Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
298/11.9IDAVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LÍGIA FIGUEIREDO
Descritores: PERÍCIA
CONSULTOR TÉCNICO
PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL
DILIGÊNCIAS INDISPENSÁVEIS
OFICIOSIDADE À REALIZAÇÃO DA PERÍCIA
Nº do Documento: RP2014298/11.9IDAVR.P1
Data do Acordão: 07/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O estatuto de consultor técnico está consagrado no art.º 155º do CPP.
II – São inaplicáveis às perícias realizada no Instituto de Medicina Legal as disposições contidas nos art.ºs 154º e 155º do CPP, ex vi do disposto no art.º 3º da Lei 45/2004, de 19/8.
III – Sendo a própria Lei a excluir o consultor técnico, o despacho que admite a assistência deste à realização da perícia, a requerimento do arguido, carece de objecto, sendo inexequível e terá de se considerar como não escrito.
IV – O Tribunal Constitucional, no Acórdão 133/2007, decidiu que a norma constante do art.º 3° n.º 1 da Lei n°45/2004 de 19 de Agosto, na parte em que inviabiliza a participação de consultores técnicos nas perícias médico-legais realizadas em delegação do Instituto Nacional de Medicina Legal, não é inconstitucional.
V – A alteração operada pela Lei n.º 20/2013, de 21/2, ao art° 340º do CPP, introduzindo a nova al. a) do n.º 4, revela o espírito do legislador, densificando o princípio da necessidade consagrado no n.º 1 do mesmo preceito legal.
VI – Assim, nos casos em que as provas já podiam ser arroladas com a acusação e contestação, só deverão ser admitidas ao abrigo do art.º 340º do CPP no caso de serem indispensáveis à descoberta da verdade e boa decisão da causa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 1ª secção criminal
Proc. nº 298/11.9IDAVR.P1
______________________

Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO:

No processo comum (tribunal colectivo) n.º298/11.9IDAVR.P1 do 2º Juízo do Tribunal Judicial de São João da Madeira o arguido B… foi submetido a julgamento e a final foi proferida sentença de cuja parte decisória consta o seguinte:
(…)
Nestes termos e nos demais de direito, decide-se:
I. Condenar a arguida “C…, S.A.” pela prática, em autoria material, nas formas consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal qualificado, p. e p. pelos artigos 105º, n.ºs 1, 4, alíneas a) e b), 5 e 7, 7º, n.º 1 e 3, todos do Regime Geral das Infracções Tributárias, e 30.º, n.º 2 do Código Penal, em conjugação com o disposto pelos artigos 2º, 27º e 41º, n.º 1, al. a) do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado na pena de seiscentos dias de multa à taxa diária de €5,00 [cinco euros], o que perfaz a quantia global de €3.000,00 [tês mil euros].
II. Condenar o arguido B… pela prática, em autoria material, nas formas consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal qualificado, previsto e punível pelos artigos 26º do Código Penal e 105º, n.ºs 1, 4, alíneas a) e b), 5 e 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias, em conjugação com o disposto pelos artigos 2º, 27º e 41º, n.º 1, al. a) do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, na pena de um ano e oito meses de prisão;
III. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo Ministério Público, em representação do Estado Português e, em consequência:
i. Condenar solidariamente os arguidos/demandados civis no pagamento de uma indemnização de 332.933,97 [trezentos e trinta e dois mil novecentos e trinta e três euros e noventa e sete cêntimos], acrescida dos juros de mora, vencidos desde o momento em que o Imposto deveria ter sido entregues nos Cofres do Estado, nos termos do CIVA, e vincendos até integral pagamento, à taxa legal sucessivamente em vigor para as dívidas ao Estado;
ii. Absolver os arguidos/demandados civis do remanescente deste pedido.
IV. Condenar os arguidos nas custas do processo crime, fixando-se a taxa de justiça a suportar pelo arguido B… em 5,5 UC (cinco unidades de conta e meia) e a que será suportada pela sociedade arguida em 3 UC (três unidades de conta), nos termos dos artigos 513º e 514º do Código do Processo Penal e tabela III do Regulamento das Custas Processuais, com referência ao artigo 8º, n.º 9 do mesmo diploma.
V. Condenar os arguidos/demandados civis nas custas da parte civil.
(…)
*
Inconformado, o arguido interpôs recurso, da sentença no qual retira da motivação as seguintes conclusões:
(…)
1.ERAM FARTOS OS INDÍCIOS QUER DOCUMENTAIS QUER TESTEMUNHAIS QUE O ARGUIDO NÃO TINHA A GESTÃO DE FACTO DA SOCIEDADE CO-ARGUIDA.
2. O TRIBUNAL AO NÃO DEIXAR A DEFESA FAZER PROVA PLENA DA SUA TESE E DA VERDADE INFRINGIU O PRINCIPIO DO CONTRADITÓRIO.
3. A SENTENÇA RECORRIDA É NULA NOS TERMOS CONJUGADOS DOS ART.S 379 Nº 1 AL C) DO C.P.P. PORQUE DEIXOU DE PRONUNCIAR-SE SOBRE QUESTÕES QUE DEVESSE APRECIAR.
4. A MATÉRIA DE FACTO ACIMA REFERIDA, EM CONFRONTO COM A PROVA PRODUZIDA IMPLICAVA UMA RESPOSTA DIFERENTE AOS PONTOS 3, 9, 10, 11, E 13.DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA.
5. A SENTENÇA RECORRIDA FEZ UMA ERRADA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DOS ART.S 98º Nº 3400 N°S 1 E 2, 61 ° Nº 1 AL. A) E B) TODOS DO C.P.P. COM A NECESSÁRIA INCONSTITUCIONALIDADE NA INTERPRETAÇÃO SEGUIDA DE TAIS ARTIGOS POR INFRACÇÃO AO DISPOSTO E ART.S 200 Nº 3, 320 Nº S 1, 2, 3, 5 E 7, E 2020 N° 2 TODOS DA C.R.PORTUGUESA.
6.DADA A MATÉRIA DE FACTO PROVADA O ARGUIDO, ATENTA A IDADE, AS DIFICULDADES DA EMPRESA O FACTO DE NÃO TER O DESTINO DA GESTÃO FINANCEIRA NAS SUAS MÃOS O ARGUIDO DEVERIA TER SIDO ABSOLVIDO OU QUANDO MUITO TER SIDO APENAS CONDENADO NUMA PENA DE MULTA OU VER A SUA PENA DE PRISÃO SUSPENSA NA EXECUÇÃO.

Havia também interposto recurso a fls .971ss do despacho de fls. 931-932 -acta de 6/3/2013 no qual retira da motivação as seguintes conclusões:
1. O DESPACHO AGORA RECORRIDO DESTITUIU, DESPROMOVEU, OU MODIFICOU O CONSULTOR TÉCNICO INDICADO PELO ARGUIDO E NOMEADO POR DESPACHO JUDICIAL DE FLS 620 A 623 JÁ TRANSITADO EM JULGADO, TRANSFORMANDO-O EM TESTEMUNHA.
2. A UM CONSULTOR TÉCNICO, DEVE-SE ATRIBUIR NA PRÁTICA AS PRERROGATIVAS E COMPETÊNCIAS LEGAIS QUE LHE SÃO ATRIBUÍDAS, E É NESSA QUALIDADE QUE DEVE SER OUVIDO EM AUDIÊNCIA
3. AO CONSULTOR TÉCNICO FOI NEGADO AS SUAS COMPETÊNCIAS A POSSIBILIDADE AO ARGUIDO DE EXERCER O DIREITO Á DEFESA E CONTRADITÓRIO.
4. É INCONSTITUCIONAL O ART.3.ºN.º 1 DA LEI 45/2004 NA INTERPRETAÇÃO DADA PELO TRIBUNAL RECORRIDO, POR VIOLAÇÃO DO ART. 32, N.º1 E 5 E ART.20.ºN.º4 DA CRP NA MEDIDA EM QUE NÃO PERMITA A DESIGNAÇÃO DE CONSULTOR TÉCNICO NAS PERÍCIAS MÉDICO-LEGAIS REALIZAÇÃO EM DELEGAÇÃO DO INSTITUTO NACIONAL DE MEDICINA LEGAL, OUANDO INDICADO PELO ARGUIDO E ESTE SER O OBJECTO DE PERÍCIA.
5. O TRIBUNAL NÃO PODERIA DAR UM DESPACHO CONTRÁRIO AO PRIMEIRO QUE CONSTITUIU O CONSULTOR TÉCNICO TRANSFORMANDO-O EM TESTEMUNHA, POR MUITO QUE SE PENITENCIE.
6. O TRIBUNAL RECORRIDO AO DESTITUIR O CONSULTOR TÉCNICO RELEGANDO-O PARA MERA TESTEMUNHA, E AO NÃO NOTIFICAR NEM PERMITIR O ACESSO AO RELATÓRIO DA PERÍCIA NÃO PERMITIU QUE ESTE CONSULTOR TÉCNICO FOSSE POSSIBILITADO EXERCER A SUA FUNÇÃO DE CONTROLO DA QUALIDADE DA PERÍCIA E NÃO PERMITE AO CONSULTOR TÉCNICO E Á DEFESA DO ARGUIDO COMPREENDER NA SUA TOTALIDADE AS CONCLUSÕES FINAIS DE TAL PERÍCIA.
7. TAL INTEGRA UMA NULIDADE OU IRREGULARIDADE CONFORME MELHOR SE ENTENDA, ARGUÍVEL EM SEDE DE RECURSO, O QUE VAI AQUI INVOCADA, COM A CONSEQUENTE ANULAÇÃO DE TODA A PERÍCIA E A SUA SUBSTITUIÇÃO POR DESPACHO JUDICIAL QUE DECLARE O DIREITO AO ARGUIDO SER ASSISTIDO, NAS COMPETÊNCIAS LEGAIS QUE LHE SÃO ATRIBUÍDAS, NA PERÍCIA POR CONSULTOR TÉCNICO.
8. O DESPACHO RECORRIDO FEZ UMA ERRADA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DOS ART. 3.oN.º1 DA LEI 45/2004, ART.155.º, 156.°, 157.° DO CPP COM A NECESSÁRIA INCONSTITUCIONALIDADE NA INTERPRETAÇÃO SEGUIDA DE TAIS ARTIGOS POR INFRACÇÃO AO DISPOSTO ART. 20.oN.º4 E 32.oN.º1 E 5 DA CRP.
9. O QUE INTEGRA, UMA NULIDADE INSANÁVEL NOS TERMOS DO C) DO ART. 119° DO CPP.
10. PELO QUE DEVE CONCEDER-SE INTEGRAL PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, DEVENDO SER REVOGADO O, ALIÁS DOUTO DESPACHO RECORRIDO E SER SUBSTITUÍDO POR OUTRO NO SENTIDO ACIMA CONCLUÍDO, E ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA.

Interpôs ainda recurso interlocutório de fls.1028ss do despacho de fls 939ºss tendo retirado da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1. ESTE RECURSO VAI INTERPOSTO DA DECISÃO NOTIFICADA POR REGISTO POSTAL DE 18/03/2013 QUE INDEFERIU A AUDIÇÃO DE TESTEMUNHAS REQUERIDAS POR REQUERIMENTO DO ARGUIDO.
2. O ARGUIDO FEZ A FLS 717 A 726 REQUERIMENTO NOS TERMOS LEGAIS DOS ART.S 980 Nº 1, 340º Nºs 1 E 2, 610 Nº 1 AL. A) E B) TODOS DO C.P.P. E ART.S 20° Nº 3, 320 NºS 1, 2, 3, 5 E 7, E 2020 Nº2 TODOS DA C.R.PORTUGUESA, ONDE FEZ ALEGAÇÕES, JUNTOU DOCUMENTOS E REQUEREU A AUDIÇÃO DE TESTEMUNHAS NÃO ARROLADAS NA CONTESTAÇÃO OU NA ACUSAÇÃO.
3. COMO SE DEMONSTROU ESTAS QUESTÕES SÃO NECESSÁRIAS À DESCOBERTA DA VERDADE E À BOA DECISÃO DA CAUSA, E ISSO FOI MANIFESTAMENTE ACEITE PELO TRIBUNAL NA SUA LINHA DE RACIOCÍNIO E NO TRATAMENTO DESTE ASSUNTO, AO ADMITIR OS DOCUMENTOS, E MANDAR NOTIFICAR O BANCO EM CAUSA, MAS PROFERIU DESPACHO DE INDEFERIMENTO DA INQUIRIÇÃO DAS TESTEMUNHAS INTERVENIENTES EM TAIS DOCUMENTOS, E COM CONHECIMENTO DIRECTO DOS FACTOS, O QUE NA PRÁTICA IMPEDE O ARGUIDO DE OBTER A AMPLA DISCUSSÃO E DEMONSTRAÇÃO POR PROVA DO QUE ALI ESTAVA ALEGADO,
4. OU SEJA ADMITE OS DOCUMENTOS JUNTOS EM TAL REQUERIMENTO, MANDA NOTIFICAR O D…, SA PARA VIR ESCLARECER O ALEGADO MAS CONSIDEROU, MAL, QUE A INQUIRIÇÃO DAS TESTEMUNHAS APRESENTADAS ERA MANOBRA DILATÓRIA
5. O TRIBUNAL RECORRIDO NUMA DECISÃO INJUSTA, ILEGAL E CONTRADITÓRIA, RECONHECEU A PERTINÊNCIA DAS QUESTÕES LEVANTADAS MAS NÃO DEIXOU AO ARGUIDO FAZER A PROVA PLENA DA VERDADE ALEGADA.
6. EXISTIU ASSIM, ALÉM DO MAIS, UMA CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO COM A DECISÃO NO DESPACHO AGORA RECORRIDO, (ART. 4100 Nº2 AL. B) DO CPP.
7.O TRIBUNAL RECONHECE QUE AS ALEGAÇÕES E REQUERIMENTO FEITOS SE ESTÃO CONTIDOS DENTRO DO OBJECTO DO PROCESSO E TINHAM POR FINALIDADE A SALVAGUARDA NOS DIREITOS FUNDAMENTAIS, ERAM NECESSÁRIOS PARA A DESCOBERTA DA VERDADE E BOA DECISÃO DA CAUSA,
8. O ARGUIDO JUSTIFICOU A PERTINÊNCIA DA PROVA A PRODUZIR E É MANIFESTO QUE ESSA PERTINÊNCIA EXISTE, FOI RECONHECIDA PELO TRIBUNAL RECORRIDO OU NÃO ORDENARIA ESTE A NOTIFICAÇÃO DO BANCO EM CAUSA
9. O DESPACHO RECORRIDO FEZ UMA ERRADA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DOS ART.S 98° Nº 1,3400 NºS 1 E 2, 610 Nº 1 AL. A) E B) TODOS DO C.P.P. COM A NECESSÁRIA INCONSTITUCIONALIDADE NA INTERPRETAÇÃO SEGUIDA DE TAIS ARTIGOS POR INFRACÇÃO AO DISPOSTO E ART.S 20° Nº 3,32° N° S 1,2,3,5 E 7, E 2020 N° 2 TODOS DA C.R.PORTUGUESA. TERMOS EM QUE, DEVE CONCEDER-SE INTEGRAL PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, DEVENDO SER REVOGADO O, ALIÁS, DOUTO DESPACHO RECORRIDO E SER SUBSTITUÍDO POR OUTRO NO SENTIDO ACIMA CONCLUÍDO. OU SEJA DE QUE DEVERÃO SER OUVIDAS AS TESTEMUNHAS APRESENTADAS PELO ARGUIDOS EM SEDE DE AUDIÊNCIA DE DISCUSSÃO E JULGAMENTO E ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA.
(…)

O Magistrado do Ministério Público respondeu, pugnando pela improcedência dos recursos interlocutórios e do recurso da sentença.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser negado provimento aos recursos.
Cumprido que foi o disposto no artº 417º nº2 do CPP não foi apresentada resposta.
*
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
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Para efeitos de apreciação dos recursos interlocutórios transcrevem-se os despachos recorridos:
Despacho de fls. 931-932 -acta de 6/3/2013.
“No nosso despacho de fls. 620 a 623 admitimos que o médico E…, subscritor do relatório de fls. 308, assistisse à realização da perícia médico-legal que determinámos, enquanto consultor técnico indicado pelo arguido, conforme por ele tinha sido requerido.
Na sequência do requerimento de fls. 713/714 apresentado pelo arguido, convocámo-lo para comparência na presente audiência, como decorre do despacho de fls. 917.
Porém, melhor compulsados os autos e a legislação especial estabelecida para o regime jurídico das políticas médico-legais e forenses, mais concretamente o nº 1 do artº. 3º da Lei nº 45/2004, de 19/08 constatamos que não são aplicáveis às perícia médico-legais efectuadas nas Delegações do Instituto ou nos Gabinetes Médico-Legais as disposições contidas no art.º 155º do Código de Processo Penal.
Ou seja, não poderia o arguido designar para assistir à sua realização um consultor técnico.
Como assim, porque vão ao contrário do estava legalmente estabelecido tais segmentos dos nossos despachos de fls 620 a 623, o que na altura não atentámos, desde já, nos penitenciando por isso, nenhuma consequência legal advém do facto alegado de o Dr. E… não ter assistido à totalidade das diligências realizadas no âmbito da perícia médico-legal, visto que assim manda o cumprimento estrito da legalidade.
Em conformidade com o exposto, contrariamente ao que resulta do exposto a fls. 917, o Sr. Dr. E… aqui presente em audiência, deverá ser inquirido, não na qualidade de consultor técnico, mas sim como testemunha, o que se determina.”

Despacho de fls. 939 a 946
“Fls. 717 a 726:
Vem o arguido através do requerimento que antecede alegar, com relevo, que não exercia a gestão de facto da sociedade arguida, nomeadamente não decidia qualquer acto de administração ligado com o pagamento ou não de impostos.
Segundo refere, a partir de finais de 2009, foi imposto pelo “D…, S.A.” a contratação de um gestor, o sr. F…, referindo que a sociedade arguida já há muito que estava sob a dependência desse banco para conseguir suportar a sua actividade.
Mais alega que quem dirigia e geria a sociedade era o era o “D…, S.A.”, através do gestor por ele indicado, F…, quem, no interesse do banco, decidia os pagamentos a fazer, dava ordens quanto à contabilidade, tomava decisões quanto à simples gestão diária operacional da sociedade arguida, o que incluía negociação com sindicatos, promoção de despedimentos de pessoal, promoção e contratação de pessoal, investimentos correntes e extraordinários, bem como a decisão de pagar ou não impostos.
*
O Ministério Público pronunciou-se quanto ao requerido, sendo de parecer que deve ser indeferida a pretendida produção de prova testemunhal, por ser de entendimento que a mesma não se mostra necessária à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, considerando que a prova produzida em audiência de julgamento permite já decidir sobre a existência ou não do crime, a punibilidade ou não do arguido e a determinação da pena aplicável.
*
Deduzida que foi a sua contestação e produzida toda a prova requerida naquela e na acusação pública, incluindo um exame pericial para aferir da sua imputabilidade, vem agora o arguido apresentar, na prática, uma nova contestação com uma defesa repleta de factos novos que contendem com a sua responsabilidade criminal pelo crime de abuso de confiança fiscal qualificado de que vem acusado.
Mais: requer a inquirição de seis testemunhas para demonstrar, em suma, que era o Banco “D…, S.A.”, através de F…, e não o arguido, quem exercia a administração de facto da sociedade arguida.
Cumpre, aqui chegados, pois, decidir.
Ora, como resulta patente, o momento oportuno para o arguido expor a sua versão dos factos e indicar o rol de testemunhas idóneo à sua demonstração é o que vem previsto no n.º 1 do art. 315.º do C.P.P. para a apresentação da contestação, o qual, nesta fase, se mostra já sobejamente ultrapassado - vejam-se os artigos 315.º e 316.º do C.P.P..
Mas mais ainda: esta nova frente de defesa, a terceira assumida pelo arguido, não se apresenta sequer articulada ou mesmo compatível com a defesa primitivamente assumida quer na contestação que tempestivamente deduziu, quer nos requerimentos que posteriormente apresentou.
Comecemos por explicar este último ponto.
Na sua contestação, o arguido veio alegar que foram celebrados acordos prestacionais para pagamentos das quantias de cuja apropriação vinha acusado e que na acusação não haviam sido considerados todos os valores que entretanto haviam sido penhorados, no âmbito de vários processos de execução fiscal, aos clientes da sociedade arguida.
Mais considerou que importaria que o serviço de finanças esclarecesse em que momento as reditas penhora se concretizaram, “porquanto poder-se-á vir a apurar que os valores pelos quais vem o arguido acusado de apropriação não serem devidos ou serem outros” – sic 7. da contestação.
Nesse seguimento, deferiu-se a realização das diligências pretendidas pelo arguido e oficiou-se à Direcção de Finanças de Aveiro para que fossem prestados os esclarecimentos por ele solicitados.
Já no decurso da audiência, veio requerer novo esclarecimento do serviço de finanças, considerando que “reveste também importância a determinação do valor efectivamente recebido pelo Serviço de Finanças para efeito, quer do pedido de indemnização civil, quer da valoração de uma pena que lhe venha, eventualmente a ser aplicada” – acta de fls. 427 – e juntou posteriormente um inúmero leque de “documentos suporte” da informação contabilística por ele apresentada e que visava que fosse melhor esclarecida por aquele Serviço de Finanças – fls. 430 a 507.
Veio ainda a esposa do arguido, antes do início da audiência de julgamento, requerer a realização de uma perícia médico-legal para determinar a imputabilidade ou inimputabilidade de B….
Como foi indeferida, veio o próprio arguido requerer a sua realização, com base, à semelhança da requerente sua esposa, em relatório médico onde se concluía, entre o mais, pela incapacidade permanente e definitiva daquele para o exercício das suas funções profissionais – fls. 296 a 308, 333 e 334.
Realizou-se perícia médico-legal com vista a dissipar quaisquer dúvidas que pudessem ser levantadas quanto à inimputabilidade do arguido.
E, apenas após ter sido notificado do relatório pericial, que termina concluindo pela sua imputabilidade criminal, investe o arguido, no requerimento em apreciação, numa nova linha de defesa, porventura a mais radical de todas: o arguido não era o administrador de facto da sociedade arguida, a pessoa quem decidia sobre o pagamento de impostos era o “D…, S.A.”, financiador da Sociedade Arguida, através do gestor por ele indicado, F….
Assim, no momento de ajuizar da necessidade do requerimento probatório em apreço uma questão, à cabeça, se nos levanta: se assim era desde o início, porquê deixar tais factos, que constituem o cerne daquele que é o objecto da prova, recortado pelo disposto no art. 124.º do C.P.P., apenas para o momento em que já se encontra esgotada a produção da prova indicada na acusação e solicitada pela defesa?
É que, mesmo que não recaia sobre o arguido o ónus probatório dos factos tendentes ao afastamento da sua responsabilidade criminal, não se poderá, por princípio, dar guarida a uma trajectória de defesa, que parece embocar na “perpetuação” da audiência de julgamento, enquanto o arguido, aos poucos e de forma desregrada, vem requerendo a produção de novas diligências de prova.
Num tal panorama, essa defesa assume contornos manifestos de dilatoriedade e o destino de requerimentos probatórios dilatórios encontra-se traçado na al. c) do n.º 4 do art. 340.º do C.P.P. - o indeferimento.
Mas, feitas estas observações preliminares sobre a falta de sentido de oportunidade do requerimento em apreço, centremo-nos ainda mais demoradamente na apreciação da necessidade das diligências de prova requeridas.
Aqui impõe-se começar pela questão da ausência de indícios, até este momento, que apoiem a nova tese do arguido.
É que decorrido o prazo para contestar, e mostrando-se concluída a produção de prova com base nos articulados primitivamente apresentados nos autos, não basta ao arguido alegar novos factos, que, pela sua natureza, não podia deixar de já conhecer no momento em que apresentou a sua contestação, sem sequer justificar de forma plausível porque razão só agora os trouxe ao processo, exigindo que o Tribunal invista na produção de um conjunto de meios de prova a essa nova defesa atinentes.
É sim essencial que tais novos factos encontrem um mínimo de suporte na prova produzida em audiência de julgamento e na própria contestação oportunamente apresentada, pois, só assim, o Tribunal poderá aferir da necessidade de produção de prova adicional, ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 340.º do C.P.P..
Seguindo a lição de Figueiredo Dias1, «em processo penal está em causa, não a ‘verdade formal’, mas a ‘verdade material’, que há-se ser tomada em duplo sentido: no sentido de uma verdade subtraída à influência que, através do seu comportamento processual, a acusação e a defesa queiram exercer sobre ela; mas também no sentido de uma verdade que, não sendo ‘absoluta’ ou ‘ontológica’, há-se ser antes de tudo uma verdade judicial, prática».
Bem se compreende, pois, que, por via do dever de investigação judicial autónoma da verdade, previsto no art. 340.º do C.P.P. «o tribunal não tenha de limitar a sua convicção por sobre os meios de prova apresentados pelos interessados».
Noutras palavras, o Tribunal aferirá, de forma autónoma, sobre a necessidade da sua produção, pois sobre si recai o dever de coligir as provas necessárias à sua decisão.
E fá-lo-á com base nos factos e meios de prova já carreados para os autos no âmbito e segundo um juízo de relevância para a sua boa decisão.
Se assim não fosse, e, a pretexto do disposto no art. 340º do CPP, puséssemos o Tribunal a desenvolver toda uma actividade investigatória a reboque das mudanças de rumo que a defesa entendesse empreender no decurso do julgamento, também dificilmente a mesma escaparia ao rótulo da dilatoriedade e da irrelevância, a que aludem as als. a) e c) do n.º 4 do art. 340.º do C.P.P., fundamentos de imediato indeferimento desse tipo de requerimentos probatórios.
É precisamente o que sucede no caso em apreço.
Que este novo requerimento de prova não tem qualquer conexão com a contestação inicialmente apresentada, e mesmo com os demais requerimentos de prova, já o deixámos bem claro acima, no sintético excurso que percorremos pela defesa deduzida pelo arguido.
Acresce ainda que o cômputo de toda a prova já produzida, de natureza documental, testemunhal e pericial, não suporta de forma minimamente consistente a nova versão factual apresentada pelo arguido quando afirma agora que não geria de facto a sociedade arguida.
1 In Direito Processual Penal, 1.º volume, Coimbra Editora, Lda. 1974, pags.192-194.
Por outro lado, dos elementos juntos nos autos e da globalidade da prova produzida não se retira o contributo que as testemunhas arroladas, não uma, nem duas, mas seis, podem trazer para a discussão da causa.
Percorrido o rol adiantado pelo arguido, pode observar-se que, à excepção de uma que, através do nome, se adivinha ser seu familiar, as demais são ex-trabalhadoras da sociedade arguida, não decorrendo das funções que o próprio arguido afirma que essas testemunhas aí exerciam, contrariamente ao que este expende, que apresentem qualquer conhecimento relevante e directo para a questão decidenda que unicamente nos ocupa – a imputabilidade subjectiva das decisões tomadas pela sociedade arguida e pela sua administração relativamente ao pagamento dos impostos devidos ao Estado.
Tal conclusão mostra-se ainda reforçada se atentarmos no conteúdo dos documentos juntos pelo arguido, isto com o intuito exclusivo de avaliar a necessidade de produção daquela prova testemunhal, e assim ignorando, para esse efeito apenas, os limites legais impostos à valoração dos vários emails trocados entre terceiros ao presente processo, que constituem a maioria dos sessenta e três documentos que servem de suporte ao alegado no requerimento apresentado [sublinhamos novamente, uma vez decorridos mais de três meses desde o início da audiência de julgamento e esgotada a produção da prova requerida nos articulados legalmente previstos - fls. 727 a 916.] – veja-se o n.º 8 do art. 32.º da CRP, o n.º 3 do art. 118.º e n.º 3 do art. 126.º, ambos do C.P.P..
De facto, deles não resulta, directa ou indirectamente, quer a versão factual que o arguido veio agora trazer ao processo, segundo a qual era o “D…, S.A.”, através do gestor F…, a tomar decisões relativamente ao não pagamento dos tributos ao Estado, quer, por outro lado, o conhecimento directo que as testemunhas indicadas possam ter quanto a esta temática.
A somar ao já expendido e como resulta expressamente do próprio requerimento em análise, alguns dos referidos emails provieram ou destinaram-se a J…, testemunha já inquirida no presente processo e que teve, no tempo próprio, oportunidade de esclarecer o que sabia quanto à gestão da sociedade em apreço, nomeadamente do papel nela exercido pelo arguido, pelo “D…/H…” e o referido F….
Pelo exposto, e, em resumo, à semelhança do Ministério Público, não vislumbramos a necessidade, utilidade e relevância para a boa decisão da causa e a descoberta da verdade do requerimento probatório em apreço, na parte relativa à inquirição das testemunhas indicadas em a) a g) de fls. 726.
Na medida do exposto, impõe-se, sem mais considerações, indeferir o requerimento em apreço.
*
Não obstante o assim decidido, e apenas para que não restem quaisquer dúvidas, quanto à suspeição levantada pelo arguido quanto ao papel do “F…, S.A.” na vida societária da arguida, oficie à “H…” e, simultaneamente, ao seu estabelecimento sito em …, solicitando a maior brevidade possível, visto encontrar-se a decorrer audiência de julgamento, para virem:
1. esclarecer a relação existente entre a “C…, S.A.” e o “D…, S.A.”, no período entre Setembro de 2010 e Março de 2011, explicando se este banco interferia por alguma forma nas decisões de “C…, S.A.” quanto aos pagamentos devidos ao Estado;
2. precisar, por reporte ao mesmo período [Setembro de 2010 e Março de 2011], se, a sociedade “C…, S.A.”, através do seu órgão de administração, movimentava livremente as contas bancárias que titulava no “D…, S.A.”;
3. esclarecer o vínculo existente entre “D…, S.A.” e F…, se se este foi indicado pelo Banco para exercer funções na sociedade “C…, S.A.” e, em caso positivo, quais, no período entre Setembro de 2010 e Março de 2011.
*
No mais, no que se reporta à junção dos documentos de fls. 727 a 916, tratando-se de correspondência electrónica trocada com pessoas que não são sujeitos processuais nestes autos, sem prejuízo dos limites legais impostos na ausência de consentimento dos respectivos autores, à sua posterior valoração, apesar da oposição do Ministério Público, admite-se a mesma porquanto tempestiva, nos termos do n.º 1 do art. 165.º do C.P.P..
Todavia, nada tendo sido alegado nem demonstrado quanto à impossibilidade da sua junção durante o inquérito, tendo entretanto decorrido várias sessões da audiência de julgamento, e considerando o seu elevado número tributa-se a apresentação tardia dos referidos documentos apresentados pelo arguido em 2,5 U.C. (duas unidades de conta e meia) – n.º 1 do art. 165.º e art. 3.º, ambos do C.P.P., n.º 2 do art. 523.º do C.P.C. e n.ºs 1 e 4 do n.º 1 do art. 27.º do R.C.P..”

A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respectiva motivação:
(…)
1. A sociedade arguida dedica-se desde a sua constituição ao comércio, importação, exportação e representação de têxteis, vestuário, calçado, acessórios de moda e marroquinarias, e indústria da confecção de vestuário (Código de Actividade Económica Principal …..-R3).
2. Na prossecução do seu objecto social, empregou diversos trabalhadores, laborou, e efectuou vendas, entre outras actividades, também na sua sede, sita na …, …, … n.º ., ….-…, …
3. Desde 13/10/2009, foi o arguido B… administrador único da sociedade arguida, e quem a representou e tomou as decisões necessárias à direcção e gestão da mesma, afectando os recursos financeiros existentes para o cumprimento das diversas obrigações desta, como as atinentes ao pagamento dos seus credores (trabalhadores, fornecedores e outros), e ao cumprimento das obrigações tributárias.
4. No exercício das suas actividades, a sociedade arguida era sujeito passivo de Imposto sobre o Valor Acrescentado (I.V.A.), encontrando-se enquadrada no respectivo regime normal de tributação deste imposto, com periodicidade mensal.
5. Em tal contexto, a sociedade arguida efectuou vendas e serviços diversos nos períodos de seguida indicados, tendo feito incluir o respectivo I.V.A nos preços cobrados aos cientes, e que efectivamente recebeu, enviando atempadamente as respectivas declarações periódicas do I.V.A., que somou os montantes indicados de seguida:
Período I.V.A. apurado
Setembro de 2010 €135.371,07
Outubro de 2010 €152.631,37
Fevereiro de 2011 €42.472,24
Março de 2011 €108.670,53
TOTAL €439.145,21
6. No entanto, porque em data não apurada, mas anterior a tais períodos, a sociedade arguida sofreu dificuldades de tesouraria, os arguidos não entregaram nos cofres do Estado aquele montante nos prazos legais, até ao 10.º dia do segundo mês seguinte àquele a que respeitam tais operações e, depois, até 90 dias decorridos sobre o termo de tal prazo.
7. Como não o fizeram nos 30 dias posteriores ao cumprimento da notificação prevista pelo 105º, n.º 4, al. b) do R.G.I.T. para procederem ao pagamento daquelas quantias, juros de mora e demais acréscimos, o que ocorreu pessoalmente no dia 14/10/2011 no caso do arguido B…, e no dia 16/03/2012 no caso da sociedade arguida.
8. Todavia, quanto aos mesmos períodos de seguida explicitados, no âmbito de acordos para pagamento em prestações e ainda em virtude de penhora de créditos detidos sobre clientes da sociedade arguida, em 15/01/2013, já tinham pago fraccionadamente, ainda que depois dos prazos mencionados em 6. e 7., os seguintes montantes:
Período I.V.A. pago I.V.A. em falta
Setembro de 2010 €22.561,84 €112.809,23
Outubro de 2010 €38.157,84 €114.473,53
Fevereiro de 2011 €42.472,24 €0
Março de 2011 €3.019,32 €105.651,21
TOTAL €106.211,24 €332.933,97
9. Com a não entrega dos montantes mencionados, agiu propositadamente o arguido B…, em nome e no interesse da sociedade arguida, e no seu interesse pessoal, contra o que sabia ser o seu dever, para fazer face às dificuldades financeiras sentidas por tal sociedade, preterindo o cumprimento das obrigações tributárias em relação às demais, para deste modo alcançar algum equilíbrio financeiro e mantê-la no giro comercial e, ainda porque viu consolidada a oportunidade de continuar na mesma conduta, animado pela ausência de qualquer fiscalização, ou penalização em cada um dos mencionados períodos.
10. O arguido sabia, pois, que tais montantes eram pertença do Estado Português, destinando-se a serem entregues nos cofres do Estado, obrigação que bem sabia impender sobre si,
11. mas agiu como agiu, com o concretizado propósito de obter uma vantagem patrimonial ilegítima para a sociedade arguida, e para si próprio, porque à custa da diminuição das receitas fiscais do Estado, que prejudicou com tal conduta.
12. Sabia, ainda, que a sua conduta era ilícita e criminalmente punível.
13. Em tudo, agiu de forma livre, deliberada e consciente.
14. O arguido B… iniciou a sua actividade numa alfaiataria da propriedade do seu pai aos dez anos de idade.
15. Em Janeiro de 1965 constituíram a sociedade “I…, Lda.”, sendo o arguido o seu gerente em 2 de Outubro de 2007, data a partir da qual lhe foram conferidos poderes de administração no âmbito do respectivo processo de insolvência.
16. Em sequência da declaração insolvência de “I…, Lda.” foram transferidos para a sociedade arguida os seus bens, trabalhadores, débitos e créditos.
17. O arguido é acompanhado clinicamente com continuidade, tendo sido sujeito a intervenção cirúrgica entre finais de Março e início de Abril de 2013.
18. Apresenta quadro de ansiedade, de depressão e de hipertensão.
19. Junto dos serviços da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais revelou que o presente processo não tem para ele um significado particular, por se inserir no quadro de situação jurídico-penal lata que lhe respeita por factos idênticos aos aqui em discussão, tendo ainda reconhecido que o Estado foi lesado, mas não os trabalhadores.
20. Tem dois filhos, sendo que um terceiro faleceu aos dezasseis anos de idade, vítima de acidente com um veículo motorizado.
21. Declarou auferir uma reforma no montante aproximado de €2.940,85 ilíquidos, e que a mesma se encontra parcialmente penhorada, dela remanescendo um montante aproximado de €1.254,70.
22. Constam do certificado de registo criminal do arguido B… as seguintes condenações:
i. Pena de um ano e oito meses de prisão, suspensa na sua execução por três anos e seis meses, pela prática, em 3 de Fevereiro de 2007, de um crime de abuso de confiança fiscal agravado, p.p. pelo art. 107.º e 105.º n.º 5 do RGIT, por sentença proferida no processo n.º 602/07.4TASJM, do 4.º Juízo do Tribunal Judicial de São João da Madeira, em 5 de Novembro de 2010, transitada em julgado em 28 de Novembro de 2011;
ii. Pena de 300 dias de multa à taxa diária de €30,00, num total de €9.000,00, pela prática, em 5 de Setembro de 2006, de um crime de falsificação de boletins, actas e documentos, p.p. pelo art. 199.º da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de Agosto, por sentença proferida no processo n.º 691/07.1TAOAZ, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Oliveira de Azeméis, em 15 de Abril de 2011, transitada em julgado em 14 de Fevereiro de 2012;
iii. Pena de três anos de prisão pela prática, em 1 de Julho de 2006, de um crime de abuso de confiança fiscal agravado, p.p. pelo art. 105.º n.ºs 1 e 5 do RGIT, por sentença proferida no processo n.º 5/06.8IDAVR, do 2.º Juízo do Tribunal de São João da Madeira, em 12 de Julho de 2012, transitada em julgado em 27 de Setembro de 2012.
23. Tem pendentes contra si o processo comum colectivo n.º 149/99.0TASJM, do 1º Juízo do Tribunal de São João da Madeira e o processo n.º 209/10.9IDAVR, no qual foi pronunciado pela prática em autoria material, em concurso efectivo, de 1 crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada e de 1 (um) crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, por despacho de 27 de Maio de 2013, proferido pelo 2.º Juízo do Tribunal de São João da Madeira.
24. Confrontado com os factos que lhe vinham imputados declarou que se limitava a assinar os papéis que lhe eram trazidos e que a testemunha F… não lhes dava seguimento, motivo pelo qual se encontram os montantes de imposto por pagar.
25. A sociedade arguida foi declarada insolvente em 16 de Julho de 2012, por sentença proferida no processo n.º 704/12.5TBSJM do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de São João da Madeira, transitada em julgado em 6 de Agosto de 2012.
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B. Factos Não Provados
Inexistem.
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C. Motivação
A nossa convicção quanto aos factos assentou na leitura crítica e conjunta de toda a prova produzida nestes autos, que foi produzida em estrita obediência aos princípios do contraditório, imediação e oralidade e analisada de forma articulada com as regras da experiência e de senso comum.
Assim, quanto aos montantes de IVA apurado devido ao Estado, relativos aos períodos de Setembro e Outubro de 2010, Fevereiro e Março de 2011, valorámos os comprovativos de entrega das declarações periódicas de IVA relativas a esses períodos, a fls. 97 a 104, elaborados pela sociedade contribuinte, cujo teor foi confirmado em audiência pelas testemunhas J… e K….
Do depoimento de K…, inspectora tributária, e dos documentos de fls. 7 a 12 [em particular, no segmento relativo a “situação da dívida”], de fls. 169 a 173 e 189, relativos ao “estado da dívida” e do auto de notícia de fls. 1 resultou evidenciado que o IVA apurado não foi pago no período de trinta dias subsequente à notificação, a que alude a al. b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT, e que foi realizada em relação a cada um dos arguidos, conforme se afere de fls. 105 a 110 e 181.
De resto, esta foi uma realidade que perpassou da globalidade das declarações do Arguido, que relatou as dificuldades de tesouraria da sociedade arguida, o tempo solicitado para pagar os impostos em falta e as prioridades de pagamento da empresa, num contexto de dificuldades económicas.
Finalmente, também a testemunha J…, técnico oficial de contas da sociedade arguida, afirmou categoricamente que as declarações periódicas de IVA foram sempre enviadas, embora desacompanhadas do pagamento do imposto respectivo e referiu ainda a periodicidade de pagamento do imposto devido ao Estado, depoimento lido conjuntamente com os documentos de fls. 97 a 104, respeitantes às declarações periódicas de IVA, e que, nessa medida, relevou para a nossa convicção quanto ao ponto 4. dos factos provados.
Por outro lado, quanto ao efectivo recebimento dos montantes correspondentes ao IVA apurado, tivemos como ponto de partida a documentação constante do processo de inquérito que deu origem aos presentes autos:
- o ofício remetido pela Direcção de Finanças de Aveiro, a fls. 345, cujo conteúdo foi analisado em audiência, no âmbito do depoimento da testemunha K…, em que é solicitada à sociedade arguida, entre outros, “a identificação de facturas/documentos equivalentes que se encontrem por receber, que tenham sido emitidos nos meses de Setembro e Outubro de 2010 e Fevereiro e Março de 2011” e “extractos de contas-correntes, respeitantes a esses clientes com facturas por receber deles”;
- o documento de resposta da sociedade arguida ao ofício remetido pelas Finanças, carimbado e subscrito pelo respectivo administrador, o aqui arguido B…, a fls. 13, datado de 6 de Dezembro de 2011;
- os balancetes mensais da conta clientes relativos aos meses de Setembro e Outubro de 2010, Fevereiro e Março de 2011, a fls. 14 a 31;
- resumo dos movimentos em aberto relativos aos meses de Setembro e Outubro de 2010, Fevereiro e Março de 2011, a fls. 32 e 57;
- extractos dos movimentos pendentes relativos aos mesmos períodos, a fls. 32 a 36, 58 a 64;
- extractos das contas correntes dos clientes com movimentos em aberto, sempre por referência ao mesmo período, a fls. 37 a 56, 65 a 96.
Estes documentos foram ainda complementados, entre o mais, pelos depoimentos das testemunhas J… e F…, economista e prestador de serviços de consultoria àquela sociedade, que demonstraram, em face das funções exercidas na empresa, particular conhecimento e um conhecimento especializado sobre os factos objecto de discussão.
No que para aqui importa, ambas as testemunhas afirmaram de forma segura e consistente que a sociedade arguida recebia, em regra, dos seus clientes, acrescentando a primeira que isso sucedida mesmo em relação às dívidas tituladas por cheques e que a contabilidade era o mais fiável possível; nenhum meio de prova infirmou o que declararam neste particular, nem nada foi apontado, nem nenhum meio de prova junto, que contradissesse ou pusesse em causa o teor daqueles documentos contabilísticos.
Em complemento ao declarado nomeadamente por J… foi-nos ainda esclarecido pela sr.ª Inspectora Tributária K… que, na acção inspectiva que realizou, confrontou os documentos relativos aos movimentos em aberto - pendentes -, extractos das contas correntes dos clientes e declarações periódicas de IVA, todos remetidos pela sociedade arguida, e que deles obteve os montantes de IVA não recebidos nesses períodos - €506,99, em Setembro de 2010; €2.466,61, em Outubro de 2010; €2.365,62, em Fevereiro de 2011; €5.829,22, em Março de 2011.
Uma vez que desses documentos resulta que os montantes de IVA não recebido eram substancialmente reduzidos no cômputo do liquidado e recebido dos clientes da sociedade arguida, foi considerada a integralidade do valor do IVA apurado como exigível para efeitos criminais.
No que concerne à actuação e às funções de administração exercidas pelo arguido na sociedade arguida, começámos por valorar a certidão do registo comercial de “C…, S.A.”, a fls. 1083 a 1092, na qual aquele figura como seu administrador único, encontrando-se registada sob a apresentação 35/20091013 a sua designação para essa qualidade, por deliberação de 2 de Outubro de 2009.
Valorámos ainda, nesta parte, os depoimentos de K…, J… e F… e os documentos de fls. 1054 e 1069/1101 remetidos pela “H…”, em seguimento dos esclarecimentos solicitados através do despacho de 13 de Março de 2013 e ainda as declarações do arguido.
É certo que, já num momento adiantado da audiência de julgamento, a defesa veio apresentar, por escrito, através do requerimento de fls. 717 a 726, uma nova versão, depois sustentada pelo arguido, nas declarações que pela primeira vez desejou prestar relativamente aos factos que lhe vinham imputados.
Todavia, embora assome evidente dessas suas declarações a tentativa de imputar a terceiros a responsabilidade na condução dos destinos da sociedade arguida, afigura-se-nos que resultaram as mesmas em sentido exactamente oposto, deixando evidenciado que era ele e mais ninguém o administrador de facto da sociedade arguida.
Vejamos que é o próprio a afirmar que negociou com o “Banco D…, S.A.” a obtenção de fundos para pagamento de salários e que foi ele a aceitar a contrapartida imposta para esse financiamento - a introdução de um gestor, a testemunha F…, na sociedade arguida indicada por aquele banco.
Acresce que, segundo o acordado, esta pessoa não teria autonomia decisória, pois, como mencionou, no exercício das funções que lhe eram atribuídas, aquele gestor, teria de “reportar” ao arguido, enquanto administrador que era da “C…, S.A.”.
A partir daqui e, apesar de se assumir sempre como o administrador da sociedade arguida, nessa sua tentativa de desresponsabilização, o arguido procurou transparecer que o gestor indicado pelo banco incumpriu com o acordado, passando a pôr e a dispor da sociedade, totalmente à sua revelia, agindo directamente sobre todas as áreas, fornecendo-lhe cheques e papéis para assinar, mas sem subsequentemente dar continuidade aos pagamentos de impostos.
O primeiro ponto a salientar a este propósito é que estas declarações mostram-se, de si, inverosímeis, pois é muito difícil de conceber, de um ponto de vista prático e conforme à experiência comum, como é que um terceiro, economista e consultor, sem experiência conhecida na área de administração societária, sem presença permanente na empresa e sem afectação exclusiva à mesma, passaria a administrá-la, à revelia do seu próprio administrador, pessoa diariamente presente nas respectivas instalações, a única, nos termos do pacto social, com poderes para a vincular [segundo o pacto social também os procuradores, no âmbito dos poderes que lhe foram concedidos, poderiam vincular a sociedade, embora, quanto à existência desses poderes de vinculação nada resultou da prova produzida].
Certo também é que, importando saber quem tomava a decisão quanto ao não pagamento dos impostos devidos ao Estado, nem das declarações do arguido, nem do vasto número documentos que juntou a fls. 727 a 916 e 1126 a 1147, resulta que essa decisão incumbisse, fosse da responsabilidade ou da iniciativa do “Banco D…, S.A.”, através do Dr. F…, situação de resto rejeitada pelo próprio Banco e por esta testemunha.
Aliás, mesmo seguindo a versão do arguido, que aparece isolada e sem qualquer suporte probatório, sempre poderia assumir-se que as decisões relativas à gestão da sociedade arguida eram tomadas pelo próprio B…, mais não fosse, por pura passividade, pois se era ele quem assinava os papéis que lhe traziam contendo essas decisões, não podia deixar de saber que assim vinculava a sociedade, assistindo, impávido e sereno, à apelidada gestão de facto do sr. Dr. F….
Mas pior, tendo recebido a notificação do Serviço das Finanças, que o advertia pessoalmente de que se encontrava em inquérito a investigação de um ilícito criminal e da necessidade de efectuar o pagamento dos impostos em falta ao Estado, para afastar a punibilidade do crime fiscal - fls. 108 a 110 e 181 -, o arguido, nas declarações que prestou, não enunciou qualquer reacção que tenha tomado para assegurar esse pagamento.
Aliás, registe-se ainda que o próprio arguido admitiu que o acordo celebrado com o banco visava apenas o pagamento de salários, não se denotando, ao longo de todo o seu discurso, o objectivo sério de proceder ao pagamento dos impostos em falta, antes, pelo contrário, se divisando das suas próprias declarações que em tudo actuou com o objectivo exclusivo de, contra maré, manter a sociedade em actividade.
Em resumo, o que verdadeiramente perpassa das declarações do arguido é uma clara confusão entre a administração que efectivamente exercia na sociedade arguida, relevante para efeitos criminais, e aqueles que foram os constrangimentos que enfrentou no exercício dessa administração, advindos necessariamente de uma situação financeira deficitária, que tornavam a sociedade «dependente do banco» - expressão sua - para satisfação, desde logo, daquela que é correntemente a prioridade assumida pelo administrador societário português em contexto de dificuldades financeiras - o pagamento dos salários devidos aos seus trabalhadores.
Foi, pois, uma opção pessoal e continuadamente renovada pelo arguido, a de manutenção da actividade comercial, sem a concomitante satisfação das obrigações tidas para com o Fisco, isto apesar de, como com particular evidência resultou da generalidade da prova produzida, a sociedade não ter capacidade de tesouraria para cumprir com todas as suas obrigações, mostrando-se, nessa medida pouco viável a continuidade da sua laboração.
E tal conclusão decorre das suas próprias declarações, dos depoimentos de J… e F… e ainda o documento junto pelo arguido a fls. 1123 a 1147, em particular, suas fls. 1128 a 1130, onde se sublinha o “acentuado desequilíbrio estrutural – já frágil de nascença –” da empresa, deixando-a “sem qualquer Fundo de Maneio nem Capital Próprio, já em 2009, desafiando os limites previstos no art. 35.º do Código das Sociedades Comerciais” - destaque e sublinhados nossos.
A este propósito também não se mostra despiciendo acrescentar que a H…, S.A. veio informar que o Banco D…, S.A. não interferia nos pagamentos solicitados pela sociedade arguida, nem intervinha na decisão sobre o pagamento de impostos, assim como não impunha quaisquer restrições anormais à livre movimentação das suas contas, apenas analisando o seu saldo - cfr. fls. 1054 e 1069.
O que se mostra, de resto, consentâneo com a lógica e regras de experiência, posto que não se vislumbra qual seria o interesse da instituição financiadora daquela empresa em que, pagando aos trabalhadores, fossem deixadas por pagar tão avultadas dívidas ao Fisco, assim arriscando a sua própria sobrevivência, e consequentemente as possibilidades de reembolso das quantias nela investidas.
Por outro lado, as declarações do arguido na parte em que concluiu que o “gestor de facto” da sociedade arguida era o gestor indicado pelo banco, foram totalmente contrariadas, de forma consistente, isenta, sustentada e credível pelas testemunhas F… e J….
A primeira descreveu de forma serena o papel do arguido, enquanto administrador da sociedade arguida, pessoa diariamente presente na empresa, com conhecimento de toda a vida societária, quem contratava pessoal e efectuava pagamentos, distinguindo sempre, sem vacilar, esse papel do seu, mero consultor e responsável indicado pelo “D…, S.A.” para a elaboração e implementação de um plano de reestruturação da empresa, no interesse social.
Confirmou ainda a situação de défice financeiro da sociedade e de dependência dos fundos adiantados pelo “Banco D…, S.A.” para satisfação dos seus compromissos; afirmou categoricamente que era sempre sobre o arguido que recaía a última decisão em tudo o que dizia respeito à empresa, salientando mesmo que discordava de algumas decisões tomadas por aquele.
Confrontada com alguns documentos juntos aos autos pela defesa para sustentar a versão do arguido, contextualizou-os sempre no exercício das suas funções de consultoria, o que cotejado com o respectivo teor assomou inteiramente verosímil.
Este depoimento foi corroborado pelo de J…, que tendo conhecimento da situação financeira da empresa, do financiamento bancário de que beneficiava, da intervenção do próprio F… nessa sociedade, e do processo de inquérito que deu origem a estes autos - sendo, de resto, responsável pela elaboração dos documentos de suporte remetidos aos serviços de Finanças - identificou o arguido como administrador da sociedade arguida, a pessoa que nela tinha a última decisão.
Relatou ainda a presença diária do arguido na empresa, descreveu as suas tarefas correntes, confirmou a grande preocupação daquele em pagar aos trabalhadores, afirmou que era a única pessoa a assinar os cheques da sociedade arguida, quem negociava com o Banco “D…”, nomeadamente com vista à realização de pagamentos devidos pela sociedade, e contratava pessoal, tudo isto consubstanciando, afinal de contas, típicos actos de administração societária.
Por outro lado, K…, referindo que já contactou com o arguido no âmbito do inquérito do presente processo e que detém conhecimento de outros processos fiscais relativos à sociedade arguida, afirmou categoricamente que este se assumia como administrador desta sociedade, estava dentro dos seus assuntos e assinou a resposta ao ofício remetido pela Direcção de Finanças de Aveiro na qualidade de seu Administrador.
Não restam pois dúvidas de que era o arguido o administrador de facto e de direito da sociedade arguida, aquele que, dentro das dificuldades financeiras da sociedade, de resto não descuradas na acusação, estabelecia as prioridades na afectação de recursos e decidia da sua aplicação.
Dos depoimentos de J… e F… e das declarações do arguido, que nesta parte não surgiram isoladas, resultou ainda o contexto de dificuldades económicas da sociedade arguida e do destino dado aos impostos devidos ao Estado.
Relativamente às quantias actualmente em dívida pela sociedade a título de IVA valorámos, para além do depoimento de K…, os documentos de fls. 189 a 192, 292 a 294, 612 a 618, conjuntamente com o depoimento da testemunha L…, funcionária do Serviço de Finanças de São João da Madeira, que, em audiência de julgamento, explicou de forma segura o conteúdo dos documentos remetidos por aquele serviço de finanças e o critério de imputação das quantias obtidas.
Já no que se reporta à actividade comercial da arguida e à sua sede atendemos ao conteúdo respectiva certidão permanente de fls. 1083 a 1092.
Sobre a situação económico-social, familiar do arguido, o seu passado empresarial e a sua saúde valorámos o relatório social de fls. 992 a 995, conjuntamente com as suas declarações, o relatório médico de fls. 308, o relatório pericial e o depoimento do dr. E….
Valorámos o certificado de registo criminal constante de fls. 1078 a 1081, para aferir do seu passado criminal e, quanto aos processos crime pendentes, as suas declarações e o nosso conhecimento funcional relativamente ao processo n.º 209/10.9IDAVR, porquanto a fase de instrução correu termos neste 2.º Juízo.
Finalmente, a nossa convicção quanto aos elementos subjectivos do tipo, ponderámos e lemos conjunta e conjugadamente todos os elementos de prova produzidos, os factos provados e as regras da experiência e do senso comum.
Registe-se que, embora em fase subsequente à apresentação da contestação e prévia à de julgamento, a defesa tenha questionado a (in)imputabilidade criminal do arguido, com base exclusivamente em relatório médico subscrito pelo sr. Dr. E…, a fls. 308, resultou de toda a prova produzida que o arguido é perfeitamente capaz de representar o carácter desvalioso da sua conduta e de se reger de acordo com esse juízo.
Assim, e uma vez que apenas em momento avançado da fase de julgamento compareceu em audiência, começámos por valorar a este propósito:
- o relatório de perícia médico-legal a fls. 701 a 703, no qual fundamentadamente se concluiu pela capacidade de o arguido avaliar a ilicitude dos actos por si praticados e de se determinar de acordo com essa avaliação, relatório esse sustentado e complementado pelos esclarecimentos prestados em audiência pelo sr. Perito, M…, seu subscritor; acrescente-se que nenhum elemento nos levou a divergir do juízo técnico vertido no relatório pericial, que, de resto, se presume subtraído à nossa livre apreciação, nos termos do n.º 1 do art. 163.º do Código de Processo Penal;
- os esclarecimentos prestados pelo sr. Dr. E…, especialista em psiquiatria, que acompanhou o arguido desde Setembro de 2012 e precisou que no relatório que se encontra junto aos autos não se pronuncia sobre a imputabilidade criminal do arguido; concluiu ainda que, não obstante a doença que lhe diagnosticou, o mesmo é imputável criminalmente; confrontado com o teor do relatório pericial, manifestou uma única divergência, contendente, em exclusivo, com a data do início do processo depressivo do arguido, e que não assume qualquer relevo para a determinação da sua imputabilidade criminal; explicou ainda que assistiu a grande parte da perícia médico-legal realizada no âmbito destes autos, embora tenha acrescentado que motu propriu não permaneceu na diligência até ao fim;
- a percepção das testemunhas J… e F… quanto às capacidades do arguido no exercício das suas funções de administração societária.
Finalmente, mesmo que, exauridos todos os elementos probatórios, subsistisse alguma dúvida sobre a sua imputabilidade, o arguido, que apenas compareceu em audiência e nela prestou declarações em momento posterior à realização da perícia médico-legal, apresentou-se perante nós consciente e lúcido sobre a vida e obrigações societárias, assim como sobre as infracções criminais cuja prática lhe vinha imputada, sendo ainda que da postura assumida e das suas declarações em audiência nenhuma dúvida se levantou quanto à sua capacidade para decidir e reger a sua conduta de forma independente e conforme com a sua consciência e os juízos de valor e de desvalor que formula.
(…)

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso DA SENTENÇA, há que decidir as seguintes questões:
. Se o tribunal infringiu o princípio do contraditório;
. Se a sentença recorrida é nula nos termos do artº 379º nº1 al.c) do CPP;
.Impugnação da matéria de facto;
. Violação do princípio in dubio pro reo.
. Se a sentença recorrida fez uma errada interpretação e aplicação dos artsº 98º nº1, 340º nºs 1 e 2, 61º nº1 al.a) e b) todos do CPP com a necessária inconstitucionalidade na interpretação seguida de tais artigos por infracção ao disposto nos artsº 20º nº3, 32º nº1, 2, 3, 5 e 7 e 202º nº2 todos do CPP com a necessária inconstitucionalidade na interpretação seguida de tais artigos por infracção ao disposto e artsº 20º nº3, 32º nºs 1, 2, 3, 5 e 7, 202º nº2 todos da CRP.
.Se o arguido deveria ter sido absolvido ou quando muito ter sido apenas condenado numa pena de multa ou a pena de prisão dever ser suspensa na sua execução;
*
II - FUNDAMENTAÇÃO:
Começando pela apreciação dos recursos interlocutórios
Recurso de fls.971ss do despacho de 931-932 -acta de 6/3/2013.
As questões suscitadas neste recurso interlocutório são em síntese as seguintes:
Se face ao despacho recorrido ao ouvir o médico E… como testemunha e não como consultor técnico incorreu em nulidade ou irregularidade;
Se a interpretação do artº 3º nº1 da Lei 45/2004 efectuada no despacho recorrido é inconstitucional por violação do artº 32º nº1 e 5 do artº 20ºnº4 da CRP na “medida em que não permita a designação de consultor técnico nas perícias médico-legais realização em Delegação do Instituto Nacional de Medicina Legal, quando indicado pelo arguido e este ser o objecto da Perícia” o que integra uma nulidade insanável;
Por despacho de fls. 621, determinou-se “(…) solicite, com urgência, ao Instituto Nacional de Medicina Legal, com cópias de fls. em epígrafe e da acusação, a realização de perícia médico-legal psiquiátrica ao arguido B… e elaboração e envio aos autos do respectivo relatório pericial, no prazo máximo de trinta dias, consignando que:
(…)
Tendo sido designado um consultor técnico pelo arguido, admite-se que o médico E…, melhor identificado a fls.334 [] assista à realização da perícia.
Informe o Instituto Nacional de Medicina Legal nessa conformidade.
Notifique, sendo o arguido e o seu consultor técnico com a advertência de que deverão comparecer na data em que vier a ser indicada, caso necessário, pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, com a advertência de que, não o fazendo, se considerará, quanto à falta do arguido, que prescinde da realização da perícia e, quanto à falta do consultor técnico, que o arguido prescinde da sua presença na realização da perícia.”
Posteriormente o despacho recorrido, supra transcrito, vem a determinar a audição do referido médico como testemunha face ao regime legal estabelecido na Lei que disciplina as perícias médico-legais.
O recorrente alega que “o tribunal não poderia dar um despacho contrário ao primeiro que constitui o consultor técnico transformando-o em testemunha”.
Com o devido respeito, afigura-se que o recorrente parte do equívoco, de pressupor que qualidade de consultor técnico lhe foi atribuída pelo despacho da Srª Juiz que deferiu a perícia. Porém o estatuto de consultor técnico resulta da Lei, artº 155º do CPP, sendo que no caso das Perícias Médico-Legais a Lei 45/2004 de 19/8 no seu a 3º diz serem inaplicáveis às perícias realizada no Instituto de Medicina Legal as disposições contidas nos artº 154º e 155º do CPP.
Como tal, sendo a própria Lei que estabelece o regime da Perícias realizadas no Instituto de Medicina Legal, que exclui a existência do consultor Técnico, a parte do despacho de fls.621 que admite a assistência do consultor técnico designado pelo arguido, à realização da perícia, carece de objecto, sendo inexequível e terá de se considerar como não escrita.
Na verdade, e como expressamente consta do despacho de fls.621 e resulta dos autos foi o arguido quem designou um consultor técnico e não o tribunal, só que tal designação não tem cabimento legal, e não basta a indicação do arguido, para alterar a lei. Como tal, e como bem alega o MP a autorização de assistência não podia ter qualquer efeito. Não há pois que falar em caso julgado formal e decisões contraditórias, quando o tribunal apercebendo-se posteriormente que no caso dos autos o referido médico não tinha o estatuto legal de consultor técnico, nem o podia ter, em estrito cumprimento da Lei ouviu-o como testemunha.
O recorrente alega que “O tribunal recorrido ao destituir o consultor técnico relegando-o para mera testemunha, e ao não notificar nem permitir o acesso ao Relatório da perícia não permitiu que este consultor técnico fosse possibilitado exercer a sua função de controlo da qualidade da perícia e não permite ao consultor técnico e á defesa do arguido compreender na sua totalidade as conclusões finais de tal perícia.” E conclui que “tal integra nulidade ou irregularidade conforme melhor se entenda, arguível em recurso”
Como é sabido regime das nulidades obedece ao princípio da tipicidade legal. As nulidades encontram-se tipificadas, nos termos do artº 118º do CPP e artº 119º e 120º do CPP, pelo que não estando prevista tal nulidade, ainda que alguma omissão tivesse ocorrido quanto à assistência de consultor técnico, e não ocorreu, apenas geraria uma irregularidade nos termos do artº 123º do CPP, sujeita ao regime de arguição aí previsto.
E a existir tal irregularidade, a mesma devia ter sido arguida no prazo de 3 dias, após a notificação do despacho e perante o tribunal que proferiu a decisão, vale dizer primeira instância, não podendo sê-lo em recurso, por se tratar de questão nova e os recursos serem remédios jurídicos, destinados à reapreciação das decisões da 1ª instância e não para apreciar questões novas, inexistindo norma que determine a aplicação do artº 379 nº2 do CPP a outras decisões que não a sentença.
Improcede pois arguição da nulidade ou irregularidade.
Por fim alega o recorrente que a interpretação efectuada no despacho recorrido do artº 3º nº1 da Lei 45/2004, artº 155º, 156 º e 157º do CPP é inconstitucional por violação do disposto no artº 20º nº4 e 32º nº1 e 5 da CRP, em concreto que “ é inconstitucional o artº 3º nº1 da Lei 45/2004 na interpretação dada pelo tribunal recorrido, por violação do artº 32º nº1 e 5 e artº 20º nº4 da CRP na medida em que não permita a designação de consultor técnico nas perícias médico-legais realização em delegação do Instituto de Medicina Legal.”.
Por em seu entender ter sido obstado ao arguido a possibilidade de exercer o direito à defesa e ao contraditório.
Afigura-se não ter razão o recorrente já que o facto de não ter sido assistido por consultor técnico na perícia não lhe coarctou o direito ao contraditório, já que o arguido podia sempre ter pedido esclarecimentos à perícia e até requerer uma nova perícia nos termos do artº 158º do CPP.
Isto mesmo afirma o Tribunal Constitucional, no Acórdão 133/2007, DR II série , de 24 de Abril de 2004, ao decidir que a norma constante do artº 3º nº1 da Lei nº45/2004 de 19 de Agosto, na parte em que inviabiliza a participação de consultores técnicos nas perícias médico-legais realizadas em delegação do Instituto Nacional de Medicina Legal não é inconstitucional tendo-se escrito na sua fundamentação que:
“.Decorre claramente do que já se observou que o direito de nomear um consultor técnico permitido pelo artigo 155º do Código de Processo Penal, não é um direito conferido especificamente a título de "garantia de defesa", no seu sentido mais estrito: no decurso da prova pericial não impende sobre o arguido qualquer ónus de contradizer ou afirmar qualquer facto; não é atribuída qualquer eficácia ao acordo expresso ou tácito sobre factos não contraditados.
O que aqui vale, seguramente, é a busca da verdade material e da realização da justiça, do dever de investigação judicial autónoma da verdade, com independência e imparcialidade, embora sem excluir o auxílio das partes – artigo 340º n.º 1 do Código de Processo Penal – objectivo que representa uma das finalidades do processo penal. À autoridade judiciária incumbe rodear a produção de prova pericial das condições necessárias a que dela se retire a verdade material, processualmente válida. Ora, na decorrência desse grande objectivo do processo penal, o sistema português adoptou um regime de perícia oficial – não contraditória – essencialmente disciplinado pelos artigos 152º n.º 1 e 154º n.º 1 do citado Código, no domínio da qual o perito é um perito do Tribunal, sujeito ao mesmo dever de imparcialidade e de busca da verdade material que oneram a actividade judiciária..”
Improcede pois a alegada inconstitucionalidade.
Improcede também a invocação da nulidade insanável que o recorrente prefigura no artº 119º nº1 alc) do CPP, decorrente da invocada inconstitucionalidade e que com o devido respeito não logramos visualizar como a mesma poderia ocorrer no caso dos autos, já que a mesma respeita à ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência.
Improcede pois o recurso.
*
Recurso interposto a 1028 ss do despacho de fls.939 ss.
As questões suscitadas no recurso são as seguintes:
Se o despacho recorrido incorreu numa contradição insanável da fundamentação;
Se a audição das testemunhas requerida era necessária à descoberta da verdade e à decisão da causa;
Se o tribunal “fez uma incorrecta interpretação dos arts 98º nº1, 340 nº 1 e 2, 61 al.a) e b) do CPP com a necessária inconstitucionalidade na interpretação seguida de tais artigos por infracção ao disposto nos artsº 20º nº3, 32º nºs 1, 2, 3, 5 e 7, 202º nº2 todos da CRP”;
Apreciando:
Alega o recorrente que o tribunal recorrido incorreu em contradição insanável da fundamentação nos termos do artº 410º nº2 al.b) do CPP.
Com o devido respeito, esquece o recorrente que o vício da contradição insanável tal como os demais vícios do artº 410º nº2 do CPP é um vício relativo à matéria de facto e por isso da sentença, não sendo aplicáveis tais vícios aos meros despachos, designadamente ao despacho recorrido em que não estão dados como provados quaisquer factos, mas antes apreciada a admissibilidade de um requerimento de prova nos termos do artº 340º do CPP.
Como se escreveu no ac. do STJ de 20/6/2002, (..) “os vícios do artº 410º, citado, embora possam em certos casos estender o seu regime aos simples despachos, são claramente vício da sentença final , sobretudo, são vícios da matéria de facto.”[1]
No caso dos autos, o que está em causa na perspectiva do recorrente é um vício do raciocínio, que presidiu à decisão, mas não nenhum erro relativo à matéria de facto, já que apenas na sentença o tribunal tem de demonstrar a ocorrência dos factos, através de um percurso lógico isento de vícios.
Improcede pois esta questão.
Vejamos então se o despacho recorrido ao indeferir a audição das testemunhas indicadas pelo arguido a 717,726 violou o disposto no artº 340º nº1 e 2 do CPP como alega o arguido
Como é sabido o artº 340º do CPP reflecte em sede de audiência a consagração do princípio da investigação ou da verdade material, traduzido no “poder-dever do tribunal de procurar oficiosamente a verdade”, entendida esta como verdade histórica ou “verdade material”.[2]
Porém, como dá conta o Conselheiro Maia Gonçalves[3] em anotação ao artº 340º do CPP este princípio tem limites, resultantes: do princípio da necessidade “ Os meios de prova admissíveis são aqueles cujo conhecimento se afigure necessário para a descoberta da verdade e boa decisão da causa” nos termos do nº1 do artº 340º do CPP; do princípio da legalidade “ Os meios de prova permitidos são aqueles que forem legalmente admissíveis”, consagrado no artº 125º do CPP; do princípio da adequação “Os meios de prova a produzir deverão ser os adequados ao objecto da prova”, aflorado no nº3; do princípio da obtenibilidade, “Os meios de prova hão –de ser de obtenção possível” consagrado no nº4, al.c).
A decisão recorrida indeferiu o requerimento para inquirição das testemunhas, com fundamento em não vislumbrar “utilidade e relevância para a boa decisão da causa e a descoberta da verdade do requerimento probatório em apreço, na parte relativa à inquirição das testemunhas indicada em a) a g) de fls.726”, ou seja por considerar não se encontrar justificado o princípio da necessidade.
Como se dá conta no despacho recorrido, os factos ora invocados e para prova dos quais o arguido arrolou as testemunhas indicadas, inserem-se numa linha de defesa, completamente diferente da que constava da contestação e até àquele momento, - concluída que se mostrava a produção de prova - não indiciada pela prova produzida, não tendo nos termos do despacho recorrido “um mínimo de suporte na prova produzida em audiência de julgamento e na própria contestação oportunamente apresentada”.
Concordamos com esta afirmação do despacho recorrido, sob pena de a não ser assim, em qualquer momento da audiência o tribunal ser surpreendido por uma nova linha de defesa, sem qualquer indício nos autos e que redundaria numa ilimitada e interminável aceitação de novos meios de prova, que em nada relevariam à boa decisão da causa e descoberta da verdade material.
Há que ter presente que no momento em que foi proferido o despacho recorrido, e é com os mesmos pressupostos dessa decisão que este tribunal de recurso terá de aferir da sua correcção, o arguido não havia ainda prestado declarações, sendo que o recorrente, não logra demonstrar onde até aquele momento resulte a necessidade da audição das testemunhas, antes se ancorando no facto de o tribunal ter, na sua perspectiva de forma contraditória, admitido os documentos juntos e mandado notificar o D… para esclarecer o alegado.
Ademais, a alteração efectuada pela Lei nº20/2013 de 21/2 ao artº 340º do CPP ao introduzir a nova al.a) do nº4, ainda que não aplicável à data do despacho recorrido, revela o espírito do legislador, densificando aquele princípio da necessidade consagrado no nº1 do artº 340º do CPP, ao estabelecer nos casos em que as provas já podiam ser arroladas com a acusação e contestação, só no caso de serem indispensáveis à descoberta da verdade e boa decisão da causa, é que os requerimentos de prova devem ser deferidos, formalizando assim a distinção entre as provas com carácter novo e aquelas que eram já do conhecimento do arguido.
Por outro lado, o despacho recorrido, fundamenta-se ainda na circunstância de não resultar dos autos nem da prova documental junta, “o conhecimento directo” que as testemunhas indicadas possam ter da “versão factual que o arguido veio agora trazer ao processo”.
Muito embora se tenha presente que como bem se escreveu no acórdão desta Relação de 12/2/2014 [4] “Mas uma coisa é a credibilidade que essas pessoas possam merecer se vierem a prestar depoimento em audiência e outra bem diversa, a essencialidade para a descoberta da verdade, desse depoimento”, no caso o que resulta do despacho recorrido, é que o indeferimento da inquirição das testemunhas indicadas pelo arguido, se baseou na consideração de que o seu depoimento não se revelava necessário à boa decisão da causa.
Não se vê pois, em que concreta vertente o despacho recorrido violou o disposto nos arts 98º º1, 340º ns 1 e 2, 61º nº1 al.a) e b) do CPP, nem a concreta dimensão normativa em que teriam sido violados os arts 20º nº3, 32º nºs 1, 2, 3, 5 e 7, e 202º da CRP que possa fundamentar a alegada inconstitucionalidade da decisão recorrida.
Uma última nota, para dizer que quanto à alegada contradição do despacho recorrido ao por um lado admitir a junção de documentos, e mandar notificar o Banco para esclarecer o alegado, há que ter presente que o recurso interposto tem apenas como objecto o indeferimento das testemunhas e já não a parte da decisão que deferiu ao requerido, pelo que não cabe agora averiguar do mérito dessa parte da decisão. Para além disso, decorre do despacho considerado na sua globalidade, de deferimento e indeferimento das provas requeridas, que o indeferimento assentou sobre um juízo da não necessidade da prova testemunhal indicada, sendo, que o esclarecimento solicitado ao Banco, se insere num argumento adicional, que não o decisivo quanto ao indeferimento da prova testemunhal.
Improcede pois o recurso.
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Recurso da Sentença
O recorrente alega que a sentença é nula nos termos do artº 379º nº1 al.c) do CPP porque não se pronunciou sobre questões que devesse apreciar.
Dispõe o artº 379º nº1 al.c) do CPP que a sentença é nula quando «o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.»
O recorrente não identifica quais as concretas questões sobre as quais o tribunal teria deixado de se pronunciar, parecendo resultar da motivação que o recorrente pretende que outra devia ter sido a decisão do tribunal relativamente à matéria de facto, dando acolhimento à tese da defesa, e que não o tendo feito, o tribunal incorreu em omissão de pronúncia. E conclui alegando que “basta ouvir a prova gravada e ler as actas deste julgamento e verificar sob o prisma da tese da defesa”.
Os factos relevantes para a decisão da causa nos termos do artº 368º nº2 do CPP, são aqueles que se revelam essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes, que influenciem na determinação da medida da pena. Cfr.Ac. STJ de 29 de Junho de 1995; CJ Acs STJ, III, tomo 2, 254, e ASTJ de 15/1/97, in CJ, 1997, t1, p.181.
O não acolhimento da tese da defesa, que considera incorrectamente julgados determinados factos provados, não configura uma omissão de pronúncia, mas um alegado erro de julgamento, que são situações processuais diferentes. Como se decidiu no acórdão do STJ de 26/1/2000 [5] “Não são os sujeitos processuais (nem os respectivos advogados) quem fixa a matéria de facto, mas unicamente o Tribunal que apura os factos com base na prova produzida e conforme o princípio da livre convicção (artº 127º do CPP), aplicando, depois o direito aos mesmos factos, com independência e imparcialidade. Por isso, a circunstância de o conjunto de factos provados não corresponder aos desejos dos referidos sujeitos processuais, não configura o vício de omissão de pronúncia, nem a violação dos artigos 368º e 379º nº1 al.c) do CPP.”
Improcede pois a invocada nulidade.
Alega o recorrente que “O tribunal ao não deixar a defesa fazer prova plena da sua tese e da verdade infringiu o princípio do contraditório.”
O princípio do contraditório tem consagração constitucional no artº32º nº5 da CRP que dispõe que «O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório» e encontra-se plasmado no artº 61º b) do CPP, e em sede de audiência no artº 327º do CPP que no nº1 estabelece que «As questões incidentais sobrevindas no decurso da audiência são decididas pelo tribunal ouvidos os sujeitos processuais que nelas forem interessados» e no nº2 que «Os meios de prova apresentados no decurso da audiência são submetidos ao princípio do contraditório, mesmo que tenham sido produzidos pelo tribunal.»
O recorrente fundamenta a violação do princípio do contraditório em mão ter o tribunal admitido a prova por si indicada. Sobre tal questão já nos pronunciámos em sede de apreciação do recurso interlocutório, sendo que uma coisa é o tribunal não admitir a produção de prova no âmbito do poder de decisão e apreciação que lhe é conferido ao abrigo do disposto no artº 340º do CPP, outra diferente é o tribunal não permitir sobre os meios de prova produzidos em audiência o exercício do contraditório designadamente através da contra instância às testemunhas, o que não emerge do processo designadamente das actas de audiência.
No que concerne aos despachos de indeferimento dos requerimentos de prova formulados pelo arguido ao longo da audiência, posteriormente ao despacho recorrido, o arguido não interpôs recurso dos mesmos, como podia ter feito, pelo que os mesmos transitaram em julgado. Não pode pois agora vir em sede de recurso da sentença, recolocar a reapreciação de decisões que se mostram transitadas.
Improcede pois a invocada violação do princípio do contraditório.
O recorrente alega estarem mal julgados os factos dados como provados sob os pontos 3, 9, 10, 11 e 13 da matéria de facto provada.
Não obstante os tribunais da Relação conhecerem de facto e de direito nos termos do disposto no artº 428º do CPP, como escreveu o Prof. Germano Marques da Silva “o recurso sobre a matéria de facto não significa um novo julgamento, mas antes um remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância” Fórum Justitiae, Maio 99.
Na verdade, fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º, o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância; não se procura encontrar uma nova convicção, mas apenas verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso. Ao tribunal de recurso cabe apenas “…aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significara que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração”. Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253.
Para permitir que no recurso se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, a lei prevê a documentação das declarações prestadas oralmente na audiência – cfr. artº 363º e 364º, ambos do CPP.
Neste caso, o recorrente tem o ónus de especificar, os concretos pontos de facto que considere incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, cfr. artº 412º nº 1 e 3, als.a) e b) do CPP, sendo que quando as provas tenham sido gravadas, as especificações de prova previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, nos termos do nº 4 do mesmo preceito, havendo que ter em conta a interpretação afirmada no Acórdão de Fixação de jurisprudência nº 3/2012, 8 de Março de 2012 publicado no DR 1º série de 18 de Abril de 2012, o qual fixou jurisprudência no sentido de que “Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta para efeitos do disposto no artº 412ºº nº3 alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações.”.
Lida a motivação conclusões do recurso logo se extrai que o recorrente não deu cumprimento ao preceituado no artº 412º nº3 alc) e 4 do CPP. Na verdade embora proceda à indicação dos factos que considera incorrectamente julgados, não indica em momento algum as concretas passagens da prova em que se fundamenta a impugnação, antes remetendo o tribunal para a audição da integralidade dos depoimentos que indica, solicitando a renovação dos mesmos neste tribunal de recurso.
Porém como se deixou afirmado este tribunal não procede a um novo julgamento como parece ser o entendimento do recorrente, sendo que a renovação da prova está sujeita aos requisitos do artº 430º nº1 do CPP, designadamente à verificação dos vícios do artº 410º nº2 do CPP, e à credibilidade de que a renovação da prova permitirá evitar a situação de reenvio, pressupostos que não se verificam no caso dos autos, nem o recorrente invocou.
Por outro lado, o recorrente alega que a “a matéria de facto acima referida, em confronto com a prova produzida implicava uma resposta diferente aos pontos 3,9,10,11 e 13 da matéria de facto”, sem contudo indicar em concreto qual o diferente sentido que devia ter sido dado a tal matéria.
O que se logra extrair da motivação do recorrente, é que o recorrente diverge da apreciação das provas efectuadas pelo tribunal sem demonstrar que na fundamentação da decisão recorrida tenha sido violada alguma regra da experiência.
Mas a lei refere provas que «impõem» e não as que «permitiriam» solução diversa, pois casos haverá em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução.
Não obstante, o recorrente se tenha limitado a fazer as suas “súmulas” dos depoimentos que indica, “na perspectiva da defesa” como expressamente consta da motivação, este tribunal após ter procedido à integral audição da prova produzida, e concretamente no que ao depoimento da testemunha K…, resulta que contrariamente aquilo que o recorrente entendeu deste depoimento, pela mesma foi expressamente afirmado que o arguido “assumia-se como administrador de facto da sociedade, nunca disse o contrário” cr. Minuto 15.50 do depoimento gravado.
Quanto à questão dos valores sobre clientes penhorados pelas finanças, tal questão foi exaustivamente esclarecida pelo tribunal através do depoimento da testemunha L…, a qual confirmou o teor do pedido de informação de fls.612, designadamente quanto aos períodos a que respeitam e quanto aqueles que foram depositados depois da declaração de insolvência da arguida e por isso devolvidos à massa insolvente.
Isto mesmo resulta da fundamentação da convicção constante da sentença, constando também da mesma a apreciação crítica, das provas e a razão pela qual não credibilizou, as declarações do arguido na parte em que este “concluiu que “o gestor de facto” da sociedade arguida era o gestor indicado pelo banco”, antes tendo credibilizado os depoimentos das testemunhas F… e J… que contrariam tais declarações.
A convicção do tribunal encontra-se estabelecida com base num raciocínio lógico, do qual o recorrente se limita a divergir da apreciação das provas efectuadas pelo tribunal sem demonstrar que na fundamentação da decisão recorrida tenha sido violada alguma regra da experiência, e sem nunca indicar as concretas provas que impunham uma diferente decisão por parte do tribunal.
Invoca ainda o recorrente a violação do princípio in dubio pro reo para pretender que a matéria constante do ponto 3 da factualidade provada deveria ter sido dada como não provada.
O princípio in dubio pro reo, como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. Afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal.-cfr. Figueiredo Dias- Dtº Processual Penal, pág 213.
Daí que a violação deste princípio só ocorra quando resulta da decisão que o tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto e, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido. Ora, a decisão impugnada não revela, em momento algum, que o tribunal recorrido tenha ficado na dúvida em relação a qualquer facto dado como provado. Com o que não tem fundamento invocar a violação de tal princípio [nesse sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-07-2008, Processo n.º 1787/08 - 5.ª Secção (Cons. Souto Moura): I - A invocação do princípio in dubio pro reo só tem razão de ser se, depois do tribunal a quo reconhecer ter caído num estado de dúvida, contornasse um non liquet decidindo-se, sem mais, no sentido mais desfavorável para o arguido. Mas já não assim se, depois de ultrapassadas as dúvidas que o pudessem ter assaltado, perfilhasse uma determinada convicção e decidisse coerentemente – in Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - Secções Criminais, http://www.stj.pt acedido em Janeiro de 2009].
Improcede pois esta alegação.
O recorrente impugna ainda relativamente à matéria provada sob os pontos 9 e 11 dos factos provados os segmentos relativos ao “interesse” e obtenção de “vantagem patrimonial” por parte do arguido.
Com o devido respeito afigura-se que os factos provados são bem claros quanto à motivação do arguido em manter a sociedade no giro comercial, e no contexto de dificuldades de tesouraria o que a fundamentação bem espelha. O interesse pessoal do arguido e a vantagem patrimonial ainda que indirecta decorre naturalmente das funções de administrador que desempenhava, e da sua ligação familiar e pessoal à sociedade, que o levou inclusive nos termos alegados a entregar o seu património pessoal como garantia, o que só por si já justifica e fundamenta o seu interesse na manutenção da empresa em funcionamento, com a vantagem patrimonial daí decorrente entendido o conceito de património de forma global, em relação às utilidades e fruições de que alguém é titular, e que no caso o arguido tinha interesse em manter.
De todo o modo deixa-se esclarecido, que o interesse pessoal do arguido, e a obtenção de vantagem para si não constitui elemento do tipo, sem prejuízo de a motivação da conduta ser um factor a ponderar na medida da pena.
Quanto à matéria relativa ao elemento subjectivo, como é sabido, fora dos casos de confissão, tal materialidade terá de resultar necessariamente de prova indirecta, por se tratarem de elementos de estrutura psicológica. Como se escreveu no ac. da Rel. de Lisboa de 8/2/2007 “o que pertence à vida interior de cada um, só possível de apreender através de factos materiais comuns, podendo comprovar-se por meio de presunções judiciais, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência.”[6] No caso dos autos, face à materialidade objectiva assente, tais elementos resultam dos factos objectivos, nada tendo resultado dos autos que afaste a evidência de uma actuação voluntária do arguido e do conhecimento da ilicitude da sua conduta, designadamente face ao resultado da prova pericial realizada atento o disposto, no artº 163º do CPP.
Não obstante, a inaptidão da motivação para lograr através das provas que indica, a alteração da matéria de facto, da leitura da sentença recorrida emerge que a mesma incorreu numa contradição da fundamentação quando, nela se faz constar que a Srº Inspectora Tributária K… esclareceu que “que, na acção inspectiva que realizou, confrontou os documentos relativos aos movimentos em aberto - pendentes -, extractos das contas correntes dos clientes e declarações periódicas de IVA, todos remetidos pela sociedade arguida, e que deles obteve os montantes de IVA não recebidos nesses períodos - €506,99, em Setembro de 2010; €2.466,61, em Outubro de 2010; €2.365,62, em Fevereiro de 2011; €5.829,22, em Março de 2011.
Uma vez que desses documentos resulta que os montantes de IVA não recebido eram substancialmente reduzidos no cômputo do liquidado e recebido dos clientes da sociedade arguida, foi considerada a integralidade do valor do IVA apurado como exigível para efeitos criminais...”
Ora, se o tribunal apurou como refere que os referidos montantes não foram recebidos, mostra-se contraditório dar como provado sob os pontos 5 e 8 dos factos provados como IVA efectivamente recebido aqueles montantes, não se revelando porém tal contradição insanável nos termos da própria fundamentação da sentença, pelo que nos termos do arº 431 a) do CPP se altera a matéria de facto constante dos referidos pontos 5 e 8 dos factos provados, pela simples subtracção ao IVA Apurado dos montantes de 506,99 € no período de Setembro de 2010, de 2.466,61€ no período de Outubro de 2010, 2.365,62 no período de Fevereiro de 2011 e 5.829,22 € no período de Março de 2011.
Assim altera-se a matéria de facto provada sob os pontos 5 e 8 dos factos provados:
“5. Em tal contexto, a sociedade arguida efectuou vendas e serviços diversos nos períodos de seguida indicados, tendo feito incluir o respectivo I.V.A nos preços cobrados aos cientes, e que efectivamente recebeu, enviando atempadamente as respectivas declarações periódicas do I.V.A., que somou os montantes indicados de seguida:
Período I.V.A. apurado
Setembro de 2010 € 134.864,08
Outubro de 2010 € 150.164,76
Fevereiro de 2011 € 40.106,62
Março de 2011 € 102.841,31
TOTAL € 436.171,61”
“8. Todavia, quanto aos mesmos períodos de seguida explicitados, no âmbito de acordos para pagamento em prestações e ainda em virtude de penhora de créditos detidos sobre clientes da sociedade arguida, em 15/01/2013, já tinham pago fraccionadamente, ainda que depois dos prazos mencionados em 6. e 7., os seguintes montantes:
Período I.V.A. pago I.V.A. em falta
Setembro de 2010 €22.561,84 €112.302.24
Outubro de 2010 €38.157,84 € 112.006,92
Fevereiro de 2011 €42.472,24 €0
Março de 2011 €3.019,32 €99821,99
TOTAL €106.211,24 €324.131.15”

Concomitantemente passará a constar como não provado “Que o IVA apurado nos termos constantes do ponto 5 dos factos provados tenha sido de:
€ 135.371,07 em Setembro de 2010;
€ 152.631,37 em Outubro de 2010
€ 42.472,24 em Fevereiro de 2011
€ 108.670,53 em Março de 2011”
Por fim e já em sede de direito, alega o recorrente que “Dada a matéria de facto provada o arguido, atenta a idade, as dificuldades da empresa o facto de não ter o destino da gestão financeira nas suas mãos o arguido deveria ter sido absolvido ou quando muito ter sido apenas condenado numa pena de multa ou ver a sua pena de prisão suspensa na sua execução.”
Quanto à pretensão de absolvição do crime, está necessariamente votada ao fracasso, uma vez que a matéria de facto provada sustenta a integração de todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de abuso de confiança fiscal, qualificado na forma continuada pelo qual o arguido foi condenado.
Actualmente o crime de abuso de confiança após a redacção introduzida pela Lei nº15/2001 de 5 de Junho é um crime de natureza omissiva própria cuja conduta consiste “na não entrega ao erário das retenções que o substituto reteve em relação a quantias pagas ou recebidas, desde que o valor não entregue seja superior a € 7500,00 €” [7], exigindo-se a nível subjectivo a natureza dolosa da conduta.
Nas palavras de Isabel Marques da Silva, “o facto tipicamente ilícito consiste em não entregar”[8] consumando-se com a não entrega dolosa das prestações recebidas ou retidas bem como das contribuições deduzidas do valor das remunerações, dentro dos prazos de entrega previstos na lei.
Tais alterações tiveram, segundo o Prof. Germano Marques da Silva “ um intuito clarificador”[9] e nas palavras de Isabel Marques da Silva “mais não fez … que verter em letra de lei o entendimento jurisprudencial segundo o qual quem não entrega no prazo a prestação tributária deduzida ou cobrada, usando-a para um fim diferente do legalmente previsto, dela se apropria”[10].
Igualmente destinada ao fracasso está a pretensão de ser condenado em pena de multa, porquanto ainda que na forma continuada sendo o valor das prestações omitidas nos períodos de Setembro de 2010, Outubro de 2010 e Março de 2011, superiores a 50.000 € a conduta do arguido é qualificada nos termos do nº5 do artº 105º do RGIT sendo punida abstractamente com pena de prisão de 1 a 5 anos.
E nesta moldura abstracta, a pena de 1 ano e 8 meses de prisão bem perto do limite mínimo, não se mostra exagerada, atentos os factores considerados na decisão recorrida, os valores parciais e o valor global das prestações não entregues, sendo muito elevado o grau de ilicitude da conduta, entendida esta tanto como “desvalor de acção como desvalor de resultado” [11] não assumindo relevância nos valores não entregues os montantes dados como não recebidos decorrentes da alteração efectuada à matéria de facto para efeitos de alteração da medida da pena.
A suspensão da pena.
Nos termos do artº 50º nº1 do CP o tribunal suspende a pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos sempre que concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. E para extrair tal conclusão manda a lei atender à personalidade do agente, às condições da sua vida, à conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
No caso dos autos face à aplicação de uma pena de prisão de 4 anos de prisão, verificado está o pressuposto formal da aplicação da suspensão da execução da pena. Porém como refere o Prof. Figueiredo Dias, se é verdade que a aplicação da suspensão é para o juiz um poder-dever, é ainda necessário que o tribunal conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido. [12]
E este prognóstico favorável que deve existir, consiste na esperança de que o condenado ficará suficientemente advertido com a própria sentença e não cometerá mais nenhum crime. “Porém se o tribunal ficar com sérias duvidas sobre a capacidade do arguido para aproveitar a capacidade ressocializadora que se lhe oferece, deve decidir negativamente a questão do prognóstico.”[13]
Face aos apontados elementos a que a lei manda atender para a decisão ou não de suspensão, relativamente à personalidade do agente, às condições de vida do arguido e conduta anterior e posterior ao crime, lida a decisão recorrida verifica-se que o tribunal optou por aplicar uma pena efectiva tendo afastado a suspensão da pena com a seguinte fundamentação:
“Nos termos do disposto no artigo 50º do Código Penal: «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
O primeiro ponto a assinalar neste particular é o de que o passado criminal do arguido e a postura pelo mesmo assumida perante os serviços da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, revelando que o presente processo não tem para ele um significado particular, fazem divisar uma personalidade sem ressonância quanto ao dever-ser ético-jurídico no que concerne aos crimes tributários.
Confrontado com os factos que lhe vinham imputados declarou que se limitava a assinar os papéis que lhe eram trazidos e acrescentou que a testemunha F… não lhes dava seguimento, desresponsabilizando-se pelo não pagamento de impostos, parecendo pretender fazer recair o ónus do cumprimento de um dever seu sobre um terceiro e fazendo transparecer que não interiorizou a essencialidade desse seu dever e a gravidade da sua conduta contraditória ao mesmo.
Mas também convém sublinhar que o arguido foi também condenado pela prática de um crime de diversa natureza, o de falsificação de boletins, actas e documentos, o que manifesta que a sua renitência a um comportamento conforme ao esperado e imposto comunitariamente é mais vasta e firme, indo para além do incumprimento dos deveres fiscais legalmente exigidos Acresce que manteve uma conduta criminosa num espaço temporal prolongado que vai desde 2006 a 2011, admitindo o arguido que será ainda mais vasta a sua responsabilidade jurídico-penal por factos idênticos aos aqui em discussão, como de resto evidencia a pendência de dois processos contra o mesmo, pelo menos, um dos quais também pela prática de crimes tributários.
Foi condenado no processo n.º 602/07.4TASJM, do 4.º Juízo do Tribunal Judicial de São João da Madeira, por sentença proferida em 5 de Novembro de 2010, também pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal agravado e mesmo assim, apesar da solene advertência contida naquela sentença e independentemente do seu posterior trânsito em julgado, persistiu, poucos meses depois, em Fevereiro e Março de 2011, na prática de factos idênticos e que se encontram aqui em apreciação.
Assim, dessa proximidade temporal não resultou qualquer efeito inibidor, nem logrou o arguido interiorizar a censurabilidade das suas condutas, o que se mostra ainda mais nefasto e revelador de uma forte resolução criminosa perante a quase coincidência entre a data da referida condenação em 1.ª Instância - em 5 de Novembro de 2010 - e a do cometimento do crime de abuso de confiança fiscal aqui em julgamento, por reporte aos meses de Setembro e Outubro de 2010.
Acresce que os factos pelos quais foi condenado são todos anteriores ao início do exercício das suas funções na sociedade arguida.
No entanto, o arguido não pôs cobro à sua actividade empresarial, no âmbito da qual havia praticado dois crimes tributários, tendo optado por assumir a administração de uma sociedade comercial quando tinha sessenta e nove anos, para aí repetir o mesmo tipo de comportamento criminoso.
Com tanto, vincou a sua insensibilidade a valores básicos da vida em comunidade, com prejuízo relevante para todos, em benefício de poucos, nomeadamente o arguido e a sociedade arguida.
Não obstante, parece ainda menorizar esse facto, relegando-o para segundo lugar, denotando pretender legitimar uma conduta, que sabia proibida com a satisfação prioritária dos compromissos para com os seus trabalhadores, que refere não ter prejudicado.
Ademais, como se disse, o próprio arguido reconhece que a sua situação jurídico penal relacionada com factos idênticos é ainda mais lata, tendo, pelo menos, dois processos pendentes em Tribunal, num dos quais foi recentemente pronunciado pela prática em autoria material e concurso efectivo, de 1 crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, e de 1 (um) crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada.
Não obstante tudo isso e parecendo ter rapidamente esquecido as lições que deveriam ter resultado do passado de uma outra empresa que geriu e a que deu continuidade através da “C…, S.A.”, apenas em 16 de Julho de 2012, ou seja, mais de um ano depois do período relativo a Março de 2011, terminus da actividade criminosa aqui em juízo, e após ter prejudicado o Estado em quantia não despicienda, esta última sociedade é também declarada insolvente, ainda sob a sua administração, à semelhança do que sucedeu também com a “I…, Lda.”.
Em resumo, o percurso que o arguido assumiu pelo menos desde 2006 leva-nos a crer que faz da prática de ilícitos penais, com particular incidência na sua vertente tributária, uma forma própria e típica de exercício das sua funções de representante legal de uma sociedade comercial, colmatando as lacunas na estrutura financeira da empresa com a indevida apropriação de recursos que pertencem a todos os cidadãos.
Neste quadro, sobrelevam as exigências de prevenção geral positiva, numa comunidade em que se banalizaram os crimes fiscais, até pela dimensão do tecido empresarial de São João da Madeira, e num contexto de crise generalizada em que, do prisma governativo, se visa atalhar a evasão fiscal, enquanto prática nefasta que é ao bem comum.
Torna-se, pois, imperioso transmitir a validade da norma jurídica repetidamente violada pelo arguido, dando efectividade à tutela do bem jurídico protegido, que aquele menosprezou com toda a sua conduta.
E de tudo assim posto flui que a suspensão na sua execução da pena de prisão não salvaguarda de forma suficiente e adequada as elevadas exigências de prevenção geral que o caso requer.
No que contende com as prementes exigências de prevenção especial também retratadas em tudo quanto vimos a expor, existem factores que, pelo menos, em aparência e em situações de normalidade, reduzem o risco de repetição da actividade criminosa, pelo menos, no que respeita aos ilícitos fiscais.
Referimo-nos essencialmente ao facto de a sociedade arguida ter sido declarada insolvente, ao de o arguido ter actualmente setenta e três anos e, finalmente, ao de se encontrar a cumprir a pena de três anos de prisão, as únicas circunstâncias que poderão assumir de alguma novidade no percurso criminoso do arguido.
No entanto, tais factores não nos permitem, ainda assim, prognosticar que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizem de forma adequada e suficiente o intuito de interiorização da validade e valia da norma violada, subjacente às exigências de prevenção especial.
Para tanto basta atentar no passado criminal de B…, marcado ainda pela prática de outro ilícito que não de natureza fiscal, a postura adoptada pelo mesmo no presente julgamento, procurando desresponsabilizar-se relativamente aos factos em discussão, atribuindo a terceiros o incumprimento de deveres cuja obediência lhe incumbia a ele assegurar, e praticamente legitimar a sua conduta com o pagamento das obrigações para com os trabalhadores, relativizando sempre o prejuízo causado ao Estado; acresce a marca que o próprio deixou traçada no seu percurso empresarial, pelo menos de 2006 até 2011, levando as empresas que administrou à insolvência, e pelo caminho, reiterando a sua actividade criminosa.
Ante este quadro, não podemos senão concluir pela necessidade da pena de prisão, como sendo a única capaz de fazer o arguido ponderar de forma séria a gravidade da sua conduta, e por outro lado, dar satisfação às exigências de prevenção geral positiva que o caso requer, conferindo efectiva tutela ao bem jurídico protegido com a incriminação.
Como assim e face a tudo o exposto, não se substitui a pena de prisão em que vai o arguido condenado, devendo ser cumprida como efectiva.”
Face ao supra exposto, só podemos concordar com a opção do tribunal, por consideramos que só uma pena de prisão efectiva é adequada a salvaguardar as expectativas da comunidade na vigência e validade da norma violada e a fazer frente às exigências de socialização que o caso denota.
Muito embora a idade do arguido, seja um elemento relevante, e não se ignorem as dificuldades financeiras da empresa dadas como provadas, a ilicitude da conduta revela-se muito elevada e por outro lado o arguido revelou ao longo do tempo grande persistência no desígnio criminoso. Na verdade, o arguido cometeu parte dos factos após anterior condenação em pena suspensa aplicada por crime da mesma natureza, e não demonstrou qualquer atitude reveladora da interiorização da negatividade da sua conduta, tendo sofrido já outra condenação em pena efectiva, que actualmente cumpre por factos anteriores aos cometidos nestes autos - sem prejuízo do competente cúmulo jurídico que deva ser realizado - extendendo-se a sua actividade delituosa por largo período de tempo.
Também as exigências de prevenção geral “sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.” [14] pelas quais se limita sempre o valor da socialização em liberdade que preside ao instituto da suspensão se revelam muito elevadas no caso dos autos. A comunidade dificilmente compreenderia que alguém que persiste na prática factos como os que o arguido praticou fosse punido com pena não detentiva da liberdade.
Por tudo o que ficou dito, face à personalidade do arguido revelada na execução do crime e ausência de juízo critico, e perante as elevadas necessidades de prevenção especial e geral que se verificam no caso, consideramos que a simples censura do facto e a ameaça da pena ainda que sujeita a regime de prova, não é adequado à satisfação das finalidades da punição.
Improcede pois o recurso.
*
*
III – DISPOSITIVO:
Nos termos apontados, acordam os juízes desta Relação em:
Negar provimento aos recursos interlocutórios interpostos pelo arguido B…;
Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido da sentença, ainda que com as alterações à matéria de facto supra referidas.
Custas pelo recorrente fixando a taxa de justiça em 5 UC.

Porto, 9/7/2014
Lígia Figueiredo
Neto de Moura
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[1] Acedido in DGSI.pt (relator Pereira Madeira).
[2] Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, Editorial Verbo 2000, pág.86.
[3] Manuel Lopes Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, Anotado, Legislação complementar, Almedina, Coimbra 2009, pág. 781.
[4] Ac RP de 12/2/2014, proferido no proc.93/08.2GASJP.P1, (relator Neto de Moura)
[5] Ac. STJ de 26/1/2000, prof. No processo nº99P748, Cons. Pires Salpico.
[6] Proferido no processo nº197/07, 9ª secção (relator Carlos Benido) citado no ac. de 12/5/2007 da Relação do Porto, proc.OTRP000400822 relatado por Artur Oliveira.
[7] Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário- Sobre as responsabilidades das sociedades e dos seus administradores conexas com o crime tributário. Universidade católica editora Lisboa 2009. pág. 244.
[8] Cf. Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, Almedina, 2ª edição, Cadernos IDEFF págs. 179 e 187.
[9] Cf. «Notas sobre o Regime Geral das Infracções Tributárias» Direito e Justiça, vol.XV, tomo 2, 2001, pág. 67
[10] Isabel Marques da Silva – ob. cit. pág.177.
[11] Como refere o Prof. Américo Taipa de Carvalho, “tanto o desvalor de acção como o desvalor de resultado pertencem ao ilícito, são componentes do ilícito.” Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais Teoria Geral do Crime, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008 pág. 259.
[12] In Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, AEQUITAS EDITORIAL NOTICIAS, pág. 342,343,
[13] Cfr. Hans- Heinrich Jescheck, Trado de Derecho Penal, Parte General , 4ª edição Editorial Gomares Granada- pág. 760.
[14] Prof. Figueiredo Dias, ob.cit. pág.344