Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
158/07.8TBMDB.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: CASO JULGADO MATERIAL
PRESCRIÇÃO VERIFICADA NOUTRO ESTADO-MEMBRO DA U.E.
Nº do Documento: RP20110630158/07.8TBMDB.P1
Data do Acordão: 06/30/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A autoridade do caso julgado material de uma decisão proferida pelo tribunal de um Estado-Membro da União Europeia impõe-se nos restantes Estados-Membros, ainda que tal decisão se funde num prazo de prescrição do direito mais curto do que aquele que é previsto no Estado onde foi proposta a nova acção com o mesmo fundamento, sem que isso implique a violação de qualquer norma comunitária ou a ofensa de algum princípio fundamental de direito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 158/07.8TBMDB.P1 – 3ª Secção (apelação)
Tribunal da Comarca de Mondim de Basto

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Teresa Santos
Adj. Desemb. Maria Amália Santos

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B…, solteiro, maior, com domicílio no …, freguesia e concelho de Mondim de Basto, beneficiário da Segurança Social n.º ………, intentou acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra:
1. C…, com sede na Rua … n.º ..-..° A P, ….-… Lisboa; e
2. D…, COMPAGNIE LUXEMBOURGEOISE, S.A., ., Rue …, ….. Luxembourg, tendo em vista a condenação no pagamento de indemnização emergente de acidente de viação.
Alegou, essencialmente, que no dia 25 de Junho de 2005 foi vítima de um acidente de viação em Espanha quando o veículo em que se fazia transportar como passageiro entrou em despiste numa auto-estrada, por excesso de velocidade e cansaço do condutor, indo embater no rail separador esquerdo da hemi-faixa de rodagem e dela saindo de imediato, rodopiando e capotando até se imobilizar no espaço térreo situado entre as duas hemi-faixas de rodagem daquela via rápida.
Por causa do acidente, o A. foi conduzido ao serviço de urgência de um hospital espanhol onde lhe foram diagnosticadas várias lesões com origem naquela mesma situação.
O A. iniciou tratamentos ali e foi sujeito a intervenção cirúrgica antes de ser transferido para Portugal (país da sua nacionalidade) onde continuou a desenvolver o processo de cura clínica. Passou por internamentos, incapacidade temporária e ficou com uma incapacidade permanente nunca inferior a 15%.
Invoca danos patrimoniais, presentes e futuros, assim como danos não patrimoniais, achando-se no direito de ser reparado por todos eles, da responsabilidade da R. D…, por estar transferida para ela a responsabilidade por acidentes de viação originados pelo veículo causador do acidente, através do contrato de seguro, titulado pela apólice n.º …………..
A R. C… foi demandada por ser a representante daquela demandada em Portugal.
Concluiu assim o seu articulado:
«NESTES TERMOS e nos mais de Direito, deve a presente acção ser julgada procedente por provada e, em consequência,
A) ser a primeira R. condenada a pagar ao A. a título de ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais, as seguintes quantias:
- € 120.000,00 (cento e vinte mil euros) relativos a I.P.P.;
- € 34.171,65 (trinta e quatro mil cento e setenta e um euros e sessenta e cinco cêntimos) relativos a perdas salariais,
- € 30.000,00 (trinta mil euros) relativos aos danos não patrimoniais;
- € 1.294,75 (mil duzentos e noventa e quatro euros setenta e cinco cêntimos) relativos aos danos patrimoniais;

B) ser a R. condenada a indemnizar o A. dos danos patrimoniais e não patrimoniais, previsíveis, mas insusceptíveis de serem por ora contabilizados, e que sejam consequência directa do acidente sub judice, a liquidar em execução de sentença.

C) ser a R. condenada no pagamento dos juros de mora calculados à taxa legal de 4% ao ano, desde a citação, até efectivo pagamento e, ainda em custas, procuradoria e demais encargos legais.

D) Para a hipótese de se vir a demonstrar nos autos, carecer a primeira R. de Legitimidade passiva, por não ser a representante da 2ª R., para efeitos judiciais, deverá ser, então, a R. D…, condenada nos sobreditos termos, a pagar ao A., as quantias acima peticionadas.» (sic)

As R.R. contestaram a acção num articulado único, invocando:
a) A prescrição do direito da A. relativamente às R.R. no dia 25.7.2005, em virtude do acidente ter ocorrido em, 25.7.2002 e elas terem sido citadas apenas no dia 23.7.2007, pelo que defendem a sua absolvição do pedido.
b) A ilegitimidade da 1ª R., C… por não ser ela, em qualquer caso, a responsável pelo pagamento da indemnização, pugnando pela sua absolvição da instância.
Quanto ao fundamento da acção, impugnando parcialmente os factos, sem que tenham obrigação de os conhecer, entendem que a acção deve ser julgada de acordo com a prova que vier a ser produzida.

O A. respondeu à matéria das excepções, pugnando pela sua improcedência.

Dispensada a audiência preliminar, foi proferido despacho saneador que:
a) Declarou a R. C…, Lda, parte ilegítima e a absolveu da instância; e
b) Relegou o conhecimento da excepção da prescrição para final.

Foi seleccionada a matéria de facto, apenas com base instrutória, de que o A. reclamou sem sucesso.
Após longa instrução do processo, em 26.1.2010 a R. apresentou requerimento invocando a excepção dilatória de caso julgado e pedindo que a mesma se julgue procedente e a acção improcedente, “absolvendo-se as Rés”.
Para o efeito, alegou que, «na sequência do acidente de viação em causa nos presente autos, ocorrido em 25/07/2002, em …, …, Espanha, no qual foi interveniente o veículo de matrícula “BD …”, no qual o A. era transportado, foi instaurado processo de inquérito pelo “Juzgado de Instruccion” de Vitoria-Gasteiz, a fim de ser averiguada eventual responsabilidade criminal.
O referido processo-crime nº 684/02 foi arquivado, encontrando-se junto a fls. 279 a 403 dos autos.
Após o arquivamento do aludido processo-crime, o aqui A. instaurou acção de processo ordinário, no “Juzgado de Primera Instancia nº. 6” de Vitoria-Gasteiz, contra a ora R. “D…” e E…, formulando pretensão indemnizatória, com base na responsabilidade civil extracontratual, pela ocorrência do sinistro em causa nos presentes autos.
Conforme consta da sentença nº. 119/07, o referido processo culminou com a absolvição da aqui R. “D…”… em tradução livre: “’Rejeitando a acção proposta pelo Sr. B…, representado pelo procurador, Sr. F…, devo absolver e absolvo o Sr. E… e a seguradora D…, COMPAGNIE LUXEMBURGEOISE, S.A. das pretensões exercitadas contra eles neste processo.”
A sentença espanhola proferida pelo Tribunal de Vitoria-Gasteiz, País Basco, Espanha, em 25/06/2007, absolveu as aqui Rés do pedido formulado pelo também aqui A., considerando que o mesmo já não poderia ser exercitado, por força do decurso do prazo de prescrição.» (sic)
Entende a requerente que o tribunal espanhol, ao conhecer da prescrição (excepção peremptória, no direito espanhol), absolveu os R.R. do pedido, o que significa que se pronunciou sobre o mérito da causa, pelo que a sentença, já transitada em julgado, constitui caso julgado material.
Juntou cópia da sentença espanhola e, posteriormente, a respectiva tradução.
O A. respondeu ao requerimento, considerando que não existe caso julgado, designadamente e além do mais, por o tribunal espanhol não se ter pronunciado sobre o mérito da questão. A prescrição no direito espanhol é de um ano apenas e tem natureza processual. A existir caso julgado, reveste natureza formal, pelo que não tem valor extraprocessual.
Naquela e nesta acção não são os mesmos os sujeitos, a causa de pedir e o pedido. Também por isso não e impõe a autoridade do caso julgado.
Por outro lado, considera ainda o A. que a arguição da excepção do caso julgado no momento processual em que ocorreu, depois da contestação, viola o princípio da preclusão plasmado no art.º 489º, nº 1, do Código de Processo Civil, constituindo nulidade processual.
Termina no sentido de que seja julgada improcedente a excepção do caso julgado, devendo os autos prosseguir os seus termos normais até final.
Apreciando o requerimento da R. com base num conjunto de factos extraídos da petição inicial e da base instrutória deste processo e da petição inicial e decisões extraídas do processo que correu termos nos tribunais espanhóis, o tribunal a quo resumiu a sua posição no sentido de que existe identidade entre os elementos definidores desta acção e da acção que correu os seus termos perante o tribunal espanhol e que o alcance do caso julgado da decisão neles proferida determina a impossibilidade de conhecer a pretensão formulado pelo autor na presente acção, devendo proceder o requerido, com absolvição da R. da instância. Culminou o seu despacho com o seguinte segmento decisório:
«Em face de tudo o exposto, decido julgar procedente a excepção dilatória nominada de caso julgado e, em consequência, absolvo a ré D…, Compagnie Luxembourgoise, S.A. da instância.» (sic)

Inconformado com esta decisão, o A. interpôs recurso de apelação com alegações onde formulou as seguintes CONCLUSÕES:
«1º - Recorre-se da decisão judicial que julgou procedente a excepção de caso julgado comunitário, por existir decisão anterior espanhola que declarou prescrito o direito à acção judicial do aqui recorrente, sem ter conhecido dos respectivos fundamentos materiais.
2º- O Tribunal Recorrido interpretou o instituto do caso julgado à luz da Lei interna portuguesa, quando o devia ter interpretado como conceito de Direito comunitário.
3º-A presente acção entrou em juízo, de forma tempestiva, à luz das competentes normas da Lei portuguesa.
4º-O ordenamento jurídico português é o da lei da nacionalidade e da residência do A. 5º- Os Estados-Membros da UE têm plena autonomia para legislarem sobre a questão da prescrição da responsabilidade civil extra-contratual emergente de acidente de viação (duração do prazo, data de início de contagem, natureza do instituto), uma vez que não existe nenhuma norma comunitária vigente nesta matéria.
6º- A aplicação, pelo Tribunal recorrido, do instituto do caso julgado violou o princípio da igualdade (artigo 13º CRP e 20º e ss e 6º TUE), o princípio do Estado de Direito Democrático (artigo 2º CRP e artigo 6º n.º 1 da CARTA DFUE) e o princípio da proporcionalidade (art. 5º n.º 3, TCE).
7º- Não existem fundamentos legítimos que justifiquem uma restrição ao princípio da igualdade in casu.
8º- No que concerne à questão da apreciação do direito subjectivo do A., existem normas comunitárias reguladoras das questões fundamentais em matéria de responsabilidade civil extracontratual emergente de acidentes de viação.- Vide Directiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 16/09/2009.
9º- Perante sentenças proferidas por Estados-Membros que decidam do mérito da causa não se colocam situações materialmente injustas na aplicação do instituto do caso julgado, porquanto as normas referentes ao direito substantivo são essencialmente as mesmas.
10º- Mas no que toca à questão da prescrição do direito à acção, como não existe nenhuma norma comunitária que regulamente o referido instituto, vigoram prazos de prescrição muito díspares em cada Estado-Membro, como é o caso dos presentes autos: prazo de 1 ano previsto na lei espanhola e prazo de 5 anos previsto na lei portuguesa.
11º- Em termos de Direito material comunitário, o instituto do caso julgado quando fundado em decisão anterior de prescrição não pode ser valorado de modo igualitário, já que vigoram prazos de prescrição diferentes entre os vários ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros, neste caso Espanha e Portugal.
12º- O prazo de prescrição de um ano previsto na lei espanhola não pode legitimamente ser equiparado, para efeitos de avaliação da situação de caso julgado, ao prazo de prescrição de cinco anos previsto na lei portuguesa (foro da nacionalidade).
13º- O princípio da igualdade realiza-se como direito subjectivo específico e autónomo e como direito, liberdade e garantia de natureza defensiva assegurando aos cidadãos a devida protecção contra formas de actuação dos poderes públicos (ou dotada de poderes públicos) impositivas de tratamento desigual sem motivo justificado.
14º- Quando houver um tratamento desigual impõe-se uma justificação material da desigualdade. É obvio que quer o fim, quer os critérios do tratamento desigual têm de estar em conformidade com a Constituição.
15º- Mas para além disso, o tratamento desigual deve pautar-se por critérios de justiça, exigindo-se, dessa forma, uma correspondência entre a solução desigualitária e o parâmetro de justiça que lhe empresta fundamento material.
16º- O ponto central da discussão em torno do princípio da igualdade reconduz-se, assim, à questão de saber se existe fundamento material bastante para diferenciações de tratamento jurídico, o que nem sempre é fácil de averiguar sobretudo nos casos de discriminação indirecta em que uma disposição, prática ou critério aparentemente neutral conduz a resultados desigualitários materialmente infundamentados.
17º-O instituto do caso julgado só encontrará a sua legitimação constitucional, se e na medida em que garantir a efectivação do Direito à igualdade de tratamento.
18º- O princípio da segurança jurídica não justifica que se aceite, para efeito de verificação de caso julgado, dois prazos de prescrição diferentes, porquanto essa restrição ao Direito de igualdade não é necessária, nem adequada, nem proporcional à satisfação dos objectivos comunitários que se visam atingir com o regulamento ou com os Tratados da EU.
19º- A diferença de tratamento que se pretende ver adoptada na apreciação do instituto do caso julgado (exclusão de decisões anteriores quando fundadas em prescrição de prazo mais curto) reforça os escopos fundamentais visados pela EU.
20º- A nível interno do ordenamento jurídico português ou comunitário entre diferentes Estados-Membros que prescrevam o mesmo prazo de prescrição, o instituto do caso julgado é valorado de igual modo, uma vez que em ambas acções o Direito de prescrição é o mesmo, pelo que nunca é posto em causa o princípio da igualdade.
21º- O tratamento igualitário na apreciação de caso julgado comunitário in casu não obedece a critérios de justiça material, porquanto, o recorrente, à luz da lei da sua nacionalidade, não tem o seu direito subjectivo prescrito.
22º- As razões de segurança jurídica (que fundamentam o instituto do caso julgado comunitário) não justificam, uma equiparação igualitária de prazos de prescrição diferentes para efeitos de determinação do instituto do caso julgado.
23º- A interpretação literal do artigo 34º n.º 4 do referido regulamento determina neste caso, uma situação de discriminação indirecta.
24º- A identidade da união e a cidadania europeia (artigo 17º CTE) reforçam uma igualdade de tratamento entre os vários cidadãos dos Estados-Membros, no espaço comunitário.
25º-O princípio da harmonia jurídica internacional preconiza que o sistema jurídico aplicável “ao caso” deve ser o mesmo para todos os Estados conexionados com a situação da vida a regular.
26º- Na falta de norma comunitária referente à prescrição, as normas comunitárias devem ser interpretadas uniformemente, com respeito pelos princípios constitucionais, de modo a poder aplicar-se um Direito comunitário materialmente justo.
27º- A EU é um ordenamento jurídico autónomo e unitário, distinto do direito nacional e do direito internacional.
28º- Salienta-se a proximidade da interpretação do direito primário e secundário da EU da interpretação constitucional e legal no seio dos Estados-Membros.
29º- Os conceitos de direito comunitário têm um conteúdo autónomo, pelo que se distinguem quer do significado que possam ter no direito nacional dos Estados - Membros quer daquele que possam assumir no direito internacional.
30º- Um importante princípio de interpretação determina a interpretação em conformidade com os direitos humanos. Uma dignidade especial é reconhecida, neste contexto, à CEDH, reconhecida pelo EU, nos termos do disposto no artigo 6º n.º 2 do TUE.
31º- O tribunal recorrido devia ter interpretado o instituto de caso julgado à luz das regras de interpretação jurídica comunitárias.
32º- O Direito da União admite que os princípios gerais de direito primam sobre o Direito comunitário derivado e mesmo sobre os tratados, sempre que acolham direitos inderrogáveis como os inerentes à dignidade da pessoa humana, ou à igualdade de tratamento.
33º- As normas comunitárias devem ser interpretadas teleologicamente por forma a revelarem os princípios estruturantes e funcionais do ordenamento comunitário integradoras da justiça do sistema.
34º- A interpretação do conceito de caso julgado comunitário em sentido literal e amplo (incluindo as decisões anteriormente proferidas sobre prescrição) traduz-se numa restrição ao princípio da igualdade quando apreciem sentenças proferidas com base em prazos de prescrição mais curtos do que os vigentes no ordenamento jurídico à luz do qual é apreciado o caso julgado, pelas razões já expostas supra.
35º-Essa interpretação não respeita o conteúdo essencial do direito à igualdade do A. para além de não ser necessária para atingir os fins do regulamento, pelo que viola o disposto no artigo 52º da CDFUE, bem como os princípios de Estado de Direito e da proporcionalidade comunitários.
36º- Na ausência de norma comunitária sobre a fixação de um prazo de prescrição, relativo à matéria aqui tratada, a efectivação da igualdade material na aplicação do referido regulamento, no que concerne à verificação da existência ou não de caso julgado, in casu, depende de uma interpretação restritiva do artigo 34º, nº 4 do referido regulamento, nos seguintes termos ou em termos similares:
“Uma decisão, não será reconhecida se for inconciliável com outra anteriormente proferida noutro Estado-Membro ou num Estado terceiro entre as mesmas partes, em acção com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, desde que a decisão proferida anteriormente reúna as condições necessárias para ser reconhecida no Estado-Membro requerido, excepto se esta decisão se fundar em prescrição do direito de acção, com fundamento em decurso de prazo mais curto.” (o sublinhado refere-se à restrição sugerida).
37º-A decisão anteriormente proferida pelo Tribunal Espanhol, não tem força de caso julgado, porquanto se funda em prescrição do direito à acção, com prazo mais curto.
38º- A sentença de mérito portuguesa, que venha a ser proferida nos presentes autos – na hipótese de vir a ser julgado procedente este recurso - não integrará o conceito de “decisão inconciliável” plasmado no referido normativo legal, devendo ser validamente reconhecida a nível interno e comunitário, nos termos do referido regulamento.
39º- Foram violadas as seguintes normas jurídicas: artigo 34º n.º 4 do regulamento (CE) n.º 4472001; artigos 2º e 13º da CRP; artigo 6º n.º 1 e 52º da CDFUE, e artigo 5º n.º 3 TCE.
Culmina as conclusões no sentido de que seja concedido provimento à apelação, revogando-se a decisão recorrida e fazendo prosseguir a normal tramitação do processo.

Em contra-alegações, a R. defendeu a improcedência do recurso com conclusões que também se transcrevem:
«I – A douta decisão recorrida deve manter-se pois aplicou correctamente as normas legais e os princípios jurídicos competentes;
II – O Recorrente não questiona a verificação do caso julgado, a confirmação da tríplice identidade prevista no artigo 498º. do Cód. Proc. Civil, entre a acção que correu termos nas Justiças de Espanha - Tribunal de Vitoria Gasteiz - e a dos presentes autos;
III - O Recorrente, no que respeita ao reconhecimento da sentença espanhola, limita-se a pugnar por uma interpretação restrita do nº. 4 do artigo 34º. do Regulamento (CE) 44/2001, não pondo em causa as demais excepções impeditivas do reconhecimento da sentença espanhola;
IV - Ao contrário do alegado pelo Recorrente, a prescrição, à luz do direito espanhol, é uma excepção peremptória, pelo que o seu conhecimento traduz-se numa sentença que se pronuncia sobre o mérito da causa;
V - A sentença espanhola, transitada em julgado, constitui caso julgado material, pelo que a mesma pode e deve ser invocada em Portugal, como excepção de caso julgado;
VI – Foi o Recorrente – e não a Recorrida – quem escolheu intentar a acção para efectivação de responsabilidade civil extracontratual, em Espanha;
VII - Não tendo obtido o desfecho pretendido em Espanha, o Recorrente instaurou a presente acção, em Portugal - comportamento que o TJUE censura, considerando ser de evitar o “forum shopping” – vindo agora alegar violação do princípio de igualdade;
VIII - Na concepção do Recorrente, sempre que normas internas sejam diferentes, ocorre violação do princípio da igualdade – o que apelida de “discriminação indirecta”, entendimento totalmente desligado da realidade, mormente dos princípios jurídicos que enformam o direito comunitário;
IX - A diversidade das legislações nacionais aplicáveis levou a que os Estados-Membros estabelecessem regras uniformes relativamente ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade;
X - Tendo em conta o âmbito de protecção das Directivas comunitárias, ao qual os Estados-Membros conformaram as suas leis, não consta menção alguma quanto aos prazos de prescrição do direito à indemnização decorrente de responsabilidade civil extracontratual;
XI - Ora, se é assente que as legislações nacionais divergem quanto aos prazos de prescrição e que o legislador comunitário não harmonizou as legislações nacionais quanto a esse nível, a conclusão a retirar está nos antípodas da alcançada pelo Recorrente: a circunstância de haver prazos de prescrição diferentes, estabelecidos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual e, consequentemente, sentenças dos diferentes Estados Membros que divergem quanto a este aspecto, não agride os princípios comunitários;
XII - O reconhecimento da decisão espanhola é a única solução possível à luz do Regulamento (CE) 44/2001;
XIII - “O funcionamento harmonioso da justiça a nível comunitário obriga a minimizar a possibilidade de instaurar processos concorrentes e a evitar que sejam proferidas decisões inconciliáveis em dois Estados-Membros competentes”;
XIV - “A confiança recíproca na administração da justiça no seio da Comunidade justifica que as decisões judiciais proferidas num Estado-Membro sejam automaticamente reconhecidas”;
XV - O Regulamento (CE) 44/2001 visou facilitar a livre circulação de sentenças, prevendo um processo de reconhecimento simples e rápido;
XVI - As decisões proferidas num Estado-Membro são reconhecidas nos outros Estados-Membros, sem necessidade de recurso a qualquer processo;
XVII - O reconhecimento de sentenças estrangeiras assenta num sistema de cariz formal, baseado na verificação da regularidade internacional da sentença;
XVIII - O nº. 4 do artigo 34º. do Reg. (CE) 44/2001, ao estabelecer que não serão reconhecidas as decisões inconciliáveis pretende evitar a situação cuja verificação o recorrente pugna no âmbito do presente recurso;
XIX - Para se determinar se há inconciabilidade, na esteira da jurisprudência do TJUE, impõe-se indagar se as decisões em causa produzem consequências jurídicas que mutuamente se excluem;
XX - A decisão que eventualmente viesse a ser proferida pelo Tribunal “a quo” (que não sobre o conhecimento do caso julgado), produziria consequências jurídicas que excluiriam as consequências da decisão espanhola;
XXI - “É incontestável que a ordem social será perturbada se nela se puderem invocar duas sentenças contraditórias”;
XXII - Devem ser interpretadas de forma estrita as excepções ao princípio do reconhecimento das decisões;
XXIII - O Recorrente pretende, ao invés, uma interpretação ampla do nº. 4 do art. 34º. do Reg. (CE) 44/2001, pois que pretende alargar a excepção ao reconhecimento das sentenças estrangeiras, o que é inconcebível ante o espírito deste diploma;
XXIV - As excepções ao reconhecimento de sentenças estrangeiras devem ser objecto de uma interpretação estrita, porquanto constituem um obstáculo à realização dos objectivos primordiais do mencionado Regulamento;
XXV - A linha de raciocínio seguida pelo Recorrente, quando refere que: “a diferença de tratamento reforça o funcionamento harmonioso da justiça a nível comunitário, por passarem a inexistir decisões inconciliáveis em matéria de prescrição”, é completamente subversiva, na medida em que confere primado ao direito interno, ao invés do comunitário;
XXVI - A posição do Recorrente sempre faria com que houvesse dualidade de critérios na aplicação da excepção do nº. 4 do artigo 34º. do Reg. 44/2001, o que originaria desigualdade de tratamento;
XXVII - “O reconhecimento e a execução de uma decisão estrangeira não podem ser recusados com base apenas no facto de existir uma divergência entre a regra de direito aplicada pelo tribunal do Estado de origem a que seria aplicada pelo tribunal do Estado requerido se tivesse sido este a conhecer do litígio.”;
XXVIII - O Regulamento (CE) 44/2001 visa evitar que tribunais dos Estados contratantes decidam processos que tenham por objecto as mesmas partes, o mesmo pedido e a causa de pedir, evitando-se, consequentemente, a disparidade de decisões que daí possa advir;
XXIX - A pretensão do Recorrente tem necessariamente de improceder, mantendo-se a douta sentença proferida , na qual a Recorrida se louva inteiramente.
» (sic)
Terminou no sentido de que a apelação não merece proceder.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
Questões a apreciar
O objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação do A., acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do acto recorrido e não sobre matéria nova, excepção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 660º, nº 2, 684º e 690º, do Código de Processo Civil[1], na redacção que precedeu a que foi introduzida pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, aqui aplicável).

Equacionando-se a formação de caso julgado por sentença proferida por Estado-Membro da União Europeia (Espanha), que julgou a acção improcedente com base na prescrição do direito do A., para cujo exercício a respectiva lei nacional prevê o prazo de um ano, é mister saber se essa decisão deve ser desconsiderada excluída, admitindo-se nova acção nos tribunais portugueses (com os mesmos sujeitos, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido) se, para o efeito, a lei portuguesa previr um prazo prescricional mais longo e, à sua luz, o direito concreto em causa não estiver prescrito.
*
III.
Passando, então, a decidir de meritis:
A decisão recorrida extraiu do processo e expôs os seguintes factos que considerou relevantes para a decisão[2]:
- Os presentes autos foram intentados em 17/07/2007 por B… contra C… e D…, Compagnie Luxembourgoise, S. A.
- No âmbito dos presentes autos, o autor invoca, além do mais, que no dia 25 de Julho de 2002, cerca das 7h25, na auto-estrada A-68, …, ao Km 46,200, município de …-…, Espanha, ocorreu um acidente de viação, no qual foi interveniente um veiculo de marca Audi, modelo .., com a matrícula BD … pertencente a G…, matriculado no Luxemburgo e conduzido por E…, cuja responsabilidade se encontrava transferida para a ré, seguindo o autor como passeiro e que se deveu à sua falta de atenção, prudência e destreza e da violação de proibição de circulação a velocidade superior a 120kms/h do seu condutor e em consequência do qual o autor sofreu os danos patrimoniais e não patrimoniais, presentes e futuros que enunciou.
- A final peticiona a condenação da 1ª ré e, caso assim não se entenda, da 2ª ré, a indemnizar o autor dos danos patrimoniais e não patrimoniais no montante global de €185.466,40 e ainda naqueles que vierem a ser liquidados em execução de sentença e ainda a pagar os respectivos juros de mora desde a data da citação.
- No despacho saneador de fls. 55 e ss. a ré C… foi julgada parte ilegítima e, em consequência, foi absolvida da instância.
- Por sentença nº119/07, proferida em 25/06/2007, pelo Magistrado-Juiz de Primeira Instância nº6 de Vitoria-Gasteiz, nos autos com o nº806/06, em que era demandante B… e demandados E… e C…, CIA, Luxemburgoise S. A., foi decidido “que, rejeitado o pedido interposto por B…, representado pelo Procurador F…, devo absolver e absolvo E… e a seguradora D…, COMPAGNIE LUXEMBURGEOISE, S.A. das pretensões exercidas contra eles neste processo.”
- Na parte reservada aos fundamentos jurídicos daquela sentença fez-se constar que não “consta acto interruptivo da prescrição anual que afecta a responsabilidade civil deduzida desde Novembro de 2003” do artigo 1968º do Código Civil e que, “por conseguinte, em aplicação do referido preceito e do 1969º, a petição deve ser rejeitada, sem aprofundar o litígio”.
- A sentença atrás referida foi confirmada em sede de recurso pela sentença nº45/08 da 1ª Secção da Audiência Provincial de Alava de 13/02/2008.
- Na petição inicial que deu início ao processo espanhol, o autor peticionava a condenação dos réus no pagamento da quantia de € 130.150,67, ou subsidiariamente no montante que fosse julgado mais ajustado.
- Para tanto o seu representante alegou além do mais que “o autor cidadão português, ficou ferido na sequência do acidente de viação a seguir descrito e que constitui a causa de pedir do presente pedido” que “ocorreu no dia 25 de Julho do ano de 2002, na Autopista A-68, no P.K 46’2 do sentido ascendente no município de …. O Sr. B… era passageiro do veículo sinistrado que ficará totalmente inutilizado. O condutor na altura era o co-demandado D. E… que, num despiste negligente, perdeu o controlo do veículo, provocando o seu voo repetido e as lesões sofridas pelo meu representado, para além do falecimento de outro ocupante do veículo, D. G… e a total destruição do veiculo. (…)”.
- O autor alega ainda naquela petição inicial que “: (…) em aplicação do Baremo vigente, considerando as lesões, dias de incapacidade, internamento hospitalar e sequelas físicas, entendemos aplicável uma avaliação de dano pessoal de 57 pontos, como fica exposto, determinado em 1.763,79 € o valor de cada um, considerando a idade de meu representado, o que comporta um montante a indemnizar de 100.536,03€.
A este montante deve se acrescentar os rendimentos de meu representado (que segundo o doc. nº 6 anexo, supera ligeiramente os 41.000€/ano) que ciframos nos 25%, ou seja, no total de 25.134,01€; bem como a indemnização por hospitalização (77 dias no total, 22 em Vitoria e 55 em Vila Real) a 58,19€/dia, um total de 4.480,63€.
O total indemnizatório correspondente ao montante pedido, ou seja, o valor de 130.150,67€.”
*
O art.º 671º, nº 1[3], dispõe que “transitada julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelo artigo 497.° e seguintes, sem prejuízo do que vai disposto sobre os recursos de revisão e de oposição de terceiro. Têm o mesmo valor que esta decisão os despachos que recaiam sobre o mérito da causa”.
Segundo o subsequente art.º 673º, “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique”.
Tal como a litispendência, o caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (art.º 497º, nº 1).
Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (art.º 498º, nº 1).
O caso julgado confere à decisão carácter definitivo. Uma vez transitada em julgado, a decisão não pode, em princípio[4], ser alterada; antes adquire estabilidade, deixando de ser lícito a parte vencida provocar a sua alteração mediante o uso dos recursos ordinários. Tem por objectivo impedir que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior; garante não apenas a impossibilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente[5], mas também a inviabilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica. Salvaguarda-se assim a economia processual, o prestígio das instituições judiciárias, reportado à coerência das decisões que proferem, e o prosseguido fim de estabilidade e certeza das relações jurídicas[6].
O caso julgado preclude todos os meios de defesa do réu, mesmo os que ele poderia ter deduzido, mas não deduziu, assim como preclude todas as possíveis razões do autor. É a significação da máxima tantum judicatum quntum disputatum vel disputari debebat.[7]
E sendo de caso julgado material que falamos, a estabilidade ultrapassa as fronteiras do processo, e portanto, além da preclusão operada no processo, produz-se a impossibilidade de a decisão ser alterada mesmo noutro processo. A força e autoridade do caso julgado evitam que a questão decidida pelo órgão jurisdicional possa ser validamente definida, mais tarde, em termos diferentes por outro ou pelo mesmo tribunal (res judicata pro veritate habetur).
Para cada uma das partes poder impor à outra a eficácia do caso julgado e o juiz a ele dever obediência é indispensável que, de acordo com o acima referido, concorram as ditas três identidades numa e noutra acção: a causa de pedir, o pedido e as partes têm que ser os mesmos (art.º 498º, nº 1).
O caso julgado da decisão anterior releva como autoridade de caso julgado material no processo posterior quando o objecto processual anterior (pedido e causa de pedir) é condição para apreciação do objecto processual posterior. O caso julgado de decisão anterior releva como excepção de caso julgado no processo posterior quando a apreciação do objecto processual anterior (pedido e causa de pedir) é repetida no objecto processual subsequente.[8]
Ao não suscitar na apelação a questão nos termos em que o fizera anteriormente no processo, o recorrente aceita agora a coincidência dos sujeitos, pedido e causa de pedir entre a acção decidida em Espanha e nestes autos em curso, enquanto pressupostos do caso julgado. Considera, no entanto, que, tendo sido ali decidida a acção com improcedência do pedido, com base no decurso de um prazo de prescrição do direito à indemnização de apenas um ano, deve admitir-se e decidir-se esta nova acção considerando agora aplicável o prazo prescricional de cinco anos previsto na lei portuguesa. Na sua perspectiva, a consideração de um prazo de prescrição mais curto do que aquele que é previsto na lei nacional constitui uma ofensa aos princípios da igualdade e da proporcionalidade e à justiça do sistema jurídico comunitário, devendo excluir-se a força do caso julgado da decisão anteriormente proferida pelo tribunal espanhol.
Será assim?
O Tribunal Constitucional por diversas vezes reconheceu a protecção constitucional do caso julgado, alicerçando-a quer no disposto no nº 3 do art.º 282° da Constituição, quer nos princípios da confiança e da segurança jurídica, decorrentes da própria ideia de Estado de Direito (art.º 2° também da Lei Fundamental)[9]. Com efeito, há inconstitucionalidade sempre que de lei nova ou da simples interpretação jurídica resulte ofensa dos princípios da confiança, da segurança jurídica ou a ideia de Estado de Direito que fundamentam a protecção constitucional do caso julgado, implicando a modificação do decidido.
Como ensinam Gomes Canotilho e Vital Moreira[10], “na sua vertente de Estado de direito, o princípio do Estado de direito democrático, mais do que constitutivo de preceitos jurídicos, é sobretudo conglobador e integrador de um amplo conjunto de regras e princípios dispersos pelo texto constitucional, que densificam a ideia da sujeição do poder a princípios e regras jurídicas, garantindo aos cidadãos liberdade, igualdade e segurança”. E, a fl.s 1041 da mesma obra, acrescentam os mesmos e distintos anotadores que “a Constituição não define o conceito de caso julgado, mas trata-se de um conceito pré-constitucional suficientemente densificado (designando as situações que, de forma definitiva e irretractável, foram fixadas por sentença judicial), para não permitir a sua ampliação de modo a abarcar outras situações (relações ou situações definitivamente consolidadas ou exauridas por outros meios jurídicos, como cumprimento, transacção, prescrição, caducidade)”.
E aqui chegados, é tempo de lembrar que, prevendo a Constituição um regime de recepção automática do direito internacional geral (art.º 8º, nºs 1 e 2) --- uma cláusula geral de recepção plena, sendo incorporado como “parte integrante do direito português” ---, confere especial atenção às disposições e tratados que regem a União Europeia e às respectivas instituições, reconhecendo-lhes a vocação para produzir direito normativo directamente aplicável na ordem interna (caso dos regulamentos comunitários, que constituem direito self executing) com prevalência sobre o direito interno. Todavia, é seguro que o princípio da prevalência do direito supranacional, designadamente o direito comunitário, sobre o direito ordinário interno não pode prevalecer sobre a Constituição, antes tem de ceder perante ela, justamente, a lei fundamental do país, que torna inconstitucionais as normas que contrariem os seus preceitos ou os seus princípios (art.º 277º, nº 1), qualquer que seja a natureza ou a origem da norma. Este é um princípio essencial, de aplicação geral, que só sofre derrogações nos casos expressamente admitidos pela própria Constituição (cf. art.º 277º, nº 2). O facto da ordem jurídica comunitária constituir uma nova fonte legislativa self executing mesmo com primazia sobre o direito interno ordinário, com base no princípio da especialidade ou da competência prevalente, não obsta à supremacia da Constituição da República.
Como refere Gomes Canotilho[11], “a posição das normas comunitárias na hierarquia das fontes é sempre infraconstitucional, porque: a supremacia do direito comunitário perante a Constituição tornaria supérfluas as próprias constituições…”.
Nesta senda, qualquer norma de direito comunitário que violasse esta regra de respeito e protecção constitucional do caso julgado sempre seria inaplicável por inconstitucionalidade.
O Regulamento (CE) nº 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro alterado pelo Regulamento (CE) nº 1937/2004, da Comissão, de 9.11.2004, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, visa, nos seus próprios termos, criar disposições que permitam unificar as regras de conflito de jurisdição em matéria civil e comercial, bem como simplificar as formalidades com vista ao reconhecimento e à execução rápidos e simples das decisões proferidas nos Estados-Membros abrangidos pelo regulamento. Acrescenta-se ali que o regulamento se limita ao mínimo necessário para atingir os seus fins sem exceder o que é indispensável para esse efeito, ajustando-o ao estritamente necessário a regular aquilo que os Estados-Membros, por si só, não conseguiriam alcanças nesta matéria, em conformidade com os princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade. Como tal, o regulamento passou a incluir o essencial da matéria civil e comercial com excepção de certas matérias bem definidas. E acentua-se ainda na nota preambular que o funcionamento harmonioso da justiça a nível comunitário obriga a minimizar a possibilidade de instaurar processos concorrentes e a evitar que sejam proferidas decisões inconciliáveis em dois Estados-Membros competentes, fortalecendo a confiança recíproca na administração da justiça no seio da Comunidade pelo reconhecimento automático das mesmas, em princípio, até sem necessidade de recorrer a qualquer procedimento. Passou-se a prever a executoriedade da decisão quase automática, de controlo meramente formal (art.ºs 33º e seg.s). O respectivo art.º 36º estabelece também que as decisões estrangeiras não podem, em caso algum, ser objecto de revisão de mérito.
Tal foi a preocupação de evitar, desde logo, a litispendência que o art.º 27º do Regulamento estabelece que “quando acções com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir e entre as mesmas partes forem submetidas à apreciação de tribunais de diferentes Estados-Membros, o tribunal a que a acção foi submetida em segundo lugar suspende oficiosamente a instância, até que seja estabelecida a competência do tribunal a que a acção foi submetida em primeiro lugar (nº 1). E, “quando estiver estabelecida a competência do tribunal a que a acção foi submetida em primeiro lugar, o segundo tribunal declara-se incompetente em favor daquele” (nº 2). O subsequente art.º 29º prevê que “sempre que as acções forem da competência exclusiva de vários tribunais, qualquer tribunal a que a acção tenha sido submetida posteriormente deve declarar-se incompetente em favor daquele a que a acção tenha sido submetida em primeiro lugar”.
Resolvendo conflitos de decisões inconciliáveis, o art.º 34º prevê o não reconhecimento de uma decisão de um Estado-Membro “se for inconciliável com outra anteriormente proferida noutro Estado-Membro ou num Estado terceiro entre as mesmas partes, em acção com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, desde que a decisão proferida anteriormente reúna as condições necessárias para ser reconhecida no Estado-Membro requerido”.
Nesta decorrência, é hialino deduzir o interesse comunitário no respeito geral dos Estados pelo caso julgado da decisão judicial formada num dos Estados-Membros. Uma vez transitada em julgado, a decisão impõe-se em qualquer dos Estados-Membros de uma forma quase automática, com um controlo meramente formal.
E se assim é, mal se compreende o fundamento do recurso, havendo que aceitar este princípio geral de respeito pelas decisões dos Estados-Membros, reconhecendo, com o devido alcance, a autoridade do caso julgado da decisão do tribunal espanhol.
Tendo o A. recorrente optado pela instauração da acção num tribunal espanhol, se entendia que, à luz dos princípios do direito comunitário, deveria ser aplicado o prazo prescricional mais longo relativo ao direito à indemnização que ali invocou (previsto na lei portuguesa – art.º 498º do Código Civil), era perante aquele tribunal que deveria ter argumentado nesse sentido, e nunca numa segunda acção, instaurada nos tribunais portugueses.
Ainda que assim não se entendesse --- no que não se concede --- sempre se dirá que os Estados-Membros não abdicaram da sua soberania e não transferiram para a União todo o poder legislativo, mas, essencialmente, atribuições em matéria determinada de interesse comum e comummente exercidas através das respectivas instituições.
A Comunidade actuará nos limites das atribuições que lhe são conferidas e dos objectivos que lhe são cometidos pelo Tratado (art.º 5º do Tratado que Instituiu a Comunidade Europeia - TCE).
Segundo o art.º 3º, nº 6, do TUA[12], a União prossegue os seus objectivos pelos meios adequados, em função das competências que lhe são atribuídas nos Tratados. E, de acordo com o nº 1 do art.º 4º, do mesmo diploma, pertencem aos Estados-Membros as competências que não sejam atribuídas à União nos Tratados.
A delimitação das competências da União rege-se pelo princípio da atribuição. O exercício das competências da União rege-se pelos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade (nº 1 do subsequente art.º 5º).
Em virtude do princípio da atribuição, a União actua unicamente dentro dos limites das competências que os Estados-Membros lhe tenham atribuído nos Tratados para alcançar os objectivos fixados por estes últimos. As competências que não sejam atribuídas à União nos Tratados pertencem aos Estados-Membros (art.º 5º, nº 1).
Em virtude do princípio da subsidiariedade, nos domínios que não sejam da sua competência exclusiva, a União intervém apenas se e na medida em que os objectivos da acção considerada não possam ser suficientemente alcançados pelos Estados-Membros (art.º 5º, nº 3)
Por via do princípio da proporcionalidade, o conteúdo e a forma da acção da União não devem exceder o necessário para alcançar os objectivos dos Tratados (art.º 5º, nº 4).
Ora o Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) define as categorias e os domínios de competência da União Europeia, sob duas formas essenciais:
a) a competência exclusiva; e
b) a competência partilhada.
No domínio aqui em causa, é partilhada a competência da União, nos termos dos respectivos art.ºs 2º, nºs 1 e 2, 3º, a contrario e 4º, nº 1, al. j); pelo que, nesta mesma matéria, a União e os Estados-Membros podem legislar e adoptar actos juridicamente vinculativos. Os Estados-Membros exercem a sua competência na medida em que a União não tenha exercido a sua. Os Estados-Membros voltam a exercer a sua competência na medida em que a União tenha decidido deixar de exercer a sua.
Neste domínio o TFUE prevê o respeito pelos sistemas jurídicos dos Estados-Membros (art.º 67º, nº 1) e a facilitação no acesso à justiça, desta feita, com a marca já atrás definida, da utilização de mecanismos de reconhecimento mútuo das decisões judiciais e extrajudiciais em matéria civil. Essa cooperação judiciária tem incidência transfronteiriça e pode incluir a adopção de medidas de aproximação das disposições legislativas e regulamentares dos Estados-Membros (art.º 81º, nº 1 e nº 2, al. a)).
Não se vislumbra nem se consente na existência de legislação comunitária[13] que imponha a aplicação aos tribunais de um Estado-Membro de um prazo prescricional mais favorável ao direito de uma das partes processuais, previsto no direito interno do país (diferente) dessa mesma parte, preterindo a aplicação do prazo de prescrição, mais curto, previsto na lei interna daquele Estado. Tal constituiria uma afronta à soberania dos Estados-Membros sem que contribuísse de uma forma construtiva e igualitária para a uniformização das legislações nacionais.
Não existe, por outra via, legislação comunitária --- ainda que de Directiva se trate, com a qual se deva enformar o direito interno[14] --- que preveja a harmonização da legislação dos vários Estados-Membros em matéria de prescrição de direitos relativos a indemnização por acidente de viação.
A aplicação do prazo de prescrição de um ano previsto na legislação interna espanhola para o direito a indemnização aqui em causa não contraria qualquer norma comunitária e respeita o princípio da igualdade, sendo aplicável, de modo não discriminado, a todas aquelas situações que, com semelhantes características, hajam de ser submetidas ao direito espanhol, sejam as partes cidadãos espanhóis ou estrangeiros.[15]
O princípio da igualdade e da não discriminação de tratamento, previsto nos art.ºs 20º e 21º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) não sai violado pela aplicação a um português que se submete aos tribunais espanhóis e ao direito espanhol do prazo de prescrição de um ano previsto no respectivo direito interno. Do ponto de vista do Direito Comunitário e no âmbito de aplicação dos Tratados, não há qualquer discriminação do A. recorrente em razão da nacionalidade (cf. também art.º 18º do TFUE). É-lhe aplicado o direito espanhol da mesma forma que o é relativamente aos cidadãos espanhóis ou a quaisquer outros cidadão que vejam o caso submetido à jurisdição espanhola.
E também não se aceita que, por ser de um ano (e não de cinco anos) o prazo de prescrição previsto na lei espanhola, estejam ofendidos outros princípios fundamentais de direito, como o da proporcionalidade, da segurança jurídica, da confiança legítima, dos direitos de defesa, da legalidade, entre outros[16]. Pelo contrário, a prescrição de direitos é comum às diversas legislações, garante a satisfação dos princípios da confiança e da segurança jurídica, e o prazo de um ano é suficiente para o exercício do direito do A. Não são, assim, violados direitos humanos ou direitos fundamentais, designadamente os previstos na Convenção Europeia para a protecção aos Direitos do Homem e as Liberdades Fundamentais[17], nomeadamente o direito a um processo equitativo, o direito ao recurso (de que, aliás, o A. usou nos tribunais espanhóis) ou a interdição geral de discriminação (prevista no art.º 1º do protocolo nº 12 à Convenção).
Aliás, um outro princípio fundamental se impõe: o do respeito pela identidade nacional dos Estados membros, consagrado no ex-art.º 6°, nº 3, do Tratado da União Europeia (TUE) e, após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, no art.º 4°, nº 2, também do TUE.
Não duvidamos da conveniência da aproximação das legislações nacionais em matéria de prazos de prescrição de direitos, mas esse é um esforço que os Estados-Membros e a União ainda terão fazer no desenvolvimento da unificação legislativa e da harmonia jurídica internacional.
Com efeito, não há que fazer qualquer interpretação restritiva do nº 4 do art.º 34º do Regulamento (CE) nº 44/2001 no sentido de excluir a autoridade do caso julgado de uma decisão produzida num Estado-Membro da União só porque tal decisão se fundou num prazo de prescrição do direito mais curto do que aquele que é previsto no Estado-Membro de uma das partes onde se propôs nova acção. Acaso se admitisse esta excepção, estar-se-ia a permitir (além do recurso, como forma própria de reacção contra uma decisão desfavorável, e de que o A. usou junto dos tribunais espanhóis), que uma das partes, descontente com o decidido, mesmo com trânsito em julgado, pudesse recorrer a uma nova acção, num outro Estado-Membro com total prejuízo da decisão anterior; assim obtendo um efeito manifestamente contrário aos princípios da confiança e da segurança jurídica que estão ínsitos e presidiram ao desiderato do referido Regulamento (CE), violando não apenas a autoridade do caso julgado reconhecida pelo Direito da União, mas também, como vimos já, o próprio direito constitucional português.
Tudo ponderado, a carceribus ad metam, impondo-se a autoridade do caso julgado material da decisão proferida pelos tribunais espanhóis, como excepção de natureza processual, destinada a impedir nova apreciação jurisdicional da mesma causa (art.º 497.º e seg.s do Código de Processo Civil), como bem decidiu o tribunal a quo, improcede a apelação.
*
IV.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
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Custas da apelação pelo recorrente.
*
Porto, 30 de Junho de 2011
Filipe Manuel Nunes Caroço
Teresa Santos
Maria Amália Pereira dos Santos Rocha
___________________
[1] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[2] E que nenhuma das partes põe em causa no recurso.
[3] Na versão aqui aplicável (anterior ao Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto).
[4] Poderá ser modificada através de recurso extraordinário, mas dele não temos que cuidar aqui.
[5] Evitando, designadamente, decisões concretamente incompatíveis.
[6] Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, 2.ª edição, vol. II, 1971, pág. 253, onde reconheceu a autoridade do caso julgado à decisão das questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado.
[7] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 174 (citando o Prof. Andrade).
[8] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.2.1998, BMJ 474/405.
[9] Entre outros, o acórdão nº 61/2003, de 4.2.2003, in DR. II, de 22.4.2003, pág. 6120. E ainda, embora com especial incidência em matéria penal, o acórdão nº 644/98, de 17.11.1998, proc. nº 43/97, in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/pesquisa.html.
[10] Constituição da República, anotada, Coimbra, 3ª edição, pág. 63.
[11] Direito Constitucional, Almedina, 1991, pág. 916.
[12] Tratado da União Europeia.
[13] E a recorrente também não a invoca. Antes refere que a matéria da prescrição é da competência exclusiva dos Estados-Membros.
[14] Como seja a Directiva nº 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, que revogou as directivas Directivas 72/166/CEE, 84/5/CEE, 90/232/CEE, 2000/26/CE e 2005/14/CE.
[15] Sobre o princípio da igualdade, veja-se, por exemplo, Moitinho de Almeida, El Derecho Comunitário Europeo y Su Aplicacion Judicial, Separata, Universidade de Granada, Editorial Civitas, pág. 97 e seg.s.
[16] Sobre o conteúdo destes princípios, ainda Moitinho de Almeida, ob. cit.
[17] Agora acolhida no Tratado da União Europeia, pelo respectivo art.º 6º, nº 2.