Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
173/19.9IDPRT-AD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE LANGWEG
Descritores: APREENSÃO
LEVANTAMENTO
RESERVA DE PROPRIEDADE
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RP20211028173/19.9IDPRT-AD.P1
Data do Acordão: 10/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Mesmo existindo uma reserva de propriedade a favor de uma instituição financeira, o titular registral de um veículo automóvel beneficia de um verdadeiro direito absoluto semelhante à propriedade, tendo legitimidade para requerer o levantamento da sua apreensão e consequente restituição (artigos 178º, nº 7 e 186º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal).

(Sumário elaborado pelo Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 173/19.9IDPRT-AD.P1P1
Data do acórdão: 28 de Outubro de 2021
Desembargador relator: Jorge M. Langweg
Desembargadora adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Instrução Criminal do Porto

Sumário:
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Acordam os juízes acima identificados do Tribunal da Relação do Porto

Nos presentes autos acima identificados, em que figura como recorrente o requerente B….

A - RELATÓRIO
1. Em 5 de Março de 2021 foi proferida na primeira instância o seguinte despacho (segue a sua transcrição integral):
«Para efeitos do disposto no art. 178º, nº 8, última parte[1] 1, opõe-se o Mº Pº à restituição do automóvel, uma vez que o mesmo tem reserva de propriedade a favor de C… pelo que não tem o requerente legitimidade para requerer a restituição. Em concordância, indefere-se o requerido
2. Inconformado com o despacho de indeferimento, o requerente interpôs recurso da decisão, terminando a motivação de recurso com a formulação das seguintes conclusões:
“O presente recurso surge na sequência do Despacho proferido pelo Tribunal de Primeira Instância, com a referência nº 422596499 e notificado ao aqui Recorrente.
Limitando-se a indeferir o requerido pelo aqui Recorrente, alegando de forma totalmente inusitada e infundada, considerou que "o mesmo tem reserva de propriedade a favor de C… pelo que não tem a requerente legitimidade para vir requerer a restituição”.
O Recorrente não se pode conformar com o teor do mesmo na medida em que peca, manifestamente, pela parca fundamentação por parte do Tribunal a Quo.
Transpondo a ideia de que quem tem interesse direto em demandar é o Banco C… a favor de quem está registada a cláusula de reserva de propriedade.
Todavia, e salvo devido respeito, que é muito, parece revelar uma errónea conceção e finalidade da "reserva de propriedade".
Porém, cumpre desde já dizer que o motivo da existência de tal cláusula, prende-se apenas e só com a celebração de contrato de financiamento, isto é, um contrato de mútuo para aquisição da viatura.
Motivos pelos quais é entendimento generalizado que o titular da Reserva de Propriedade, isto é, Banco C…, não pode reservar para si o direito de propriedade, pela simples razão de que não é o titular.
Na medida em que, não é possível equiparar a posição de alienante com a do mutuante, que não é proprietário do bem, apenas se limitando a financiar a aquisição.
Aliás, tal posse jamais foi exercida por qualquer outra pessoa, sobretudo pelo Arguido.
Assim, a natureza jurídica da compra e venda com reserva de propriedade, tem-se adotado maioritariamente a tese da transmissão diferida da propriedade.
O que significa que no negócio celebrado com reserva de propriedade, aquilo que fica suspenso é, apenas o efeito translativo da propriedade, produzindo-se de imediato todos os demais.
Designadamente, a transmissão da Posse Real e Efetiva do veículo, ficando reservada para o alienante a titularidade abstrata do direito de propriedade.
Sendo certo que, o único e exclusivo interesse do Banco C…, S.A., titular da reserva de propriedade, é o do recebimento das prestações decorrentes do contrato de mútuo celebrado com o Recorrente.
Motivos pelos quais o interesse direto na restituição do veículo automóvel de marca BMW, modelo … é sem dúvida do Recorrente, que por isso tem legitimidade ativa para requerer, como requereu, a revogação da apreensão e a respetiva restituição do bem.
Razão pela qual tem imperiosa necessidade de interpor o presente Recurso.
Contudo e sem prescindir do supra exposto, sempre se dirá que o direito de propriedade do Recorrente foi manifestamente violado.
Ora, como se sabe, veículo automóvel BMW …, pertence ao Recorrente o qual além do mais tem a posse derivada do registo do direito de propriedade em seu nome, não existindo nos autos qualquer prova indiciária que ilida tal presunção.
Nessa medida a apreensão levada a cabo pelo Ministério Público carece de fundamento, sendo, por isso, totalmente inválida.
Aliás, tal posse jamais foi exercida por qualquer outra pessoa, sobretudo pelo Arguido.
Por último, cumpre ainda mencionar que o referido veículo, não assume qualquer relevância, em termos de elemento probatório no âmbito do presente processo-crime.
Nem tampouco, o Recorrente figura como Arguido nos presentes autos.
Não comportando, assim, a apreensão de tal viatura qualquer relevância no sentido de fazer prova da materialidade ou autoria do eventual delito.
Reiterando-se uma vez mais o já alegado, isto é o veículo automóvel de marca BMW, modelo … com matrícula ..-..-NI, nunca por nunca, foi utilizado em qualquer atividade ilícita, destinando-se apenas e só ao uso quotidiano do Recorrente.
Pelo exposto, o despacho proferido pelo Tribunal a quo, deverá ser imediatamente revogado,
Sendo proferido novo Despacho que ordene a Revogação da Medida de Apreensão e consequentemente, promova a restituição do veículo ao aqui Recorrente.
Fazendo, como sempre, a habitual e devida Justiça Material!»
3. O recurso foi liminarmente admitido no tribunal a quo, subindo, imediatamente, em separado e com efeito devolutivo.
4. O Ministério Público respondeu, concluindo a sua peça processual com as seguintes conclusões:
«Efetivamente, nos autos do processo principal, na sequência da busca realizada em 13/01/2021 na residência do arguido D… - confessadamente autor da prática de inúmeros crimes de fraude fiscal qualificada - foi apreendido o automóvel de matrícula ..-..-NI da marca BMW.
O requerente é pai do arguido e alega que o automóvel lhe pertence e que é terceiro de boa-fé, requerendo ao abrigo do disposto no artº 178º, nº7 o levantamento da apreensão do automóvel em causa.
Não tem razão o recorrente.
Nada há a censurar ao douto despacho recorrido.
Nos termos do disposto no artº 178º, nº7 do C.P.P., “o titular de instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos apreendidos pode requer ao juiz a modificação ou revogação da medida”.
Quando se refere titular, a norma pretende referir-se ao titular do direito de propriedade sobre o bem apreendido.
Para além deste argumento assente no teor literal da norma, tal é também o que resulta da sua conjugação com o disposto no nº 12 do mesmo artigo.
Nos termos desta norma, no caso dos bens sujeitos a registo – como sucede com os automóveis-, se o bem apreendido – como sucede no presente caso – tiver registo a favor de pessoa diversa do arguido, a autoridade judiciária notifica o titular inscrito para que se pronuncie.
Ora, neste caso, o automóvel tem reserva de propriedade a favor de Banco C…, SA.
A reserva de propriedade significa, ao contrário do que alega o recorrente, que a propriedade do automóvel pertence neste momento ao banco C… e não ao aqui recorrente.
O titular inscrito no registo automóvel e no certificado de matrícula é o Banco C….
Por esse motivo, ao abrigo do disposto no nº 12 do artº 178º, foi este banco notificado em 26/02/2021.
Assim sendo, apenas o proprietário – O Banco C… - teria legitimidade para requerer o levantamento da apreensão do automóvel em causa e nenhuma outra pessoa.
Acresce que, ainda que se considerasse que o titular do contrato de financiamento – o requerente- com o C… tinha legitimidade para requerer a providência em causa, sempre teria o requerente de provar ser o “detentor” real do bem, uma vez que o automóvel foi encontrado em casa do arguido, seu filho, com quem o aqui requerente não reside, tudo levando a crer que seja o arguido D… o real detentor do automóvel.
Sem prescindir, caso se entendesse que o requerente teria legitimidade para requerer o levantamento da apreensão, sempre teria de se dar cumprimento ao disposto no artº 178º, nº9 do C.P.P. antes de se proferir decisão uma vez que o automóvel em causa é suscetível de vir a ser declarado perdido a favor do Estado.
Pelo exposto, deverá manter-se na íntegra a douto despacho recorrido, assim de fazendo Justiça.»
5. Nesta instância, o Ministério Público[2] não emitiu parecer, limitando-se a apor o visto.
6. Proferiu-se despacho de exame preliminar e o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos do Código de Processo Penal].

Questão a decidir
Do thema decidendum do recurso:
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina[3] e a jurisprudência[4] 4 são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.

Da questão a decidir neste recurso:
Erro em matéria de direito:
- o titular registral e possuidor de um veículo automóvel tem legitimidade para requerer o levantamento da apreensão e consequente restituição do bem, mesmo no caso de existir uma reserva de propriedade em favor de uma instituição financeira?

B - FUNDAMENTAÇÃO
Impõe-se começar por recordar a factualidade relevante para a decisão:
1. No âmbito do inquérito foi apreendido o veículo automóvel de matrícula ..-..-NI da marca BMW, modelo …, no âmbito de uma busca realizada em 13 de Janeiro de 2021 na residência do arguido D….
2. Este arguido – que é filho do requerente - encontra-se indiciado nos autos pela prática de crimes de fraude fiscal qualificada e de falsificação de documento cometidos, pelo menos, a partir de Janeiro de 2016 («vide» despacho do Ministério Público datado de 27 de Novembro de 2020).
3. O veículo automóvel em causa encontra-se registado em nome do ora requerente B… desde 2 de Março de 2009, com reserva de propriedade em nome do Banco C….
4. B… requereu a revogação da apreensão do automóvel e a sua restituição.
5. O Ministério Público opôs-se ao requerimento e à motivação de recurso com o único fundamento da falta de legitimidade do requerente, uma vez que o automóvel se encontra com reserva de propriedade a favor de uma instituição financeira, não sendo o requerente, por isso, "titular do direito".
6. O despacho judicial recorrido indeferiu o requerimento com esse fundamento jurídico, por mera adesão à oposição.

Cumpre apreciar e decidir.
A questão controvertida é manifestamente simples, que consiste em saber se o titular registral de um veículo automóvel - e, consequentemente, seu possuidor - tem legitimidade para requerer o levantamento da sua apreensão e consequente restituição, mesmo no caso de existir uma reserva de propriedade em favor de uma instituição financeira.
De jure
Nos termos do disposto no artigo 178º, nº 7 do Código de Processo Penal, «Os titulares de instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos ou coisas ou animais apreendidos podem requerer ao juiz a modificação ou a revogação da medida.». Esta norma deve ser articulada com o número 1 do artigo 186º do mesmo texto legal: «Logo que se tornar desnecessário manter a apreensão (…) as coisas ou os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito.».
Não se pode concluir, juridicamente, que o titular da reserva de propriedade tem direito a requerer o levantamento da apreensão e consequente entrega do automóvel, sem mais, quando é certo, por resultar expressamente do registo automóvel, que é o ora requerente o titular registral do mesmo bem, seu possuidor, sendo titular do respetivo direito de uso e fruição.
O requerente, embora não sendo o titular do direito de propriedade pleno, assume uma posição jurídica que lhe confere a expectativa jurídica de aquisição do bem, sendo mesmo oponível a terceiros, tendo já o direito de uso e a fruição do bem móvel sujeito a registo, não gozando apenas do poder de livre disposição. Assim, a sua posição nunca se poderá reduzir a uma posição jurídica de cariz meramente obrigacional[5], sendo titular de um verdadeiro direito absoluto semelhante à propriedade, o qual é visto como um pré-estádio da mesma, que lhe confere legitimidade para interpor ações possessórias (artigos 1276º e seguintes) e de reivindicação (artigos 1311º e 1315º, todos do Código Civil)[6] 6 e, naturalmente, de requerer o levantamento da sua apreensão e consequente restituição em processo penal.
Importa ainda notar que o Ministério Público não se opôs ao levantamento da apreensão pela circunstância do automóvel apreendido constituir produto, lucro, recompensa ou ser suscetível de constituir prova no processo penal (art. 178º, nº 1, do Código de Processo Penal). Tal relevância também não resulta minimamente dos autos.
Como é fácil de perceber, os bens encontrados na residência de um arguido não são suscetíveis de apreensão apenas pela simples circunstância de lá se encontrarem.
Em conclusão, o recurso tem de ser julgado provido e, em consequência, revogar-se o despacho recorrido, que se substitui pela decisão de deferimento da requerida revogação da apreensão do veículo automóvel de matrícula ..-..-NI da marca BMW, modelo … e consequente entrega ao requerente, que tem legitimidade para tal.

Das custas:
Sendo o recurso interposto julgado provido, com oposição do Ministério Público (na primeira instância), não há lugar ao pagamento de custas (artigo 522º, nº 1, do Código de Processo Penal).
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C - DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes subscritores em conferência e por unanimidade, julgar provido o recurso do requerente B…, revogando-se o despacho recorrido, que se substitui por decisão de deferimento da requerida revogação da apreensão do veículo automóvel de matrícula ..-..-NI da marca BMW, modelo … e consequente entrega ao requerente.
Sem custas.
Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.

Porto, 28 de Outubro de 2021.
Jorge Langweg
Maria Dolores da Silva e Sousa
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[1] O despacho não identifica o diploma em que a norma se encontra inserida, mas depreende-se, pelo contexto da frase, que se trata do Código de Processo Penal.
[2] Visto subscrito pelo Procurador-Geral Adjunto Dr. António Prado e Castro.
[3] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[4] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme em todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1.
[5] Luís Manuel Teles Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III, Almedina, 2019, página 64.
[6] Ibidem. págs. 203 e 204.