Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1398/18.0T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: ALTERAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
INCUMPRIMENTO
IMPROCEDÊNCIA
Nº do Documento: RP202111081398/18.0T8MTS.P1
Data do Acordão: 11/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O tribunal de 2.ª instância apenas deve proceder à alteração da decisão da matéria de facto relativamente a matéria incorporada em registos fonográficos quando se convença, com base em elementos objetivos e lógicos, que houve erro na 1.ª instância, não verificado in casu, antes fundamentada, objetivamente, e bem, se mostrando a decisão, tomada na imediação e oralidade;
II - Dependendo a reapreciação da matéria de direito do recurso da procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto fixada e mantendo-se esta fica, necessariamente, prejudicado o conhecimento daquela (nº2, do artigo 608º, ex vi da parte final, do nº2, do art. 663º, e, ainda, do nº6, deste artigo, ambos do CPC).
III - Em caso de incumprimento do ónus da prova, a ação é julgada contra quem impende tal ónus que, não o cumprindo, não pode deixar de ver a sua pretensão soçobrar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 1398/18.0T8MTS.P1
Processo do Juízo Local Cível de Matosinhos - Juiz 3

Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: Maria José Simões

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrente: B…, SA
Recorrido: Município …

B…, SA propôs ação comum contra o Município … pedindo a condenação deste a abster-se de executar qualquer obra no terreno de sua propriedade, sito entre o cemitério … e a Rua …, Município …, freguesia …, e a adoptar as condutas necessárias a repor o terreno no estado em que estava antes do início da execução das obras em causa, invocando, para tanto, a violação por parte do réu, dos seus direitos de propriedade privada e de livre iniciativa económica.
O Réu contestou, invocando que o terreno em causa, onde desenvolve a dita obra, é de sua propriedade e que, tratando-se de obra pública, mesmo que se verificasse a sua execução em propriedade da autora sempre esta poderia ser, por tal facto, indemnizada.
A autora respondeu.
Procedeu-se à audiência final, com a observância das formalidades legais.
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Foi proferida sentença com a seguinte parte dispositiva:
“Assim, face ao exposto e ao abrigo das disposições legais citadas, julga-se a presente acção improcedente absolvendo-se o réu dos pedidos formulados.
As custas serão suportadas pela autora (art. 527º, do CPC)”.
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Apresentou a Autora recurso de apelação, pugnando por que seja revogada a sentença, modificando-se a resposta dada à matéria de facto no que tange aos factos 23, 24, 25 e 26, e substituindo-se a decisão por outra que condene o Réu/Recorrido nos pedidos, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
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O Requerido apresentou contra-alegações a pugnar pela improcedência do recurso, sendo de manter a decisão da matéria de facto por nenhuma razão haver para alterar os factos 23 a 26, bem dados como não provados, por falta de prova, e de confirmar a decisão recorrida.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações da recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1ª - Do alegado erro na apreciação da prova e se é de alterar a decisão da matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo quanto aos pontos mencionados pela recorrente - factos 23º a 26º, não provados – por forma a passarem a provados nos termos das conclusões das alegações supra exaradas;
2ª - Do erro da decisão de mérito.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. FACTOS PROVADOS
São os seguintes os factos considerados provados, com relevância, para a decisão (transcrição):
1. Sob o n. 993/19910604, na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos, com a propriedade aí definitivamente inscrita a favor de B…, SA, encontra-se um prédio com a seguinte descrição: rústico denominado “C…” ou “C1…”, sito em …, da Freguesia …, concelho de Matosinhos (anterior descrição em livro n.º 4771, Livro n.º15), e inscrito na matriz sob o artigo 355.
2. O referido prédio confronta a sul com terreno do 2ª cemitério paroquial.
3. A nascente confronta com “D…” e a poente com arruamento.
4. Sendo que este “novo arruamento” é o arruamento de acesso ao cemitério, que já foi construído há vários anos, entre a Rua … e o Cemitério, a poente do terreno aqui em causa.
5. Em Agosto de 2013 foi afixado um cartaz da Câmara Municipal … – Direcção Municipal de Investimentos e Infraestruturas, a anunciar a construção de “Novo Acesso ao Cemitério …”.
6. Ou seja, obras para construção de um arruamento para acesso ao cemitério.
7. Tendo-se verificado, entretanto, que, além do arruamento, está a ser construído um parque de estacionamento.
8. No dia 14/08/2013, foram abertos mais dois buracos junto ao cemitério, demonstrando que as obras de construção em causa estavam em curso.
9. Foi, ainda, terraplanado o terreno e colocados lancis.
10. Essas obras do réu ocupam 20 metros, contados desde o muro do cemitério (ou seja, na parte poente).
11. E, do lado contrário, na parte nascente, ocupam 31 metros.
12. Junto ao cemitério (i.e. a sul) ocupam 41 metros e, do lado oposto, 43,5 metros.
13. Sendo a área total ocupada de cerca de 346 m2.
14. A autora apresentou, em 2005, um pedido de licenciamento relativo à construção de um edifício destinado a “E…”, a que foi atribuído o n.º de Pedido …...
15. No âmbito desse processo de licenciamento realizou-se, pelo menos, uma reunião entre os representantes da autora e os serviços do réu em que, nomeadamente, foi analisada a questão dos limites norte do terreno.
16. Nessa reunião nunca os serviços e/ou representantes do réu suscitaram qualquer questão quanto ao réu ser proprietário do terreno em causa.
17. Em 06/12/2010, o referido pedido de licenciamento foi deferido por despacho do Presidente da Câmara Municipal ….
18. O referido projeto não veio a ser iniciado em virtude da difícil conjuntura económica que, entretanto, o país tem vindo a sofrer.
19. Junto à providência cautelar, mostra-se junto um ofício, com data de 12/07/2012 dirigido à autora, em que se lhe comunica que a licença para a referida operação urbanística caducou.
20. A autora nunca foi notificada de qualquer indeferimento ou declaração de caducidade da referida licença urbanística.
21. Neste âmbito, a autora apenas foi notificada de “projecto de decisão”, de 2012, em que o município passou a invocar que seria proprietário de parte dos terrenos.
22. Mais se refira que, em Abril de 2013, a mesma Câmara … veio notificar a autora, na qualidade de proprietária do prédio em causa, para proceder à limpeza de “vegetação diversa” existente no mesmo.
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2. FACTOS NÃO PROVADOS
O Tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos:
23. O referido prédio confronta a sul com o cemitério paroquial e a norte com a Rua ….
24. O cartaz referido em 5 foi afixado no prédio referido em 1.
25. As obras do réu ocupam parte do terreno referido em 1.
26. O “E…” situa-se nos terrenos agora ocupados, tendo sido então salvaguardada uma distância de cerca de 5 metros em relação ao cemitério por razões urbanísticas.
27. O processo de licenciamento foi indeferido pelos serviços do réu, porquanto haveria uma grande imprecisão nos limites da propriedade desenhada na planta junto a tal processo.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1º - Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Tendo a Recorrente, que impugna a decisão da matéria de facto, dado cumprimento aos ónus impostos pelo nº1, do artigo 640.º, do Código de Processo Civil, diploma a que nos reportamos na falta de outra menção, pois que faz referência aos concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados (al. a)), indica os elementos probatórios que conduziriam à alteração daqueles pontos nos termos por ela propugnados (al. b)) e a decisão que, no seu entender, deveria sobre eles ter sido proferida (al. c)) e indica, ainda, as passagens da gravação em que funda o recurso (al. a), do nº2, do citado normativo), cumpre apreciar a impugnação da matéria de facto e fixar, definitivamente, tal matéria, para, de seguida, se analisar da modificabilidade da fundamentação jurídica, sendo as conclusões das alegações do recorrente que balizam a pronúncia do Tribunal (v. nº1, do art. 639º e art. 635º).
Cumpridos aqueles ónus – o de alegar e formular conclusões (nº1, do art. 639º) e de efetuar as referidas especificações impostas pelo nº1, do art. 640º e, ainda, indicadas as passagens da gravação em que se funda o recurso (nº2, deste artigo) - e, portanto, nada obstando ao conhecimento do objeto de recurso, cabe observar que se não vai realizar novo julgamento nesta 2ª Instância, mas tão só reapreciar os concretos meios probatórios relativamente aos pontos de facto impugnados, como a lei impõe.
O nº1, do art. 662º, ao estabelecer que a Relação aprecia as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, pretende que a Relação faça novo julgamento da matéria de facto impugnada, que vá à procura da sua própria convicção, assegurando, desse modo, o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto.
O âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, deve conter-se dentro dos seguintes parâmetros:
a) o Tribunal da Relação só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente;
b) sobre essa matéria de facto impugnada, o Tribunal da Relação tem que realizar um novo julgamento;
c) nesse novo julgamento o Tribunal da Relação forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Dentro destas balizas, o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição, que é, está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, sendo que, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas ficando aquém quanto a fatores de imediação e de oralidade.
E, na verdade, este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode deitar por terra a livre apreciação da prova, feita pelo julgador em 1ª Instância, construída dialeticamente e na importante base da imediação e da oralidade.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova[1] (consagrado no artigo 607.º, nº 5 do CPC) que está atribuído ao tribunal da 1ª instância, mas na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também, elementos que escapam à gravação vídeo ou áudio e, em grande medida, na valoração de um depoimento pesam elementos que só a imediação e a oralidade trazem.
Com efeito, no vigente sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo adquirido no processo. O que é essencial é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado[2]. A lei determina expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4).
O princípio da livre apreciação de provas situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis[3].
E na reapreciação dos meios de prova, o Tribunal de segunda instância procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção - desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância. Impõe-se-lhe, assim, que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação (seja ela a testemunhal seja, também, a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser, também, fundamentada).
Ao Tribunal da Relação competirá apurar da razoabilidade da convicção formada pelo julgador, face aos elementos que lhe são facultados.
Porém, norteando-se pelos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e regendo-se o julgamento humano por padrões de probabilidade, nunca de certeza absoluta, o uso dos poderes de alteração da decisão sobre a matéria de facto, proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, pelo Tribunal da Relação deve restringir-se aos casos de desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados, devendo ser usado, apenas, quando seja possível, com a necessária certeza e segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Assim, só deve ser efetuada alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, designadamente documental, apontam para direção diversa e impõem uma outra conclusão, que não aquela a que chegou o Tribunal de 1ª Instância.
Na apreciação dos depoimentos, no seu valor ou na sua credibilidade, é de ter presente que a apreciação dessa prova na Relação envolve “risco de valoração” de grau mais elevado que na primeira instância, em que há imediação, concentração e oralidade, permitindo contacto direto com as testemunhas/partes, o que não acontece neste tribunal. E os depoimentos não são só palavras; a comunicação estabelece-se, também, por outras formas que permitem informação decisiva para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras da experiência comum e que, no entanto, se trata de elementos que são intraduzíveis numa gravação.
Por estas razões, está em melhor situação o julgador de primeira instância para apreciar os depoimentos prestados uma vez que o foram perante si, pela possibilidade de apreensão de elementos que não transparecem na gravação dos depoimentos.
Em suma, o Tribunal da Relação só deve alterar a matéria de facto se formar a convicção segura da ocorrência de erro na apreciação dos factos impugnados.
E o julgamento da matéria de facto é o resultado da ponderação de toda a prova produzida. Cada elemento de prova tem de ser ponderado por si, mas, também, em relação/articulação com os demais. Cada depoimento tem de ser conjugado com os outros e todos eles com os demais elementos de prova.
Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjetivas – como a prova testemunhal -, a respetiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e o tribunal de 2.ª instância só deve alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando, efetivamente, se convença, com base em elementos lógicos ou objetivos e com uma margem de segurança elevada, que houve erro na 1.ª instância.
Em caso de dúvida, deve, aquele Tribunal, manter o decidido em 1ª Instância, onde os princípios da imediação e oralidade assumem o seu máximo esplendor, dos quais podem resultar elementos decisivos na formação da convicção do julgador, que não passam para a gravação.
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Tendo presentes os mencionados princípios orientadores, vejamos se assiste razão à Autora, Apelante, nesta parte do recurso que tem por objeto a impugnação da matéria de facto nos termos por ela pretendidos.
Insurge-se a apelante contra a decisão da matéria de facto por a prova documental e testemunhal produzida impor decisão diversa aos factos 23 a 26, não provados, a condicionar, de forma decisiva, a decisão.
Conclui dever ser alterada a resposta dada aos factos 23 (para provado que o prédio confronta a norte com a Rua Belchior Robles), 24 (para provado que o cartaz anunciando a obra foi afixado no terreno da Autora) e 25 (para provado que as obras da ré ocupam parte do tereno da Autora), pois os depoimentos das testemunhas F… e G…, conjugados com a certidão do registo predial do prédio da Autora, os documentos 9 da petição inicial, os documentos 7, 11, 12 e 13 juntos com a providência cautelar, e a resposta dada aos factos 1, 2, 10, 11, 12 e 13, impõem a convicção de que as obras realizadas pela CM … invadem o terreno propriedade da Recorrente, sendo que esta dista no máximo 6 metros do muro do cemitério e as obras avançam muito para lá desse limite. E quanto ao facto 26, sustenta que o documento nº 4 junto pela CM … na sua oposição ao procedimento cautelar prova que a CM … considera existir sobreposição entre a zona de implantação do projeto licenciado e a propriedade municipal, pelo que se impunha que a valoração do documento fosse para além do que ficou consagrado no facto provado 12 e se determinasse como provado que o E… se situa nos terrenos agora ocupados.
Conclui a recorrente que a sentença proferida nos autos julgou incorretamente os seguintes itens da matéria de facto não provada:
“23. O referido prédio confronta a sul com o cemitério paroquial e a norte com a Rua ….
24. O cartaz referido em 5 foi afixado no prédio referido em 1.
25. As obras do réu ocupam parte do terreno referido em 1.
26. O “E…” situa-se nos terrenos agora ocupados, tendo sido então salvaguardada uma distância de cerca de 5 metros em relação ao cemitério por razões urbanísticas”..
Após análise da posição das partes assumida nos articulados e de toda a prova produzida e visto o despacho que fundamentou a decisão da matéria de facto, ficou-nos a convicção, segura, de que, in casu, inexiste o apontado erro de julgamento, antes livre convicção do julgador, objetivamente, e bem, sustentada na prova que refere, fundada, coerente, credível e convincente.
Vejamos.
Motivou o tribunal a quo a decisão da matéria de facto quanto aos itens impugnados do seguinte modo: “Quanto ao facto 23 não ficou o tribunal seguro sobre as reais confrontações do prédio em causa.
De facto, a testemunha F… a esse respeito apenas sabe as indicações que lhe foram dadas para efeitos do uso (carga e descarga de madeiras) que era feito de tal terreno.
Apenas conhece o prédio desde a data da sua aquisição e não esteve presente em qualquer acto de delimitação de estremas, nem teve contacto ou relação com algum dos confinantes de onde pudesse retirar tal informação.
Por seu turno, a testemunha G… procura explicar o facto do aumento da área que para o prédio consta no registo predial.
Antes do mais cabe referir que na escritura de dação em pagamento mediante a qual a autora adquiriu o prédio aqui em causa (junta a fls 132 e ss) o mesmo apenas consta com a área de 4100m2. (substancialmente inferior aos 5692m2 que constam do actual registo do prédio (que antes registaria aqueles 4100 m2) e que a autora aqui defende.
Refere tal testemunha que tal área e as actuais confrontações do prédio resultam de levantamento efectuado de acordo com as indicações de um tal H…, que seria o titular do terreno de D….
Estranha-se que não tenham sido contactados, para tal delimitação os demais confrontantes, ou quem se arrogasse como tal, como de tal depoimento e do depoimento de I… (cujas funções na Câmara Municipal … passam pela gestão da informação geográfica e cartográfica) parece ser o caso da J….
No fundo, parece que a autora baseou toda a informação sobre as delimitações do prédio, no que lhe foi referido por apenas um dos confrontantes, que nem sequer confrontava com a parte agora em litígio.
Não tendo sido ouvida em juízo tal pessoa, nem sequer se sabe qual a sua razão de ciência, não se podendo aquilatar da precisão das informações que terá prestado.
Mais decorreu do depoimento de I…, que o município réu tem, anexo à escritura de compra e venda de aquisição do seu terreno, uma planta que indica como integrando tal compra a parcela aqui em causa (documentos de fls. 159 e ss, juntos na providência cautelar).
Acrescentando tal testemunha que o prédio do réu também tem tal configuração na cartografia que se mostra arquivada no município.
Por outro lado, o facto de o réu ter notificado a autora para proceder à limpeza do seu prédio, não implica que considere a parcela reivindicada como fazendo parte do mesmo.
Tudo exposto, não ficou o tribunal seguro dos limites que a autora indica para o seu terreno, não conseguindo dar como provado o facto 23.
Nem conseguindo concluir que o cartaz referido em 24 e as obras referidas em 25 foram levadas a cabo dentro da propriedade da autora (consequentemente, também não se provando estes dois factos).
Sustenta a autora e prova que viu aprovado o seu projecto para construção de um “E…”. No entanto, da planta junta a fls. 91 não se consegue concluir com segurança qual a parte de tal construção que iria ocupar a parcela aqui reivindicada. (aliás, na mesma nem se conseguiu ver a escala à qual terá sido desenhada)
Por outro lado, não se mostra junto na sua integralidade o processo de licenciamento em causa, apenas cópias de pontuais partes do mesmo.
Não se consegue, assim, saber com segurança o que no seu âmbito foi discutido e apreciado. Designadamente, se foi aceite, ainda que de forma tácita, a propriedade da autora sobre a parcela aqui em causa.
E se o projecto final aprovado foi o que consta de fls 91.
De tal processo, não se consegue assim, retirar nenhum argumento que vá inequivocamente no sentido da factualidade referida em 23 a 25.
Nem se consegue de tais documentos (sendo que os depoimentos das testemunhas da autora neste particular nada ajudam, uma vez que nenhuma se referiu à concreta localização do E…) extrair convicção que permita dar como provado o facto 26”.
Na verdade, quanto à matéria impugnada – factos 23 a 26, da matéria de facto (factos não provados) -, importa referir que não adveio ao conhecimento do Tribunal qualquer elemento seguro, credível, plausível e convincente que imponha respostas diversas, nenhum erro se verificando.
A decisão assentou na ausência de prova, certo sendo tal falta, nada impondo a alteração na matéria de facto constante da sentença recorrida.
Com efeito, os elementos de prova, de livre apreciação, não podem ser considerados de modo estanque e individualizado, tendo de se efetuar uma análise crítica, conjunta e conjugada dos aludidos elementos probatórios, para que se forme uma convicção coerente e segura. Fazendo essa análise crítica, conjunta e conjugada, e com base nas regras de experiência comum, não pode este Tribunal, com segurança, divergir do juízo probatório efetuado pelo Tribunal a quo.
Acresce que, da análise conjunta e conjugada de toda a prova produzida, documental junta aos autos e testemunhal, bem resulta, como de modo esclarecedor motiva a tribunal a quo, se não pode dar como provado que o prédio confronta a norte com a Rua …, que o cartaz referido em 5 foi afixado no prédio referido em 1, que as obras do réu ocupam parte do terreno referido em 1., nem que o “E…” se situe nos terrenos agora ocupados, tendo sido então salvaguardada uma distância de cerca de 5 metros em relação ao cemitério por razões urbanísticas., por falta de prova minimamente segura que permita formar convicção no sentido de tais factos se verificarem.
E, na verdade, como se pode constatar da prova registada, a cuja integral audição se procedeu, nenhuma dúvida existe de que tais factos bem foram dados como não provados por, como referido, total falta de prova segura e convincente que permita dar os referidos factos como provados.
Nenhum erro se verifica nos referidos factos não provados, antes livre convicção, assim devidamente fundada, que, também, é a nossa.
Bem decidiu o Tribunal a quo, por se verificar, na verdade, falta de prova, sendo que da prova produzida não resultam elementos que permitam, com o mínimo de segurança, dar como provado o pretendido pela apelante, nada resultando dos documentos e nada sabendo as duas testemunhas inquiridas, acima identificadas, do que foi acordado aquando da aquisição do terreno pela Autora, sendo que a testemunha F… apenas sabe as indicações que lhe foram dadas para efeitos do uso (carga e descarga de madeiras) que era feito de tal terreno, apenas conhecendo o prédio desde a data da sua aquisição e não esteve presente em qualquer ato de delimitação de estremas, nem teve contacto ou relação com algum dos confinantes e a testemunha G… apenas conhece o terreno desde 2003 nada mostrando saber do que concerne à parte agora em litígio, nenhuma razão de ciência plausível apontando, como bem refere o Tribunal a quo, que permita considerar a parcela reivindicada como fazendo parte do prédio da Autora.
Destarte, não resultando os pretensos erros de julgamento, antes convicção livre, respeitável, acertada e adequadamente formada pelo julgador, não cabe efetuar qualquer aditamento ou alteração à decisão da matéria de facto.
Conclui-se, pois, pela improcedência da apelação, nesta parte.
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2ª - Do erro da decisão de mérito
Insurge-se a Autora contra a decisão que julgou improcedente a sua pretensão, bem tendo, contudo, considerado o Tribunal a quo, atenta a decisão da matéria de facto que proferiu e que se mantém.
Dependendo o pedido de alteração do decidido na sentença proferida nos autos no que à interpretação e aplicação do direito respeita, do prévio sucesso da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não tendo a apelante logrado impugnar, com sucesso, tal matéria, que assim se mantém inalterada, fica, necessariamente, prejudicado o seu conhecimento, o que aqui se declara, nos termos do nº2, do art. 608º, aplicável ex vi parte final, do nº2, do art. 663º e do nº 6, deste artigo.
Em todo o caso sempre se diz que, não provando a autora que a parcela reivindicada se situa dentro dos limites desse seu prédio, não pode prevalecer-se de presunção derivada do registo, como bem fundamenta o Tribunal a quo, e não tendo sido alegados factos destinados a provar a aquisição originária da mesma, improcede a sua pretensão.
E bem decidiu a 1ª instância ao considerar não resultar o direito da Autora, pois que dos factos que resultaram provados se não consegue concluir pela existência de abuso de direito por parte da ré.
Na verdade, bem entendeu o Tribunal a quo que, vindo o abuso de direito previsto no artigo 334º, do Código Civil, nos termos do qual “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”, a matéria de facto provada não permite subsumir o caso à referida norma, fundamentando:
“No fundo, encontram protecção, nesta norma, aquelas situações em que o direito é exercido de forma a prosseguir um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que deverá ser exercido (Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, 1987, pág.300), independentemente do titular do direito ter ou não consciência de que ultrapassa tais limites.
Menezes Cordeiro (in “Da Boa-Fé no Direito Civil”, 1997, págs. 719 e ss) refere alguns dos casos mais típicos de abuso de direito: exceptio doli, venire contra factum proprium, inalegabilidade de nulidades formais, supressio e surrectio, tu quoque e desequilíbrio no exercício jurídico.
Como se escreve no Ac. da RL de 17-03-2009 (disponível em www.dgsi.pt), (…) “a expressão da lei – manifesto excesso dos limites impostos pela boa-fé – vêm a doutrina e a jurisprudência incluindo os casos de inalegabilidade de nulidades formais, da chamada conduta contraditória ("venire contra factum proprium"), da "exceptio doli" (poder que uma pessoa tem de repelir a pretensão do autor, por este ter incorrido em dolo), da "suppressio" e da "surrectio" (o direito que não foi exercido em certas condições e durante certo lapso de tempo, não pode mais sê-lo: faz desaparecer um direito que não corresponda à efectividade social - "suppressio"; ou faz surgir um direito não existente antes, juridicamente, mas que, na efectividade social era tido como presente - "surrectio") e a doutrina condensada na expressão "tu quoque", que traduz, com generalidade, o aflorar de uma regra segundo a qual a pessoa que viole uma norma jurídica não poderia, sem abuso, exercer a situação jurídica que essa mesma norma lhe tivesse atribuído. Embora a possibilidade de invocação da figura do abuso de direito, por inobservância de aspectos formais prescritos, não tenha entendimento uniforme nem na doutrina nem na jurisprudência, a verdade é que é hoje maioritariamente a favor da possibilidade dessa invocação ”desde que, no caso concreto, as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso de direito servirá de válvula de escape no nosso ordenamento jurídico, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo”.
Ora no caso concreto, do alegado, o que se provou foi que a autora apresentou, em 2005, um pedido de licenciamento relativo à construção de um edifício destinado a “E…”, a que foi atribuído o n.º de Pedido …...
Sendo que no âmbito desse processo de licenciamento se realizou pelo menos uma reunião entre os representantes da autora e os serviços do réu em que, nomeadamente, foi analisada a questão dos limites norte do terreno, não tendo na mesma sido suscitada qualquer questão quanto ao réu ser proprietário do terreno em causa.
Mais se provou que, em 06/12/2010, o referido pedido de licenciamento foi deferido por despacho do Presidente da Câmara Municipal ….
E que o referido projecto não veio a ser iniciado em virtude da difícil conjuntura económica que, entretanto, o país sofreu.
A autora nunca foi notificada de qualquer indeferimento ou declaração de caducidade da referida licença urbanística, sendo que, neste âmbito, a autora apenas foi notificada de “projecto de decisão”, de 2012, em que o município passou a invocar que seria proprietário de parte dos terrenos.
Não se provou, no entanto, que o dito E… ocupasse a parcela reivindicada.
Tudo exposto não parece que do pouco que se conseguiu provar se consiga extrair que o réu actue em abuso de direito (obviamente na modalidade de venire contra factum proprium) ao defender agora a sua propriedade sobre a parcela aqui reivindicada.
De facto, não se consegue concluir que em sede de tal procedimento administrativo de licenciamento tivesse expressamente, ou pelo menos de forma tácita mas inequívoca reconhecido a autora como proprietária da mesma.
Quanto ao facto de, em Abril de 2013, a mesma Câmara de Matosinhos ter notificado a autora, na qualidade de proprietária do prédio em causa, para proceder à limpeza de “vegetação diversa” existente no mesmo, tal igualmente não implica que tivesse reconhecido ou actuado como se a parcela reivindicada integrasse o prédio cuja limpeza é peticionada”.
Verifica-se, pois, que a Autora não logrou, efetivamente, provar os factos constitutivos do direito que pretende fazer valer, pelo que, sempre, a ação tem de improceder, como decidido.
Na verdade, consagra, desde logo, o nº1, do artigo 342º, do C. Civil, que regula a questão do ónus da prova, que “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”. Não tendo a Autora logrado provar os factos que alegou, constitutivos do direito de que se arroga, tem de sofrer as consequências desvantajosas de o não ter conseguido.
Assim, e sem necessidade de mais considerações, verifica-se que não tem a Autora o direito que invoca já que não logrou provar os factos em que fundamenta a ação. E porque nenhuma alteração na matéria de facto foi introduzida, por absoluta falta de prova segura, credível e convincente, é de manter a fundamentação de direito e o decidido, tendo a Autora de sofrer as consequências do incumprimento de tal ónus da prova - a improcedência da ação, como bem se decidiu.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo violação de qualquer normativo invocado pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.
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Custas pela apelante, pois que ficou vencida – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 8 de novembro de 2021
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
Maria José Simões
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[1] Ac. RC de 3 de outubro de 2000 e 3 de junho de 2003, CJ, anos XXV, 4º, pág. 28 e XXVIII 3º, pág 26
[2] Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 348.
[3] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil, vol II, pag.635.