Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
39/14.9SFPRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ERNESTO NASCIMENTO
Descritores: DESPACHO DE APLICAÇÃO DE MEDIDA DE COAÇÃO
DESCRIÇÃO DOS FACTOS
NULIDADE
Nº do Documento: RP2015070139/14.9sfprt-B.P1
Data do Acordão: 07/01/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A comunicação dos factos, a que se refere p artº 194º 4 CPP, deve ser feita com a concretização necessária a que um inocente possa ficar ciente dos comportamentos materiais que lhe são imputados e da sua relevância jurídico – criminal, por forma a que lhe seja dada oportunidade de defesa – artº 28º1 CRP.
II – Não constando do despacho que aplicou a medida de coação a descrição dos factos concretos indiciariamente imputados, este é nulo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 39/14.9SFPRT da Comarca do Porto, Porto, Instância Central, 1.ª Secção Instrução Criminal, J3

Relator - Ernesto Nascimento.
Adjunto – Artur Oliveira

Acordam, em conferência, na Secção Criminal da Relação do Porto:

I. Relatório:

I. 1. Depois do 1.º interrogatório de arguido detido, foi proferido despacho a aplicar ao arguido B… a medida de coação de prisão preventiva, indiciado pela prática, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º/1 do Decreto Lei 15/93 de 22/01 com fundamento nas disposições conjugadas dos artigos 191.º a 193.º, 196.º, 198.º, 204.º alíneas a) e c), e 202.º/1 alíneas a) e c) C P Penal.

I. 2. Inconformado com este despacho, recorreu o arguido apresentando aquilo que denomina de conclusões, mas que como tal não podem ser consideradas, pelo menos, na noção legal de resumo das razões do pedido e, que por isso aqui se não transcrevem, apenas se enunciando as questões aí suscitadas e que são a de saber se,
se se mostram violados ou incorretamente aplicados os artigos 17.º, 27.º e 32.º da CRP, 191.º. 193.º, 194.º, 202.º, 204.º e 212.º C P Penal e 50.º/1 C Penal.

I. 2. Na resposta a Magistrada do MP defende o não provimento do recurso.

I. 3. Antes da subida dos autos a este Tribunal foi proferido despacho a sustentar tabelarmente o decidido.

II. Já neste, no seu parecer o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto pugna pela rejeição do recurso por ser manifesta a sua improcedência.

No exame preliminar o relator deixou exarado o entendimento de que o recurso foi admitido com o efeito adequado e que nada obstava ao seu conhecimento.
Seguiram-se os vistos legais.
Foram os autos submetidos à conferência e dos correspondentes trabalhos resultou o presente acórdão.

III. Fundamentação

III. 1. Como é sabido, o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões da motivação apresentada pelo recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas - a não ser que sejam de conhecimento oficioso - e, que nos recursos se apreciam questões e não razões, bem como, não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, então, a questão suscitada no presente, é tão só, a de saber se,
com o despacho recorrido se mostram violados ou incorretamente aplicados os artigos 17.º, 27.º e 32.º da CRP, 191.º. 193.º, 194.º, 202.º, 204.º e 212.º C P Penal e 50.º/1 C Penal.

III. 2. Vejamos primeiro, o teor do despacho recorrido:

(…) Dos elementos já carreados aos autos, indiciam fortemente os autos, a prática pelos arguidos, C… e B…, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º/1 do Decreto Lei 15/93 de 22/01 e os arguidos D… e E… um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º, do mesmo Decreto estando também o arguido D… indiciado pelo crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º alíneas c) e d) da Lei 5/2006 de 23/02.
Tais indícios fundamentam-se, essencialmente no auto de notícia por detenção de fls. 230-246, auto de busca e apreensão de fls. 134-135, 157-158, 203-205, relatórios de vigilância de fls. 41-42, 44-45, 47 e 48, auto de apreensão de fls. 123, 137, 159, testes rápidos de fls. 124, 136, 160-161, 206-207 e reportagem fotográfica de fls. 146-148, 172-175, 216-225, 229.
O tipo de ilícito em causa, para além do mais, é gerador de forte alarme social, de proporcionar a angariação de quantias monetárias elevadas e ainda de pôr em causa a ordem e tranquilidade públicas.
Há que distinguir a situação dos arguidos B… e C… relativamente aos arguidos D… e E…, sendo que quanto a estes dois últimos e apesar da gravidade os factos indiciados, concordamos com o estatuto coactivo promovido.
Quanto ao arguido C…: prestou declarações, assumiu a totalidade dos factos, explicando que foi buscar a droga apreendida ao Brasil, esclarecendo mesmo que não se tratou da primeira vez que efectuou serviços do género, referindo que em Janeiro se deslocou aquele país para trazer meio quilo de droga, recebendo em contra partida 1500 euros. Se outros elementos probatórios não existissem, atento o teor das suas declarações e a enorme quantidade de droga apreendida (mais que um quilo), dúvidas não temos sobre estar fortemente indiciado este crime e face à sua gravidade entender como única medida adequada, a prisão preventiva.
Tentou este arguido convencer o tribunal que só ele sabia da existência da droga, negando o envolvimento do arguido B… no tráfico aqui investigado.
Os presentes autos encontram-se em segredo de justiça, sendo que ainda por força do disposto no artigo 141.º/3 alínea e) C P Penal, podem não ser comunicados aos arguidos todos os factos, se dessa comunicação resultar a frustação da investigação. Não foram assim comunicados aos arguidos algumas situações dos autos, estando porem demonstrado que o arguido B… conhece um dos principais arguidos investigado nestes autos, com ele mantendo contactos, conforme vigilâncias efectuadas.
Resulta igualmente dos autos, tendo tal diligência sido dada conhecer ao arguido C… que este contactou com a companheira/mulher do arguido B…, tendo esta sido vista a entregar aquele dinheiro que aquele conferiu e colocou no bolso das calças.
Está igualmente indiciado tendo de tal sido dado conhecimento aos arguidos, que pelo menos duas vezes os arguidos B… e C… foram vistos juntos conforme vigilâncias juntas aos autos.
Apesar do esforço do arguido C… no sentido de afastar o arguido B… do tráfico em investigação, pelo primeiro foi dito que viajou para o Brasil no mesmo período em que a companheira do arguido B… o fez, sendo que regressaram Portugal no mesmo voo. O arguido C… diz que foi uma coincidência, sendo que, atentas as regras de experiência e os elementos probatórios existentes nos autos, há razões para crer, atenta a vigilância de fl.s 47 já referida, que, também a mulher do arguido B… saberia da razão da viagem.
Por outro lado, e embora os arguidos C… e B… tenham sugerido que foi a policia que “manipulou” a forma como a droga foi encontrada, tal insinuação carece de fundamento pois, como é referido pelo arguido C…, a droga estava no veiculo onde este e o arguido B… foram abordados pelo polícia. Ora, se assim fosse, certamente teria sido encontrada pela polícia (estamos a falar em mais do que um quilo de droga) e estando os dois arguidos na viatura ambos seriam responsáveis pela sua detenção ilícita. Decorre dos autos que foi feita uma busca ao veículo – fls. 233, e que nada foi apreendido (para além dos 430 euros ao arguido B… e dos 15,68 gramas de cocaína acondicionados no corpo do arguido C…). Carece igualmente de credibilidade o referido pelo arguido C… quando refere que deixou parte da droga junto dos genitais, pois se retirou quase a totalidade de droga que tinha acondicionado no corpo, na casa de banho do aeroporto, conforme referiu, não se iria esquecer de parte dela.
Não temos dúvidas assim em concluir pela responsabilidade dos dois arguidos na detenção de droga que daria para, conforme se refere a fls. 252, 13 337 doses individuais com um lucro de 66 685 euros.
Face ao modo como se desenvolve a actividade do tráfico, tanto mais que o grosso da droga apreendida se encontrava numa residência, é ineficaz, para estancar o perigo de continuação da actividade criminosa, a obrigação de permanência na habitação, mesmo com recurso a vigilância electrónica, sendo que este crime se pode desenvolver a partir da residência, com ajuda de familiares, o que parece ser caso.
Assim, considerando a gravidade dos factos, tendo em conta que o arguido C… confessou até já ter feito ouras voagens como correio de droga, existindo quanto a este arguido, perigo de fuga, pois sai com facilidade do território nacional, tendo contactos no Brasil, tendo em conta a quantidade e qualidade de droga apreendida, sendo certo que o arguido B… tinha na sua posse mais de 400 euros em dinheiro, por todas as razões acima enunciadas, existindo flagrante perigo de continuação de actividade criminosa, considerando avultados lucros inerentes ao tráfico, entendemos como única medida coactiva eficaz para acautelar os interesse em investigação e prevenir os perigos inerente a este ilícito, a prisão preventiva.
Pelo exposto e sem necessidade de outros considerandos, determino que os arguidos, D… e E…, aguardem os ulteriores termos do processo, em liberdade, sujeitos às obrigações decorrentes do TIR já prestado, e bem assim a apresentações bissemanais, às quartas e aos sábados, o primeiro e semanais, aos sábados, o segundo, entre as 09.00 e as 20.00 horas, no posto policial das áreas das suas residências, de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 191.º a 193.º, 196.º, 198.º, 204.º alínea c) C P Penal.
Quanto aos arguidos C… e B…, considerando as razões expostas na promoção que antecede, cujos termos aqui dou por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, quer quanto à qualificação jurídica dos factos, quer quanto às medidas coactivas, determino que os mesmos aguardem os ulteriores termos processuais em prisão preventiva, além do TIR, já prestado – de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 191.º a 193.º, 196.º, 198.º, 204.º alíneas a) e c), e 202.º/1 alíneas a) e c) C P Penal.
Restitua os arguidos E… e D… à liberdade.
Cumpra o disposto no n.º 9 e nº 10 do art.194.º do C.P.P.
Comunique às autoridades policiais competentes, com a menção de que logo que se verifique a primeira falta seja de imediato e pela via mais rápida, informado os respectivos serviços do M.ºP.º.
Passe os competentes mandados de condução dos arguidos C… e B… ao E.P.P.
(…)”

III. 3. Abordaremos, de seguida as questões suscitadas, pela ordem da sua precedência lógica.

Começaremos, então pela alegada questão – que o arguido não qualifica, é certo, de nulidade – mas que invoca, de forma expressa, quer de facto, quer de Direito, consubstanciada no facto de nos termos do artigos 194.º/5 e 6 C P Penal, ser imperativo que o julgador fundamente concretamente a decisão de aplicação da medida de coacção – que na sua perspectiva não se terá verificado in casu.

III. 3. 1. Dispõe o n.º 4 do artigo 141.º C P Penal – que tem a epígrafe de 1.º interrogatório judicial de arguido detido - que ”seguidamente, o juiz informa o arguido:
a) dos direitos referidos no artigo 61º/1, explicando-lhos se isso for necessário;
b) de que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova;
c) dos motivos da detenção;
d) dos factos que lhe são concretamente imputados, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo e,
e) dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser em causa investigação, não dificultar a descoberta da verdade nem criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime,
ficando todas estas informações, à excepção das previstas na alínea a) a constar do auto de interrogatório”.

As alterações a esta norma – ressalvada a última, acerca da valoração das declarações, que ao caso não vem – introduzidas através da Lei 48/2007, aconteceram na sequência de decisões proferidas sobre a matéria, pelo Tribunal Constitucional, como de resto, aconteceu, em relações a muitas outras normas, que passaram a consagrar o entendimento que sobre elas este Tribunal vinha manifestando, ao longo dos tempos.
Com efeito no Ac. 416/2003 aquele Tribunal havia decidido, “ser inconstitucional aquela norma, quando interpretada no sentido de que, no decurso do interrogatório do arguido detido, a “exposição dos factos que lhe são imputados” pode consistir na formulação de perguntas gerais e abstractas, sem concretização das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que correram os factos que integram a prática desses crimes, nem comunicação ao arguido dos elementos de prova que sustentam aquelas imputações e na ausência da apreciação em concreto da existência de inconveniente grave naquela concretização e na comunicação dos específicos elementos probatórios em causa”.
Como da mesma forma decidiu no Ac. 607/2003, ser inconstitucional a mesma norma, na interpretação segundo a qual, “no decurso do interrogatório de arguido detido, a exposição de factos que lhe são imputados e dos motivos das detenção se basta com a indicação genérica ao arguido das infracções penais de que é acusado, da identidade das vítimas como alunos, à data da casa Pia de Lisboa e outras pessoas, mas todas elas menores de 16 anos, estando o tribunal dispensado, por inutilidade, de proceder a maior pormenorização além da que resulta da indicação feita em tais termos, quando o arguido, confrontado com ela, tome a posição de negar globalmente os factos e na ausência de apreciação em concreto da existência de inconvenientes graves naquela concretização”.
Na sequência daquela alteração legislativa, da mesma forma, sofreu alteração o artigo 194º, desde logo, o seu nº. 3, que dispunha que “o despacho o juiz a aplicar medidas de coacção, é notificado ao arguido e dele constam a enunciação dos motivos de facto da decisão e a advertência das consequências do incumprimento das obrigações impostas”.
Com efeito, hoje, os nºs. 3, 4 e 5, desta norma contêm a seguinte redacção:
nº. 4, “a fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade:
a) a descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo;
b) a enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítima do crime;
c) a qualificação jurídica dos factos imputados;
d) a referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193º e 204”;
nº. 5, ”sem prejuízo do disposto na alínea b) do nº. anterior, não podem ser considerados para fundamentar a aplicação ao arguido de medida de coacção ou garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, quaisquer factos ou elementos do processo que lhe não tenham sido comunicados durante a audição a que se refere o nº. 3”.

III. 3. 2. “O dever de fundamentação das decisões judiciais é uma garantia integrante do próprio Estado de direito democrático, artigo 2º da Constituição da República, ao menos quanto àquelas que tenham por objecto a solução da causa em juízo", cfr Gomes Canotilho e Vital Moreira, in "Constituição da República Portuguesa Anotada", 3 ed. pág. 798.
Este dever de fundamentação mereceu consagração constitucional no artigo 205º nº 1 da CRP, provindo já da revisão de 1982, artigo 210º/1, mantido na revisão de 1989, artigo 208º/1.
De notar que nesta última, que deu lugar à actual redacção do artigo 205º/1 imprimiu contornos mais precisos ao dever de fundamentação, pois, onde antes se remetia para a lei os "casos" em que a fundamentação era exigível, passou a concretizar-se que ela se impõe em todas as decisões "que não sejam de mero expediente", mantendo-se apenas a remissão para a lei quanto à "forma" que ela deve revestir.
Este aprofundamento do dever de fundamentação das decisões judiciais reforça os direitos dos cidadãos a um processo justo e equitativo, assegurando a melhor ponderação dos juízos que afectam as partes, do mesmo passo que a elas permite um controle mais perfeito da legalidade desses juízos com vista, designadamente, à adopção, com melhor ciência, das estratégias de impugnação que julguem adequadas.
“Ao legislador incumbirá, então, definir a "forma" em que a fundamentação se deve traduzir, sem que, contudo, ele possa esvaziar o sentido útil daquele mandado”, cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional 59/97. Qualquer que seja essa forma, ela terá sempre que permitir o conhecimento das razões que motivam a decisão.
Mas se a relevância da fundamentação das decisões judiciais é incontestável como garantia integrante do conceito de Estado de direito democrático, ela assume, no domínio do processo penal, uma função estruturante das garantias de defesa dos arguidos, muito embora o texto constitucional não contenha qualquer norma que disponha especificamente sobre a fundamentação das decisões judicias naquele domínio.
O Código de Processo Penal expressa no artigo 97º/5, o princípio geral que vigora sobre a fundamentação dos actos decisórios: "os actos decisórios são sempre fundamentados devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão".
Consagrado este princípio geral, o mesmo Código não deixou de o reiterar relativamente a actos que afectam ou podem afectar os direitos dos arguidos.
Assim, antes da apontada alteração legislativa, quando o artigo 194.º/3 impunha que do despacho judicial que decrete medidas de coacção e de garantia patrimonial constasse "a enunciação dos motivos de facto da decisão" e num momento em que o C P Penal era omisso sobre as consequências para a sua inobservância, escrevia já o Prof. Germano Marques da Silva, in "Curso de Processo Penal" II, 1993, pág. 225, que os requisitos de fundamentação daquele despacho deveriam ser "todos os necessários para convencer da sua legalidade". "Sobretudo na fase do inquérito, a cuidada fundamentação é absolutamente essencial para garantir o recurso. É que o arguido não tem acesso aos autos do processo e, por isso, para que o recurso possa ter eficácia importa que seja possível que o tribunal que o há-de apreciar possa tomar conhecimento das razões de facto e de direito que justificaram a aplicação da medida pelo tribunal "a quo".

Dispõe o nº 4 do artigo 27º da CRP que “toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos”, preceituando, por sua vez, o n.º 1 do subsequente artigo 28.º que “a detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e comunica-las ao detido, interroga-lo e dar-lhe oportunidade de defesa”.
Estes específicos normativos constituem concretização, quanto aos momentos processuais nelas previstos - privação inicial da liberdade e apreciação judicial da detenção - do princípio geral, plasmado no nº. 1 do artigo 32º, de que “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”.
Embora inserido na fase processual do inquérito − na titularidade do Ministério Público − o interrogatório judicial de arguido detido é um acto jurisdicional que tem funções eminentemente garantísticas e não de investigação ou de recolha de prova. Trata-se de um acto subordinado ao princípio do contraditório, em que o arguido surge como sujeito processual, e não como objecto da investigação, e em que o juiz de instrução deve tentar minorar, na medida do possível, a desigualdade inicial de que partem Ministério Público e arguido quanto ao conhecimento dos factos investigados e da prova recolhida.
Nesta perspectiva, surge como crucial a comunicação ao arguido dos factos que lhe são imputados, quer aquando do interrogatório, quer, depois, no despacho de indiciação e de aplicação das medidas de coação.
Da mesma forma, disposições paralelas existem na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que, no seu artigo 5º/2 e 4, respectivamente, estipulam que “qualquer pessoa presa deve ser informada, no mais breve prazo e em língua que compreenda, das razões da sua prisão e de qualquer acusação formulada contra ela”, e que “qualquer pessoa privada da sua liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal”
“O direito de saber porque se foi detido é indubitavelmente um dos direitos primordiais do indivíduo”, pois “saber que não se pode ser detido sem conhe­cer as respectivas razões é a primeira condição da segu­rança pessoal, é o teste de que se vive numa so­ciedade democrática e num verdadeiro Estado de Direito”.
Por outro lado, “conhecer os motivos da detenção é também a condição sine qua non de uma verdadeira “igualdade de armas”: para se poder defender, para se poder prevalecer das garantias de um processo equitativo, é preciso primeiro saber as razões pelas quais se foi detido”, sob pena de “não apenas ser negado o princípio da presunção de inocência mas também a faculdade de a pessoa detida contestar o bem fundado das suspeitas que pesam sobre ela e de recorrer para um tribunal superior a fim de ser apreciada a legalidade da sua detenção”, cfr. Régis de Gouttes, in Louis-Edmond Petiti e outros, La Convention Européenne des Droits de l’Homme – Commentaire article par article, ed. Economica, Paris, 1995, 203-210,

Por seu turno, Ireneu Cabral Barreto, in A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, 102-103, sintetizando a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, recorda que “o detido deve saber a razão de ser da sua privação da liberdade”, conjugando-se o n.º 2 com o n.º 4 deste artigo 5.º, pois “quem tem o direito de introduzir um recurso sobre as condições da sua privação de liberdade, só poderá utilizar eficazmente este direito se lhe forem comunicados, no mais curto prazo, os factos e as regras jurídicas invocadas para o privar dessa liberdade”.
Embora a obrigação de informação prescrita no n.º 2 deste artigo 5.º seja menos estrita que a referida no artigo 6.º, n.º 3, alínea a) (relativa à comunicação da acusação), e não seja exigível que, no próprio momento da detenção, seja comunicada uma descrição completa das suspeitas que pesam sobre o detido, os factos comunicados devem, contudo, permitir-lhe contestar o bem fundado das suspeitas, sendo o grau de exigência de pormenorização variável consoante o conhecimento que a pessoa detida já tenha, devido a anteriores participações em actos processuais, do conteúdo dessas suspeitas.
Na comunicação dos factos, não se pode partir da presunção da culpabili­dade do arguido, mas antes da presunção da sua inocência, artigo 32º/2 da Constituição. Assim, o critério orientador nesta matéria deve ser o seguinte: a comunicação dos factos deve ser feita com a concretização necessária a que um inocente possa ficar ciente dos comportamentos materiais que lhe são imputados e da sua relevância jurídico-criminal, por forma a que lhe seja dada “oportunidade de defesa”, artigo 28º/1 da Constituição.

III. 3. 3. No caso sub judice, resulta da parte impressa do auto de interrogatório - o que não vem, sequer, colocado em causa – que o arguido foi informado dos motivos da detenção, dos factos que lhe são concretamente imputados e elementos do processo que os indiciam.

Donde nos cingiremos tão só quanto ao teor e fundamentação do despacho recorrido – o que, de resto, coincide com o segmento invocado pelo arguido no recurso.

III. 3. 3. 1. Vejamos a situação da alínea a) do n.º 4 do artigo 194.º - a descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo.

Do despacho recorrido consta, como vimos já e reportado a esta matéria, então, que,

“dos elementos já carreados aos autos, indiciam fortemente os autos, a prática pelos arguidos (…) e B… em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º/1 do Decreto Lei 15/93 de 22/01 (…);
tais indícios se fundamentam, essencialmente no auto de notícia por detenção de fls. 230-246, auto de busca e apreensão de fls. 134-135, 157-158, 203-205, relatórios de vigilância de fls. 41-42, 44-45, 47 e 48, auto de apreensão de fls. 123, 137, 159, testes rápidos de fls. 124, 136, 160-161, 206-207 e reportagem fotográfica de fls. 146-148, 172-175, 216-225, 229;
(…)
Há que distinguir a situação dos arguidos B… e C… relativamente aos arguidos D… e E…, sendo que quanto a estes dois últimos e apesar da gravidade os factos indiciados, concordamos com o estatuto coactivo promovido.
Quanto ao arguido C…: prestou declarações, assumiu a totalidade dos factos, explicando que foi buscar a droga apreendida ao Brasil, esclarecendo mesmo que não se tratou da primeira vez que efectuou serviços do género, referindo que em Janeiro se deslocou aquele país para trazer meio quilo de droga, recebendo em contra partida 1500 euros. Se outros elementos probatórios não existissem, atento o teor das suas declarações e a enorme quantidade de droga apreendida (mais que um quilo), dúvidas não temos sobre estar fortemente indiciado este crime e face à sua gravidade entender como única medida adequada, a prisão preventiva.
Tentou este arguido convencer o tribunal que só ele sabia da existência da droga, negando o envolvimento do arguido B… no tráfico aqui investigado.
(…)
Resulta igualmente dos autos, tendo tal diligência sido dada conhecer ao arguido C… que este contactou com a companheira/mulher do arguido B…, tendo esta sido vista a entregar aquele dinheiro que aquele conferiu e colocou no bolso das calças.
Está igualmente indiciado tendo de tal sido dado conhecimento aos arguidos, que pelo menos duas vezes os arguidos B… e C… foram vistos juntos conforme vigilâncias juntas aos autos.
Apesar do esforço do arguido C… no sentido de afastar o arguido B… do tráfico em investigação, pelo primeiro foi dito que viajou para o Brasil no mesmo período em que a companheira do arguido B… o fez, sendo que regressaram Portugal no mesmo voo. O arguido C… diz que foi uma coincidência, sendo que, atentas as regras de experiência e os elementos probatórios existentes nos autos, há razões para crer, atenta a vigilância de fl.s 47 já referida, que, também a mulher do arguido B… saberia da razão da viagem.
Por outro lado, e embora os arguidos C… e B… tenham sugerido que foi a policia que “manipulou” a forma como a droga foi encontrada, tal insinuação carece de fundamento pois, como é referido pelo arguido C…, a droga estava no veiculo onde este e o arguido B… foram abordados pelo polícia. Ora, se assim fosse, certamente teria sido encontrada pela polícia (estamos a falar em mais do que um quilo de droga) e estando os dois arguidos na viatura ambos seriam responsáveis pela sua detenção ilícita. Decorre dos autos que foi feita uma busca ao veículo – fls. 233, e que nada foi apreendido (para além dos 430 euros ao arguido B… e dos 15,68 gramas de cocaína acondicionados no corpo do arguido C…). Carece igualmente de credibilidade o referido pelo arguido C… quando refere que deixou parte da droga junto dos genitais, pois se retirou quase a totalidade de droga que tinha acondicionado no corpo, na casa de banho do aeroporto, conforme referiu, não se iria esquecer de parte dela.
Não temos dúvidas assim em concluir pela responsabilidade dos dois arguidos na detenção de droga que daria para, conforme se refere a fls. 252, 13 337 doses individuais com um lucro de 66 685 euros.
Face ao modo como se desenvolve a actividade do tráfico, tanto mais que o grosso da droga apreendida se encontrava numa residência, é ineficaz, para estancar o perigo de continuação da actividade criminosa, a obrigação de permanência na habitação, mesmo com recurso a vigilância electrónica, sendo que este crime se pode desenvolver a partir da residência, com ajuda de familiares, o que parece ser caso”.

Cremos resultar evidente, ostensivo, mesmo, que o que aqui consta, desde logo reportado ao recorrente, em termos de imputação de factos,
- pelo menos duas vezes os arguidos B… e C… foram vistos juntos;
- a droga estava no veiculo onde o C… e o B… foram abordados pelo polícia;
- ao B… foi apreendido 430 euros,
não tem a virtualidade de poder integrar, ainda que de forma rudimentar e insuficiente, a noção de “descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo”.
O que aqui consta - mais que decisivamente insuficiente em termos de integrar o tipo legal pelo qual foi indiciado e deficiente, em termos de narração/descrição da factualidade imputada – é, de todo, absoluta e rigorosamente nada.
Nem se diga que a este propósito, em sede de matéria de facto, se faz a remissão para a promoção do MP – que por sua vez remete, ela também, da mesma forma, para um seu requerimento anterior, que alegadamente fará fls. 247 a 254 e que não consta dos autos que instruíram o recurso – pois que a remissão é expressa no sentido de se reportar, tão só “às razões expostas na promoção, quer quanto à qualificação jurídica dos factos, quer quanto às medidas coativas”. Nada mais.
Donde, nem o arguido conhece os factos indiciariamente imputados – apenas tem a noção dos que lhe foram relatados como constando do requerimento do MP a solicitar o seu interrogatório – nem o Tribunal de recurso, os conhece e tão pouco, de forma alguma a eles pode ter acesso.
Carece, pois, o despacho da descrição dos factos con­cretos - no sentido naturalístico - que são, indiciariamente, imputados, o que não pode deixar de constituir circunstância essencial à defesa do arguido e, que, como resulta do teor do recurso, lhe não terá permitido assegurar, de forma efectiva e cabal, este seu direito de defesa - em flagrante e grosseira violação da lei ordinária, nos termos apontados e, mesmo, do consagrado no artigo no artigo 28.º/1 da CRP.
Donde o despacho é inequívoca e incontornavelmente nulo por falta dos apontados requisito de fundamentação de facto.

III. 3. 3. 2. Vejamos agora o requisito da alínea b) - a enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime.

Neste segmento o despacho recorrido, refere que,
“os presentes autos encontram-se em segredo de justiça, sendo que ainda por força do disposto no artigo 141.º/3 alínea e) C P Penal, podem não ser comunicados aos arguidos todos os factos, se dessa comunicação resultar a frustração da investigação. Não foram assim comunicados aos arguidos algumas situações dos autos, estando porem demonstrado que o arguido B… conhece um dos principais arguidos investigado nestes autos, com ele mantendo contactos, conforme vigilâncias efectuadas”.

Ora, relativamente a estes concretos elementos de prova é constitucionalmente intolerável, como se decidiu no Acórdão do Tribunal Constitucional 121/97, que “se considere sempre e em quaisquer circunstâncias interdito esse acesso, com alegação de potencial prejuízo para a investigação, protegida pelo segredo de justiça, sem que se proceda, em concreto, a uma análise do conteúdo desses elementos de prova e à ponderação, também em concreto, entre, por um lado, o prejuízo que a sua revelação possa causar à investigação e, por outro lado, o prejuízo que a sua ocultação possa causar à defesa do arguido, ponderação a que, no caso, a decisão recorrida não procedeu”.
Donde, afirmar-se que “podem não ser comunicados aos arguidos todos os factos, se dessa comunicação resultar a frustração da investigação e que assim, não são comunicados aos arguidos algumas situações dos autos”, manifestamente que também não cumpre – muito longe disso – o apontado dever de fundamentação – quer da regra, quer da excepção - cuja evolução supra delineada, foi no sentido de trazer um acrescido grau de exigência e rigor.
E, cuja não satisfação – como vimos já - tendo em conta o necessário compromisso entre interesses que justificam um formalismo rigoroso e os que aconselham uma minimização desse formalismo, subjacente ao regime das nulidades processuais, poderia colocar a questão da sua conformidade constitucional – como o foi, de resto, no passado, em caso de incumprimento de formalidades que, essencialmente, visam tutelar direitos fundamentais dos arguidos, onde se incluiria o caso da falta de fundamentação do despacho de aplicação das medidas de coacção - estando, contudo, hoje, ultrapassada, no sentido de o despacho ser nulo, se faltar algum dos requisitos da sua fundamentação, artigo 194º/4.

Assim e, em conclusão, perante a nulidade do despacho recorrido, nos termos apontados, procedendo esta primeira – em termos de precedência lógica – questão processual, fica prejudicado o conhecimento das restantes matérias suscitadas no recurso.

IV. DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes que compõem este Tribunal, em conceder provimento ao recurso apresentado pelo arguido B…, e, função do que se decide,

anular o despacho recorrido, que deverá ser substituído por um outro, em ordem a suprir a falta,
- de descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo, cfr. artigo 194.º/4 alínea a) C P Penal e,
- de análise, em concreto, do conteúdo dos elementos de prova omitidos e, ponderação, também em concreto, entre, por um lado, o prejuízo que a sua revelação possa causar à investigação e, por outro, o prejuízo que a sua ocultação possa causar à defesa do arguido, cfr. alínea b) do n.º 4 do referido artigo 194.º C P Penal.

Sem tributação.

Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1.º signatário.

Porto, 2015.julho.01
Ernesto Nascimento
Artur Oliveira