Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
331/17.0PBFIG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLA OLIVEIRA
Descritores: DESCONTO
PRISÃO SUBSIDIÁRIA
Nº do Documento: RP20220406331/17.0PBFIG-A.P1
Data do Acordão: 04/06/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4.ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Da actual redacção do art.º 80º do C. Penal resulta que a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.
II - Tal alteração teve por fim evitar situações em que o condenado, tendo sofrido privações de liberdade superiores à pena de prisão aplicada nesse mesmo processo não as pudesse ver “aproveitadas”/descontadas noutros processos, com o consequente cumprimento integral dessas penas de prisão, sofrendo desse modo privações de liberdade excessivas, por superiores ao adequado e necessário aos fins da pena, designadamente no que respeita às exigências de prevenção.
III - O instituto do desconto é imperativo, sendo necessariamente aplicado quando se verifiquem os respetivos pressupostos.
IV - Porque a pena que o arguido tem a cumprir é uma pena de prisão subsidiária, ao abrigo do disposto no art. 49º, nº 2, do Cód. Penal, pode a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa em que foi condenado, e, por isso, pode optar entre pagar a multa e não cumprir a pena subsidiária ou, em alternativa, cumprir esta ao invés de efetuar qualquer pagamento.
V - Se o arguido optar pelo pagamento da multa, não pode aplicar-se o instituto do desconto, de forma automática e imediata, sem que seja concedido ao condenado a faculdade prevista no art. 49º, nº 2, do Cód. Penal nos precisos termos em que a mesma se mostra estabelecida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo Comum Singular nº 331/17.0PBFIG-A.P1
Comarca Do Porto
Juízo Local Criminal de Matosinhos – J2

Acórdão deliberado em Conferência

1. Relatório
1.1 Decisão recorrida
Por despacho de 4/11/2021 foi declarado o cumprimento da pena de prisão subsidiária aplicada ao arguido AA, por desconto nos termos previstos no art. 80º, do Cód. Penal, e declarada a extinção dessa mesma pena.

1.2 Recurso
O arguido interpôs recurso invocando, em síntese, que a decisão violou o disposto no art. 80º, que nunca prestou consentimento à aplicação do referido desconto e consequente extinção da pena, decisão essa que lhe é prejudicial pois:
- foi-lhe negada a possibilidade de, ao abrigo do disposto no art. 49º, nº2, do Cód. Penal e 491ºA, do Cód. Proc. Penal, proceder ao pagamento da multa como forma de obstar ao cumprimento da pena de prisão subsidiária;
- o processo à ordem do qual se encontra em prisão preventiva (e da qual foi efetuado o mencionado desconto) encontra-se em situação de cúmulo jurídico com os presentes autos. E, ao declarar-se extinta a pena nestes autos, esse cúmulo jurídico não se poderá já realizar dada a impossibilidade do mesmo englobar penas extintas;
- com a extinção da pena não poderá beneficiar da liberdade condicional.
Termina pedindo que seja proferida decisão que revogue o despacho que declarou a extinção da pena.
O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência.
Neste Tribunal da Relação, o Procurador da República, invocou, no essencial, que o requerente dispõe de razão na parte em que se viu impedido de exercer o direito que lhe assiste, previsto nos arts. 49º, nº2 e 491ºA. do Cód. Proc. Penal, de poder a todo o tempo pagar a multa. Emitiu parecer no sentido da revogação da decisão recorrida e da sua substituição por outra que dê ao condenado a possibilidade de proceder ao pagamento antes do desconto.
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2. Questões a decidir no recurso
As questões a apreciar e a decidir são as seguintes:
- Desconto das medidas processuais privativas da liberdade no cumprimento da pena de prisão: a relevância da vontade do condenado; cúmulo jurídico com penas extintas pelo cumprimento; a liberdade condicional; o pagamento da multa como forma de evitar o cumprimento da pena de prisão subsidiária.
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3. Fundamentação
O despacho recorrido tem o seguinte teor:
“O arguido AA foi condenado, por despacho com a ref. citius 419567491, numa pena de 40 (quarenta) dias de prisão subsidiária.
O arguido está preso preventivamente à ordem do inquérito n.º 469/20.7JAVRL desde 28/05/2021 (cf. informação com a ref. citius 30340982).
O Ministério Público promoveu a extinção da pena através do instituto do desconto e a respetiva comunicação àqueles autos.
De facto, desde 28/05/2021, encontram-se já esgotados os 40 (quarenta) dias de prisão em que o arguido foi condenado. E também é certo que o artigo 80.º, n.º 1, do Código Penal, consagrando o princípio da imputação, determina o desconto dos dias de privação de liberdade no cumprimento da pena de prisão, mesmo que em processo diferente daquele em que o arguido esteve recluído.
Não se desconhece a querela acerca da competência para proferir despacho de extinção de pena privativa de liberdade – vide os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 27 de novembro de 2013, proc. nº 188/06.7PAVFR.P3; e do Tribunal da Relação de Coimbra de 24 de setembro 2013 (Processo n.º 2003/07.5PCCBR-B.C1), disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.
Destes arestos decorre que, no regime atualmente em vigor, a competência do tribunal de primeira instância onde correram os autos apenas se mantém para penas não privativas de liberdade, interpretação que resulta da ressalva contida no artigo 470.º, n.º 1, in fine, do Código de Processo Penal.
Para as penas privativas de liberdade, a competência caberá ao Tribunal de execução de Penas.
Porém, a questão que aqui se coloca é a da necessidade, ou não, de proferir despacho de extinção da pena, não podendo ver-se, aqui, um problema de conflito de competências.
Assim, por entendermos nós que o despacho de extinção da pena é necessário, desde logo para que se possa proceder à comunicação prevista art. 6.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 37/2015, de 05/05, e no intuito de não prejudicar o arguido, uma vez que este cumpriu a pena em que foi condenado, julga-se a mesma extinta no dia 06/06/2021. – cf. art. 40.º, 41.º, n.º4, e 80.º, do CP, e 475.º, CPP.
Remeta boletins à Direção dos Serviços de Identificação Civil – artigo 6.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 37/2015, de 05/05 (Lei de Identificação Criminal).
Comunique ao processo n.º 469/20.7JAVRL, que corre os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Juízo Inst. Criminal - Juiz 1.
Recolha os mandados eventualmente pendentes nos presentes autos.
Notifique.
Oportunamente, arquive.”
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3.2 – Desconto das medidas processuais privativas da liberdade no cumprimento da pena de prisão: a relevância da vontade do condenado; cúmulo jurídico com penas extintas pelo cumprimento; a liberdade condicional; o pagamento da multa como forma de evitar o cumprimento da pena de prisão subsidiária.
Conforme resulta do exposto, o arguido foi condenado nestes autos em pena de multa que não pagou. Assim, foi proferido despacho a determinar o cumprimento da prisão subsidiária correspondente, no caso, a 40 dias. Em 28/5/11, o arguido foi preso preventivamente, à ordem do proc. Nº469/20.7.JAVRL. Em 4/11/2021, sem que os mandados de detenção para cumprimento da mencionada prisão subsidiária tivessem sido executados, foi proferido o despacho aqui em causa no qual foi descontada, na pena de prisão subsidiária que o arguido tinha a cumprir, 40 dias da prisão preventiva sofrida pelo mesmo (contados desde o seu inicio) e, em consequência, foi declarada a extinção da pena.
É desta última decisão que o arguido recorre.
Invoca o arguido que, por via do desconto e consequente extinção da pena ficou prejudicado pois os presentes autos encontram-se numa relação de cúmulo jurídico com o processo no qual sofreu a medida de coação de prisão preventiva e, mostrando-se a pena extinta, a mesma não poderá integrar o cúmulo.
Não lhe assiste qualquer razão.
Com efeito, no art.78º, nº1, do Cód. Penal, na redação atual, introduzida pela Lei nº59/2007, de 4/9, desapareceu a expressão “mas antes de a respetiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta”. De tal resulta que o cúmulo jurídico que se realize por conhecimento superveniente de novo crime integra também as penas já cumpridas ou extintas pelo cumprimento. Aliás, tal como decorre, de forma clara, da parte final do nº1, do citado artigo, que estabelece: “(…) sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes.”
Também carece de fundamento o argumento usado pelo recorrente no sentido de que fica prejudicado com a efetivação do desconto, decidido no despacho recorrido, pois desse modo não pode beneficiar da liberdade condicional. É que, de acordo com o disposto no art. 61º, nº2, do Cód. Penal, é pressuposto da concessão da liberdade condicional o cumprimento de um mínimo de 6 meses de prisão, período esse consideravelmente superior ao total da pena de prisão subsidiária a cumprir pelo arguido (40 dias). Acresce ainda que, em abstrato, a efetivação do desconto não se mostra condicionada pela eventual decisão de concessão, ou não, de liberdade condicional.
Sustenta também a defesa que o arguido não deu o seu consentimento para que fosse efetuado qualquer desconto na pena de prisão em causa, nem para que a pena fosse declarada extinta.
O art. 80º, do Cód. Penal, respeita ao desconto das medidas processuais privativas da liberdade na pena de prisão em que o arguido for condenado.
Na sua redação anterior, o mencionado preceito adotava o princípio da unidade processual como pressuposto do desconto, do que resultava que o desconto na pena de prisão apenas podia ter lugar no processo onde as medidas processuais privativas de liberdade tivessem sido aplicadas.
Conforme Figueiredo Dias (“Direito Penal Português – Parte Geral – II As consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas – Editorial Notícias, 1993, pag. 297): “O instituto do desconto, regulado nos art. 80º a 82º, assenta na ideia básica segundo a qual privações de liberdade de qualquer tipo que o agente tenha já sofrido em razão do facto ou factos que integram ou deveriam integrar o objeto de um processo penal devem, por imperativos de justiça material, ser imputadas ou descontadas na pena a que, naquele processo, o agente venha a ser condenado”.
Tal regime foi alterado pela Lei nº59/2007, de 4/9, que trouxe como novidade, a possibilidade de estender o desconto a um processo distinto daquele em que se tenha verificado a aplicação das mencionadas medidas de privação da liberdade, tendo como único limite que o facto pelo qual o arguido venha a ser condenado tenha sido praticado antes da decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.
Com efeito, a atual redação do art.80º, é a seguinte: “A detenção, prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas”.
Tal alteração teve por fim evitar situações em que o condenado, tendo sofrido privações de liberdade superiores à pena de prisão aplicada nesse mesmo processo não as pudesse ver “aproveitadas”/descontadas noutros processos, com o consequente cumprimento integral dessas penas de prisão, sofrendo desse modo privações de liberdade excessivas, por superiores ao adequado e necessário aos fins da pena, designadamente no que respeita às exigências de prevenção.
Da razão de ser do instituto em causa, dos seus fundamentos, resulta ser manifesto que o desconto não se traduz numa faculdade atribuída ao arguido que pode optar por usá-la ou por a recusar. O instituto do desconto é imperativo, sendo necessariamente aplicado quando se verifiquem os respetivos pressupostos.
Assim, carece o recorrente de razão ao invocar que não deu o seu consentimento à aplicação do desconto. E o mesmo se diga da extinção da pena a qual também tem de ser declarada, independentemente da vontade do condenado, sempre que se verifiquem os seus pressupostos.
Porém, verifica-se que – e tal como também é alegado pelo recorrente – a pena que o arguido tem a cumprir trata-se de uma prisão subsidiária. E, nesta, ao abrigo do disposto no art. 49º, nº2, do Cód. Penal, o condenado pode a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa em que foi condenado.
E este é um direito que assiste ao arguido e que, como tal, pode optar entre pagar a multa e não cumprir a pena subsidiária ou, em alternativa, cumprir esta ao invés de efetuar qualquer pagamento.
No caso concreto o tribunal recorrido ao efetuar o desconto na pena de prisão, sem execução dos mandados de detenção para cumprimento da pena, não tomou em consideração a existência do mencionado direito do condenado, ou seja, nunca lhe deu a possibilidade de querendo, proceder ao pagamento da multa.
E, não se diga que o arguido teve a oportunidade de proceder ao pagamento, designadamente entre o período que mediou o trânsito em julgado da sentença condenatória e o despacho que efetuou o desconto e declarou extinta a pena. É certo que teve tal oportunidade, porém a lei atribui-lhe um outro prazo além desse e que é exatamente o que se mostra previsto no indicado art. 49º, nº2, do Cód. Penal. Este prazo inicia-se no momento da execução do mandado para cumprimento da pena de prisão subsidiária e termina no último dia do cumprimento da pena – é o que decorre claramente da conjugação do citado preceito legal com o disposto no art. 491ºA, do Cód. Proc. Penal, sendo que este último prevê expressamente a possibilidade do condenado pagar a pena de multa junto da entidade policial ou no próprio estabelecimento prisional onde o condenado se encontra.
E, o facto do arguido à data se encontrar preso, em situação de prisão preventiva, não obstava nem ao cumprimento da pena nem a que tal direito lhe fosse conferido, bastando para tanto que fossem solicitados os competentes mandados de desligamento do processo à ordem do qual se encontrava e de ligamento à ordem dos presentes autos, para cumprimento da prisão subsidiária. Efetuado o ligamento a estes autos o arguido teria, a partir dessem momento e até ao termo do cumprimento da pena a possibilidade de proceder ao pagamento da multa – já que a lei fala em pagamento total ou parcial sem estabelecimento de qualquer limite temporal.
Não subsistem assim dúvidas de que, nesta parte, assiste razão ao recorrente.
Ao não lhe ser dada a possibilidade – legal e que, repete-se, constitui um direito que lhe assiste – de proceder ao pagamento da multa o condenado viu-se prejudicado. Basta para tanto pensar que, numa eventual futura condenação em pena de prisão, no processo à ordem do qual se encontra em prisão preventiva, não poderá já descontar os 40 dias de privação de liberdade que viu descontados nestes autos. E, aqui, ao contrário do que acontecerá nessa situação, poderia pagar a multa, evitando o cumprimento desses dias de prisão.
E, aquilo que aqui se diz não põe em causa o também já explanado a propósito do instituto do desconto, designadamente da sua natureza imperativa e independente da vontade do condenado.
Na verdade, na interpretação e aplicação da lei não deve o decisor cingir-se à sua letra, devendo reconstruir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico e as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. É o que decorre do art. 9º, do Cód. Civil.
No caso concreto não temos dúvidas que o legislador pretendeu reduzir ao mínimo as prisões subsidiárias – por não corresponderem a uma real necessidade do fim da pena mas sobretudo a uma necessidade de assegurar a eficácia e respeito do sistema e das decisões judiciais – motivo pelo qual permite a possibilidade do seu não cumprimento, através do pagamento total ou parcial, até ao seu final. Por outro lado, pelos motivos já expostos, impõe os descontos.
Tendo em conta a unidade do sistema, a sua harmonização e as razões subjacentes à criação da ambas as normas, afigura-se que nos casos em que a pena de prisão a cumprir é subsidiária, o instituto do desconto não lhe pode ser aplicado de forma automática e imediata, sem que seja concedido ao condenado a faculdade prevista no art. 49º, nº2, do Cód. Penal e nos precisos termos em que a mesma se mostra estabelecida. Tal significa, na prática, que nessas situações nunca se aplicará o desconto pois ou o arguido paga a multa – deixando de subsistir a prisão subsidiária - ou, não a pagando e como o pode fazer até ao termo do cumprimento, acabará por cumprir essa pena por completo. Porém tal não significa a inutilidade ou ineficácia deste instituto já que os períodos de tempo de privação de liberdade sofridos pelo condenado serão descontados, na eventualidade de condenação em pena de prisão, ou no próprio processo onde foram aplicadas as medidas respetivas ou num outro em que se verifiquem os pressupostos legais. E, caso tal não se mostre possível, nenhum mal daí advém. É o que, embora indesejável, ocorre em muitas situações.
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4 - DECISÃO
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso interposto e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido determinando-se que ele seja substituído por outro que permita ao condenado o exercício da faculdade prevista no art. 49º, nº2, do Cód. Penal.

Sem tributação.
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Porto, 6 de Abril de 2022
Carla Oliveira
José Piedade