Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
648/07.2TALMG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MELO LIMA
Descritores: DEVASSA DA VIDA PRIVADA
DOLO ESPECÍFICO
QUEIXA
PROCURAÇÃO COM PODERES GERAIS
Nº do Documento: RP20120509648/07.2TALMG.P1
Data do Acordão: 05/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A queixa-crime pode ser apresentada por advogado com poderes gerais.
II - O crime de Devassa da vida privada, do art. 192º, nº 1, do CP, exige um dolo específico que se traduz na intenção do agente de devassar a vida privada da vítima.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 648/07.2TALMG.P1

Relator: Melo Lima

Acordam em Conferência na 1ªSecção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
1. Inconformado com a decisão de não pronúncia dos arguidos B… e C… pela prática de um crime de devassa privada, previsto e punido pelo artigo 192º do Código Penal, recorre D…, assim concluindo a respetiva motivação do recurso:
1.1 Os arguidos B… e C… foram denunciados pelo Recorrente pela prática de um crime de devassa da vida privada, previsto e punido pelo art. 192° do Código Penal;
1.2 A fis. ..., a Exma. Senhora Juíza de Instrução Criminal, proferiu despacho de não pronúncia dos arguidos, ao abrigo do disposto no art. 308.°, n,° 1, do Código de Processo Penal, por entender que o mandatário não tinha poderes para apresentar a queixa, bem como a ratificação teria sido posterior ao prazo que é permitido e, subsidiariamente considerou não existirem indícios suficientes da prática do referido crime;
1.3 Porém, entende o Recorrente que nenhum destes argumentos deve proceder;
1.4 O Recorrente atribuiu poderes forenses especiais aos seus mandatários no sentido de promover actos em sua representação; 1.5 Neste sentido, o assistente atribuiu ao seu mandatário “os mais amplos poderes forenses em Direito permitidos para o representar no foro em geral e ainda os especiais necessários a confessar na acção, transigir e desistir do pedido ou da instância”;
1.6 O acórdão n.° 4/94 do Supremo Tribunal de Justiça é bem expresso quando refere que ‘A revogação implícita do preceito do n° 3 do artigo 49° do Código de Processo Penal implica, por seu lado, que, presentemente, se deva entender que, para a apresentação de uma queixa-crime por intermédio de mandatário advogado, bastará urna simples procuração forense, sem necessidade de outorga de poderes especiais, contrariamente ao que ficou afirmado no Acórdão obrigatório de 13 de Maio de 1992, cuja doutrina caducou em virtude de urna específica alteração da lei”.
1.7 Não é, pois, possível ser realizada ‘uma correcção explicativa” do mencionado acórdão, conforme pretende o Juiz do Tribunal a quo, porque o acórdão não deixa qualquer margem para dúvidas — ao mandatário advogado bastará uma simples procuração forense para promover o procedimento criminal;
1.8 Desta forma, os presentes autos foram devidamente promovidos através de queixa- crime acompanhada por procuração forense com poderes especiais:
1.9 Caso não se entenda que a procuração atribui os poderes forenses necessários para promover a acção criminal, o que se admite por mero dever de patrocínio, sempre se diga ainda assim, o presente procedimento é legítimo;
1.10 Resulta de forma clara da nossa jurisprudência que caso seja entendido que a procuração junta aos autos não é suficiente, impõe-se ao Ministério Público a obrigação de notificar o arguido para ratificar todo o processado.
1.11 Neste sentido, bem decidiu o Tribunal da Relação do Porto que “se a procuração confere poderes insuficientes ao mandatário para apresentar queixa, deve a autoridade judiciária desencadear o mecanismo previsto no artº 40º nº2 do Código de Processo Civil (“ex vi’ do artigo 4º do Código de Processo Penal) e se o mandante supre a falta e ratifica o processado no prazo consignado, a queixa deve considerar-se válida desde a data da apresentação, mesmo que o vício só tenha sido notado quando já havia caducado o direito de queixa” (
1.12 Aliás, este acórdão reforça ainda que não se tendo adoptado esse procedimento, é prematuro concluir-se pela ilegitimidade do Ministério Público ou pela extinção do direito de queixa”;
1.13 Não se compreende como o Tribunal “o quo” entende que a presença do assistente como testemunha (?!) no dia 12.08.2008 deve ser considerado como ratificação realizada de forma extemporânea por ter decorrido o prazo de 6 meses. É ainda mais difícil de compreender na medida em que o despacho recorrido menciona o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.° 1/97 que pura e simplesmente fixa a seguinte jurisprudência: «Apresentada queixa por crime semipúblico, por mandatário sem poderes especiais, o Ministério Público tem legitimidade para exercer a acção penal se a queixa for ratificada pelo titular do direito respectivo - mesmo que após o prazo previsto no artigo 112.°, n.º1, do Código Penal de 1982”;
1.14 A ratificação produz efeitos retroactivos. Aliás, o mencionado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça decidiu ainda que “É a orientação deste Supremo Tribunal de Justiça, afirmada no Acórdão de 27 de Setembro de 1994, in Boletim do Ministério da Justiça, n.° 439/94, a p. 45, onde se conclui «O acto praticado por quem não possui os necessários poderes para o fazer não é um acto inválido, mas apenas inquinado de simples ineficácia, sanável através de ratificação, daí que [...] sendo ratificada pelo titular do direito ofendido adquira toda a sua eficácia, uma vez ser aceite uniformemente que a ratificação opera retroactivamente ab initio, garantida assim ficando a legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal.»”
1.15 Caso não se entenda que a procuração forense muniu o mandatário do assistente com poderes suficientes, sempre se diga que o Recorrente ratificou em 12.09.2008 todo o processado, com efeitos retroativos, não havendo lugar a qualquer caducidade do direito processual de acionamento do procedimento criminal;
1.16 Da apreciação da prova produzida nos autos, fica por demais evidente que existem indícios mais do que evidentes para a prática de um crime de devassa da vida privada p. e p. pelo Art,° 192° alínea d) do CP;
1.17 O próprio despacho assume que os participados incluíram os factos respeitantes à vida pessoal do assistente para fundamentar factualmente a nota de culpa, o que significa que para o Tribunal “a quo” os participados procuram promover a nota de culpa com a informação em causa.
1.18 Um utilizador comum de um computador, não procura aceder aos favoritos do anterior utilizador, salvo se pretenderem aferir a que sites acediam;
1.19 Se único propósito dos participados fosse garantir a continuidade do trabalho, bastaria o acesso ao e-mail e não aos favoritos do assistente;
1.20 Não tendo sido demonstrado que o assistente não poderia utilizar o computador igualmente para fins pessoais, então o conhecimento dos sites em causa apenas se afigura como uma devassa da vida privada do assistente;
1.21 Do documento n.° 1 junto com a queixa-crime (nota de culpa) e depoimento do Assistente E… (depoimento de o2H:55m:28s, constante no registo gravado através do sistema integrado de gravação áudio digital “Habilus Media Studio” disponível na aplicação informática do Tribunal, cujo inicio e termo se encontram assinalados na acta e na referida gravação — inicio no dia 30.09.2011 às 10:19:01H e fim no mesmo dia às 15:oo:51H e cujo teor se dá por reproduzido), nas passagens concretas de 02:02:15 a 02:19:00 resultam claramente indiciados os seguintes factos:
a) Que o recorrente ao longo da sua relação laboral tinha um computador à sua disposição no seu gabinete; que aquando da recepção da Nota de Culpa que por instruções do arguido, C… acedeu a este computador sob o pretexto de ‘utilizar e consultar o seu e-mail profissional, que constava dos cartões de apresentação do …” -- cfr. artigo 121° da Nota de Culpa juntou corno documento número 1; que o arguido C… por ordem do arguido B… logrou ‘inteirar-se” da lista de sites favoritos do Recorrente; que foi da consulta da lista de favoritos que se transpôs a referida informação para a nota de culpa; que essa informação foi mesmo usada na Nota de Culpa, onde foi divulgado o teor dos sites utilizados pelo ofendido, nomeadamente alguns de conteúdo pornográfico; que o acesso ao computador do Recorrente foi efectuado sem a sua presença e autorização;
1.22 Existem indícios suficientes de intromissão no computador disponibilizado ao Recorrente com urna intenção de descobrir factos pessoais que este tinha o direito a que permanecessem privados e um dolo directo de os divulgar na nota de culpa.
1.23 Os factos relacionados com a com a consulta de sites num computador que também era pessoal não têm relevância disciplinar, assume natureza privada que tem direito à sua reserva;
1.24 O fim da instrução é a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (cfr. art, 286°, n°. 1 do CPP
1.25 Ou seja é a comprovação judicial da existência de «indícios suficientes» e, nunca julgamento antecipado dos arguidos, condenando-os ou absolvendo-os, da mesma forma que uma decisão de não pronúncia não diz que se provou a inocência do arguido, que aliás se presume, mas diz que não se apuraram indícios suficientes de que em julgamento será condenado;
1.26 Há que ter presente que para a pronúncia não se exige uma certeza da existência da infracção. Importa, isso sim, que os elementos probatórios indiciários sejam bastantes por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo da culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade de condenação;
1.27 Desta forma, não pode o Ex.mo Senhor Juiz de Instrução determinar na fase processual em causa que “os elementos probatórios recolhidos jamais seriam suficientes para condenar os arguidos” se estivesse em julgamento. Até porque o inquérito e a instrução não gozam das mesmas garantias de fiabilidade da produção de prova;
1.28 Pelo exposto Mma. Juiz de Instrução Criminal violou o disposto nos 113°, 115.° nº1 e 192º do Código Penal e art. 49º Nº 3, 308° n.° 1 e 368° n.° 1 do Código de Processo Penal, uma vez que existem indícios suficientes de que estes praticaram o crime acima mencionado e, como tal, devem ser pronunciados.
1.29 Há indícios suficientes de que os arguidos C… e B… cometeram os crimes previstos e punidos pelo art. 192.°, n.° 1 do Código Penal pelo que vinham acusados, devendo os mesmos ser pronunciados.
1.30 Pelo exposto, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho de não pronúncia recorrido e, em consequência determinando a sua substituição por um outro que pronuncie os arguidos B… e C… pela prática de um crime de devassa da vida privada, previsto e punido pelo a1i 192° do Código Penal.
2. Responderam, no Tribunal recorrido:
2.1 O Mº Pº, pugnando no sentido da improcedência do recurso:
2.1.1 Relativamente à questão da queixa: i. Os factos a que se reporta a queixa, tiveram lugar a 24 de Abril de 2007 e aquela foi apresentada pelo mandatário do ofendido em 23 de Outubro de 2007, sendo a respectiva procuração forense datada de 4 de Maio de 2007; ii. Esta procuração forense, com poderes especiais, delimitou o objecto de tal patrocínio a "acções" e não a processos-crime; iii. Neste conspecto, bem andou a Mmª Juiz de Direito a não atribuir uma legitimidade de representação infinita atribuída por aquela procuração, a qual, no entendimento do recorrente, serviria, então, para qualquer processo ou situação pelos quais o assistente necessitasse de um advogado, independentemente da data do exercício da respectiva queixa, ou até do acontecimento dos factos que viessem a originar a necessidade de celebração de tal mandato; iv. O ofendido só em 12 de Agosto de 2008 "ratificou" a queixa apresentada, quando havia tido conhecimento dos factos criminosos, muito antes: a 24 de Abril de 2007; v. Admitir tal ratificação de 12 de Agosto de 2008, seria ignorar o prazo estipulado por lei para o exercício do direito de queixa.
2.1.2 Quanto à não recolha de indícios suficientes da prática do crime de devassa da vida privada: tendo resultado suficientemente demonstrado que a intenção dos arguidos foi somente a de fundamentar a nota de culpa, não com factos pessoais da vida do então assistente, mas sim com circunstâncias primordiais relacionadas com a forma como o mesmo utilizava o computador do trabalho, não se verifica, desde logo, a intenção específica imposta por aquele tipo de ilícito: a de devassar a vida privada, e sob a forma de dolo directo (art. 14° n° 1 do CP).

2.2 Os Recorridos B… e “F…”, argumentando com igual sentido da improcedência do recurso:
2.2.1 O computador destinava-se ao uso da actividade profissional do Recorrente e portanto fora do âmbito da sua vida privada ou do bem jurídico privacidade/intimidade;
2.2.2 De todo o modo, o conhecimento dos sites em causa não implicaria, só por si, a prática de um crime de devassa da vida privada: sempre seria necessário que o detentor desse conhecimento, com intenção de devassar a vida privada do Recorrente, divulgasse os referidos sites;
2.2.3 Ora, o Recorrente reconhece que a utilização da informação obtida sobre os sites consultados foi incluída na nota de culpa com o intuito de a fundamentar factualmente (4.° parágrafo de fls. 8 da motivação);
2.2.4 Logo, não se verifica a divulgação exigida pela alínea d) do artigo 192.° do CP. Divulgar significa propagar, difundir, espalhar, disseminar, ou seja, levar ao conhecimento de terceiras pessoas. O que aconteceu, no caso em análise, foi incluir numa nota de culpa, factos que se entendeu serem susceptíveis de integrar justa causa de despedimento ou de aplicação de uma sanção disciplinar ao Recorrente único destinatário da nota de culpa.
2.2.5 De acordo com o estipulado no n.° 1 do artigo 11.° do Código Penal, as pessoas colectivas não são susceptíveis de responsabilidade criminal pelo que sempre se impõe a manutenção da decisão de não pronúncia da arguida F….

3. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer, no qual:
3.1 Reconheceu a razão do recorrente no que se refere ao exercício tempestivo do direito de queixa: o art. 49°, n° 3, do CPP, com a redacção da Lei 59/98, de 25 de Agosto, prevê expressamente que a queixa possa ser apresentada por mandatário judicial munido de simples procuração forense;
3.2 Porém, negou a razão ao Recorrente quanto à suficiência de indícios da prática pelos arguidos de crime de devassa da vida privada: o crime de devassa da vida privada, tal como está tipificado no art. 192° do Código Penal, é um crime de dolo específico, exigindo-se que o agente actue com “intenção de devassar a vida privada”; os elementos de prova colhidos em fase de inquérito e de instrução indiciam que a inclusão em nota de culpa, elaborada no âmbito de processo disciplinar e remetida ao recorrente, de factos relacionados com o acesso a determinados sites eróticos ou pornográficos, com utilização do computador distribuído ao mesmo recorrente, pela sua entidade patronal, para o exercício das suas funções de director do G…, visou somente fundamentar factualmente aquela nota de culpa; não se mostrando indiciariamente preenchido o elemento “intenção de devassar a vida privada”, não poderia o Mm° Juiz “a quo” pronunciar os arguidos nos termos requeridos pelo recorrente.
4. Observada a notificação a que alude o artigo 417º/2 do CPP, colhidos os Vistos, realizada a Conferência, cumpre conhecer e decidir.

II FUNDAMENTAÇÃO

1. É do seguinte teor a decisão proferida, na parte pertinente:

«Inconformado com o libelo acusatório, veio o arguido D… requerer a abertura da instrução com os fundamentos constantes de f1s. 910 a 946.
Em síntese, alegou…»
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«Já no que concerne aos factos objecto de arquivamento, em suma, a intromissão no computador disponibilizado ao ofendido, mais não foi do que uma conduta com objectivo de descobrir factos pessoais do mesmo com a finalidade de pressionar a sua demissão e o seu achincalhamento»
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«A fls.1078 vieram B… e "F…, S.A" requerer a abertura de instrução, pugnando pela prolação de despacho de não pronuncia quanto aos ilícitos que lhe são imputados, alegando em síntese que, no âmbito da relação laboral foi movido ao Assistente um Procedimento Disciplinar para averiguação e apuramento de um conjunto de factos susceptíveis de integrar ilícitos disciplinares e consequente justa causa de despedimento, na sequência do qual foi elaborada e entregue ao Assistente a nota de culpa referida no artigo 4.° da acusação particular, onde constam os factos referidos pelo Assistente, de forma descontextualizada, nos artigos 5.° e 6.° da acusação particular.
A 2.a Requerente mais não fez do que, na qualidade de entidade patronal, cumprir o disposto na legislação laboral relativamente ao procedimento disciplinar.
Não existem quaisquer indícios da prática dos ilícitos imputados, além do que existiam fundamentos sérios para, em boa-fé, os requerentes reportarem os referidos factos como verdadeiros.
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Declarou-se aberta a fase da instrução.
Em sede de instrução foram inquiridas as testemunhas indicadas, tomadas declarações aos assistentes / arguidos e efectuada inspecção ao local.
Não tendo sido requeridas nem se afigurando necessária a realização de outras diligências complementares em sede de instrução, teve o lugar o debate instrutório, com observância do legal formalismo, conforme resulta da respectiva acta.
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O Tribunal é competente.
O Ministério Público e assistente têm legitimidade para deduzir acusação. O processo mostra-se isento de nulidades que o invalidem.
Não há outras questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da decisão instrutória.
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E) Quanto ao crime de devassa da vida privada, p. e p. pelo artigo 192º do Código Penal, pelos quais, pretende o arguido D… que seja proferido despacho de pronúncia contra F…, B… e C…. E também quanto à na acusação particular dos crimes de difamação e injúria p. e p. nos artigos 180º, 183º e 187º do Código Penal, de B… e F…, SA. O crime de devassa da vida privada, previsto e punido pelo artigo 192º, do CP reveste a natureza de crime semi-público, atento o disposto no artigo 198º, do CP. Os crimes de difamação e injúria revestem a natureza de crimes particulares, atento o disposto no artigo 188º, do CP. Assim, é necessário, para que o procedimento prossiga, a apresentação da queixa pelo ofendido, e no caso dos crimes particulares, ainda, a sua constituição como assistente, no prazo de oito dias e a dedução de acusação (art. 50º do Código de Processo Penal) considerando-se como ofendido o titular dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação (art. 113º, nº 1 do Código Penal). "Considerando-se o direito penal como direito de protecção dos bens fundamentais da comunidade e o processo penal como um "assunto da comunidade jurídica", em nome e no interesse da qual se tem de esclarecer o crime e perseguir o criminoso, torna-se de imediato compreensível que a generalidade das legislações actuais, e entre elas a nossa, vote no sentido de reputar a promoção processual das infracções tarefa processual, a realizar oficiosamente e portanto em completa independência da vontade e da actuação de quaisquer particulares". (dr. Jorge Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 2004, p. 116.)
O principio da promoção processual oficiosa não se afirma sem limitações, dado que a lei, por uma questão de politica criminal e porque certas infracções não se relacionam com bens jurídicos fundamentais para a comunidade (Cfr. Figueiredo Dias, op, loe. cit., p.121.), por sorte que ela exija uma necessidade de reagir automaticamente contra o infractor. As limitações que a lei impõe decorrem da natureza dos crimes a perseguir, ou seja aqueles que pela sua danosidade e densidade antijurídica e ilícita, requestam do aparelho formal de controle uma acção ex officio ou aqueles que, ao invés, não comportam um nível ou grau de danosidade social e ético-juridica que a sociedade se sinta na obrigação de os perseguir oficiosamente. Estão neste último caso os crimes particulares lato senso, ou seja aqueles para os quais a legitimidade do Ministério Público precisa de ser integrada por uma denúncia (chamados crimes semi-públicos ou semiparticulares) ou também por uma acusação particular (crimes particulares em sentido estrito). "Nesta medida, estamos perante limitações (nos crimes semi-públicos, em que a denúncia não substitui a acusação pública, mas tem necessariamente de a preceder) e mesmo perante autênticas excepções (nos crimes particulares em sentido estrito) ao princípio da promoção oficiosa do processo penal".
A lei confere à manifestação de vontade do titular do bem jurídico - queixa ou participação, ou de acusação particular, por vezes designada de querela ou requerimento (dr. Figueiredo Dias, op, loc. cit., p. 123.) - a dignidade de pressuposto processual, dado que este desejo se coloca fora do arco delimitador da materialidade do ilícito, mas tão só "com um problema prático da sua punição". (dr. Figueiredo Dias, op. loco cit., p.122.)
Por seu turno o artigo 115°, do Código Penal estabelece que "o direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que titular tiver tido conhecimento do facto ou dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido ou da data em que ele se tiver tornado incapaz".
O prazo estabelecido na lei para o portador do bem jurídico lesado empreender (formalmente) a perseguição para punição do agente pelos factos reputados ilícitos e lesivos da sua esfera pessoal pode ser configurado como um período de reflexão e ponderação da atitude que pretende vir a adoptar perante aquela concreta acção.
Ao lesado pode não convir, por qualquer razão, apresentar, desde logo e de imediato, queixa contra o autor da lesão, concedendo, a lei, um período durante o qual sopesará as conveniências ou impertinências pessoais e/ou vivenciais que para si poderão advir de uma reacção institucional-formal contra o autor da acção antijurídica.
Daí que durante esse período, e sem quaisquer limitações possa exercer o direito de perseguição do autor junto do órgão formal de controlo competente.
A extinção de direitos e do exercício de direitos, por via do decurso do tempo, pode ocorrer por duas vias: a prescrição e a caducidade.
Enquanto que pela primeira o decurso do tempo se traduz na impossibilidade de o titular do direito o invocar perante terceiros, nomeadamente perante o autor de um acto lesivo da sua integridade individual, e de o fazer valer no universo e feixe de direitos contidos na sua esfera jurídica, pela segunda, o titular de um direito perde a possibilidade de o exercitar, ou fazer valer em juízo, por ter deixado de praticar um acto de que depende (formalmente) a possibilidade do seu valimento perante o órgão jurisdicional de que dependeria o seu reconhecimento.
Como se refere no Código Penal Anotado e Comentado de Vitor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, pág.307 não se justificaria que o titular do direito de queixa pudesse exercê-lo a todo o tempo, V.g, por ódio ou vingança. Conhecidos, na verdade, o facto e os seus autores preenchidos se encontram, em princípio, os pressupostos sem os quais se não desencadeia o termo inicial da caducidade, a todos os títulos se impondo, então que a queixa seja deduzida em certo prazo. Este terá de ser contado, pois, a partir da data em que o titular passou a dispor de tal direito.
Nos presentes autos e quanto aos factos em análise a queixa foi apresentada em 23 de Outubro de 2010 tendo dado origem ao inquérito nº 924/07.4TALMG que veio a ser apensado a estes autos. Como se pode verificar de f1s. 8 do inquérito nº 924/07.4TALMG a queixa foi subscrita pelo então II. Advogado do queixoso.
A f1s. 27 foi junta procuração na qual consta, entre o mais, "... a quem confere, com faculdade de substabelecer, os mais amplos poderes forenses em Direito permitidos para o representar no foro em geral e ainda os especiais necessários a confessar na acção, transigir sobre o respectivo objecto e desistir do pedido ou instância". Procuração esta datada de 04 de Maio de 2007.
A questão que se coloca pois, neste momento é saber se o direito de queixa está legalmente exercido.
Foi durante muitos anos indiscutível que a queixa, no caso de crimes particulares ou semi-públicos, devia ser apresentada pessoalmente pelo próprio ofendido ou, não o sendo, por procurador munido de poderes especiais para o acto.
Tal não constava na letra do CPP de 1929, mas já então era a melhor doutrina, na sequência dos que entendiam que a queixa corresponde ao exercício de um direito pessoal (Luís Osório, "Comentário ao Código de Processo Penal", I, pág. 150, e Cavaleiro de Ferreira, "Curso de Processo Penal", II, pág. 139).
Essa doutrina veio a ser consagrada no CPP de 1987, no artº 49º, nº 3, versão, originária, que dispunha que «a queixa é apresentada pelo titular do direito respectivo ou por mandatário munido de poderes especiais».
O Ac. do STJ nº 2/92, lavrado para uniformização da jurisprudência, de 13/5/92, in D. R. de 2/7/92, exigiu mesmo que esses poderes especiais fossem especificados, não bastando simples poderes para a prática de uma classe ou categoria de actos.
Contudo, o Decreto Lei nº 267/92, de 28 de Novembro, veio alterar essa orientação jurisprudencial no que respeita aos mandatos conferidos aos advogados, ao permitir que as procurações com poderes especiais pudessem especificar tipo ou tipos de actos.
Na verdade, o nº 2 do seu artigo único dispõe que «as procurações com poderes especiais devem especificar o tipo de actos, qualquer que seja a sua natureza, para os quais são conferidos esses poderes».
Foi intuito declarado do legislador consubstanciar «uma medida de simplificação de procedimentos», tendo-se em consideração que o advogado é «um elemento essencial à aplicação da justiça» e «a sua actividade não se compagina com a existência de formalismos susceptíveis de porem em causa a razão pela qual é conferido o patrocínio do cidadão em nome de quem a justiça é administrada» (ver preâmbulo do diploma).
Com o "Assento" do STJ nº 4/94, de 1994/09/27, in DR, I-Série, de 1994/11/04, decidiu que «com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 267/92, de 28 de Novembro, caducou a jurisprudência fixada pelo Acórdão obrigatório nº 2/92, de 13 de Maio de 1992, deste Supremo Tribunal de Justiça, por aquele diploma ter revogado implicitamente o nº 3 do artigo 49º do Código de Processo Penal, motivo por que não existe qualquer necessidade de ratificação de queixa apresentada por mandatário judicial, munido de simples procuração forense, dentro do prazo fixado pelo nº 1 do artigo 1120 do Código Penal»,
No Acórdão do STJ para fixação de jurisprudência nº 1/97, de 19 de Dezembro de 1996, _ in DR, I-Série, de 1997/01/10, refere na sua fundamentação o seguinte: «Se, pois, nos termos do artigo 49°, nº 3, do Código de Processo Penal, plenamente vigente ao tempo, se admitia que a queixa pudesse ser deduzida por mandatário com poderes especiais, ainda que alguns hajam restringido esse conceito de mandatário a profissionais do foro, havemos de concluir que mesmo depois do Decreto-Lei nº 267/92, no qual só são referidos os advogados, da previsão deste ficam excluídos os profissionais do foro que não sejam advogados.
Consequentemente, há que aceitar uma correcção explicativa no Acórdão obrigatório nº 4/94 deste Supremo Tribunal de Justiça, pois quando este considera implicitamente revogado o nº 3 do artigo 49° do Código de Processo Penal deve entender-se que essa revogação é limitada aos advogados.
Quanto ao titular do direito de queixa e aos mandatários não advogados, o nº 3 referido mantém a sua plena validade. Assim, entendemos que a queixa poderá continuar a ser apresentada por quaisquer profissionais do foro, ou pessoa desprovida dessa qualidade, desde que munida de poderes especiais. E isto porque a lei não exige a qualidade de advogado ou solicitador explicitamente, tal como o faz sempre que considera essa qualidade imprescindível.
Quanto ao artigo único do Decreto - Lei nº 267/92, entende-se que só veio simplificar a situação dos advogados, dispensando-os de procuração notarial e especificação dos poderes especiais, e com esses limites que deve considerar-se revogado em parte o nº 3 do artigo 49º, no que aos advogados se refere. Mas de tal Decreto - Lei não se infere que o mandato para efectuar a denúncia só pode ser conferido a advogado. Isso seria uma limitação ao contrato de mandato que a lei em lugar algum consagra. Daí continuar a entender-se que o mandato para o exercício do direito de denúncia pode ser exercido por outras pessoas que não possuam a qualidade de advogado - v. Costa Pimenta, Introdução ao Processo Penal, p.l72».
Este Acórdão fixou a seguinte jurisprudência: «Apresentada a queixa por crime semipúblico, por mandatário sem poderes especiais, o Ministério Público tem legitimidade para exercer a acção penal se a queixa for ratificada pelo titular do direito respectivo, mesmo que após o prazo previsto no artigo 112º, nº I, do Código Penal de 1982».
Em suma, o "Assento" nº 1/97 veio, do nosso ponto de vista, estabelecer as seguintes ' regras relativas à apresentação de queixa em crime semi-público:
- ou é apresentada pelo próprio titular do interesse protegido pela incriminação;
- ou é apresentada por advogado ou solicitador munido de mandato geral;
- ou é apresentada por não advogado ou solicitador e, nesse caso, é necessário que o mandato contenha poderes especiais (não necessariamente especificados);
- neste último caso, se o mandato contiver meros poderes gerais de representação, pode ./ a queixa ser ratificada pelo titular do direito respectivo mesmo após o prazo previsto no artigo 112°, nº I, do Código Penal de 1982.
Esta descrição histórica da problemática em presença permite entender a nova redacção que foi dada ao artº 49º, nº 3 do CPP, pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto – “ a queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respectivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais". Em derradeira análise, o que verdadeiramente importa é que, na procuração junta se permita concluir que o titular do direito de queixa deseja procedimento criminal pelo delito que veio a ser denunciado.
Ora, analisada a procuração forense junta aos autos, além de a mesma ser datada de cerca de 5 meses antes da apresentação em juízo da queixa, a mesma é para representação do ofendido no foro em geral, referindo-se no entanto especificamente a acções e não a processos crimes, o que nos leva a concluir que a procuração junta aos autos não é suficiente para conferir legitimidade para que os autos prosseguissem.
Ao que acresce que, o ofendido só veio a ser inquirido como testemunha em 12 de Agosto de 2008 (a fls. 283), pelo que, a ratificação da queixa ocorreu muito para além do prazo legal dos seis meses, tendo-se em consideração que teve conhecimento dos factos em 24 de Abril de 2007.
Vale por dizer, que o direito do assistente a fazer valer o seu direito, porque o fez quando já tinha decorrido o prazo de que a lei estipula para exercitar o seu valimento em juízo, precludiu.
Verificou-se assim, a caducidade do direito (processual) de accionamento do procedimento criminal, pelo que urge declarar extinto o procedimento criminal.
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Mas mesmo que assim não se entendesse, no que concerne ao crime de devassa da vida privada, sempre teria de ser proferido despacho de não pronúncia.
Estabelece o artigo 192.° do CP que: "Quem, sem consentimento e com intenção de devassar a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar e sexual: d) divulgar factos relativos à vida privada ou a doença grave de outra pessoa é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias."
O tipo subjectivo só admite dolo directo. Trata-se, pois, de um crime de dolo específico e não de um crime de intenção.
O tipo subjectivo consiste na obtenção ou transmissão de informação constante de conversa, comunicação telefónica, mensagem de correio electrónico ou mesmo facturação electrónica, na obtenção ou transmissão de imagem de imagem pessoa, objecto ou espaço íntimos e ainda na divulgação de factos da vida privada (incluindo a doença grave) de outra pessoa.
Ora, face ao conteúdo da participação, à prova colhida em inquérito e em instrução não resulta que tenham sido divulgados na nota de culpa factos relativos à vida privada do participante, mas sim factos relacionados com circunstâncias relativas à forma como este utilizava o computador que lhe havia sido cedido para execução do trabalho que lhe estava adstrito.
Não resulta, também, indiciariamente, que os participados tenham procedido à inclusão destes factos na nota de culpa com o propósito de devassar a vida privada do participante, mas antes de fundamentar factualmente a nota de culpa, condição jurídica essencial à mesma.
Verifica-se, deste modo que, no conjunto de todos os elementos constantes dos autos (prova produzida em inquérito e em instrução), não existem indícios suficientes de que os arguidos tenham cometido os factos que lhe são imputados quanto ao crime de devassa da vida privada. E tais indícios não resultam com essa suficiência por se entender que, dessa análise e apreciação, fica a convicção de que, a manterem-se em julgamento, existiriam maiores probabilidades de conduzir a uma absolvição dos arguidos pelo crime de devassa da vida privada do que a uma condenação.
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Em conformidade com todo o exposto, e ao abrigo do disposto nos artigos 308.°, nº 1 e 307.°, nº 4, ambos do Código de Processo Penal, decide-se:
c) Não pronunciar os arguidos F…, S.A., B… e C…, pela prática do crime de devassa de vida privada, previsto e punido pelo artigo 192º, do Código Penal.
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2. CONHECENDO
De acordo com as conclusões do recurso, são questões que cumpre conhecer:
i. Sobre o correto e atempado exercício do direito de queixa
ii. Sobre a indiciação da prática de um crime de devassa de vida privada

2.1 Exercício do direito de queixa

Da decisão sob apreço resultam, quais factos processualmente adquiridos:
i. Que o Recorrente teve conhecimento dos factos sob questão (dizer, relativos ao ilícito “Devassa da Vida Privada “) em 24 de Abril de 2007;
ii. A queixa relativamente aos mesmos, foi apresentada em 23 de Outubro de 2007, tendo dado origem ao Inquérito nº 924/07.4TALMG;
iii. A queixa foi subscrita pelo Advogado do Recorrente, que juntou Procuração, datada de 4 de Maio de 2007, na qual constava, entre o mais: “… a quem confere, com faculdade de substabelecer, os mais amplos poderes forenses em Direito permitidos para o representar no foro em geral e ainda os especiais necessários a confessar na ação, transigir sobre o respetivo objeto e desistir do pedido ou instância”.

Sob a justificação de que
● “Analisada a procuração forense junta aos autos, além de a mesma ser datada de cerca de 5_meses antes da apresentação em juízo da queixa, a mesma é para representação do ofendido no foro em geral, referindo-se no entanto especificamente a acções e não a processos crimes, o que nos leva a concluir que a procuração junta aos autos não é suficiente para conferir legitimidade para que os autos prosseguissem”;
● “O ofendido só veio a ser inquirido como testemunha em 12 de Agosto de 2008 (a fls. 283), pelo que, a ratificação da queixa ocorreu muito para além do prazo legal dos seis meses, tendo-se em consideração que teve conhecimento dos factos em 24 de Abril de 2007”,
a Exma. Sra. Juiz concluiu que o direito do assistente a fazer valer o seu direito, porque o fez quando já tinha decorrido o prazo que a lei estipula para exercitar o seu valimento em juízo, tinha precludido e, daí, declarou extinto o procedimento criminal.
Não se subscreve este entendimento.
Curiosamente, a Exma. Juiz em súmula que retira do Assento nº1/97, diz que este veio estabelecer as seguintes regras relativas à apresentação de queixa em crime semi-público:
- Ou é apresentada pelo próprio titular do interesse protegido pela incriminação;
- Ou é apresentada por advogado ou solicitador munido de mandato geral;
- Ou é apresentada por não advogado ou solicitador e, nesse caso, é necessário que o mandato contenha poderes especiais (não necessariamente especificados);
- Neste último caso, se o mandato contiver meros poderes gerais de representação, pode a queixa ser ratificada pelo titular do direito respectivo mesmo após o prazo previsto no artigo 112°, nº I, do Código Penal de 1982
Ora, tomem-se em conta tais regras, tome-se em conta a norma ínsita no artigo 49º/3 do CPP [A queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respectivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais] resulta seguro que a queixa pode ser apresentada por advogado com poderes gerais.
Com o devido respeito, não cabem aqui lucubrações escolástico-académicas a partir da consideração de que a procuração em causa posto que confira poderes gerais, refere-se a acções e não a processos crimes.
Apresentou o Exmo. Advogado Procuração em que o queixoso o constitui seu mandatário judicial?
Tanto basta para que se deva tomar o ofendido por devidamente representado no ato da formulação da queixa.

Procede, assim, nesta parte, o recurso interposto.

2.2 Indiciação da prática de um crime de devassa da vida privada

Em causa a indiciação quanto à prática de um crime de devassa da vida privada.

Acolhe-se sem necessidade de acrescidas considerações a argumentação com que a Exma. Juiz sustenta a decisão de não pronúncia.
Valem a este respeito as considerações tecidas nos seguintes termos:
«…face ao conteúdo da participação, à prova colhida em inquérito e em instrução não resulta que tenham sido divulgados na nota de culpa factos relativos à vida privada do participante, mas sim factos relacionados com circunstâncias relativas à forma como este utilizava o computador que lhe havia sido cedido para execução do trabalho que lhe estava adstrito.
Não resulta, também, indiciariamente, que os participados tenham procedido à inclusão destes factos na nota de culpa com o propósito de devassar a vida privada do participante, mas antes de fundamentar factualmente a nota de culpa, condição jurídica essencial à mesma”.

Dizer apenas: não está em causa, como ressuma da economia da motivação do recurso, que a empresa tinha disponibilizado ao Recorrente um computador, destinado - por óbvio e/ou como será exigência do senso comum -, ao uso na atividade profissional do Recorrente, enquanto ao serviço da F….
Não está em causa, pari passu, que os dados que o Recorrente tem por próprios da sua vida privada – logo, passíveis da proteção fundamental decorrente do artigo 18º/1 da Constituição da República - foram utilizados na instrução da Nota de Culpa que lhe foi endereçada.
Questão é para o Recorrente, desde logo, que objectivamente ocorreu uma “devassa”, com violação do direito à integridade pessoal, de raiz constitucional.

Não é líquido nem absoluto que assim haja de ser entendido.
Aliás, ninguém dirá, hoje, que os direitos fundamentais, mesmo os direitos, liberdades e garantias, são absolutos, ilimitados.
“Não o são na sua dimensão subjectiva, porque os preceitos constitucionais não remetem para o arbítrio do titular a determinação do âmbito e do grau de satisfação do respetivo interesse, e também porque é inevitável e sistémica a conflitualidade dos direitos de cada um com os direitos dos outros”.
“Não o são também enquanto valores constitucionais, visto que a comunidade não se limita a reconhecer o valor da liberdade: liga os direitos a uma ideia de responsabilidade social e integra-os no conjunto dos valores comunitários. Assim, além dos limites «internos» do subsistema jusfundamental, que resultam das situações de conflito entre os diferentes valores que representam a s diversas facetas da dignidade humana, os direitos fundamentais têm também limites «externos», pois hão-de conciliar as suas naturais exigências com as imposições próprias da vida em sociedade: a ordem pública, a ética ou moral social, a autoridade do Estado, a segurança nacional, entre outros” [1]
É a propósito da necessidade de superação desta tensão dialética que se fala do princípio da harmonização ou da concordância prática [2], como se fala ainda do princípio da proporcionalidade [3] [4].
Assim, nomeadamente, no âmbito das relações jurídico-laborais.
Se se tem por certo que
«a reserva da vida privada e familiar não se reporta apenas a factos ocorridos na privacidade do domicílio ou, eventualmente, contidos em meios de comunicação abrangidos por um dever de sigilo e confidencialidade, podendo igualmente respeitar a ocorrências verificadas em sítios públicos e bem assim no respetivo local de trabalho»
logo se ressalva que
«não integram o âmbito da intimidade juridicamente tutelada os factos relacionados com a vida profissional dos cidadãos que tenham sido ocasionados por força do desempenho das respectivas funções e que não tenham fundamento em aspectos da sua vida privada, visto que os termos do exercício de determinada atividade profissional, no quadro de uma estrutura empresarial organizada – seja com base em vínculos laborais, seja por força de relações jurídicas de natureza distinta -, respeitam, por natureza, a todos os membros dessa estrutura, revestindo, assim caráter público – ainda que eventualmente circunscrito à esfera interna da empresa em causa

Outrossim, se se pode ter por adquirido que
«a tutela da reserva da intimidade da vida privada também vale, nos termos do artigo 18º nº1, nas relações entre particulares, em especial no domínio das relações jurídico-laborais, atendendo aos poderes (máxime de direção) juridicamente reconhecidos à entidade empregadora (Guilherme Machado Dray, Justa Causa e Esfera Privada, in Estudos do Instituto do Direito do Trabalho, II, Coimbra 2001, págs. 35 e segs) e, por isso, sem surpresa, a matéria agora em apreciação recebe um maior desenvolvimento no quadro normativo estabelecido pelo Código do Trabalho.»,
logo se diz também que
«Esta conclusão não impede, …, que se reconheça, no domínio das relações laborais, algumas ingerências decorrem do direito fundamental de liberdade de empresa, já que, apesar da tendencial separação entre a vida pessoal e profissional de cada um, alguns factos e comportamentos extra-laborais podem assumir relevância na ótica da estrutura empresarial em que os respetivos protagonistas se inserem (Teresa A. Coelho Moreira, Da Esfera Privada do Trabalhador e o Controlo do Empregador, in BFDUC, 2004, páf.496)» [5]

Mas a questão a apreciar não se reconduz, aqui e agora, a saber se a entidade empregadora, com violação do núcleo fundamental do direito em causa, utiliza prova ilícita para a formulação da Nota de Culpa; antes, reconduz-se a saber se se mostra indiciada a prática de um crime de devassa da vida privada.
Então para além da exigência de uma objetiva devassa “sem consentimento” da vida privada, exige-se o dolo específico, dizer a intenção de devassar a vida privada, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual.
Ora, o tribunal teve por certo – e, fim e ao cabo, o Recorrente nisso aquiesce – os dados (alegadamente pessoais) retirados do computador disponibilizado ao Recorrente, enquanto profissional da entidade patronal, foram-no com vista à instrução da referida Nota de Culpa, logo, com destinatário restrito e não para serem divulgados à “cidade e ao mundo”.
Sai, destarte, igualmente correta a posição assumida na decisão recorrida de que, em julgamento, seriam maiores as probabilidades da absolvição do que da condenação.

III DELIBERAÇÃO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, em:
a. No parcial provimento do recurso, revogar a decisão na parte em que julgou extinto o procedimento criminal por caducidade do direito de queixa.
b. Confirmar a decisão recorrida de não pronúncia dos arguidos F…, S.A., B… e C…, pela prática do crime de devassa de vida privada, previsto e punido pelo artigo 192º, do Código Penal

Da responsabilidade do Recorrente, a taxa de justiça de 5UC.

Porto, 9 de Maio de 2012
Joaquim Maria Melo de Sousa Lima
Francisco Marcolino de Jesus
________________
[1] VIEIRA DE ANDRADE, JOSÉ CARLOS – OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO PORTUGUESA DE 1976, 2ª Edição, Almedina, pág.275-276 [Sublinhados do Relator]
[2] “O princípio da proibição do excesso (ou da proporcionalidade em sentido amplo), consagrado na parte final do artº18ºnº2 constitui um limite constitucional à liberdade de conformação do legislador. A Constituição, ao autorizar a lei a restringir direitos, liberdades e garantias, de forma a permitir ao legislador a realização de uma tarefa de concordância prática justificada pela defesa de outros bens ou direitos constitucionalmente protegidos, impõe uma clara vinculação ao exercício dos poderes discricionários do legislador GOMES CANOTILHO, DIREITO CONSTITUCIONAL E TEORIA DA CONSTITUIÇÃO, 3ªEdição, Almedina, Pág. 429
[3] “(…) A Constituição portuguesa refere-se expressamente no nº2 do artigo 18º à necessidade da restrição, referência que deve ser entendida como consagração do princípio da proporcionalidade em sentido amplo, incluindo a proibição de restrições inadequadas, desnecessárias ou desproporcionais dos direitos, liberdades e garantias…” VIEIRA DE ANDRADE, JOSÉ CARLOS – OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO PORTUGUESA DE 1976, 2ª Edição, Almedina, pág.296
[4] Princípio da proporcionalidade (ou princípio da proibição do excesso) desdobrável: i. No princípio da adequação (as medidas restritivas devem revelar-se meio adequado para a prossecução dos fins visados); ii. No princípio da exigibilidade ou da necessidade (as medidas restritivas devem revelar-se necessárias porque os fins visados pela lei não podem ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias); iii No princípio da proporcionalidade em sentido restrito (os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa “justa medida”, impedindo-se a adoção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos. [Cfr. J.J. GOMES CANOTILHO - VITAL MOREIRA, CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, ANOTADA – VOL.1º, 4ª Edição Revista, Coimbra Editora 2007 – págs. 392 e 393]
[5] RUI MEDEIROS – ANTÓNIO CORTÊS, CONSTITUIÇÃO PORTUGUESA ANOTADA [JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS] Tomo I, 2ªEd. Coimbra Editora, págs. 622 e 623