante de ilicitude previsto no n.º 1 do art. 483.º (violação de disposição legal destinada a proteger interesses alheios). Esta subsunção emerge quer por via da violação das leges artis, pois o art. 9.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos47 dispõe que O médico deve cuidar da permanente atualização da sua cultura científica e da sua preparação técnica, sendo dever ético fundamental o exercício profissional diligente e tecnicamente adequado às regras da arte médica, quer por consideração genérica do princípio da precaução como integrador da ilicitude, numa interpretação atualista do preceito. No âmbito da avaliação da culpa, o princípio em causa, reflete-se na prudência e na diligência havidas não apenas na avaliação dos riscos, mas também dos dados da ciência conhecidos, abrangendo as hipóteses científicas sérias, ainda que incertas, e na ponderação das medidas a adotar para evitar a concretização daquele, tudo isto em concatenação com um reforçado dever de informação ao paciente quanto ao objeto de investigação e de todas incertezas existentes. Assim, no que toca ao fato gerador de responsabilidade pode dizer-se que quando o mesmo se funda no princípio da precaução supõe uma inadaptação do comportamento médico à prudência devida em caso de receio legítimo – veja-se da relatora “Algumas notas sobre precaução e responsabilidade civil médica”, Revista Julgar on-line, Setembro de 2016, disponível em http://julgar.pt/algumas-notas-sobre-precaucao-e-responsabilidade-civil-medica/
[23] Ibidem.
[24] Veja-se o art. 29.º da petição, face ao qual é incompreensível a afirmação segundo qual a A. não descreveu qual o erro médico que imputa ao R. Com efeito, aludindo o relatório que constitui o doc. 10 junto com a petição inicial à “lesão traumática medular” ocasionada em contexto de cirurgia é claro o ilícito cometido o qual se cifra tão simplesmente numa lesão direta da integridade física da paciente. Sequer existe necessidade de aludir aos procedimentos que seriam conformes a leges artis. Seriam, naturalmente, os que não ocasionassem tal lesão da medula…
[25] Com esta indagação ficam explicitados os pontos de facto que a A. equaciona nas conclusões XII a XVIII, inferindo-se o que a recorrente pretende em VI a XI, uma vez que o conceito de que o R. gozará ou não numa determinada região do país é inócuo no estabelecimento concreto dos requisitos da obrigação de indemnizar e sendo que a especialidade médica do recorrido constava já elencada dos factos provados.
[26] A indicação da esperança média de vida é um dado estatístico e não um facto resultante do julgamento que tenha ou deva constar entre os factos assentes.
[27] Os factos dados como provados neste acórdão acrescem aos factos já apurados em primeira instância e elencados como provados na sentença recorrida (sem prejuízo dos demais factos que importa apurar e que constituem motivo para remessa dos autos à primeira instância, como se irá determinar).
[28] Estes e demais documentos juntos com a petição inicial e que, de seguida, servirão de suporte à prova, apesar de impugnados genericamente, não oferecem dúvidas quanto ao seu conteúdo, ademais alicerçado nos testemunhos produzidos em audiência, não tendo sido oferecida outra prova que desvirtue a sua qualidade e idoneidade probatória.
[29] Docs. de fls. 823 e ss.
[30] V.g., prazos de prescrição, que são, para a responsabilidade contratual, os do artº 309º, e, para a extra-contratual, os do artº 498º; responsabilidade por facto de outrem, que é para a primeira, a do artº 800º, nº1, e para a segunda, a do 500º; atenuação da indemnização em função de um juízo de equidade, para o caso de mera culpa na responsabilidade extracontratual (artº 494º). Todos os normativos referidos são do Código Civil.
[31] Neste sentido, SOUSA, Teixeira de, “O Concurso de Títulos de Aquisição da prestação”, Almedina, 1988, pág. 136.
[32] Vide, “Responsabilidade contratual e extracontratual”, Boletim do Ministério da Justiça, 85, págs, 208 e ss.
[33] “A Responsabilidade Médica em Portugal”, Boletim do Ministério da Justiça, nº 334, pág. 40.
[34] A faculdade de opção pelo lesado entre as duas espécies de responsabilidade é admitida por MONTEIRO, Pinto, “Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil”, in Boletim da Faculdade de Direito, Suplemento, Vol. XXVIII, Coimbra, 185, págs. 398 e ss., e por NUNES, Manuel do Rosário, “Da Responsabilidade Civil por Actos Médicos – Alguns Aspectos”, Universidade Lusíada, 2001, págs. 54 e ss. O concurso dos dois regimes foi, ainda, aceite em vários arestos jurisprudenciais, como por exemplo, no Acórdão da Relação de Coimbra., de 4.4.05, relatado por Francisco Lourenço, Colectânea de Jurisprudência, 1995, II, págs, 31 e ss., e no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, relatado por Fonseca Ramos, Colectânea de Jurisprudência, 2008, I, págs. 134 e ss..
[35] A medicina não é, em geral, considerada uma “actividade perigosa”, para efeitos do art. 493º/2.Todavia, a utilização de instrumentos ou aparelhos médicos, enquanto “coisas móveis”, as infecções nosocomiais ou quedas no edifício hospitalar, enquanto decorrentes “coisas imóveis” preenchem as presunções de culpa previstas no art. 493º/1. – André Dias Pereira, Breves Notas sobre a Responsabilidade Médica em Portugal, p. 16. Neste sentido, quanto à atividade de transfusão de sangue, pode ver-se o Ac. do STJ, de 3.3.07, relatado por Souto de Moura, Proc. 09P0164, em www.dgsi.pt. SOUSA, Teixeira, in Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade civil Médica, in Direito da Saúde e Bioética, Lisboa, AAFDL, 1996, pág. 138, considera que a utilização de máquinas que exigem manuseamento atento, como seja o aparelho de anestesia, é uma destas situações, não podendo o médico assumir a garantia do funcionamento dos aparelhos as cabendo-lhe o ónus da prova que os danos por eles causados não resultaram de negligência sua. Em todo o caso, na situação dos autos, caso se enquadre a situação na responsabilidsde contratual, sempre se verifica a presunção de culpa.