Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
180/05.9TMMTS-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: RESPONSABILIDADES PARENTAIS
INCUMPRIMENTO
SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA
REGULAMENTO COMUNITÁRIO
Nº do Documento: RP20110407180/05.9TMMTS-B.P1
Data do Acordão: 04/07/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ALTERADA.
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O superior interesse da criança deve estar sempre presente em cada caso concreto e, com ele, pretende-se assegurar um desenvolvimento harmonioso da criança ou jovem, tendo em conta as suas necessidades, bem como a capacidade dos pais para as satisfazer e ainda os valores dominantes no meio envolvente.
II - Daí que as últimas alterações legislativas dos correspondentes normativos tenham reforçado a necessidade de os progenitores manterem contacto profícuo entre si na prossecução dos interesses dos filhos e o direito à informação do progenitor que não exerça as responsabilidades parentais sobre o modo do seu exercício, designadamente quanto à educação e condições de vida, o que deve ser promovido e acautelado pelo tribunal.
III - Por isso e porque o estabelecimento da residência permanente ou habitual da criança é uma questão de “particular importância para a sua vida”, é de considerar que a mudança daquela para o estrangeiro na companhia do progenitor com quem vive habitualmente, sem cumprimento prévio do dever de informação do outro progenitor, sem a sua participação nessa decisão e sem intervenção judicial, é um acto ilícito e representa uma frustração dos objectivos delineados no reformulado art.º 1906.º do Código Civil.
IV - O novo regime aplica-se ao incidente de incumprimento suscitado em processos pendentes à data da sua entrada em vigor, não obstante não se tratar de uma nova acção, à semelhança da alteração da regulação, por estarem em causa normas de interesse e ordem pública que dispõem directamente sobre os efeitos da filiação.
V - O incidente de incumprimento não é o meio adequado para fazer desencadear um procedimento internacional destinado a efectivar o cumprimento das visitas, por serem autónomos e independentes.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 180/05.9TMMTS-B.P1 – 3ª Secção (apelação)
Tribunal Judicial de Família e Menores de Matosinhos

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Teresa Santos
Adj. Desemb. Maria Amália Santos

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B…, solteiro, maior, residente na …, nº .., .°, …, ….-… Lisboa, deduziu incidente de incumprimento do regime das responsabilidades parentais relativamente a C…, nascido a 16.12.2004, contra a sua mãe, D…, melhor identificada nos autos, actualmente residente em parte incerta do Reino Unido.
Alegou, essencialmente, que as relações entre ele, pai da criança, e a requerida relativamente à partilha dos tempos de visita do pai com o filho nunca foram cordatas, tendo logrado obter a regulação das responsabilidades parentais em 28 de Setembro de 2006 por acordo homologado por sentença transitada em julgado e do qual resulta que o requerente tem direito de passar os fins-de-semana com o filho, determinados tempos no Natal, no Ano Novo e na Páscoa, assim como férias no verão.
O C... goza de boa saúde e tem grande ligação ao requerente, à mãe e às respectivas famílias.
Depois de ter passado um período de férias com a criança no verão de 2010 e de um contacto de 8 de Setembro seguinte com a requerida, pelo qual esta lhe deu conta de que seria necessário rever as entregas do C… às segundas-feiras por ele ter passado a frequentar a escola, o requerente não mais conseguiu contactá-la para o único número de telemóvel que lhe conhece e que é também o seu único contacto. Mas, no dia 14 do mesmo mês a D… telefonou-lhe informando-o de que tinha ido viver para Inglaterra com o C…, e que já tinha contratado uma Escola para este frequentar naquele país.
Falando com o C…, via telefone, este informou-o que estava a morar numa casa com a mãe e o namorado desta, dois ingleses, e mais dois portugueses com os filhos destes, em Londres, e que queria vir residir para Portugal.
Apesar de ter conversado com a requerida, desconhece a escola que o filho frequenta e em que condições vive.
Depois de não ter obtido resposta satisfatória na escola que o C… frequentava em Portugal e junto de familiares da requerida, em Matosinhos, contactou o processo judicial e verificou que a requerida, à sua revelia, ali deu entrada de um pedido de certidão da regulação das responsabilidades parentais com a finalidade expressa de levar o menor para Inglaterra, de férias, do dia 10 ao dia 20 de Setembro de 2010.
No dia 17 de Setembro contactou a escola onde a criança fora matriculada, em Matosinhos, mas foi informado de que ele não chegou a frequentar as aulas, o que seria comunicado à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens.
Nestas circunstâncias, o requerente perdeu a companhia do C…, desde logo no fim-de-semana de 17 a 20 de Setembro e, por certo, no tempo que se lhe seguiu, encontrando-se, assim, incumprido o regime de responsabilidade parentais fixado em Juízo e devidamente homologado, devendo a requerida ser condenada nos termos do art.º 181º da Organização Tutelar de Menores. E concluiu ainda, ipsis verbis:
«REQUER-SE pois que, com a maior urgência o Tribunal tome todas as providências necessárias para que se verifique o cumprimento coercivo do acordo de regulação do poder paternal em vigor, restabelecendo-se o convívio do Menor C… com o seu Pai, ora Requerente.
Uma vez que a Mãe se encontra no Reino Unido, em morada incerta, deverá ser solicita a colaboração das entidades Consulares e/ou Embaixada em Portugal e no Reino Unido, bem como das Policias dos respectivos países.
Qualquer atraso na resolução desta questão, determinará inevitavelmente prejuízos psicológicos gravíssimos ao Requerente e ao Menor.
Se eventualmente acontecer qualquer coisa à Requerida o Menor ver-se-á sozinho e desamparado, pois a Requerida não tem qualquer familiar em Inglaterra
Acresce que se desconhece as condições em que o Menor vive, o que pode pôr em perigo a sua saúde física psicológica».
Pediu a realização de diligências e juntou documentos.
O Ministério Público emitiu parecer no sentido do requerente pedir o restabelecimento dos contactos como filho através da Autoridade Central Portuguesa e ao abrigo da Convenção de Haia e do Regulamento “Bruxelas II”.
Em 8.10.2010 o requerente requereu que a questão fosse solucionada com urgência por continuar sem acesso ao filho. E juntou uma carta que lhe foi enviada pela requerida, datada de 27 de Setembro de 2010 e a ele dirigida, com seguinte teor:
«Conforme te disse pelo telefone na terça-feira, dia 14 deste mês, o C… veio comigo viver para Inglaterra.
Aqui tratarei do processo de regulação paternal no qual ficarão estabelecidas as visitas que terão que ser em relação aos horários escolares, conforme também já te disse em conversa telefónica.
O C… vai para uma escola perto de casa e começou a mesma no dia 20. Ele está muito entusiasmado. Envio-te o endereço na internet para que possas ter uma ideia: …
Estamos a viver numa cidade perto de Birmingham e a morada é a seguinte:


Sem outro assunto de momento». (sic)

Nesta sequência foi proferida a decisão final recorrida, segundo a qual “a deslocação do menor com a sua mãe para Inglaterra é absolutamente lícita, devendo agora os progenitores regularizar os convívios do menor com o pai junto do tribunal competente da nova área de residência da criança”.

Inconformado, o requerente apelou com as seguintes conclusões:
«1- A deslocação da residência da mãe para país estrangeiro, verificou-se sem acordo do pai, que nem sequer teve alguma vez conhecimento desta intenção.
2- A deslocação da mãe com o menor para o estrangeiro, que poderia ser considerada licita em princípio, já o não é desde que torne impossível o cumprimento de visitas e permanência do menor com o pai, determinado por acordo homologado por sentença judicial.
3- A permanência da mãe com o menor em país estrangeiro, tornando impossível esse cumprimento de visitas, é um assunto de altíssima importância na vida do menor, pelo que só poderia ter sido decidido por ambos os progenitores
4- Esse facto determina a ilicitude da deslocação do menor para fora de Portugal.
5- O Tribunal deveria ter declarado essa ilicitude e ordenado as medidas que estão ao seu alcance, através dos Regulamentos da Comunidade Europeia para trazer o menor para Portugal, em cumprimento do regime de visitas ao pai, uma vez que a mãe incumpriu o art.°. 181°. da O.T.M.
6- Essa actuação deveria ter sido promovida pelo Senhor Magistrado do Ministério Público em conjugação com as decisões judiciais que deveriam ter sido determinadas nesse sentido.
7- O Senhor Magistrado do Ministério Público deveria ter instaurado processo crime contra a mãe do menor, nos termos do art.°. 249º, n°.1, c) do Cód. Penal.
8- A decisão recorrida violou o art.°. 181°., da O.T.M., pois não esgotou todas as medidas ao alcance do Tribunal e referidas no aludido artigo, para trazer o menor a Portugal a fim deste cumprir o regime de visitas a seu pai» (sic)
O recorrente pretende ainda a condenação da requerida em multa e indemnização nos termos do art.º 181º da Organização Tutelar de Menores e terminou no sentido de que seja declara a ilicitude da conduta da requerida ao levar o filho para residir com ela no Reino Unido sem conhecimento e autorização do requerente e com prejuízo do seu direito de visitas reconhecido por decisão transitada em julgado, devendo ainda determinar-se todas as medidas comunitárias necessárias à satisfação do direito de visita e permanência do menor com o pai, cumprindo-se o acordo violado.

O Ministério Público respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
«I
A decisão homologatória do acordo celebrado entre os progenitores e que regulou o exercício do poder paternal relativo ao C…, porque proferida a 28 de Setembro de 2006, tem de reger-se pelo estatuído no art.° 1906º e seguintes do Código Civil antes das alterações introduzidas pela Lei 61/2008 de 31 de Outubro, uma vez que nenhuma acção de alteração foi posteriormente intentada pelos pais com fundamento em que o anterior regime era contrário aos interesses do menor.
II
Tendo sido acordado por ambos os progenitores e devidamente homologado por sentença judicial que o menor ficava à guarda e cuidados da progenitora cabendo a esta o exercício exclusivo do poder paternal relativo à criança, a mãe não carecia de autorização do pai ou do Tribunal para fixar a sua residência e a do menor num país estrangeiro.
III
O dever da mãe informar o pai da mudança de residência da criança para o estrangeiro foi cumprido nos termos do art.° 1906º, n.º 4, do Código Civil, atenta a carta que o recorrente juntou aos autos e a conversa telefónica que diz ter mantido com a mãe da criança a 14 de Setembro do corrente ano.
IV
Sendo a mãe a única detentora do exercício do poder paternal é lícito e pode ser legítimo que se desloque para o estrangeiro com o intuito de aí fixar residência com o filho, não podendo o Tribunal forçá-la a regressar a Portugal a fim de dar cumprimento ao regime de visitas reconhecido ao progenitor
V
nem podia sequer o Tribunal condená-la em multa uma vez que tal actuação não lhe pode ser culposamente imputada.
VI
Passando a criança a residir num país estrangeiro, cabe ao pai tomar todas as providencias que tiver por adequadas, quer no âmbito do Direito Interno Português, quer recorrendo ao Direito Convencional e aos mecanismos internacionais comunitários pedindo o reconhecimento e efectivação do seu direito de visitas à criança.
VII
Tais mecanismos terão de ser por si desencadeados junto das respectivas entidades competentes, não cabendo tal tarefa, nem ao juiz nem ao Ministério Publico.
VIII
Decidindo como decidiu a Mma juíza “a quo” não violou qualquer disposição legal, nomeadamente o disposto no art.° 181 da OTM,
IX
nem a sua decisão nos merece qualquer reparo». (sic)
Entende que deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
*
A requerida respondeu também à apelação, concluindo nos seguintes termos:
«1. O Recorrente não se conformou com a decisão do Tribunal a quo, que considerou que não havia deslocação ilícita do menor com a mãe, para Inglaterra;
2. Apesar de o Recorrente concordar que sendo a mãe do menor quem tem a guarda do mesmo seria a ela que competia decidir o local de residência do mesmo, limita esse poder à autorização do pai;
3. O que é uma contradição e não é o que preceitua a legislação aplicável, ou seja, o Regulamento CE 2201/2003, de 27.11.2003, (Relativo à Competência, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Matrimonial e em Matéria de Responsabilidade Parental), no seu art.2, § 9;
4. Segundo o Regulamento referido, sendo a Recorrida que tem a guarda do menor é a ela a quem compete a decisão do local de residência do menor, sem que para tal esteja prevista qualquer autorização do parte do outro progenitor;
5. A mudança de residência do menor para o estrangeiro, teve como consequência a impossibilidade da manutenção do regime de visitas anteriormente estabelecido no processo judicial de Regulação do Exercício do Poder Paternal do menor;
No entanto,
6. A Recorrida logo que decidiu ficar a residir com o menor em Inglaterra, deu conhecimento dessa decisão ao pai, e da impossibilidade da manutenção do regime de visitas anteriormente estabelecido;
Razão pela qual,
7. Não se verifica qualquer incumprimento, por parte da Recorrida, em relação ao direito/dever de visitas do progenitor;
8. Assim, a deslocação perfeitamente licita do menor para Inglaterra, não poderia nunca justificar a tomada de medidas, pelo Tribunal a quo, nem pelo Ministério Público, que só são justificadas para situações de rapto Internacional de menores.» (sic)

O requerente respondeu nos termos do art.º 698º, nº 5, do Código de Processo Civil, considerando ter havido, da parte da recorrida, um pedido de ampliação do objecto dor recurso ao abrigo do art.º 684º-A do mesmo código.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II.
Nas questões a decidir tem o tribunal um amplo poder de conhecimento oficioso em razão da natureza do processo (jurisdição voluntária), mas considerará a delimitação dada pelo respectivo objecto da apelação do requerente (cf. art.ºs 660º, nº 2 e 690º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, na redacção que precedeu a que foi introduzida pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, aqui aplicável)[1].
Com efeito, está para decidir:

A- Como questão prévia, a eventual existência de ampliação do âmbito do recurso a requerimento da recorrida e o consequente direito de resposta do recorrente, nos termos dos art.ºs 684º-A e 698º, nº 5, do Código de Processo Civil.
B- Se a requerida não cumpriu, com culpa, as obrigações inerentes à regulação das responsabilidades parentais relativamente ao seu filho menor C… e se deve ser:
1- Condenada por isso em multa e indemnização;
2- Assegurada no presente incidente a posição do requerente (direito de visitas) definida na decisão homologatória do acordo dos progenitores sobre aquela matéria, transitada em julgado.
*
III.
Relevam os factos constantes do relatório e os que se seguem:
No dia 28.9.2006, entre o requerente e a requerida, pais do C… foi estabelecido no processo judicial um acordo sobre a regulação das responsabilidades parentais daquele filho --- então também homologado por sentença transitada em julgado --- nos seguintes termos:
«DESTINO – O menor C… ficará entregue à guarda e cuidados da mãe que exercerá o poder paternal.

VISITAS – O C… passará com o pai fins de semana alternados. Durante o mês de Outubro do corrente ano, o C… estará com o pai desde 6ª feira a seguir ao almoço (pelas 14:00 horas), até Domingo às 21:00 horas.
A partir de Novembro, o C… estará com o pai nos moldes referidos anteriormente, mas até 2ª feira à hora do almoço.
Em qualquer situação, os transportes serão feitos pelo pai ou pelos avós paternos.

NATAL – O menor passará alternadamente com cada um dos progenitores a quadra de Natal e a quadra de Ano Novo, passando este ano de 2006 a quadra de Natal com a mãe e a de Ano Novo com o pai.
Quando a quadra de Natal calhar ao pai, o mesmo irá buscar o C… no dia 22 de Dezembro, a seguir ao almoço até ao dia 26 de Dezembro à hora de jantar.
Quando a quadra de Ano Novo ao pai, o mesmo irá buscar o C… no dia 30 de Dezembro à hora de almoço, devendo entregá-lo em casa da mãe no dia 2 de Janeiro há hora do jantar.

DIA E ANIVERSÁRIO DA MÃE – O menor passara estes dias sempre com a mãe.

DIA E ANIVERSÁRIO DO PAI – O menor passará estes dias sempre com o pai.

ANIVERSÁRIO DO MENOR – O menor tomará uma das refeições principais com cada um dos progenitores.

PÁSCOA – O menor passará alternadamente com cada um dos progenitores o Domingo de Páscoa, sendo que na próxima Páscoa de 2007 o menor passá-la-á com o pai.
Sempre que passar a Páscoa com o pai, o período em causa será a duração de um fim de semana, nos termos já anteriormente expostos.

FÉRIAS – Nas férias de Verão de 2007, o menor passará com o pai 8 dias seguidos, sendo que nas férias de Verão de 2008 serão 10 dias seguidos, e a partir das férias de Verão de 2009 o menor passará com o pai 15 dias seguidos.
Em qualquer dos casos, o pai comunicará à mãe do C…, até ao dia 15 de Abril de cada ano, de qual o período de férias que pretende passar com o C….

ALIMENTOS – O pai contribuirá a título de alimentos devidos ao menor, com a quantia mensal de 110,00 €, que serão entregues até ao dia 8 de cada mês, através de Vale postal ou transferência bancária.
A referida pensão será anualmente actualizada em Janeiro de cada ano, com início em Janeiro de 2008, no montante de 10,00 €.
Além disso, o pai suportará ainda todas as despesas de saúde.»
*
IV.
Conhecendo…
A- Como questão prévia, a eventual existência de ampliação do âmbito do recurso a requerimento da recorrida e o consequente direito de resposta do recorrente, nos termos dos art.ºs 684º-A e 698º, nº 5, do Código de Processo Civil
Como resulta da conjugação interpretativa dos dois referidos preceitos adjectivos, o direito de resposta de que o recorrente lançou mão só existe se a recorrida tiver usado do direito de ampliação do âmbito do recurso e sempre restringida à matéria da ampliação.
A matéria encerra uma excepção à regra de que apenas deve ser conhecido, em sede de recurso, o que o recorrente inserir nas suas conclusões e o que for de conhecimento oficioso. Assim, excepcionalmente, ao contra-alegar, o recorrido pode requerer que o Tribunal ad quem conheça também a matéria relativa a qualquer fundamento da sua pretensão, que não tenha procedido no Tribunal a quo, embora tenha sido vencedor quanto à sua pretensão de fundo. Prevenindo a possibilidade do tribunal ad quem julgar improcedente o fundamento em que assentou a favorabilidade da decisão recorrida, conduzindo o recurso à procedência, o recorrido manifesta e requer a procedência do fundamento julgado improcedente pelo tribunal a quo, assim reforçando a sustentabilidade da decisão que lhe foi favorável na instância recorrida.
Mas, para que ao recorrido assista o direito à dita ampliação, hão-de, necessariamente, existir mais do que um fundamento da acção ou da defesa e que a mesma parte (vencedora no tribunal a quo) tenha decaído em, pelo menos, um deles.
Da leitura da sentença recorrida resulta evidente, não apenas a improcedência da pretensão do requerente, mas também que a recorrida não decaiu em qualquer fundamento da sua defesa. Aliás, o fundamento da decisão esgota-se, simplesmente, na improcedência absoluta dos fundamentos da acção.
Ora, como não foi julgado improcedente qualquer fundamento de defesa da requerida na decisão da 1ª instância e não tendo ela, por isso, suscitado ampliação do âmbito do recurso nos termos do art.º 684º-A do Código de Processo Civil, é hialino que não assiste ao recorrente o direito de resposta que, indevidamente, exerceu no requerimento de fl.s 86 a 90. Por isso, não será considerado.

B- Se a requerida não cumpriu, com culpa, as obrigações inerentes à regulação das responsabilidades parentais relativamente ao seu filho menor C…, se deve ser condenada em multa e em indemnização e se deve ser assegurada a posição do requerente, designadamente o exercício das visitas, definida na decisão homologatória do acordo dos progenitores sobre aquela matéria, transitada em julgado
Sendo voluntária a natureza da jurisdição em causa, o tribunal não tem que se orientar por critérios de legalidade estrita e de rigor processual, devendo adoptar, no caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna. Pode investigar livremente os factos, coligir provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, sendo apenas admitidas as provas que o juiz considerar necessárias (art.º 150º da Organização Tutelar de Menores e art.ºs 1409º e seg.s do Código de Processo Civil). Ao contrário do processo contencioso comum, em que impera o princípio do dispositivo[2], na regulação das responsabilidades parentais, o juiz investiga autonomamente os factos, no que não está circunscrito ao que as partes alegaram em qualquer peça do processo. Não há aqui um conflito de interesses a compor, mas um só interesse a regular, muito embora possa haver um conflito de representações ou opiniões acerca do mesmo interesse»[3]. Como tal, importando, no caso, considerar apenas o interesse da criança, acautelá-lo, defendendo-a e protegendo-a através da optimização da regulação das responsabilidades parentais, o tribunal tem como dever último atender ao que, objectivamente, deve ter-se como relevante para a prossecução daquele desiderato[4] e ao que mais julgar necessário.
O n.º 1 do art. 181º da Organização Tutelar de Menores (OTM, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, que respeita à tramitação do processo de “regulação das responsabilidades parentais” (designação dada pelo art. 3.º da Lei n.º 61/2008, de 31/10, em substituição da anterior designação de "poder paternal"), dispõe: “Se, relativamente à situação do menor, um dos progenitores não cumprir o que tiver sido acordado ou decidido, pode o outro requerer ao tribunal as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até € 249,90 e em indemnização a favor do menor ou do requerente ou de ambos”.
Encontrando-se o poder paternal regulado no processo na data da entrada em vigor da Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, coloca-se desde já a questão de saber se é aplicável ao caso o regime anterior, designadamente a redacção do Código Civil e da Organização Tutelar de Menores que precedeu aquela reforma e que vigorava na data da regulação do poder paternal ou o regime legal reformado pela referida Lei e já em vigor na data em que a requerida foi viver com a criança para Inglaterra (Setembro de 2010).
A questão tem grande pertinência, pois a licitude ou a ilicitude do referido comportamento da requerida poderá até depender da aplicação de um ou de outro regimes legais.
Como resulta do acórdão desta Relação do Porto de 27.3.2008[5], quando um ou vários filhos menores têm pais vivos e estes, tendo sido casados se separam de facto, se divorciam ou separam judicialmente de pessoas e bens ou quando os pais não são casados e não estão a viver juntos, é obrigatória a regulação do exercício do poder paternal dos filhos até aos dezoito anos de idade (maioridade) ou emancipação, a requerimento do Ministério Público ou de qualquer dos progenitores, nos termos dos art.ºs 1877º, 1905º, 1909º e 1911º, do Código Civil e art.ºs 174º e seg.s e 183º da Organização Tutelar de Menores.
Os pais encontram-se investidos na titularidade do poder paternal (actualmente responsabilidades parentais) por mero efeito do estabelecimento da filiação (biológica ou adoptiva) configurando-se essas responsabilidades como um conjunto de poderes-deveres atribuídos legalmente aos pais no interesse dos filhos (art. 1878º, do Código Civil).
Não se trata de um conjunto de faculdades de conteúdo egoístico e de exercício livre, ao arbítrio dos respectivos titulares, mas de um conjunto de responsabilidades de conteúdo altruísta que tem de ser exercido de forma vinculada, de harmonia com o direito, consubstanciadas no objectivo primacial de protecção e promoção dos interesses do filho, com vista ao seu desenvolvimento integral.[6]
Assim e de acordo com art.º 1878º, mesmo na redacção anterior à que lhe foi dada pela Lei nº 66/2008, compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens.
De salientar que o critério a ter em conta na decisão de atribuir ou repartir o exercício daquelas responsabilidades por ambos os progenitores será sempre o do superior interesse da criança (art.º 1905º, nºs 1 e 2, do Código Civil, art.º 180º, da Organização Tutelar de Menores e 3º, nº 1, da Convenção Sobre os Direitos da Criança, DR, I Série, de 12.09.90) e, ainda que subsidiariamente, o dos progenitores e familiares do menor.
Trata-se de um conceito que, aplicado em concreto, pretende assegurar um desenvolvimento harmonioso da criança ou jovem, tendo em conta as suas necessidades, bem como a capacidade dos pais para as satisfazer e ainda os valores dominantes no meio comunitário envolvente.
Na falta de acordo dos pais cabe ao tribunal regular esse mesmo exercício, determinando, nomeadamente, a quem vai ser confiada a guarda do menor, o regime de visitas do progenitor não custodial, a fixação de alimentos e a forma de os prestar.
No que concerne à custódia, de acordo com o “interesse do menor”, é posição tradicional que a criança deve ser confiada ao progenitor que se mostre mais idóneo para satisfazer as suas necessidades, assegurando-lhe as condições materiais, sociais, morais e psicológicas que possibilitem o seu desenvolvimento estável, à margem da tensão e dos conflitos que eventualmente oponham os pais e que possibilitem o desenvolvimento de relações afectivas contínuas para ambos, em especial com o progenitor a quem o menor não haja sido confiado[7], para o que deve ser tido em conta, nomeadamente, o sexo, a idade e o estádio de desenvolvimento da criança, a relação que mantém com ambos os progenitores antes e depois da separação, a existência de irmãos e o seu próprio desejo, a disponibilidade dos pais, incluindo a disponibilidade afectiva por forma a promover as condições necessárias à estabilidade afectiva e ao equilíbrio emocional da criança, a capacidade educativa, as condições de ordem económica, profissional e moral, a motivação para a obtenção da guarda e a atitude face aos direitos do outro progenitor[8].
Aqui chegados, havemos de ponderar a diferença essencial do regime jurídico das responsabilidades parentais, antes e depois da reforma, na parte que agora pode relevar. Resulta, sobretudo, das alterações introduzidas no art.º 1906º do Código Civil.
No regime anterior, o “poder paternal” era exercido pelo progenitor a quem o filho era confiado, ficando o outro progenitor com o “poder de vigiar a educação e as condições de vida do filho” (nº 4). Mas já então, por acordo dos pais, o poder paternal poderia ser exercido por ambos que, assim, decidiam as questões relativas à vida do menor em condições idênticas às que vigoravam para tal efeito na constância do casamento (redacção introduzida pela Lei nº 59/99, de 30 de Junho). Ou seja, n falta de acordo dos pais, o poder paternal era exercido pelo progenitor a quem o filho fosse confiado por decisão judicial fundamentada.
No âmbito daquele regime, o legislador afirmava já a importância da efectividade das visitas pela necessidade do menor manter uma relação de grande proximidade com o progenitor a quem não fosse confiado, a não ser que, por razões determinadas, a proximidade fosse desaconselhável à realização do interesse do filho (art.º 1905º, nº 2, do Código Civil).
Transformando terminologicamente o que era um “poder” numa “responsabilidade”, o legislador de 2008, reforçou também os deveres dos progenitores, entre si e em relação aos filhos, perspectivando acautelar de melhor forma o superior interesse destes. Estabeleceu a regra de que as responsabilidades parentais relativas às “questões de particular importância para a vida do filho” são exercidas em comum por ambos os progenitores”, salvo nos casos de urgência manifesta, em que qualquer dos progenitores pode agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível (nº 1 do art.º 1906º). O tribunal só determina, sempre fundamentadamente, que essas responsabilidades sejam exercidas apenas por um dos pais quando o exercício em comum seja julgado contrário aos interesses da criança (nº 2).
Só os actos da vida corrente do filho são, por regra, exercidos pelo progenitor com quem aquele reside (nºs 3 e 4).
Os nºs 6 e 7 do art.º 1906º reforçam a necessidade dos progenitores manterem contacto profícuo entre si na prossecução dos interesses dos filhos, e o direito à informação do progenitor que não exerça, no todo ou em parte, as responsabilidades parentais, sobre o modo do seu exercício, designadamente sobre a educação e as condições de vida dos filhos. Reforça-se a ideia de que as relações de grande proximidade com os dois progenitores são fonte de satisfação do interesse dos filhos, sendo incumbência do tribunal promover e aceitar acordos e tomar decisões que favoreçam amplas oportunidades de contacto com ambos e de partilha de responsabilidades entre eles.
Já o art.º 11º da Recomendação nº R (84) sobre as responsabilidades Parentais, previa o direito do progenitor não guardião de ser informado de todas as decisões que afectem os interesses essenciais da criança.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.9.2010[9], «a lei quer, agora mais que antes, que os pais se mantenham solidários e responsáveis pelo destino dos filhos que não podem ser vítimas inocentes de decisões que têm repercussão no desenvolvimento dos laços de afectividade e parentalidade, sobretudo, tendo em vista a relevante consideração que, quanto menos idade tiverem, mais se impõe que a figura do progenitor que não pode manter proximidade, “deva estar presente”, na solidariedade e co-responsabilização das decisões que afectam o seu futuro».
À semelhança da situação tratada naquele aresto, no caso em apreço, está em causa uma decisão de muita relevância no que se refere ao destino da criança: a mudança de país aos seis anos de idade para residir com a mãe que, certamente, emigrou em busca de uma vida melhor, ou por outras razões respeitáveis.
O mundo já não é o que era há vinte anos atrás, ligado que está hoje por redes de comunicação portentosas, numa redoma de contactos transfronteiriços que apenas fazem da Europa um espaço cada vez mais pequeno, apesar de nela se estabelecerem relações pessoais e comerciais cada vez mais complexas. A internacionalização é a palavra de ordem. A livre circulação das pessoas, das mercadorias, dos serviços e dos capitais, num espaço único integrado por vários Estados, é necessariamente um factor potencialmente gerador de elementos da relação jurídica e judiciária.[10]
Ora, o estabelecimento da residência permanente ou habitual da criança é uma questão de “particular importância para a sua vida” pela necessidade de manter, tanto quanto possível, a exigível relação de grande proximidade com ambos os pais. Por isso, é de considerar que, na aplicação do regime jurídico emergente da vigência da reforma introduzida pela Lei nº 61/2008, a mudança de residência da criança para o estrangeiro na companhia do progenitor com o qual a criança vive habitualmente, sem cumprimento prévio do dever de informação do outro progenitor e sem a sua participação nessa decisão e ainda, se necessário for por falta de acordo dos pais, sem intervenção judicial, é um acto ilícito e representa uma frustração dos objectivos delineados no reformulado art.º 1906º do Código Civil.
Assim, o progenitor que toma por si, única e exclusivamente a decisão de abandonar Portugal para se fixar com o filho no estrangeiro, ancorada no facto de ter a sua guarda, não só viola o dever de informação e participação do outro progenitor, num aspecto da maior relevância para o futuro da criança --- obrigação a que está adstrito por força do nº 6 do art. 1906° do Código Civil, na redacção da Lei 61/2008, de 31.10 --- como também priva o tribunal de se pronunciar, ante a possível discordância do progenitor que não tem a guarda do filho.[11]
A regulação do exercício poder paternal ocorreu no âmbito do regime jurídico anterior ao que foi introduzido pela Lei nº 61/2008, mas a mudança de residência do C… ocorreu em Setembro de 2010, portanto, na vigência do regime jurídico novo.
O art.º 9º daquela Lei determina que o novo regime não se aplica aos processos pendentes em tribunal.
Como interpretar esta norma?
Numa situação de alteração do regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais, o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.9.2010, que aqui seguiremos de perto, pondera que a alteração de prévia regulação do poder paternal constitui uma nova regulação das responsabilidades parentais, sendo essa alteração uma acção autónoma. E se pedida a alteração na vigência do novo regime legal será esse o aplicável, devendo considerar-se finda a regulação do poder paternal anterior, já decidida, não pendente; simplesmente em execução.
O próprio art.º 182º da Organização Tutelar de Menores que prevê para a “alteração da regulação do poder paternal (actualmente …das responsabilidade parentais) é expresso no sentido de que se trata de uma “nova regulação” (nº 1).
Embora com algumas dúvidas, afigura-se-nos que o processado em curso, não correspondendo a um pedido de alteração do regime regulado, tem, nalguns aspectos, contornos semelhantes àquele, justificando-se também a aplicação da lei nova.
É certo que este processo mais não é do que um incidente da regulação do poder paternal acordada e homologada no domínio da lei antiga, podendo dizer-se que, para todos os efeitos, a requerida ficou com a guarda do filho e com o poder paternal numa altura em que daí poderia resultar o direito de fixar a sua residência habitual e do filho onde entendesse e lhe conviesse, designadamente no estrangeiro, em função das condições da sua vida.
Em todo o caso, é nossa convicção que, mesmo no âmbito da lei então vigente, a requerida tinha o dever de dar conhecimento ao requerente da saída do filho para o estrangeiro e, se necessário, com recurso à vida judicial, quanto mais não fosse pela situação de incumprimento do regime de regulação do exercício do poder paternal que daí resultaria e a necessidade de encontrar uma solução alternativa que evitasse a suspensão de contactos da criança com o progenitor varão ou, pelo menos, minorasse os efeitos perniciosos da separação e, simultaneamente, permitisse que este último pudesse continuar a vigiar, na medida do possível, a educação e as condições de vida do filho (art.º 1906º, nº 4, do Código Civil, no regime antigo).
Tem aqui aplicação do art.º 12º do Código Civil que, na segunda parte do seu nº 2, refere que a lei “… quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”.
Estão em causa normas de interesse e ordem pública que dispõem directamente sobre os efeitos da relação de filiação, pelo que são de aplicação imediata a situações jurídicas constituídas ao abrigo da lei antiga. A lei visa situações jurídicas duradouras, como que desligadas causalmente do respectivo facto constitutivo, modificativo ou extintivo. Então, “entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”, ou seja, a lei nova aplica-se imediatamente a consequências ainda actuais de factos passados.[12]
E estando em vigor o novo regime legal aquando da mudança de residência da criança para Inglaterra e na data em que foi, posteriormente, suscitado o presente incidente, temos para nós como correcto a ele submeter a presente questão, interpretando o acordo em conformidade, designadamente no âmbito da nova redacção do art.º 1906º do Código Civil. Se assim não fosse estaríamos a violar o princípio da igualdade no tratamento de crianças (mesmo irmãos entre si), porventura com as mesmas idades colocadas em situações semelhantes, apenas por a regulação das responsabilidades parentais ocorrer em momentos diferentes.
Mas ainda que se entendesse dar tutela absoluta a um direito validado pela via judicial de guarda e exercício de poder paternal por parte da requerida, com o direito de escolher residência, mesmo no estrangeiro, com vigência da lei aplicável ao tempo da regulação, nem por isso estaríamos perante uma situação lícita, porquanto --- embora com brevidade --- a requerida se limitou a comunicar ao requerente a mudança de residência de filho de modo surpreendente e já como facto consumado, como se de tudo e da criança pudesse dispor contra um dever de sujeição do outro progenitor, sem direitos nem interesse na proximidade com o filho, quando, na realidade, ao pai já competia vigiar a educação e as condições da sua vida e, no interesse dele, proceder a visitas estabelecidas em condições que jamais poderiam ser cumpridas na situação de emigração que a requerida criou sem adequada diligência prévia, estando indiciada, no caso, a existência de uma relação pai-filho de relevante proficiência.
Visando o desenvolvimento saudável e equilibrado da criança, estava também patente na lei antiga a necessidade de preservar a estabilidade e a continuidade relacional intra-familiar até onde fosse possível.
Termos em que concluímos que, nas circunstâncias e condições em que o fez, foi ilícita a conduta da requerida de alteração da residência do filho para o estrangeiro.
A multa e a indemnização previstas no art.º 181º da Organização Tutelar de Menores pressupõem a análise de todo o conjunto de circunstâncias concretas caracterizadoras do incumprimento com vista à determinação de ilicitude e de culpa, também com gravidade que justifique a produção de tais efeitos. Como se refere no acórdão desta Relação de 30.1.2006[13] aquele preceito exige a verificação de uma situação tal --- um incumprimento efectivamente grave e reiterado por parte do progenitor remisso --- que torne necessário o recurso a meios coercivos para levar de vencida a resistência pertinaz e continuada do progenitor remisso a cumprir o que estava acordado ou decidido quanto à situação de menor, e não a uma ou outra falta sem antecedentes nem consequentes. Pressupondo o não cumprimento culposo, censurável, por parte do faltoso, devem ser investigadas as circunstâncias da acção de modo a determinar o grau de culpa do agente e, também em função dele, fixar a multa e a indemnização, ambas de conteúdo variável.
Percorrendo os termos processuais do incidente, verifica-se que a decisão recorrida foi proferida apenas com base no teor do requerimento inicial, numa cópia do acordo de regulação do exercício do poder paternal, homologado por sentença, em cópia de dois documentos destinados a comprovar que o requerente, em 17 de Setembro de 2010, procurou, sem êxito, o seu filho num Jardim de Infância e numa Escola de Matosinhos e na cópia de uma carta supostamente enviada pela requerida ao requerente, datada de 27 de Setembro de 2010, juntos aos autos com o requerimento.
Como referimos, na avaliação dos factos o juiz não está sujeito a critérios de legalidade estrita, podendo (devendo) adoptar em cada caso concreto a solução que melhor defenda os interesses do menor (pois esta é a ultima ratio deste tipo de processo). Não está, por isso, sujeito à reunião das provas indicadas pelo requerente; antes deve investigar autonomamente os factos de modo a obter o melhor esclarecimento possível da situação tendo em consideração as pretensões do requerente e o interesse da criança.
A determinação da culpa e do respectivo grau e, com efeito, a aplicação da multa, a atribuição de indemnização, as respectivas quantificações e a determinação dos beneficiários daquela compensação/reparação (a favor da criança, do requerente ou de ambos, nos termos do art.º 181º, nº 1, da Organização Tutelar de Menores), dependem de uma adequada definição de factos, a obter pela produção de provas para o processo que, no caso, não chegaram a ter lugar. Depende ainda de um efectivo exercício do contraditório entre as partes envolvidas, sendo proibida a indefesa (art.º 3º do Código de Processo Civil) e, no caso, a requerida não chegou a ser convocada para conferência nem foi notificada para alegar o que tivesse por conveniente ao abrigo do nº 2 do referido art.º 181º, assim como não se cumpriram as demais formalidades ali previstas.
Com efeito, concluindo nós pela ilicitude da conduta da requerida, os autos deverão prosseguir a sua normal tramitação em conformidade com o que ficou exposto, com vista à ponderação da culpa da requerida e da gravidade da sua conduta, com eventual condenação em multa e indemnização; não apenas porque o requerente o pretende, mas também porque o tribunal, no interesse da criança, deve investigar e punir o progenitor se concluir pela prevaricação.

Deve ser assegurada neste processo a posição do requerente, designadamente o exercício das visitas, definida na decisão homologatória do acordo dos progenitores sobre aquela matéria, transitada em julgado?
Também só existe incumprimento relevante das responsabilidades parentais, no que ao direito de visitas diz respeito, caso a mãe tenha criado intencionalmente uma situação reiterada e grave, culposa, que permita assacar-lhe um efectivo juízo de censura.[14]
O recorrente invoca os “Regulamentos da Comunidade Europeia” para o exercício do seu direito de visita, referindo-se mesmo a “… assegurar o regresso (do filho) a Portugal para que seu pai, ora requerente, possa vê-lo e com ele conviver”. Defende ainda que o Ministério Público deveria ter instaurado um processo de natureza criminal contra a mãe do menor, “nos termos do art.º 249º, nº 1, do Código Penal”.
No primeiro caso tem aplicação o Regulamento CE nº 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro.
O nº 9 do art.º 2º do Regulamento é expresso no sentido de que o “direito de guarda” é constituído pelos direitos e as obrigações relativos aos cuidados devidos à criança e, em particular, o direito de decidir sobre o seu lugar de residência. E o nº 11 do mesmo preceito regulamentar considera a deslocação da criança ilícita quando:
a) Viole o direito de guarda conferido por decisão judicial ou por acordo em vigor por força da legislação do Estado-Membro onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação; e
b) No momento da deslocação, o direito de guarda estivesse a ser efectivamente exercido, quer conjunta, quer separadamente, ou devesse estar a sê-lo, caso não tivesse ocorrido a deslocação ou retenção.

Acontece que na terminologia do Regulamento era a progenitora que tinha o “direito de guarda” do C…, cabendo ao requerente o direito de visita. É da violação deste direito que se trata e não da violação do direito de guarda. Ou seja, a situação de residência habitual com a progenitora é legal à luz do direito nacional. A ilegalidade resulta da violação do direito à informação que assiste ao requerente, na omissão da sua participação na decisão de mudança de residência da criança para o estrangeiro e na consequente inviabilização, pela requerida, do exercício das visitas.
É o exercício das visitas fixado com base no direito nacional que o Regulamento, neste caso, protege e visa tornar efectivo, sobretudo no interesse da criança.
Tal como acontece com as disposições regulamentares relativas ao regresso da criança por deslocação ou retenção ilícitas, também no caso das visitas, não se visa, à partida, obter qualquer alteração do regime estabelecido, mas um conjunto de esforços, ao nível internacional, a partir da chamada Autoridade Central constituída em cada um dos Estados-Membros e em colaboração com outras entidades, incluindo os tribunais, para lograr o cumprimento efectivo do regime de responsabilidades parentais estabelecido pelo Estado competente (cf. art.ºs 10º, 11º, 40º, 42º, 55º e 56º).
Aliás, quanto ao direito de visita ou de convívio, que aqui interessa, logo que seja concedido por decisão executória proferida num Estado-Membro, ele é reconhecido e goza de força executória noutro Estado-Membro, sem necessidade de qualquer declaração que lhe reconheça essa força e sem que seja possível contestar o seu reconhecimento, se essa decisão tiver sido homologada no Estado-Membro de origem. As decisões relativas a esta matéria referidas sob a al. a) do nº 1 do art.º 40º, gozam agora de uma plena eficácia executiva intracomunitária, assistindo-se, assim, a uma abolição da fronteira jurídica no território da União Europeia e à antecâmara da plenitude do reconhecimento mútuo de todas as decisões judiciais comunitárias (cf. art.º 41º).
Vem de caminho ajuizar que o regime de responsabilidades parentais estabelecido entre as partes e homologado pelos tribunais portugueses não serve nas circunstâncias actuais, designadamente o regime de visitas em razão da distância geográfica que separa os progenitores. Como proporcionar ao C… fins-de-semana com o pai, entre a sexta-feira, pelas 14 horas e as 21 horas de domingo ou a hora de almoço de segunda-feira? Como praticar o compromisso de, em qualquer situação os transportes serem feitos pelo pai ou pelos avós paternos? Como possibilitar que no dia de aniversário da criança esta tome uma das refeições principais com cada um dos progenitores?
Mesmo o regime de visitas da Páscoa, do Natal e de férias escolares de verão está delineado no pressuposto da relação de proximidade, dentro do território nacional, aquando do seu estabelecimento e que cessou com partida da criança para Inglaterra.
Em alguns aspectos da regulação o acordo ainda pode e deve ser cumprido. Pode, actualmente, viajar-se para Inglaterra em muito melhores condições e a muito mais baixo custo do que se viajava há una anos atrás. Contudo, justifica-se a sua alteração em função da nova realidade, muito diferente da anterior.
Se o requerente pretende o respectivo cumprimento, como transparece do requerimento inicial, mal se compreenderia que fosse o Ministério Público a requerer junto da Autoridade Central a realização de diligências internacionais para aquele fim, sem conhecer o âmbito e as condições temporais e espaciais das visitas que o requerente pode e deseja realizar, nomeadamente por deslocações a Inglaterra.
Desconhece-se mesmo qualquer oposição da progenitora à realização das visitas possíveis.
Note-se que mesmo nas situações de regresso da criança por deslocação ou retenção ilícitas, o Ministério Público não tem legitimidade para iniciar o respectivo pedido, cabendo essa iniciativa à pessoa, instituição ou outro organismo titular do direito de guarda (art.º 11º, nº 1, do Regulamento).
Segundo o art.º 21º da Convenção de Haia de 1980, «o pedido que vise a organização ou a protecção do exercício efectivo do direito de visita poderá ser dirigido à autoridade central de um Estado Contratante nos mesmos moldes do pedido que vise o regresso da criança.
Às autoridades centrais incumbe, de acordo com os deveres de cooperação previstos no Artigo 7.°, promover o exercício pacífico do direito de visita, bem como o preenchimento de todas as condições indispensáveis ao exercício deste direito. As autoridades centrais deverão providenciar no sentido de removerem, tanto quanto possível, todos os obstáculos ao exercício desse mesmo direito.
As autoridades centrais podem, quer directamente, quer através de intermediários, encetar ou favorecer o processo legal que vise organizar ou proteger o direito de visita e as condições a que o exercício deste direito poderia ficar sujeito.»
A intervenção do Ministério Público ocorre no âmbito particular da acção especial tutelar intentada no Estado-Membro requerido com vista ao eventual regresso da criança ao Estado requerente (art.º 11º do Regulamento)[15]; processo que não se destina a obter qualquer decisão sobre a guarda da criança, mas a garantir de forma expedita, a eficácia de uma decisão judicial já tomada sobre essa guarda, correndo o respectivo processado segundo as regas da jurisdição voluntária (art.º 1409º e seg.s do Código de Processo Civil e art.ºs 146º e 150º da Organização Tutelar de Menores).
Em geral o Regulamento substitui as convenções existentes celebradas entre dois ou mais Estados-Membros relativas às matérias por si reguladas. Além disso, o Regulamento prevalece sobre determinadas convenções multilaterais nas relações entre os Estados-Membros relativamente às matérias por si abrangidas, nomeadamente com a Convenção Europeia de 1980 (guarda dos filhos) e a Convenção da Haia de 1980 (aspectos civis do rapto internacional de crianças) --- artigo 60.°.
Decorre do exposto que, não só o Ministério Público não tem legitimidade para iniciar junto da Autoridade Central portuguesa (Direcção Geral de Reinserção Social) um procedimento internacional destinado a efectivar o cumprimento das visitas, como tal procedimento é autónomo e independente relativamente ao presente incidente, pressupondo a iniciativa do próprio requerente junto da Autoridade Central ou, simplesmente, tirando vantagem da força executória que a regulação das responsabilidade parentais tem nos tribunais ingleses (art.ºs 40º, nº 1, al. a), 41º e 55º, b) do Regulamento).
Ora, esta situação é incontornável no presente incidente, afigurando-se-nos que o melhor caminho é o da alteração do regime de regulação das responsabilidades parentais, muito especialmente das visitas, a fixar em sede processual própria (art.º 182º da Organização Tutelar de Menores)[16], de que, aliás --- confiando nas informações constantes deste processo ---, o requerente já se socorreu. Aí se adequará, por acordo dos progenitores ou decisão judicial de mérito, o referido regime à realidade actual ou àquela que então se tiver por conveniente, em função do interesse da criança.
O recorrente entende ainda que o Ministério Público deveria ter instaurado processo de natureza criminal contra a mãe do menor pelo crime previsto e punido nos termos do art.º 249º, nº 1, al. c), do Código Penal.
Independentemente da eventual verificação dos elementos do tipo de crime, o respectivo procedimento criminal depende de queixa do ofendido, não podendo o Ministério Público, sem ela, dar início ao processo-crime (nº 3 do referido art.º 249º e art.º 49º do Código de Processo Penal). A participação criminal com valor de queixa é condição sem a qual os factos não podem ser investigados na perspectiva criminal.
Por outro lado não compete a este tribunal exercer censura sobre a atitude do Ministério Público de fazer ou não fazer seguir um processo-crime, numa postura que não releva directamente para a decisão de mérito proferida e a proferir no presente incidente.
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V.
Por tudo quanto ficou exposto, acorda-se nesta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revoga-se parte da decisão recorrida e, em consequência, determina-se o normal prosseguimento dos autos para averiguação de factos e decisão relativa a eventual aplicação de multa e indemnização à requerida nos termos do art.º 181º da Organização Tutelar de Menores.
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Custas da apelação pelo requerente e pela requerida, na proporção de metade.
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Porto, 7 de Abril de 2011
Filipe Manuel Nunes Caroço
Teresa Santos
Maria Amália Pereira dos Santos Rocha
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[1] Note-se que --- apesar de se ter alegado juntamente com o requerimento de interposição de recurso --- se trata de um incidente de incumprimento do regime de regulação das responsabilidades parentais, interligado e funcionalmente dependente do processo principal de regulação de que é apenso, pelo que não releva o facto de ter sido suscitado após 31 de Dezembro de 2007, para efeitos do art.º 11º, nº 1, do Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (cf. acórdão do relator de 2.12.2010 proferido no proc. nº 978/04.5TBVFR-A.P1 – 3ª Secção desta Relação, citando diversa doutrina e jurisprudência neste sentido).
[2] As partes, através do pedido e da defesa, circunscrevem o thema decidendum: o juiz não pode indagar se à situação das partes conviria melhor outra providência, que não a solicitada; o andamento ulterior do processo depende da solicitação das partes, devendo o desenvolvimento do processo ser continuamente estimulado por elas; as partes podem pôr termo ao processo e determinar o conteúdo da decisão; o juiz, por regra, só pode atender aos factos alegados pelas partes e às provas por elas produzidas (quod mm est in actis non est in mundo).
[3] Manuel Andrade, Lições de Processo Civil ao 3º ano jurídico de 1943-1944, pág. 93.
[4] O que até nas acção declarativa comum o tribunal concretiza pela via dos factos assentes e da base instrutória.
[5] Proc. nº 0831087, in www.dgsi.pt.
[6] Armando Leandro, em Poder Paternal: natureza, conteúdo, exercício e limitações. Algumas reflexões da prática judiciária. Separata do Ciclo de Conferências no Conselho Distrital do Porto, pág. 119.
[7] Rui Epifânio e António Farinha, em O.T.M., 2ª ed. pág. 327.
[8] Cf. referido acórdão da Relação do Porto de 27.3.2008.
[9] Proc. nº 870/09.7TBCTB.C1.S1, in www.dgsi.pt.
[10] Helena Bolieiero e Paulo Guerra, ob. cit., pág. 421.
[11] Neste sentido, cf. citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.9.2010.
[12] Rabindranath Capelo de Sousa, in “Teoria Geral do Direito Civil” – vol. i, pág.s 139 e 140, citado no aresto do Supremo Tribunal de Justiça de 28.9.2010.
[13] Proc. nº 0557105, in www.dgsi.pt, citando outra jurisprudência.
[14] Acórdão da Relação de Lisboa de 14.9.2010, proc. nº 1169/08.1TBCSC-A.L1-1, in www.dgsi.pr.
[15] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.6.2010, proc. nº 622/07.9TMBRG.G1.S1 e acórdão da Relação de Lisboa de 20.4.2010, proc. nº 9127/09.2TBCSC.L1-7, ambos in www.dgsi.pt.
[16] Com interesse nessa matéria, releva o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.9.2010.