Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2799/11.0TBVLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
PRESCRIÇÃO
OPONIBILIDADE
Nº do Documento: RP201609122799/11.0TBVLG.P1
Data do Acordão: 09/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 631, FLS 253-262)
Área Temática: .
Sumário: I - O Fundo de Garantia Automóvel assume um cariz eminentemente social e intervém na qualidade de mero garante do cumprimento da obrigação indemnizatória do lesante ao lesado. Não é um devedor. Caracteriza-o uma posição de independência face às regras da responsabilidade civil, advindo a sua intervenção da falta de contrato de seguro válido e eficaz ou do desconhecimento da existência de um contrato de seguro por ser desconhecido o responsável civil.
II - O Fundo de Garantia Automóvel figura como terceiro com direito a ser reembolsado pelo devedor principal com base no instituto da sub-rogação, mas não intervém munido de um interesse próprio, seja para evitar a perda ou a diminuição de um direito que lhe pertença, seja para acautelar a consistência económica do seu direito.
III - A invocação da prescrição do direito do lesado contra o responsável civil deduzida pelo Fundo de Garantia Automóvel não é oponível ao lesado, por não figurar como terceiro com legitimo interesse na declaração, para os efeitos do art. 305º/1 CC, nem aproveita ao responsável civil que renunciou tacitamente à exceção.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Fundo-prescrição2799/11.0TBVLG.P1
Comarca do Porto
Valongo-Inst Local-Sç-J1
Proc. 2799/11.0TBVLG.P1
Proc. 545/16(1)-TRP
Recorrente: B… e mulher C…
Recorrido: Fundo de Garantia Automóvel e Herança Jacente de D…
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto[1] (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
Na presente ação que segue a forma de processo sumário em que figuram como:
- AUTORES: B…, contribuinte fiscal n.º ………, beneficiário da segurança social n.º ……….; e C…, contribuinte fiscal n.º ………, beneficiária da segurança social n.º ………., casados entre si e residentes na Rua …, n.º …, …, Marco de Canaveses;
- RÉUS: Fundo de Garantia Automóvel, com sede na Avenida …, n.º .., Lisboa; e Herança Jacente de D…, representada por E…, residente na Rua …, n.º .., Valongo pedem os Autores a condenação dos réus no pagamento da quantia de € 9.250,00 ao autor e € 13.250,00, à autora.
Alegam para o efeito e em síntese que no dia 14-03-2006, pelas 17 horas e 20 minutos, ao km ….. da A…, no sentido …/… ocorreu um acidente de viação traduzido no embate entre os veículos automóveis com as matrículas ..-...-VR, conduzido pelo autor e XI-..-..., conduzido por D… que faleceu no acidente.
Imputam a culpa na produção do sinistro ao condutor do XI que embateu contra o VR porquanto se encontrava a circular em contra mão no sentido …/…, não tendo o VR, apesar de ter tentado, logrado desviar-se daquele.
Mais referem que em virtude da colisão sofreram os danos patrimoniais e não patrimoniais cuja indemnização peticionam.
Por fim referem que demandam a herança jacente porquanto o condutor do XI faleceu em virtude do sinistro em apreço tendo, para o efeito, feito a habilitação legitimidade e demandam o Fundo de Garantia Automóvel porquanto à data do acidente inexistia seguro quanto ao XI.
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Citados os réus, contestou o réu Fundo de Garantia Automóvel.
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Na contestação defende-se por exceção e por impugnação.
Invoca a prescrição, com fundamento no art. 305º/1 CC, do direito dos Autores, porque na data em que foi instaurada a ação tinham decorrido mais de 3 e 5 anos sobre a data em que ocorreu o acidente, tendo presente o regime do art. 498º CC.
Defende-se por impugnação quanto aos danos enunciados pelos autores.
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Os autores pronunciaram-se quanto à invoca exceção de prescrição, alegando que foram notificados do teor do despacho de arquivamento proferido no âmbito do processo n.º 112/06.7GNPRT, que correu termos pelos Serviços do Ministério Público de Valongo em data posterior a 20-07-2011 e que a factualidade alegada em sede de petição inicial consubstancia um ilícito subsumível ao disposto no n.º 3 do artigo 498.º, do Código Civil, pugnando pela improcedência da exceção.
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Em sede de despacho saneador, foi relegada a apreciação da suscitada exceção para final.
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Realizou-se a audiência final, com observância de todos os formalismos legais.
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Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:
“A) – Julgo procedente por provada a exceção perentória de prescrição invocada e, em consequência, absolvo os réus Fundo de Garantia Automóvel e Herança Jacente de D…, dos pedidos contra eles formulado pelos autores B… e C….
B) – Condenar os autores no pagamento das custas, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil, pois ficaram vencidos”.
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Os Autores vieram interpor recurso da sentença.
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Nas alegações que apresentaram os apelantes formularam as seguintes conclusões:
1ª A douta sentença deve ser alterada por não existir prescrição do direito. Por outro lado, mesma que dessa forma se não entenda, não tendo a Ré Herança Jacente de D… alegado a prescrição, não devia ter sido absolvida, uma vez que não deverá beneficiar da alegação por parte do Réu FGA.
2º Tendo em conta a factualidade apurada, poder-se-á dizer que o condutor do XI praticou, em abstrato, os seguintes crimes: crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291º, nº 1, als. a) e b) do Código Penal e crime de dano com violência, p. e p. nos art.º 214, do Código Penal;
3º O Tribunal a quo andou bem ao aplicar à situação dos autos o art. 498º, nº 3, do CC; todavia, subsumiu a conduta do condutor do XI à previsão do art. 148º do C.P. e, por consequência, aplicou o prazo de prescrição de 5 anos previsto no art. 118º, nº 1, al. c) do mesmo código.
4º Ora, com o devido respeito, a atuação do condutor do XI – condução em contra mão na autoestrada – e os danos provocados nos AA., designadamente na A. C… (ficou a padecer de IPP de 4 pontos e, por força do acidente, deixou de trabalhar – cfr. Matéria provada e relatório médico) levam a que o tribunal devesse subsumir tal conduta aos crimes acima referidos, nomeadamente ao crime de dano com violência p. e p. pelo art. 214º do Código Penal.
5º O condutor do XI acabou por falecer e, por isso, não correu processo-crime contra ele, todavia, em abstrato, a sua conduta é subsumível ao crime acima referido, sendo a pena abstrata máxima de 8 anos.
6º Assim, deveria o Tribunal a quo ter aplicado o art. 118º, nº 1, al. b) do C.P. e, por via disso, aplicado ao presente caso o prazo prescricional de 10 anos.
7º Os AA. não replicaram com a fundamentação acima referida, contudo tal alegação consubstancia matéria de Direito e o Tribunal conhece o Direito – Iura novit curia – não estando confinado às alegações das partes. Aos AA. cabe a alegação dos factos - Princípio narra mihi factum dabo tibi jus.
8º Deveria o Tribunal a quo ter aplicado ao caso sub judice o prazo previsto no art. 118º, nº 1, al. b) do CP, ex vi art. 498, nº 3, do CC.
9º Mesmo que se entendesse que a exceção da prescrição deveria proceder, não poderia a Ré Herança Jacente ser absolvida, pois esta não a alegou.
10º A prescrição de direitos não é de conhecimento oficioso, sendo necessário, para que o tribunal dela conheça, a sua invocação pela parte que dela queira beneficiar – art. 303º do C.C. e 496º do C.P.C.
Terminam por pedir que a substituição da sentença por outra que condene nos termos supra expostos o Fundo de Garantia Automóvel ou, a assim se não entender - o que se não concede, a Recorrida Herança Jacente.
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O Réu Fundo de Garantia Automóvel veio apresentar resposta ao recurso onde, em síntese, refere que a sentença não merece censura, porque os factos provados configuram em abstrato, ao crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 3, por referência ao disposto no artigo 144.º al. a), ambos do Código Penal, com a inerente aplicação do prazo prescricional de 5 anos, nos termos do artigo 118.º n.º 1 al. c) do Código Penal.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- a prescrição do direito dos Autores invocada pelo Fundo de Garantia Automóvel aproveita aos responsáveis civis, que não apresentaram contestação;
- prazo de prescrição.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
1 – No dia 14 de março de 2006, cerca das 17 horas e 20 minutos, ao km ..,… da Autoestrada A…, em …, …, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes:
- o veículo automóvel com a matrícula ..-..-VR, conduzido pelo autor B… e onde seguia a autora C… e
- o veículo automóvel com a matrícula XI-…-.., conduzido por D….
2 – O VR seguia na A…, sentido … - …, pela faixa de rodagem da esquerda, a uma velocidade de 115 km/hora.
3 – O XI entrou na A…, em contra mão, circulando pela via destinada ao trânsito de sentido inverso àquele que pretendia seguir (… - ….).
4 – Ao aperceber-se que o XI circulava em contra mão, o autor tentou desviar o VR para a direita, mas foi-lhe impossível evitar o embate.
5 – Após, o autor foi transportado para o Hospital F…, em …, em virtude de traumatismos nos membros inferiores onde e realizou exames radiográficos.
6 – Como consequência do sinistro, o autor não evidencia sequelas psicopatológicas que justifiquem a atribuição de qualquer valorização.
7 – Após o acidente, a autora foi transportada para o Hospital F…, em …, onde lhe foi diagnosticado politraumatismo, com contusão da mão esquerda, joelho e pé esquerdo tendo após ter sido observada e de realizar diversos exames radiográficos.
8 – A autora foi seguida pelos serviços clínicos da sua seguradora de acidentes de trabalho.
9 – Durante cerca de um mês efetuou tratamentos de fisioterapia.
10 – A autora sofreu dores nos dias a seguir ao sinistro e com os tratamentos a que teve que ser sujeita.
11 – Teve que deixar de trabalhar.
12 – Passou a viajar menos devido ao medo que sente.
13 – Em virtude do acidente a autora ficou a padecer de fobia específica.
14 – Evidencia ligeira repercussão na autonomia pessoal, social e profissional, a que corresponde de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades uma valorização de 4 pontos.
15 – À data do acidente a autora trabalhava para a G…, Lda. e auferia uma retribuição de € 1.500,00.
16 – O autor nasceu no dia 4 de abril de 1945 e a autora no dia 6 de outubro de 1945.
17 – A responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação rodoviária do XI não estava transferida para nenhuma seguradora.
18 – A notícia pela GNR- BT da ocorrência do sinistro referido em 1, em virtude do qual resultou a morte de D…, deu origem ao processo de inquérito n.º 112/06.7GNPRT, que correu termos pelos Serviços do Ministério Público de Valongo, porquanto tal facto integrava, em abstrato, a prática de um crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo artigo 137.º, do Código Penal.
19 – Em 12-02-2007 foi proferido despacho de arquivamento, donde consta que “Da prova produzida, resulta como assente que não houve interferência culposa de terceiro no sinistro que resultou no óbito do D….
Provou-se, outrossim, com base nos elementos de prova supra elencados, ter sido o malogrado D… quem depois de entrar na Autoestrada A… em … e no sentido …-…, inverteu o sentido de marcha, em plena faixa de rodagem, circulando em contramão alguns quilómetros até embater, no quilómetro 19.930 daquela via, contra o veículo ..-...-VR, que seguia pela faixa mais à esquerda, atento o seu sentido.
Do conjunto da prova realizada, com destaque para o depoimento dos condutores intervenientes e da testemunha que seguia como passageiro no veículo ..-..-VR, resulta que o embate ficou-se a dever exclusivamente à atuação do falecido, que circulava em contra mão na autoestrada, pela faixa mais à esquerda, não existindo qualquer indício de que os demais intervenientes ou qualquer terceiro tenha cometido alguma infração estradal causal do evento fatal.(…)
Assim sendo, (…) terá o procedimento criminal de findar por falta de indícios suficientes. (…) Nessa conformidade, ao abrigo do preceituado no artigo 277º n.º 2 do Código de Processo Penal, determino o natural e consequente arquivamento dos autos.”.
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Factos não provados
Com relevância para a decisão da causa, não ficaram por provar quaisquer factos que estejam em contradição com os anteriormente elencados e, designadamente não se provou que:
A) – Por causa do acidente, o autor passou a ser seguido pelo médico de família durante cerca de um ano.
B) – Em virtude do sinistro ficou com as seguintes sequelas:
- síndrome fóbico pós-traumático;
- dores residuais em ambos os tornozelos, nos pés e no joelho esquerdo;
- dores residuais na mão direita e braço esquerdo;
C) – Como sequelas lesionais – no membro superior direito - traumatismo da mão; no membro superior esquerdo – traumatismo do braço; no membro inferior direito – contusão do tornozelo e pé e no membro inferior esquerdo – contusão do joelho, tornozelo e pé.
D) – Em matéria de sequelas funcionais – no que respeita e cognição e afetividade – o autora apresenta perturbação fóbica relativa à condução (medo de conduzir) nomeadamente nas auto estradas (síndrome fóbico pós-traumático) e em sede de fenómenos dolorosos – apresenta dores residuais em ambos os tornozelos, pés e joelho esquerdo.
E) – Ficou com dificuldade em subir e descer escadas, em caminhar por períodos prolongados, em pegar e transportar objetos pesados.
F) – Com fobia na condução, nomeadamente em auto estrada,
G) – Apresenta acentuada limitação no exercício das suas várias atividades, pelas dores residuais em ambos os tornozelos, pés e joelho esquerdo e pela fobia da condução – (síndrome fóbico pós-traumático).
H) – Em consequência disso resultou para o autor:
- um período de incapacidade temporária parcial geral de 120 dias;
- um período de incapacidade absoluta profissional de 150 dias;
- um “quantum doloris de grau 03;
- uma incapacidade permanente profissional de 5%.
I) – Sofreu dores intensas nos dias a seguir ao sinistro e com os tratamentos a que teve que ser sujeito.
J) – Viu-se forçado a deixar de trabalhar, de dançar, de efetuar caminhadas pedestres, o que fazia com regularidade e prazer.
K) – Em deslocações, medicamentos e consultas despendeu € 250,00.
L) – O medo de conduzir fez com que passasse a viajar muito menos, o que lhe provocou, e continua a provocar, angústia e diminuiu e diminui, a sua qualidade de vida e o seu sentido de auto estima.
M) – Em virtude do acidente a autora ficou a padecer de:
- síndrome fóbico pós-traumático;
- dores residuais no dedo polegar da mão esquerda e joelho esquerdo;
- dores residuais no membro superior direito;
- cicatriz linear, de direção transversal, de 04 cm de comprimento localizada na face anterior do joelho esquerdo;
- dores residuais no membro superior direito;
- contusão da mão;
- contusão do joelho;
- perturbação fóbica relativa a viajar em qualquer veículo, nomeadamente nas autoestrada;
- dores residuais no dedo polegar da mão esquerda e joelho esquerdo.
- dificuldade em subir e descer escadas, efetuar as tarefas domésticas mais pesada, confecionar refeições, em pegar e transportar compras do supermercado e outros objetos pesados;
Mesmo viajando com outras pessoas a conduzir, que não o seu marido, a autora vai sempre numa situação de ansiedade;
- está limitada no exercício das suas atividades, pelas dores residuais no dedo polegar da mão esquerda e joelho esquerdo, que a afeta muito nas suas tarefas domésticas.
N) – Em virtude do sinistro resultou para a autora:
- um período de incapacidade temporária absoluta geral de 30 dias;
- um período de incapacidade temporária geral de 413 dias;
- um período de incapacidade temporária absoluta profissional de 90 dias;
- um período de incapacidade temporária parcial profissional de 353 dias;
- um “quantum doloris” de grau 3;
- uma incapacidade permanente profissional de 5%.
O) – Teve que deixar de dançar e de efetuar caminhadas pedestres, o que fazia cabo com regularidade e prazer.
P) – Esta situação provocou-lhe e continua a provocar, muita angústia e que diminuiu, e diminui, a sua qualidade de vida e o seu sentido de autoestima.
Q) – A autora despendeu em deslocações, medicamentos e consultas, a quantia de € 250,00.
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A restante matéria constante dos articulados não foi considerada, por não ser relevante para a decisão da causa, por ser conclusiva ou por se tratar de matéria de direito.
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3. O direito
- A prescrição do direito dos Autores invocada pelo Fundo de Garantia Automóvel aproveita aos responsáveis civis, que não apresentaram contestação
Nas conclusões de recurso sob os pontos 1, 9 e 10 insurgem-se os apelantes contra o segmento da sentença que reconheceu que a defesa do réu Fundo de Garantia Automóvel aproveita aos responsáveis civis e julgou extinto o direito dos autores por prescrição.
Nos termos do art. 298º CC ficam sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição. Assim, como regra, todos os direitos estão sujeitos a prescrição.
A prescrição tem por fundamento específico a recusa de proteção a um comportamento contrário ao direito, a negligência do titular e ainda, a necessidade de obviar, em face do decurso do tempo, à dificuldade de prova por parte do sujeito passivo da relação jurídica.
O prazo de prescrição destina-se a servir a segurança e certeza da ordem jurídica, pondo-se assim termo a situações contrárias ao direito e à prejudicial ou perturbante dilação do seu exercício[2].
A prescrição pode definir-se como a extinção dos direitos em consequência do seu não exercício durante certo lapso de tempo e daqui decorre que completada a prescrição, o beneficiário tem a faculdade de recusar o cumprimento da obrigação ou de se opor ao exercício do direito prescrito (art. 304º CC )[3].
Contudo, a prescrição para ser eficaz necessita de ser invocada, por aquele a quem aproveita ou seu representante e tratanto-se de incapaz, pelo Ministério Público, não sendo pois de conhecimento oficioso – art. 303º CC. Se tiver decorrido o prazo de prescrição e não sendo suscitada, mantém-se o devedor adstrito ao cumprimento.
Nos termos do art. 305º/1 CC a prescrição é invocável pelos credores e por terceiros com legítimo interesse na sua declaração, ainda que o devedor a ela tenha renunciado.
Como determina o art. 302º/1/2 CC a renúncia à prescrição só é admitida depois de haver decorrido o prazo prescricional e pode ser tácita ou expressa, conferindo a lei legitimidade para renunciar a quem puder dispor do benefício que a prescrição tenha criado.
Na sentença considerou-se que a invocação da prescrição do direito dos Autores contra o corréu, responsável civil, pelo réu Fundo de Garantia Automóvel aproveita aos responsáveis civis que não se apresentaram a contestar. Apoia-se a sentença em jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto – Ac. 06 de novembro de 2008, Proc. 0834107, disponível em www.dgsi.pt -, sendo de referir que a posição defendida neste aresto, já tinha sido acolhida no Ac. STJ 27 de maio de 2004, Proc. 04B1328, também disponível em www.dgsi.pt.
Na apreciação da questão cumpre ter presente desde logo que só se pode afirmar que a exceção de prescrição suscitada pelo Fundo de Garantia Automóvel aproveita ao responsável civil se se reconhecer que assiste ao Fundo de Garantia Automóvel o direito à defesa nesses moldes. O Fundo de Garantia Automóvel veio suscitar a prescrição, com fundamento no art. 305º CC invocando a qualidade de terceiro.
Consideramos, assim, que na questão colocada está contemplada ainda, aquela outra que é prévia e consiste em saber se o Fundo de Garantia Automóvel, atenta a função social que justifica a sua criação, no confronto com o lesado, e assumindo a posição de garante do direito perante o lesado, pode suscitar a exceção de prescrição, quando os responsáveis civis não o fizeram renunciando tacitamente a essa faculdade.
Entendemos ser esta a questão nuclear a apreciar no recurso, cuja decisão pode prejudicar as demais e apesar de não ter sido apreciada na sentença, nada impede o seu conhecimento em via de recurso, por se tratar de uma questão de direito e ter como único fundamento verificar dos pressupostos da exceção de prescrição.
Adiantando soluções, consideramos que o Fundo de Garantia Automóvel no confronto com o lesado não pode suscitar a prescrição do direito, quando o responsável civil não apresenta defesa renunciando tacitamente à exceção, por não se verificar qualquer das hipóteses previstas no art. 305º/1 CC. O Fundo de Garantia Automóvel não assume a qualidade de credor, para os efeitos do art. 305º/1/2 CC e constituindo-se como garante da obrigação perante o lesado, não tem um interesse próprio em invocar a exceção, quando além do mais cumprindo a obrigação fica sub - rogado nos direitos do lesado, transmitindo-se assim para o Fundo a posição do lesado, pelo que não figura como terceiro com legítimo interesse na declaração da prescrição.
A este respeito acolhemos os argumentos expostos no Ac. STJ 12 de maio de 2016, Proc. 6147/12.3TBVFR-A.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, que fazemos nossos e passamos a reproduzir:
“[…] o réu Fundo de Garantia Automóvel suscit[ou] a prescrição do direito do autor contra o seu corréu e obrigado civil com fundamento no disposto no artigo 305º do Código Civil.
Este normativo permite aos credores e aos terceiros com legítimo interesse na declaração da prescrição invocá-la, ainda que o seu beneficiário a ela tenha renunciado, muito embora, neste caso, a lei exija, quanto aos credores, a demonstração dos requisitos da impugnação pauliana.
O Fundo de Garantia Automóvel não detém a qualidade de credor do autor.
Arroga-se, contudo, a qualidade de terceiro com legítimo interesse na declaração da prescrição, alegando, em suma, que, enquanto garante da satisfação da obrigação de indemnizar o lesado – o autor – em consequência de acidente de viação, se encontra em posição equiparada à do fiador, sendo-lhe lícito opor ao autor, além dos meios de defesa que lhe são próprios, também os que competem ao obrigado civil, designadamente a prescrição, em conformidade com o comando legal inserto no artigo 637º do Código Civil.
Não constitui tarefa fácil definir o conceito de terceiro com legítimo interesse na declaração da prescrição, referindo Rodrigues Bastos (Das Relações Jurídicas Segundo o Código Civil de 1966, IV, 1969, p.109), a propósito da renúncia à prescrição, que os terceiros interessados, que não os credores, podem invocá-la, sem necessidade de impugnação da renúncia do devedor, “pois tal direito de alegar a prescrição resulta da circunstância de a renúncia não poder prejudicá-los, por terem um direito próprio, que o devedor não pode eliminar ou diminuir».
Refere o mesmo autor que «Os terceiros, diferentes dos credores, que podem ter interesse em opor a prescrição, são, nomeadamente, o terceiro que constituiu hipoteca para garantia da obrigação (opõe a prescrição do crédito garantido pela hipoteca), o fiador (opõe a prescrição do crédito garantido por fiança), o vendedor obrigado a garantia pela evicção (opõe a prescrição – ou não-uso – do direito real sobre a coisa vendida), o sub adquirente do que adquiriu por negócio jurídico anulável (opõe ao terceiro a prescrição da ação de anulação) ”.
A criação do Fundo de Garantia Automóvel resultou do cumprimento dos princípios contidos na 2ª Diretiva do Conselho de 30 de dezembro de 1983 (84/5/CEE) e teve por finalidade garantir que a vítima de acidente de viação não deixará de ser indemnizada no caso de o veículo causador do sinistro não estar seguro ou não ser identificado, organismo a quem o lesado poderá dirigir-se, direta e prioritariamente, sem prejuízo das disposições aplicadas pelos Estados-membros relativamente à natureza, subsidiária ou não, da sua intervenção e, bem assim, das normas aplicáveis em matéria de sub-rogação (artigo 1º n.º 4).
No nosso ordenamento jurídico o Fundo de Garantia Automóvel assume um cariz eminentemente social e intervém na qualidade de mero garante do cumprimento da obrigação indemnizatória do lesante ao lesado. Não é um devedor. Caracteriza-o uma posição de independência face às regras da responsabilidade civil, advindo a sua intervenção da falta de contrato de seguro válido e eficaz ou do desconhecimento da existência de um contrato de seguro por ser desconhecido o responsável civil.
O Fundo atua como mero garante subsidiário. Como observa Filipe Albuquerque Matos (“O Fundo de Garantia Automóvel. Um organismo com uma vocação eminentemente social”, Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Carvalho Fernandes, Vol. I, Universidade Católica Editora, 2011, p. 561), um corolário importante da subsidiariedade da intervenção do Fundo manifesta-se, de modo significativo, na forma como o legislador perspetiva o direito de reembolso, uma vez satisfeita a indemnização aos lesados, através da figura da sub-rogação (artigo 25º do DL nº 522/85, de 31 de dezembro).
Trata-se de um caso de sub-rogação legal ao lesado, que se traduz na transmissão do crédito de que era titular para o Fundo em consequência do cumprimento da obrigação indemnizatória do responsável principal – o obrigado civil – .
Com efeito, cabe ao Fundo, no que ora releva, garantir o cumprimento das indemnizações por morte ou lesões corporais quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido e eficaz e por lesões materiais quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie, igualmente, de seguro válido e eficaz, decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos a seguro obrigatório e que estejam matriculados em Portugal ou em países terceiros da União Europeia, (artigo 21º nº 2 do DL nº 522/85, com a redação dos DL nºs 122-A/86 e 130/94).
A função de garante subsidiário da obrigação indemnizatória devida pelo lesante à vítima de acidente de viação nas circunstâncias acabadas de enunciar e com direito a reembolso fundado na figura da sub-rogação legal constituirá a matriz para se encontrar a resposta à questão nuclear colocado na presente recurso.
Compreende-se que, em face deste estatuto, aproveite ao Fundo a extinção da obrigação dos responsáveis civis, por decisão transitada em julgado, nomeadamente em resultado da prescrição invocada com sucesso por estes, conforme doutrina do Acórdão deste Supremo Tribunal proferido em 23.09.2008 (proc. nº 08A1994, acessível em www.dgsi.pt/jstj). Como nele se escreveu “crê-se ser incontornável (…) que se o titular do direito à indemnização perdeu o direito de a exigir do responsável devedor, isto é, o direito de acionar a obrigação garantida, não se encontra fundamento para que ainda possa ser exercitado o direito consubstanciado pela obrigação de garantia (cfr. neste sentido, o ac. deste Supremo de 06/7/2004 – proc. 04B296) ”, obrigação que está condicionada pela existência, verificação e quantificação do responsável civil.
Adiantamos já que a solução inversa não é verdadeira. A argumentação de que resulta beneficiar o Fundo da prescrição ou de outra causa de extinção da obrigação do devedor principal não pode reverter em benefício da tese sustentada pelo recorrente nestes autos. De acordo com o ensinamento de Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, vol. II, reimpressão da 7ª ed., págs. 344 e 345), a lei quis restringir o benefício da sub-rogação ao pagamento efetuado por quem tenha um interesse próprio na satisfação do crédito. Afirma ainda este Ilustre Professor que “Dentro da rubrica geral do cumprimento efetuado no interesse próprio do terceiro cabem, não só os casos em que este visa evitar a perda ou limitação dum direito que lhe pertence, mas também aqueles em que o solvens apenas pretende acautelar a consistência económica do seu direito”.
Cita no primeiro caso, a título de exemplo, o sublocatário que paga a renda devida pelo locatário no intuito de obstar à caducidade da sublocação e o adquirente da coisa empenhada ou hipotecada, que cumpre pelo devedor, com o propósito de prevenir a venda e a adjudicação do penhor ou a execução do crédito hipotecário.
No segundo, refere, também a título exemplificativo, o pagamento feito por um credor preferente, a outro graduado antes dele ou o pagamento feito por um credor comum ao credor preferente, para evitar uma execução ruinosa ou inoportuna para os demais credores.
Subjacentes à criação do Fundo de Garantia Automóvel estiveram razões de proteção das vítimas da sinistralidade automóvel, que, se não fosse a sua intervenção, quedariam sem ser ressarcidas dos prejuízos sofridos nos casos de desconhecimento do obrigado civil ou de inexistência de seguro válido e eficaz.
Ao contrário do que defende, não pode afirmar-se que ao satisfazer a indemnização ao lesado como garante subsidiário seja um terceiro detentor de um interesse próprio no cumprimento dessa obrigação. É um terceiro com direito a ser reembolsado pelo devedor principal com base no instituto da sub-rogação, mas não intervém munido de um interesse próprio, seja para evitar a perda ou a diminuição de um direito que lhe pertença, seja para acautelar a consistência económica do seu direito.
E só ao terceiro titular de um direito próprio que o obrigado civil não pode eliminar ou diminuir assiste legitimidade para invocar a prescrição com fundamento no preceituado no artigo 305º do Código Civil.
Acresce que, apesar de no plano interno se configurar uma relação de solidariedade imperfeita ou imprópria entre o Fundo e o lesante, que conduz à inaplicabilidade do disposto no artigo 524º do Código Civil e ao reconhecimento de um direito ao reembolso apenas ao primeiro com base em sub-rogação legal, a verdade é que no plano externo a relação entre o Fundo de Garantia Automóvel e o obrigado civil surge sob a veste de uma solidariedade perfeita suscetível de permitir ao lesado exigir de ambos a totalidade do seu direito indemnizatório - artigos 512º e 518º do Código Civil (cfr. neste sentido o Acórdão deste Supremo Tribunal de 17.11.2005, proc. 05B061, disponível em www.dgsi.pt/jst).
A sua responsabilidade perante o lesado é solidária – não obstante o Fundo responda como garante e não com fundamento na responsabilidade civil extracontratual –, impondo a lei um litisconsórcio necessário passivo, sob pena de ilegitimidade caso um deles não seja demandado (artigo 29º nº 6 do DL nº 522/85).
Os afloramentos do princípio contido nos artigos 651º e 652º do Código Civil relativos à fiança a que se refere o já citado Acórdão deste Supremo, de 23.09.2008, no sentido de que a extinção da obrigação principal determina a extinção e consequente desoneração dos fiadores, dada a natureza acessória da garantia (fiança), não militam, in casu, em favor da tese do recorrente.
As assinaladas natureza e características da obrigação do Fundo, ainda que de garantia subsidiária se trate, não permitem ir buscar ao regime legal da fiança argumentos ou princípios a favor do entendimento de que detém a posição de terceiro com legítimo interesse na declaração da prescrição do direito do autor, nos termos do artigo 305º nº 1 do Código Civil, podendo suscitar em seu benefício a prescrição que o principal obrigado – a ré Herança Aberta por óbito de DD – não invocou”.
Esta posição foi já sustentada, ainda que não acolhendo todos os argumentos expostos, no Ac. Rel. Porto 30 de abril de 2013, Proc. 7697/10.1TBMAI-A.P1, disponível em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário:”[o] demandado FGA, enquanto devedor solidário perante o lesado, não pode invocar a prescrição quando esta se encontra interrompida relativamente a si, nem beneficiar dela quando o obrigado principal não a invocou”.
Em conclusão e retomando a concreta questão dos autos, demandados conjuntamente o Fundo de Garantia Automóvel e o responsável civil, não apresentando o responsável civil contestação, não é oponível aos Autores lesados a exceção de prescrição do direito dos lesados contra o corréu, responsável civil, suscitada pelo Fundo de Garantia Automóvel, ao abrigo do art. 305º/1 CC, por não figurar como terceiro com legítimo interesse na sua declaração e consequentemente, não podem os responsáveis civis beneficiar de tal defesa, o que conduz à improcedência da exceção suscitada pelo Fundo de Garantia Automóvel.
Julgam-se prejudicadas as demais questões colocadas na apelação (art. 608º/2, por remissão do art. 663º/2 CP ).
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pelos apelados.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e revogar a sentença, julgando improcedente a exceção de prescrição, quanto ao Fundo de Garantia Automóvel e responsável civil Herança Jacente de D… prosseguindo os autos os ulteriores termos.
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Custas a cargo dos apelados-réus.
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Porto, 12 de Setembro de 2016
(processei e revi – art. 131º/5 CPC)
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.
[2] ANIBAL DE CASTRO A Caducidade- Na Doutrina, na lei e na jurisprudência, 3ª ed., Lisboa, Petrony, 1984, pag. 29, 30.
[3] J. DIAS MARQUES, Noções Elementares de Direito Civil, 3 edição, Lisboa, Petrony, pag.108.