Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
137/19.2T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: ACÇÃO CÍVEL EMERGENTE DE ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO MORTE
EQUIDADE
Nº do Documento: RP20210617137/19.2T8VFR.P1
Data do Acordão: 06/17/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A sentença penal definitiva constitui, em relação a terceiros (pessoas não intervenientes no processos penal) presunção ilidível no que se refere à existência de factos classificados nos termos do art.º 623º do Código de Processo Civil. Tais factos podem ser abalados pela prova de factos contrários (art.º 350º do Código Civil), em sede de discussão da causa na 1ª instância e, eventualmente, no recurso, por via da impugnação da decisão proferida em matéria de facto provada e não provada, ao abrigo dos art.ºs 640º e 662º do Código de Processo Civil.
II - Fora do quadro da impugnação da decisão em matéria de facto, não podem os AA. trazer à colação, em sede de recurso, matéria de facto dada como provada no processo penal, com a simples afirmação de que não foi ilidida. A sua invocação em processo civil contra a seguradora (um terceiro) demandada em responsabilidade civil, nestes termos e por esta via de recurso, poderia mesmo conduzir ao absurdo de fixar uma versão do acidente divergente, ou até contraditórias em alguns aspetos, quanto às suas circunstâncias.
III - Age sem culpa o peão que, estando a correr próximo do limite direito da estrada com dois sentidos de marcha, longo traçado reto, dentro de uma localidade, sem bermas nem passeios e entre construções urbanas, é vítima de atropelamento por um veículo ligeiro quando este, transitando em sentido contrário, está a ultrapassar um veículo estacionado na sua hemifaixa de rodagem, ocupando espaço destinado ao trânsito que se realizava no sentido em que o peão seguia. A tal não obsta o facto de o peão estar a usar auscultadores e circular pelo lado direito da via.
IV - Na fixação do quantum indemnizatório, em sede de responsabilidade civil por atos ilícitos, será sempre conveniente ponderar outras decisões judiciais, mais ou menos semelhantes, em ordem ao cumprimento de um regime jurisprudencial de segurança, igualdade e equidade na realização da justiça, sejam eles não patrimoniais (art.º 496º do Código Civil) ou patrimoniais (art.º 566º, nº 3, do Código Civil).
V - É razoável e equitativo fixar em € 85.000,00 o valor do dano morte de um homem com 35 anos, casado e com dois filhos, dedicado à família, por cujos membros (mulher e filhos) nutria amor e afeto.
VI - Na quantificação da indemnização por dano intercalar (sofrido entre o momento da lesão e o momento da morte da vítima) atenta-se nas circunstâncias do caso concreto, designadamente na quantidade e gravidade das lesões sofridas pela vítima mortal, na intensidade das dores, no período de tempo durante a qual as dores se prolongam e ainda no eventual pressentimento da morte.
VII - Se a vítima teve lesões graves, foi sujeita a cirurgia torácica e faleceu cerca de sete dias depois do acidente, pressentiu a morte e sofreu com isso e com dores, mas também acabou por ter sido colocada em estado de coma induzido a partir de momento desconhecido até ao momento da morte, assim se tendo aliviado o seu sofrimento, temos como razoável e equilibrado fixar o valor do dano intercalar na quantia de € 20.000,00.
VIII - Num quadro de uma família jovem, em que os dois filhos tinham 3 anos e 5 anos de idade na data do acidente que vitimou o pai, afetuoso para com eles e cônjuge, é de fixar o dano psicológico causado a cada um dos filhos na quantia de € 25.000,00, e o dano da mesma natureza causado à viúva na quantia de € 30.000,00.
IX - Na quantificação das indemnizações dos familiares por perda do contributo remuneratório da vítima falecida, haverá que ter sempre presente a figura da equidade, a qual visa alcançar a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei, de forma que se tenha em conta, as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 137/19.2T8VFR.P1 (apelação – 3ª Secção)
Comarca de Aveiro – Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira – J 3

Relator Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida

Acordam na 3ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I.
B…, viúva, professora, residente na Rua …, n.º .., …, ….-… Espinho, por si e na qualidade de representante dos seus filhos menores C… E D…, instaurou ação declarativa sob a forma de processo comum contra E…, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., com sede …, n.º .., ….-… Lisboa.
Alegou --- aqui no essencial --- que o seu cônjuge e pai daqueles seus dois filhos faleceu no dia 3.10.2018, na sequência e por causa de um atropelamento ocorrido no dia 26.9.2018, em que foi interveniente um veículo ligeiro de passageiros, conduzido pelo seu proprietário, F…, e a vítima quando esta fazia jogging em passo ligeiro ao longo da extremidade esquerda da plataforma da estrada, atento o sentido de marcha seguido pelo veículo ligeiro, que ali surgiu quando contornava um veículo estacionado ao seu lado direito, tendo aquela faixa de rodagem dois sentidos de marcha.
Tal acidente ficou a dever-se exclusivamente à conduta contraordenacional daquele veículo (matrícula ..-IC-..), por transitar com velocidade excessiva, numa condução imprudente.
Pela reparação dos danos, responde a R. seguradora, por o proprietário do veículo ter transferido para ela a responsabilidade civil emergente da sua circulação, através da celebração de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel titulado pela apólice n.º ………; daí a sua legitimidade para a ação.
Os AA. consideram verificados determinados danos, para cuja reparação invocam também o direito às indemnizações correspondentes, como se segue:
Danos não patrimoniais:
1- Perda do direito à vida - € 80.000,00
2- Dano sofrido pela vítima antes de morrer - € 50.000,00;
3- Dano sofrido pelos familiares da vítima com a sua morte - € 40.000,00 para a A. viúva e € 30.000,00 para cada um dos dois filhos;

Danos patrimoniais:
- Com as cerimónias fúnebres - € 1.583,20;
- Danos patrimoniais por privação dos rendimentos que a vítima auferia e afetava ao sustento dos AA. - € 500.000,00 (€ 100.000,00 para o filho mais velho, € 125.000,00 para o filho mais novo e € 275.000,00 para A. B…).
Os AA. fizeram terminar o seu articulado deduzindo o seguinte pedido:
«Termos em que deve a presente ação ser julgada procedente por provada e, em conformidade, ser a Ré condenada a pagar aos Autores:
i. a quantia global de € 701.583,20 (setecentos e um mil, quinhentos e oitenta e três euros e vinte cêntimos), a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do sinistro em crise nos presentes autos;
ii. a quantia a título de juros de mora calculados à taxa legal e contabilizados desde a citação até efetivo e integral pagamento, relativamente às demais quantias peticionadas nos presentes autos;
iii. no pagamento das custas do presente processo e na procuradoria devida.» (sic)
Citada, a R. apresentou contestação onde impugnou grande parte dos factos alegados na petição inicial, nomeadamente relacionados com a dinâmica do acidente, cujas circunstâncias descreveu de modo diferente, defendendo a culpa exclusiva do peão no atropelamento e a exclusão de qualquer indemnização.
O tribunal dispensou a realização de audiência prévia, proferiu despacho saneador tabelar, identificou o objeto do litígio, especificou os temas de prova e pronunciou-se sobre a admissibilidade dos meios de prova.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«1) Julga-se a ação parcialmente procedente e, em consequência, condena-se a ré E…, Companhia de Seguros, S.A a pagar a quantia global de 376.187,40€ (trezentos e setenta e seis mil, cento e oitenta e sete euros e quarenta cêntimos) aos autores, da seguinte forma (nestes valores já considerando a redução a 75% correspondente à proporção de culpa fixada):
a. Pela perda do direito à vida de G…, a quantia de 56.250,00€, a repartir igualitariamente entre os três autores;
b. Pelo dano não patrimonial sofrido pela vítima G…, a quantia de 11.250,00€, a repartir igualitariamente entre os três autores;
c. Pelo dano não patrimonial sofrido pela autora B…, a quantia de 18.750,00€;
d. Pelo dano não patrimonial sofrido pelo autor C…, a quantia de 13.125,00€;
e. Pelo dano não patrimonial sofrido pelo autor D…, a quantia de 13.125,00€;
f. Pelos danos patrimoniais, a quantia de 1.187,40€, a repartir igualitariamente entre os três autores;
g. Pelo dano futuro (perda de direito de alimentos), à autora B…, a quantia de 131.250,00€;
h. Pelo dano futuro (perda de direito de alimentos), ao autor C…, a quantia de 63.750,00€;
i. Pelo dano futuro (perda de direito de alimentos), ao autor D…, a quantia de 67.500.00€;
j. Às quantias por danos patrimoniais acrescem juros moratórios de 4% desde a citação e às quantias por danos não patrimoniais, acrescem juros moratórios de 4% desde a prolação da presente sentença.
2) À quantia indemnizatória fixada deve deduzir-se o valor global pago pela ré a título de arbitramento de reparação provisória (cfr. procedimento cautelar em apenso), até ao trânsito em julgado.
3) Custas, por autores e ré, na proporção do decaimento (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC), nestas se incluindo custas de parte (art.ºs 529.º e 533.º, do CPC), sem prejuízo do benefício do apoio judiciário dos autores.»
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Inconformados, recorreram os AA., em matéria de Direito, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
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Pretendem a substituição da sentença por outra que condene a R. seguradora a pagar aos AA. as indemnizações peticionadas nos termos acima assinalados.

A R. ofereceu contra-alegações defendendo a confirmação da sentença.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II.
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação dos AA., acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do ato recorrido, delas retirando as devidas consequências, e não sobre matéria nova, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º do Código de Processo Civil).

Somos chamados a decidir as seguintes questões:
1. Culpa exclusiva do condutor do veículo na eclosão do atropelamento;
2. Quantificação das indemnizações atribuídas aos AA.
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III.
É a seguinte a matéria de facto dada como provada na 1ª instância:
01. A autora B… foi casada com G… (doc. 1 junto com o procedimento cautelar).
02. Na constância desse matrimónio nasceram em 13-4-2013 e 20-9-2015, C… e D… (doc. 2 e 3 juntos com o procedimento cautelar.
03. G… faleceu em 30-10-2018, pelas 16:25 hr., Hospital …, em Vila Nova de Gaia, no estado de casado com a autora B… (assento de óbito, junto sob doc. 4 com o requerimento inicial do procedimento cautelar, cujo teor se considera reproduzido).
04. No dia 26-9-2018, pelas 20:00 horas, ocorreu um sinistro na Rua …, sensivelmente em frente ao prédio urbano com o número de polícia …, na freguesia …, pertencente ao concelho de Espinho, em que interveio o veículo ligeiro de passageiros, de marca Volkswagen, modelo …, com a matrícula ..-IC-.., conduzido pelo seu proprietário F… e G…, enquanto peão.
05. A Rua … descreve-se em reta com uma extensão superior a 400 metros e tem uma largura de cerca de 7,50 metros, sendo constituída por dois corredores de circulação, em piso betuminoso, sem qualquer marcação (à data do sinistro), cada um afeto ao seu sentido de marcha e sendo ladeada nas extremidades por muros de habitações, sendo que a via não tinha quaisquer passeios ou bermas, estando, esses muros ou essas habitações, construídos na extrema da plataforma da estrada.
06. À data do sinistro, o limite máximo de velocidade naquela via era de 50 km/hora, tendo a via habitações com portas a dar diretamente para a estrada e situando-se dentro do perímetro urbano da localidade de ….
07. O sinistro referido em 04) consistiu num atropelamento, circulando o veículo IC pela Rua …, no sentido norte - sul, pela hemi-faixa de rodagem mais à direita, atento esse sentido de marcha.
08. Quando o veículo IC se encontrava a contornar um outro veículo que se encontrava devidamente estacionado, o mais próximo possível da extremidade direita da Rua … (atento o sentido tomado pelo veículo de matrícula IC), de identificação não apurada, o seu condutor transpôs o eixo imaginário da faixa de rodagem, começando a derivar para a sua esquerda, destinada ao trânsito em sentido oposto.
09. Nas circunstâncias de tempo e lugar, seguia apeado, praticando atletismo, G…, por local concretamente não apurado próximo do limite direito — e pelo lado direito — da hemi-faixa de rodagem, no sentido sul-norte, oposto ao sentido do veículo IC.
10. G… vestia um blusão escuro, sem qualquer refletor e estava a usar auscultadores.
11. Após o referido em 08), o condutor do IC deparou-se com o peão G… e embateu com a frente esquerda do seu veículo automóvel no corpo do referido peão, que após ter sido projetado para o capot e vidro frontal esquerdo do veículo, caiu no solo, onde ficou imobilizado.
12. O IC deixou marcas de rastos de travagem no pavimento da Rua … de 6,40 metros de comprimento, ficando imobilizado cerca de 8 metros relativamente ao local onde ficou o corpo do peão, em sentido oblíquo atenta a configuração da referida Rua, com a parte central e da frente do veículo na hemi-faixa esquerda.
13. O IC circulava a velocidade concretamente não apurada, mas superior a 50 km/hora.
14. No momento do sinistro, o estado do tempo era bom, existia visibilidade, estando a escurecer, mas ainda com luz natural, não chovia e o piso encontrava-se seco, conforme auto de participação, junto sob doc. 6 com o requerimento do procedimento cautelar, cujo teor se considera reproduzido.
15. Após ter caído no pavimento, o G… ficou em sofrimento a aguardar a chegada dos meios de socorro, ensanguentado, ficando imobilizado sobre a plataforma da rua …, no local assinalado no croquis da participação de acidente de viação; com a chegada dos bombeiros e do INEM, foi imobilizado em plano duro e com colar cervical.
16. Após o sinistro, G… foi transportado de urgência para o Hospital …, em Vila Nova de Gaia, tendo o mesmo entrado consciente nessa unidade hospitalar, local onde lhe foram ministrados cuidados médicos e medicamentosos, designadamente foi submetido a tratamento cirúrgico à região do tórax, à bacia e demais zona pélvica e ao membro superior esquerdo, tendo permanecido internado, em coma induzido, até 03 de outubro de 2018, data em que veio a falecer.
17. Por período concretamente não apurado, G… teve sofrimento físico e angústia, tendo-se apercebido e com consciência (no mínimo até ficar em coma induzido) que iria morrer.
18. Em consequência do sinistro, G… as lesões traumáticas torácicas e pélvicas, associadas a choque sético e trombo-embolismo pulmonar, descritas no relatório de autópsia e que lhe determinaram direta e necessariamente a morte.
19. O proprietário do veículo de matrícula IC, através da celebração de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel titulado pela apólice n.º ………, tinha transferido a sua responsabilidade civil emergente da circulação do referido veículo para a ré seguradora, encontrando-se tal contrato de seguro válido e eficaz na data em que ocorreu o sinistro.
20. À data do sinistro, G… tinha a idade de 35 anos.
21. G… dedicava amor e afeto aos autores (esposa e filhos).
22. A autora B… foi visitar o seu marido todos os dias ao hospital enquanto o mesmo permaneceu internado, falava com ele e tocava-o, sofreu angústia pelo seu estado e tem revivescências que a afetam psicologicamente ao nível da sua alegria de vier e da sua capacidade de trabalho; os filhos vivem tristes, perguntando pelo pai.
23. Com as cerimónias fúnebres os autores despenderam a quantia de € 1.583,20 (mil, quinhentos e oitenta e três euros e vinte cêntimos)
24. G… exercia a profissão de técnico superior, auferindo, mensalmente, a quantia de cerca de € 1.000,00 líquidos, que era utilizado na satisfação do seu agregado familiar.
25. A autora B… é professora, exercendo a sua atividade profissional por conta de um centro de estudos denominado de H…, Lda., sito no …, n.º .., …. …, Vila Nova de Gaia, auferindo a quantia de 253,86€ mensais, e os autores C… e D… são estudantes
26. O agregado familiar de G… tinha, em média, as seguintes despesas mensais: prestações dos créditos bancários: 187,43€; seguros associados: 244,55 anual, correspondente a 20,38€ mensal; despesas de água: 14€; televisão, internet e telefone: 62€; eletricidade: 30€; gás: 25€, a que acresciam despesas de alimentação, escolares, combustíveis e manutenção automóvel, saúde e medicamentos, de valor concretamente não apurado.
*
O tribunal deu como não provada a seguinte matéria:
i) O IC circulava a 34 km/hora, com as luzes acesas.
ii) O IC deixou rastos de travagem de 10 metros.
iii) O peão G… estava a praticar jogging, em passo muito ligeiro.
iv) Aquando o condutor do IC retomava a faixa de rodagem, surgiu do seu lado direito, a correr para o lado esquerdo, o referido G….
v) O condutor do IC travou bruscamente, mas apesar dessa travagem, em virtude do referido em iv), o embate era inevitável.
vi) Nas circunstâncias referidas em 10) dos factos provados, G… não ouviu o barulho do motor do veículo.
vii) G… fez a travessia na diagonal, correndo de frente para o veículo, tornando o trajeto mais longo.
viii) Compelido pelo embate, o corpo de G… foi projetado para a esquerda, vindo a embater, de forma totalmente desemparada, contra o muro que ladeava a estrada.
ix) Após o atropelamento, o condutor prosseguiu a sua marcha, só acionando o sistema de travagem do IC depois de embater no corpo de G….
x) Nos últimos dois/três dias de vida, durante as visitas dos familiares, a vítima reagia às interpelações abrindo os olhos.
xi) A autora B… anda abatida, deixou de conviver socialmente, raramente sai de casa, passando os dias a chorar.
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IV.
Ab initio est ordiendum.
1. Culpa no acidente de viação
Na qualificação jurídica dos factos relativa à verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, a 1ª instância concluiu pela existência de culpa do condutor do veículo IC e do peão, na percentagem de 75% e 25%, respetivamente.
Vêm agora os AA. defender, à semelhança do que fundamentaram e pediram na petição inicial, que existe culpa exclusiva do condutor do veículo, não podendo ser assacada qualquer responsabilidade ao peão, vítima mortal do acidente.
Sustentam agora a sua posição, naturalmente, nos factos dados como provados nesta ação --- que não impugnaram nos termos do art.º 640º do Código de Processo Civil ---, mas também em factos dados como provados no processo-crime nº 1210/18.0T9ESP, em que foi arguido o condutor do veículo ..-IC-.., cuja sentença certificada, datada de 14.7.2020, foi junta ao processo em 3.12.2020, a pág.s 442 a 488 do histórico electrónico[3], dali resultando também certificado o respetivo trânsito em julgado.
Apelam à atendibilidade dos factos provados no processo penal com base no art.º 623º do Código de Processo Civil, onde o legislador consignou que “a condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração”.
Vejamos.
A R. seguradora é um terceiro relativamente à sentença proferida no processo-crime. Intervém agora nesta ação cível destinada ao apuramento da responsabilidade civil dos intervenientes no acidente, designadamente do seu segurado-arguido, e integra, por isso, também uma relação jurídica dependente dos mesmos factos que substanciaram a prática de infração criminal pela qual o seu segurado foi condenado, com trânsito em julgado.
Não há dúvida alguma que aquela sentença condenatória definitiva constitui, em qualquer ação, caso julgado relativamente ao ali arguido. Já relativamente a terceiros, como é o caso da aqui seguradora, para a qual o arguido transferiu a sua responsabilidade civil relativa à circulação do IC, não interveniente no processo-crime, a sentença criminal também pode ser invocada, mas não tem a força de caso julgado, representando apenas --- e já é muito --- uma presunção ilidível da ocorrência dos factos que sejam comuns aos que foram apreciados e considerados provados no âmbito do processo penal (facto ilícito, culpa, nexo de causalidade, forma de atuação).[4]
Acontecia assim, de algum modo, no Código de Processo Penal de 1929, e foi tal regime reposto no Código de Processo Civil de 1967 (art.º 674º-A) pelo art.º 2º do Decreto-lei nº 329-A/95, de 12 de dezembro, conforme resulta do respetivo preâmbulo: «No que se refere à disciplina dos efeitos da sentença, assume-se a regulamentação dos efeitos do caso julgado penal, quer condenatório, quer absolutório, por acções civis conexas com as penais, retomando um regime que, constando originariamente do Código de Processo Pena de 1929, não figura no actualmente em vigor; adequa-se, todavia, o âmbito da eficácia erga omnes da decisão penal condenatória às exigências decorrentes do princípio do contraditório, transformando a absoluta e total indiscutibilidade da decisão penal em mera presunção, ilidível por terceiros, da existência do facto e respectiva autoria».
Lopes do Rego[5] evidenciou que o artigo 674º-A (atual Artigo 623º) estabelece a relevância “reflexa” do caso julgado penal condenatório em subsequentes ações de natureza civil, materialmente conexas com os factos já apurados no processo penal. Entendeu-se, porém, em homenagem à regra do contraditório, que a condenação definitiva no processo penal não deveria impor-se, necessária e cegamente a sujeitos processuais que nele não tiveram oportunidade de expor as suas razões – constituindo tão-somente presunção ilidível, relativamente aos elementos referenciados no preceito.
Lebre de Freitas, também citado na referida obra de L. Filipe Pires de Sousa, defendeu que “não está em causa a eficácia do caso julgado, mas a eficácia probatória da sentença penal. Não se trata da eficácia extraprocessual da prova produzida no processo penal, mas da eficácia probatória da própria sentença penal, independentemente das provas com base nas quais os factos tenham sido dados como assentes. A presunção aqui estabelecida difere das presunções stricto sensu na medida em que a ilação imposta ao juiz cível resulta do juízo de apuramento dos factos por um acto jurisdicional com trânsito em julgado”.
Estabeleceu-se ali, no anterior Código de Processo Civil, o regime que haveria de transitar para o art.º 623º do atual Código de Processo Civil, de presunção ilidível da existência dos factos constitutivos em que se tenha baseado a condenação, invocável em relação a terceiros em qualquer ação de natureza civil em que se discutam relações jurídicas dependentes ou relacionadas com a prática da infração, independentemente das provas com base nas quais os factos tenham sido dados como assentes. A possibilidade de ilidir a presunção é concedida a terceiros em homenagem ao princípio do contraditório, enquanto sujeitos processuais não intervenientes no processo penal, assim se lhes concedendo a possibilidade de contrariarem a prova efetuada no processo-crime.
No caso, a R. seguradora teve a oportunidade de, nesta ação cível, ilidir a presunção iuris tantum de veracidade dos factos provados no processo em que o seu segurado foi arguido. Não fazer a mera contraprova, mas --- melhor concretizando --- demonstrar o contrário daqueles factos, ao abrigo do disposto no art.º 350º do Código Civil; ou seja, alegando factos e produzindo provas para demonstrar que o seu segurado não praticou os factos pelos quais foi condenado. Só assim se poderá considerar ilidida a presunção legal que resulta do art.º 623º do Código de Processo Civil.
A condenação do segurado no processo penal foi levada em conta pelo Ex.mo Juiz da Comarca de Aveiro na sentença que proferiu. Extrai-se da respetiva motivação da decisão em matéria de facto: “(…) a sentença proferida nos autos de processo crime por homicídio por negligência do condutor do veículo foi igualmente considerada nos termos do art.º 623.º, do CPC; (…)”.
O efeito da sentença penal transitada em julgado, relativamente a terceiros jamais poderia abalar princípios basilares do processo civil, designadamente o princípio do dispositivo e o princípio da igualdade de armas entre as partes.
As partes, seja o autor, seja o réu, têm o ónus, respetivamente, de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as exceções invocadas (art.º 5º, nº 1, do Código de Processo Civil). São os factos sem os quais a ação ou as exceções invocadas estão condenadas ao fracasso.
Para além daqueles factos, o tribunal só pode atender a factos complementares, instrumentais, notórios ou de que o juiz tenha conhecimento por virtude do exercício das suas funções, dentro das condições prescritas pelo nº 2 do mesmo art.º 5º.
Junta que foi a certidão da sentença proferida no processo penal e dada a referência que lhe foi efetuada na sentença recorrida, é suposto que os factos provados naquele processo foram objeto de discussão na audiência final nesta ação. Os AA. recorrentes não o negam e também não impugnam a decisão proferida em matéria de facto, o que significa dizer que se conformaram com os factos que foram considerados provados e não provados na sentença recorrida.
O que os AA. pretendem é que àqueles factos provados se adicionem determinados factos também dados como provados na sentença penal.
Ora, a atendibilidade destes factos está desde logo dependente da sua alegação no processo civil. Se não tiverem sido alegados ou não puderem ser atendidos como factos complementares ou instrumentais nesta ação, obviamente, não podem ser, nela, dados como provados.
Como referimos acima, citando Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L. Filipe Pires de Sousa[6], a presunção ilidível respeita à “ocorrência de factos que sejam comuns aos que foram apreciados e considerados provados no âmbito do processo penal”[7].
Se o tribunal cível deu como provados factos diferentes, divergentes ou contraditórios, com factos relativos à ocorrência (acidente de viação) considerados provados na sentença penal definitiva, sem que os recorrentes impugnem a decisão da matéria de facto, a conclusão a tirar é a de que se conformam com ela e aceitam que foi ilidida pela R. a presunção iuris tantum que resulta da aplicação do art.º 623º do Código de Processo Civil.
A atender à descrição das circunstâncias constantes da sentença-crime, descritas nos pontos 1 a 12 da mesma, estaríamos a contradizer aspetos essenciais, de grande relevância para a decisão da causa, dados como provados na sentença recorrida, com os quais as partes se conformaram, ao não os impugnarem no recurso.
Não é possível aceitar que, sem impugnação da decisão em matéria de facto, se atenda diretamente a factos dados como provados na sentença criminal, entre outros, a que:
- O veículo circulada a uma velocidade não concretamente apurada, mas superior a 60Km/hora, quando, na sentença cível, foi dado como provado que circulava a velocidade concretamente não apurada, mas superior a 50 km/hora.
- O referido arruamento trata-se de uma estrada municipal com 7,20 metros de largura, quando, na sentença cível, foi dado como provado que tem cerca de 7,50 metros.
- Ao aproximar-se do cruzamento ali existente com a …, o arguido contornou o veículo automóvel, de matrícula ..-..-MX, que se encontrava estacionado imediatamente antes do cruzamento e no mesmo sentido de marcha, dirigindo o seu veículo automóvel para a via esquerda, destinada ao trânsito em sentido oposto ao seu, ocupando-a, quando, na sentença cível, não há qualquer referência ao cruzamento.
- Havendo referências a velocidades diferentes, com ou sem variação, entre as duas versões, diferenças quanto ao local da imobilização do veículo, modo de deslocação do peão e local exato do atropelamento.
Não podem ser atendidas duas versões do acidente, ainda que as divergências encontradas não sejam muito significativas (poderiam sê-lo). A versão relevante é a que resulta da discussão da causa na ação cível, onde a R. se terá esforçado por ilidir a presunção de veracidade dos factos relativos às circunstâncias do acidente que foram dados como provados na sentença criminal. Era pela impugnação da decisão da matéria de facto que os AA. poderiam vir a obter a sua eventual modificação, chamando aí à colação a referida presunção no conjunto das provas produzidas, defendendo a sua não elisão, e considerando-se sempre os limites impostos pelo ónus de alegação próprio do processo civil relativamente aos factos essenciais.
Por conseguinte, na ponderação da culpa, só são atendíveis os factos dados como provados e não provados na sentença recorrida.
Continuemos…
Na apelação não se debate a existência de culpa do segurado F…, condutor do veículo, no acidente, sendo pretensão dos recorrentes que se desconsidere a concorrência de culpa da vítima que o tribunal fixou em 25%, para se considerar a existência de culpa exclusiva daquele condutor.
A culpa constitui um dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e pressupõe a prática de um facto voluntário e ilícito. A ilicitude representa a violação de valores da ordem jurídica, um agir objetivamente mal, e não depende necessariamente da direta violação de leis ou regulamentos, embora essa seja a regra.[8] Resulta sempre da violação de um dever jurídico, a omissão de um comportamento devido consubstanciado na prática de atos diferentes daqueles a que se estava obrigado.[9]
O Prof. Galvão Telles[10], numa posição tradicional, define a culpa como sendo «a imputação psicológica de um resultado ilícito a uma pessoa. Se a culpa produz um evento contrário à lei e esse evento é psíquica ou moralmente imputável a certo indivíduo, diz-se que agiu com culpa».
Esta conceção tem vindo a ser substituída por uma definição da culpa em sentido normativo como um juízo de censura ao comportamento do agente. A culpa pode ser assim definida como o juízo de censura ao agente por ter adotado a conduta que adotou, quando de acordo com o comando legal ou devendo cumprir certo dever, estaria obrigado a adotar e não adotou conduta diferente. Deve, por isso, ser entendida em sentido normativo, como a omissão da diligência que seria exigível ao agente de acordo com o padrão de conduta que a lei impõe[11].
A culpa situa-se no âmbito da imputação do facto ao agente e exprime um juízo de reprovação pessoal da sua conduta. Considerando todos os aspetos circunstanciais que interessam à maior ou menor censurabilidade da conduta do agente, olha ao lado individual, subjetivo, do facto ilícito, embora na apreciação da negligência a lei inclua também elementos de carácter objetivo.
Age com culpa, nos acidentes de viação o interveniente que, de modo reprovável, censurável, atua em violação de normas de direito rodoviário; mas também aquele que, não obstante, objetivamente, não ter infringido nenhuma norma legal sobre condução rodoviária, não observa, no exercício da condução, os deveres gerais de diligência exigíveis ao “condutor médio” e faz uma condução imprudente, desleixada ou tecnicamente errada, e, por algum desses motivos, causa danos a terceiros, obviamente, podendo ele demonstrar a concorrência de circunstâncias concretas que justificam a infração cometida e que excluem a sua culpa.
Compete ao lesado provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa (art.º 487º, nº 1, do Código Civil).
A culpa deve ser aferida pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (nº 2 daquele art.º 487º).
Tem-se entendido também que nas ações de indemnização por facto ilícito, na prova da culpa do lesante (art.º 487º do Código Civil), a tarefa do lesado está aliviada com o recurso à chamada prova da primeira aparência (presunção simples). Em princípio, procede com culpa o condutor que, em infração aos preceitos estradais, causa dano a terceiro. Se a prova prima facie ou presunção judicial, produzida pelo lesado apontar no sentido da culpa do lesante, cabe a este o ónus da contraprova, ou seja, caber-lhe-á a prova do facto justificativo ou de factos que façam criar a dúvida no espírito do julgador[12]. Este raciocínio não está em contradição com o disposto no art.º 342° do Código Civil, que consagra um critério de normalidade no que respeita à repartição do ónus da prova, no sentido de que aquele que invoca determinado direito tem de provar os factos que normalmente o integram, tendo a parte contrária de provar, por seu turno, os factos anormais que excluem ou impedem a eficácia dos elementos constitutivos do direito.[13]
Assim, a ocorrência, em termos objetivos, de uma situação que constitui contraordenação nos termos do Código da Estrada deve implicar presunção juris tantum de negligência do interveniente em acidente de viação quanto à prática da infração. A materialidade da infração faz presumir a culpa na infração. A infração existe, na sua dimensão material e na sua dimensão culposa.
Mas tal presunção deve ser afastada nos casos em que a norma violada não se destine a proteger o interesse em concreto ofendido, uma vez que, nesse caso, não haverá causa adequada entre os danos e a violação daquela norma; tal como deve ser afastada quando não funciona como que uma segunda presunção, que conduza à culpa do interveniente como causal do acidente.
O acidente de viação é um fenómeno dinâmico, não sendo muitas vezes o seu processo causal de fácil apreensão. O julgador deve usar dos meios disponíveis, em que são essenciais os factos provados e as regras do ónus da prova, para tentar recriar o acidente e descortinar os comportamentos que contribuíram de modo relevante para a sua verificação. Mais do que uma violação formal de uma regra de trânsito, é o concreto processo causal da verificação do acidente e a influência de tal conduta na sua produção que relevam, até porque não existem normas estradais que protejam em absoluto os interesses tutelados.
G…, o peão, foi vítima do acidente numa reta cuja extensão é superior a 400 m, sendo a largura da faixa de rodagem de cerca de 7,50 m, com dois sentidos de marcha. Não tem passeios, nem bermas, mas tem veículos e peões em circulação. O local situa-se mesmo em frente a um prédio urbano com o número de polícia …, no perímetro urbano da localidade de …, e a faixa de rodagem é ladeada por muros de habitações, onde os peões transitam necessariamente pela faixa de rodagem. Há mesmo portas de habitações que deitam diretamente para a estrada.
Quando foi colhido pelo IC, o peão estava a praticar atletismo por local não concretamente apurado, na faixa de rodagem, mas próximo do seu limite direito atenta a sua deslocação no sentido sul-norte, oposto ao sentido da deslocação do IC (norte-sul). Vestia um blusão escuro, sem refletor e estava a usar auscultadores.
O embate do veículo no G… ocorreu logo após o seu condutor acabar de contornar um outro veículo que se encontrava estacionado o mais próximo possível da berma direita, atento o sentido norte-sul, transpondo o eixo imaginário da faixa de rodagem, começando a derivar para a sua esquerda, destinada ao trânsito em sentido oposto. Deparou-se então com o peão e embateu com a frente esquerda do seu veículo automóvel no corpo do referido peão, que após ter sido projetado para o capot e vidro frontal esquerdo do veículo, caiu no solo, onde ficou imobilizado.
O veículo circulava a mais de 50 km/h de velocidade instantânea e deixou marcas de rastos de travagem no pavimento de cerca de 6,40 m de comprimento e ficou imobilizado a cerca de 8 m relativamente ao local onde ficou o corpo da vítima.
Naquelas circunstâncias estava a escurecer, mas havia visibilidade dada por luz natural, não chovia, o piso estava seco.
As pessoas devem abster-se de atos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança, a visibilidade ou a comodidade dos utilizadores das vias, tendo em especial atenção os utilizadores vulneráveis (art.º 3º, nº 2, do Código da Estrada).
Os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta, pelas bermas. Podem, no entanto, transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, designadamente quando não existam passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou bermas ou na impossibilidade de os utilizar (art.º 99º, nº 1 e nº 2, al. b), do Código da Estrada).
Sempre que transitem na faixa de rodagem, desde o anoitecer ao amanhecer e sempre que as condições de visibilidade ou a intensidade do trânsito o aconselhem, os peões devem, em regra, transitar numa única fila (nº 4 do mesmo artigo).
Os peões devem transitar pela direita dos locais que lhes são destinados (art.º 100º, nº 1, do Código da Estrada).
Quando utilizam a faixa de rodagem por falta ou impossibilidade de utilização de passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou bermas, os peões devem transitar pelo lado esquerdo da faixa de rodagem, a não ser que tal comprometa a sua segurança (nº 2 do mesmo art.º 100º) e, quando o façam, deverá ser o mais próximo possível do limite da faixa de rodagem (nº 3, também do art.º 100º).
Ao contrário do que prevê para os condutores (art.º 84º, nº 1), o Código da Estrada não proíbe aos peões a utilização de auscultadores sonoros ou aparelhos radiotelefónicos.
Não está provado que o peão se deslocava de forma a perturbar o normal desenvolvimento da circulação do IC, designadamente na ultrapassagem que realizava. A estrada tinha cerca de 7,50 m de largura e o veículo estacionado estava o mais próximo possível da extremidade direita da estrada, no sentido de marcha do IC.
O limite de velocidade imposto ao trânsito automóvel (no caso, de 50 km/hora) não significa que aquela velocidade possa, em qualquer caso, ser atingida. O condutor está obrigado a regulá-la, a reduzi-la, sempre que tal se justifique. Como refere o art.º 24º, nº 1, “o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer ao outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veiculo no espaço livre e visível à sua frente”.
Do art.º 100º, nº 2, do Código da Estrada, resulta que, na falta de bermas ou passeios, ou na impossibilidade de os utilizar, os peões devem transitar pelo lado esquerdo da via, a não ser que tal comprometa a sua segurança.
Ora, o veículo estacionado estava o mais próximo possível do lado esquerdo da faixa de rodagem, o que, obviamente, impedida o G… de transitar entre o limite esquerdo da estrada e aquele veículo. Se transitasse pelo lado esquerdo, sempre teria que contornar aquele veículo estacionado pela sua direita, entrando mais no interior da faixa de rodagem, o que agravaria significativamente o perigo, por ser menor a sua visibilidade pelos condutores dos veículos que circulam em sentido contrário, como é o caso do veículo seguro.
Circular pela direita, mas próximo do seu limite exterior, pode agravar o risco do peão relativamente aos veículos que surjam por trás, por não os observar e diminuir a possibilidade de adotar um comportamento auto-defensivo, enquanto elemento mais frágil do trânsito, mas sempre representa maior segurança quanto ao perigo de ser colhido por um veículo que se apresente a circular pela sua frente, em sentido contrário. Ao correr pelo lado direito da estrada, numa reta com mais de 400 m de comprimento e em estrada com cerca de 7,50 m de largura, o peão colocou-se em condições de melhor poder ser avistado pelo condutor do IC e de maior segurança relativamente a este mesmo veículo.
Dado o estacionamento do veículo à esquerda, naquelas circunstâncias, está justificado o trânsito da vítima pelo lado direito, o que afasta a própria infração nos termos da parte final do nº 2 do art.º 100º do Código da Estrada. Mas mesmo que se devesse entender que aquela infração foi cometida pelo peão, que corria pela direita da estrada sem justificação, próximo do seu limite exterior, a verdade é que não existiria nexo causal relevante entre a infração e o dano-evento, ou seja, o acidente, já que seguia, tanto quanto se provou, na melhor posição possível para prevenir o sinistro.
Havia visibilidade e o tempo estava seco. A utilização de auscultadores pelos peões, ainda que não recomendável em várias circunstâncias, não é proibida, e, no caso, não está provada qualquer relação relevante entre esse facto e o atropelamento.
Também não é proibido correr nas ruas, embora a corrida represente algum perigo que, podendo vir de uma criança e estando vulgarizada, não é imprevisível, nomeadamente dentro das localidades.
Não se observa qualquer contribuição culposa da vítima para a ocorrência do acidente, assim se concluindo pela existência de culpa exclusiva do condutor do veículo seguro.
Nesta parte, procede a apelação.
*
2. Quantificação das indemnizações atribuídas
Os recorrentes não se conformam com os quantitativos indemnizatórios encontrados na sentença relativamente a:
a) Danos não patrimoniais:
1- Perda do direito à vida. Pediram € 80.000,00, o valor do dano foi fixado em € 75.000,00 e pretendem agora que se fixe em € 85.000,00.
2- Dano sofrido pela vítima antes de morrer. Pediram € 50.000,00, o tribunal atribuiu a este dano o valor de € 15.000,00 e os recorrentes pretendem agora que aquele valor suba para a quantia de € 40.000,00.
3- Dano psicológico sofrido por cada um dos AA. Pediram € 40.000,00 para a A. e € 30.000,00 para cada um dos filhos.
O tribunal fixou em € 25.000,00 o dano da A. viúva e em € 17.500,00 o dano de cada um dos dois filhos. Por força da concorrência de culpas fixou estas indemnizações em € 18.500,00 e em € 13.125,00, respetivamente. Pretendem os recorrentes a fixação do valor dos danos pelos montantes expressos no articulado inicial.

b) Danos patrimoniais:
- Danos patrimoniais dos AA. presentes e futuros por privação dos rendimentos que a vítima auferia e afetava ao sustento deles. Pediram € 500.000,00, o tribunal fixou este dano no valor de € 350.000,00 --- tendo, injustificadamente, fixado a indemnização no mesmo valor, apesar da concorrência de culpas --- que pretendem agora que seja alterado para a quantia de € 416.000,00, sendo € 270.000,00 para a A. B…, € 70.000,00 para o A. C… e € 76.000,00 para o A. D….

Sendo a R. única responsável pelos danos emergentes do acidente de viação, está obrigada a indemnizar os AA. pela justa medida do seu prejuízo, devendo reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o acidente, enquanto evento danoso (princípio indemnizatório e da restauração natural), e não proporcionar um enriquecimento injustificado do lesado (art.º 562º do Código Civil).[14]
O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado (danos emergentes), como também os benefícios que os lesados deixam de obter em consequência da lesão (lucros cessantes) --- art.º 564º do Código Civil ---, mas só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (nexo de causalidade --- art.º 563º também do Código Civil).
Relativamente aos danos não patrimoniais, entende-se que a respetiva indemnização tem uma função compensadora (gravidade dos danos), e uma função sancionadora (grau de culpabilidade do agente). O critério de indemnização não deve ser confundido com os critérios de indemnização dos danos patrimoniais, que têm na sua base a teoria da diferença. Não obstante a equidade esteja consagrada para ambas as indemnizações, a sua função é distinta conforme os danos sejam imateriais ou materiais. No dano não patrimonial tem uma função primacial, sendo simultaneamente compensatória e sancionatória (art.ºs 494º e 496º, n.º 1 e 3 Código Civil), enquanto a equidade nos danos patrimoniais tem uma função auxiliar e corretora (artigo 566º, nº 3, Código Civil).
Trata-se de prejuízos de natureza infungível, em que não é possível uma reintegração por equivalente, mas tão-só um almejo de compensação que proporcione aos beneficiários certas satisfações decorrentes da utilização do dinheiro. Aqui não entram considerações de ganhar ou de perder, mas de sentir. Não qualquer apelo ao conceito de dano de cálculo, pois que a indemnização/compensação do dano não patrimonial não se propõe remover o dano real, nem há lugar a reposição por equivalente.
Como temos vindo a entender, o valor de uma indemnização neste âmbito, deve visar compensar realmente o lesado pelo mal causado, donde resulta que o valor da indemnização deve ter um alcance significativo e não ser meramente simbólico. Tem que constituir uma efetiva possibilidade compensatória, tem que ser significativa[15], mas também tem que ser justificada e equilibrada; não pode constituir um enriquecimento ilegítimo e imoral.
A apreciação da gravidade do referido dano, embora tenha de assentar no circunstancialismo concreto envolvente, deve operar sob um critério objetivo, num quadro de exclusão, tanto quanto possível, da subjetividade inerente a alguma particular sensibilidade humana.[16]
Há de atender às especificidades da situação, com recurso a juízos de probabilidade e de verosimilhança, razão porque nem se quadra à situação uma fixação com base em tabelas e com recurso a fórmulas, geralmente utilizadas para o cálculo do dano patrimonial relativo à perda da capacidade de trabalho e de ganho.[17].
A única condição de ressarcimento do dano não patrimonial é a sua gravidade. Na impossibilidade de concretizar um critério geral, porque nesta matéria o casuísmo parece infinito, apenas importa acentuar que danos consequentes a lesões a direitos de personalidade devem ser considerados mais graves do que os resultantes de violação de direitos referidos a coisas. De resto, tratando-se de lesão de bens e direitos de personalidade, essa gravidade deve ter-se, por regra, como consubstanciada: deve exigir-se para bens pessoais um tratamento diferente do reservado para as coisas.[18]
Na fixação do valor do dano patrimonial, como no cálculo do dano não patrimonial, há necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma interpretação e aplicação uniformes do Direito (art.º 8º, nº 3, do Código Civil), não incompatível com a devida atenção às circunstâncias de cada caso concreto.
Cientes de que cada caso tem as suas circunstâncias e de que é o conjunto particular destas que nos permite a quantificação da compensação económica a encontrar no quadro da equidade, será importante analisar outras decisões judiciais, mais ou menos semelhantes, em ordem ao cumprimento de um regime jurisprudencial de segurança, igualdade e equidade na realização da justiça sempre que se questione a quantificação dos danos, sejam eles não patrimoniais (art.º 496º do Código Civil) ou patrimoniais (art.º 566º, nº 3, do Código Civil).
Efetuadas estas considerações gerais, entremos na análise de cada um dos referidos danos, na certeza de que são indemnizáveis.

- O dano morte e a lesão do correspondente direito à vida
Esta indemnização é consentida nos termos do art.º 496º, nº 2, do Código Civil: “por norte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem”. A respetiva indemnização deve ser encontrada tendo por base os parâmetros estabelecidos naquele artigo em correlação com o anterior art.º 494º.
Na esteia do que já afirmámos, o recurso à equidade para determinar o valor deste dano e a compensação pecuniária do dano de morte e correspondente lesão do direito à vida, implica a procura de uma uniformização de critérios naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso.
Escreveu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Novembro de 2016[19]: “A jurisprudência portuguesa foi, durante muito tempo, extremamente avara quando se tratava de determinar a indemnização correspondente a este tipo de dano, mas verificou-se, nesse campo, um salto qualitativo, com o progressivo aumento do montante indemnizatório pela perda do direito à vida. Isso mesmo se constata através do teor do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/2/2002, acessível em www.dgsi.pt, onde se mencionam vários outros arestos do mais Alto Tribunal, fixando a indemnização pelo dano morte entre €40.000,00/8.000.000$00 e €50.000,00/10.000.000$00. Consolidou-se, assim, na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça o entendimento de que o dano pela perda do direito à vida, direito absoluto e do qual emergem todos os outros direitos, situa-se, em regra e com algumas oscilações, entre os €50 000,00 e €80 000,00, indo mesmo alguns dos mais recentes arestos a €100.000,00 (cfr, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Janeiro de 2012, de 10 de Maio de 2012 (processo 451/06.7GTBRG.G1.S2), de 12 de Setembro de 2013 (processo 1/12.6TBTMR.C1.S1), de 24 de Setembro de 2013 (processo 294/07.0TBETZ.E2.S1), de 19 de Fevereiro de 2014 (processo 1229/10.9TAPDL.L1.S1), de 09 de Setembro de 2014 (processo 121/10.1TBPTL.G1.S1), de 11 de Fevereiro de 2015 (processo 6301/13.0TBMTS.S1), de 12 de Março de 2015 (processo 185/13.6GCALQ.L1.S1), de 12 de Março de 2015 (processo 1369/13.2JAPRT.P1S1), de 30 de Abril de 2015 (processo 1380/13.3T2AVR.C1.S1), de 18 de Junho de 2015 (processo 2567/09.9TBABF.E1.S1) e de 16 de Setembro de 2016 (processo 492/10.0TBB.P1.S1), todos acessíveis através de www.dgsi.pt.).
No caso vertente, o dano morte do falecido EE foi fixado em €60.000,00 €uros, valor esse situado claramente dentro das margens definidas em tais arestos e respeita o padrão referencial que vem sendo seguido pela jurisprudência deste Tribunal. Mais, em face dos 52 anos de idade do EE, esse valor é inteiramente razoável, adequado e plenamente justificado, não merecendo acolhimento as objecções, a tal respeito, apresentadas pela recorrente GG.”[20]
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.4.2019[21] considerou-se que a vida não tem preço; tem um valor de natureza igual para toda a gente, mas também um valor social, uma vez que o homem é um ser em situação. Por isso, “temos que enfrentar o valor da vida em termos muito relativos, utilizando a equidade e o bom senso, na respectiva determinação, encarando a vida que se perde na função normal que desempenha na família e na sociedade em geral, no papel singular que realiza na sociedade, assinalado por um valor de afeição mais ou menos forte”.
Esta obrigação de compensar deve se avaliada “pelo valor da vida para a vítima enquanto ser”, traduzindo o dano morte “um prejuízo igual para todos os homens” e a “lesão de um bem superior a todos os outros”[22].
No acórdão da Relação de Lisboa de 30.6.2020[23], onde se faz relvar a idade da vítima, escreveu-se (sumário):
Pela perda do direito à vida, embora a dor não tenha preço, importa sobretudo que a correspondente indemnização, deva por si própria, significar algo que permita compensar a perda e minorar a dor sofrida, correspondendo em termos de equidade à gravidade do dano considerado, quer objectivamente, porque a vida é o bem maior da pessoa humana, quer relativamente, porque à data do acidente, o falecido era um homem de 33 anos, saudável e que constituía uma família feliz juntamente com a mulher e os dois filhos do casal, sendo a sua contribuição económica para a manutenção da vida familiar naturalmente relevante, entendendo que, a este título, deverá ser fixada a indemnização peticionada pela perda do direito à vida do TS em 150.000,00€, a repartir em partes iguais pela companheira e filhos, sendo, portanto, devidos 50.000,00€ a cada um dos demandantes.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.2.2021[24] destacou-se o facto de a vítima ser uma criança de 7 anos, na flor da idade, e os demais factos que a matéria de facto revela quanto a si, para acentua que a indemnização fixada pela Relação não é irrazoável, nem destoa de outras que emanam da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, tendo-a fixado em € 100.000,00.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.2.2021[25] considerou-se essencialmente a idade de 53 anos da vítima e o facto de não ter contribuído para a produção do acidente, para fixar em € 80.000,00 a compensação pela perda do direito à vida (o acidente ocorreu em 2016 e consistiu no atropelamento de um peão).
Justificou-se ali a posição assumida, nos seguintes termos:
E a verdade é que, em sede de avaliação do dano morte, a mais recente jurisprudência do STJ tem vindo a progredir, consoante os casos, para níveis mais próximos dos € 80.000,00, a rondar mesmo, nos casos mais graves, os € 100.000,00[26].
Assim, foi nesta linha de entendimento que no Acórdão do STJ, de 21.03.2019 (processo n.º 20121/16.7T8PRT.P1.S1)[27], se fixou, relativamente a uma situação equiparável à do caso concreto «sub juditio» [ existência de concorrência de culpas entre o condutor do veículo seguro na ré e a vítima, na proporção de 30% para o condutor e de 70% para a vítima mortal, que, à data, tinha 55 anos de idade], a indemnização devida pela perda do direito à vida em € 80.000,00.
E, no recente Acórdão do STJ, de 04.06.2020 (processo nº 2732/17.5T8VCT,G1.S1)[28], teve-se por razoável arbitrar a indemnização de € 80.000,00 num caso em que o lesado tinha 53 anos, quando foi vitimado por um acidente de viação da exclusiva responsabilidade do condutor do veículo objeto do seguro firmado na ré.
Daí que, ponderando as circunstâncias em que decorreu o acidente, a idade da vítima mortal (53 anos), o facto de não ter dado causa ao acidente e atendendo, numa perspetiva de satisfação das exigências do princípio da igualdade plasmado no art. 13º, nº 1 da CRP, aos parâmetros seguidos pela jurisprudência mais atualista deste Supremo Tribunal, seja de considerar, por um lado, excessivo o montante de € 100.000,00 reclamado pelos recorrentes a título de indemnização pela perda do direito à vida de CC e, por outro lado, insuficiente o montante arbitrado pelo Tribunal da Relação, tendo-se, antes, por mais razoável e equitativa a compensação de € 80.000,00 arbitrada pela 1.ª instância.
Voltando ao nosso caso, à data do sinistro (setembro de 2018), a vítima tinha 35 anos de idade, era uma pessoa dedicada à família; proporcionava-lhes amor a e afeto. Exercia a profissão de técnico superior, mediante a retribuição mensal de cerca de € 1.000,00 que afetava, de modo muito relevante, à satisfação dos interesses do seu agregado familiar.
Atentas estas circunstâncias e aquela que temos como sendo a mais razoável da jurisprudência mais recente, dentro das regras da equidade, corrigimos para € 85.000,00 o valor do dano morte e correspondente perda do direito à vida da vítima; a que não obstará o facto de o pedido parcelar se ter situado em € 80.000,00, contanto que o valor total da indemnização não ultrapasse o valor total do pedido da ação, como é jurisprudência pacífica.

- O dano não patrimonial sofrido pela vítima entre o momento do acidente e o momento da morte
Tal como resulta do citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.6.2020, quanto a este dano, também chamado de dano intercalar, que constitui a conversão económica da dor e angústia sofridas pela vítima durante o período que mediou entre o acidente e o momento da morte, importa realçar que constitui entendimento pacífico no seio da jurisprudência do Supremo Tribunal que os valores a fixar, nos termos do disposto no art.º 496º, nº 4, do Código Civil, variam bastante em função das circunstâncias do caso concreto, designadamente da gravidade das lesões sofridas, da intensidade das dores sofridas, do período de tempo durante a qual as dores se prolongam e do eventual pressentimento da morte.[29]
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.11.2016[30] decidiu-se que a quantia de € 20.000,00, fixada se mostra consentânea com os factos apurados, dos quais ressalta que a vítima sofreu dores intensas em consequência do acidente e das graves lesões que o atingiram, suportou cerca de 23 dias de clausura hospitalar e dolorosos tratamentos e perspetivou a sua morte, o que lhe causou angústia e medo.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.2.2018[31] ponderou-se o seguinte:
No caso, está assente que o motociclo conduzido pela vítima, seguindo à frente e no mesmo sentido de marcha do automóvel conduzido pelo lesante, foi por este embatido na traseira, tendo aquela sido projectada para trás, caindo sobre o capot do automóvel e sendo depois sucessivamente atirada para o pára-brisas e para o tejadilho, após o que, projectada a uma velocidade superior a 96 km/hora, caiu no asfalto, nele resvalando numa distância de, pelo menos, 47,26 metros, sofrendo lesões traumáticas crânio-meníngeo-encefálicas que foram causa da sua morte, ocorrida no próprio dia do acidente. Mas não se provou que a vítima estivesse consciente depois do embate e, portanto, tivesse sofrido dores físicas para além das que naturalmente terá sentido com o primeiro choque, nem que tivesse sentido angústia com o aproximar da morte, que, à face dos factos que se provaram, e só esses importam, pode mesmo ter ocorrido logo no momento em que a vítima foi projectada do motociclo.
Neste circunstancialismo, não há fundamento para fixar por este dano indemnização superior à decidida no acórdão recorrido – 30.000,00 € –, que se situa acima do que o Supremo vem considerando justo em situações em que o dano apurado apresenta maior gravidade. Por exemplo, no acórdão de 03/11/2016, acima identificado, num caso em que vítima “sofreu dores intensas em consequência do acidente e das graves lesões que a atingiram, suportou cerca de 23 dias de clausura hospitalar e dolorosos tratamentos e perspectivou a sua morte, o que lhe causou angústia e medo”, este tribunal considerou acertada a indemnização de 20 000,00 €.
No acórdão da Relação de Lisboa de 7.11.2019[32] entendeu-se ser ajustado o valor de € 15.000,00 de indemnização pelo dano intercalar, quando está provado que a vítima ficou em estado grave, teve de ser socorrida e levada para hospital e agonizou durante cinco horas até falecer.
No citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.2.2021, foi avaliado em € 10.000,00 o dano intercalar relativo a uma vítima de atropelamento muito violento, mas em que aquela teve morte cerca de 30 horas depois do sinistro, sem que se tivesse provado o sofrimento ou a perceção da morte iminente.
Nos presentes autos ficou provado que G…, após ter caído no pavimento, ficou em sofrimento a aguardar a chegada dos meios de socorro, ensanguentado e imobilizado sobre a plataforma da rua …, no local assinalado no croqui da participação de acidente de viação; com a chegada dos bombeiros e do INEM, foi imobilizado em plano duro e com colar cervical; após, foi transportado de urgência para o Hospital …, em Vila Nova de Gaia, tendo o mesmo entrado consciente nessa unidade hospitalar, local onde lhe foram ministrados cuidados médicos e medicamentosos, designadamente, foi submetido a tratamento cirúrgico à região do tórax, à bacia e demais zona pélvica e ao membro superior esquerdo, tendo permanecido internado, em coma induzido, até 3 de outubro de 2018, data em que veio a falecer, sendo certo que por período concretamente não apurado (dado que esteve uma parte significativa em coma induzido) teve sofrimento físico e angústia, tendo-se apercebido e com consciência (no mínimo até ficar em coma induzido) que iria morrer, sofrendo lesões traumáticas torácicas e pélvicas, associadas a choque sético e trombo-embolismo pulmonar, descritas no relatório de autópsia e que lhe determinaram direta e necessariamente a morte (factos provados 15, 16, 17 e 18).
Tudo ponderado, mas considerando especialmente que a vítima pressentiu a morte e sofreu com isso e com dores, mas também que acabou por ter sido colocada em estado de coma induzido até ao momento da morte, assim se tendo aliviado o seu sofrimento, temos como razoável e equilibrado aumentar o valor do dano fixado na 1ª instância para a quantia de € 20.000,00.

- Os danos não patrimoniais sofridos por cada um dos AA.
Pediram € 40.000,00 para a A. B… e € 30.000,00 para cada um dos filhos. O tribunal fixou em € 25.000,00 o dano da A. viúva e em € 17.500,00 o dano de cada um dos dois filhos. Por força da concorrência de culpas fixou estas indemnizações em € 18.500,00 e em € 13.125,00, respetivamente. Pretendem os recorrentes a fixação do valor dos danos pelos montantes expressos no articulado inicial.
Relativamente a esta matéria, ficou provado que G… dedicava amor e afeto aos AA. (cônjuge e filhos), que a A. B… foi visitar o seu marido todos os dias ao hospital enquanto o mesmo permaneceu internado, falava com ele e tocava-o, sofreu angústia pelo seu estado e tem revivescências que a afetam psicologicamente ao nível da sua alegria de viver e da sua capacidade de trabalho; os filhos, com cerca de 6 e 8 anos de idade, vivem tristes, perguntando pelo pai (factos provados 2, 21 e 22).
Estes danos reflexos são indemnizáveis ao abrigo dos art.ºs 483º e e 496º, nº 4, do Código Civil, por ter resultado a morte da vítima.[33]
Extrai-se com toda a propriedade da sentença recorrida:
«Conforme decidiu o Supremo Tribunal de Justiça (Ac. 15-04-2009, proc. 08P3704), “É consensual a ideia de que só são indemnizáveis os danos não patrimoniais que afetem profundamente os valores ou interesses da personalidade física ou moral, medindo-se a gravidade do dano por um padrão objetivo, embora tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, mas afastando-se os fatores subjetivos, suscetíveis de sensibilidade exacerbada, particularmente embotada ou especialmente requintada, e apreciando-se a gravidade em função da tutela do direito; o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado”. O mesmo aresto explicita que “(…) IX - No caso de morte da vítima há um círculo restrito de pessoas a esta ligados por estreitos laços de afeição a quem a lei concede reparação quando pessoalmente afetadas, por isso, nesses sentimentos. X - Neste caso, os danos destas vítimas “indiretas” emergem da dor moral que a morte pessoalmente lhes causou, havendo lugar a indemnização em conjunto e jure proprio ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos, na falta destes, aos pais, e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representarem – art. 496.º, n.º 2, do CC. XI - Está em causa um dano especial, próprio, que os familiares da vítima sentiram e sofreram com a morte do lesado, contemplando o desgosto provocado pela morte do ente querido. XII - A origem do dano do desgosto é o sofrimento causado pela supressão da vida, sendo de negar o direito à indemnização em relação a quem não tenha sofrido o dano – cf., neste sentido, o Ac. do STJ de 23-03-1995, CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 230. (…) XV - É pacífico que um dos fatores a ponderar na atribuição desta forma de compensação será sempre o grau de proximidade ou ligação entre a vítima e os titulares desta indemnização. XVI - Na sua determinação «há que considerar o grau de parentesco, mais próximo ou mais remoto, o relacionamento da vítima com esses seus familiares, se era fraco ou forte o sentimento que os unia, enfim, se a dor com a perda foi realmente sentida e se o foi de forma intensa ou não. É que a indemnização por estes danos traduz o “preço” da angústia, da tristeza, da falta de apoio, carinho, orientação, assistência e companhia sofridas pelos familiares a quem a vítima faltou» – cf. Sousa Dinis, in Dano Corporal em Acidentes de Viação, CJSTJ 1997, tomo 2, pág. 13”».
Expõe-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.7.2017[34]:
Consabidamente, os danos não patrimoniais, incluindo evidentemente a dor sentida pela perda de um ente querido, são fonte da obrigação de indemnizar, mas esta tem propósitos meramente compensatórios, assumindo-se como uma tentativa de minorar o sofrimento causado ao lesado, e por outro lado, como uma satisfação dada pelo agente em virtude do seu comportamento censurável. Não tem a veleidade de apagar o dano moral, com bens materiais, pela evidente natureza heterogénea das realidades em confronto”.
No citado acórdão da Relação de Lisboa de 30.6.2020 fez-se constar: “A título de danos não patrimoniais próprios dos familiares, entendemos adequada a fixação a cada um dos autores, a título de danos não patrimoniais sofridos em consequência da prematura morte do companheiro e pai, respectivamente, da quantia de € 50.000,00 para a companheira da vítima e de € 40.000,00 e de € 30.000,00 respectivamente para os filhos.
Também no já referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.2.2021, a propósito desta compensação familiares, foi considerado o seguinte:
(…) no caso dos autos, apurou-se que:
- O CC nasceu a … .03.1963 e faleceu no estado de divorciado.
- Vivia há pelo menos 6 anos com BB como se de marido e mulher se tratassem.
- Trabalhava como motorista de veículos pesados.
- O autor é filho de CC, com o qual ficou a residir após separação dos pais.
- Sofreu desgosto com a morte do pai, com o qual mantinha relação de amizade, de suporte e amparo, material e sentimental.
- A companheira BB sofreu desgosto com a morte do companheiro, com o qual mantinha relação de suporte e amparo, material e sentimental.
(…)
Confrontados com esta divergência das instâncias e cumprindo-nos indagar, no âmbito do presente recurso de revista, quais os valores arbitrados que mais se harmonizam com os critérios ou padrões seguidos pela jurisprudência, importa salientar, tal como nos dá conta o citado Acórdão do STJ de 21.03.2019, proferido no processo n.º 20121/16.7T8PRT.P1.S1, que relativamente à indemnização de um filho pela morte do pai ou mãe, a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem fixado valores que têm variado, em razão da especificidade do caso, entre € 7.500,00 e € 30.000,00, tendo fixado valores mais elevados apenas nos casos em que existe uma especial situação de fragilidade dos filhos (…).
Assim, à luz destes parâmetros e cientes da necessidade de uma progressiva atualização dos valores indemnizatórios, impõe-se concluir, ante o quadro factual supra descrito, ser ajustada a indemnização arbitrada pela Relação ao autor, não se vislumbrando razões para estabelecer, a este nível, a diferenciação entre o autor, enquanto filho da vítima, e a interveniente BB, atendo o facto de a mesma ter vivido em união de facto com a vítima durante 6 anos.
Com efeito, resulta claro da matéria dada como provada que ambos mantinham com a vítima laços de afetividade e convivência no âmbito de um mesmo consolidado agregado familiar, admitindo-se que ambos ficaram psicologicamente afetados, em igual medida, pela perda do CC.
Considera-se, por isso, justo e adequado que a indemnização base pelos danos próprios do autor e da interveniente BB seja fixada em € 35.000,00.
No caso, trata-se de uma família jovem, sendo os dois filhos da vítima ainda crianças muito novas e, por isso, especialmente frágeis. Estão sujeitas desde muito cedo e ainda ao longo de muitos anos a uma vivência desamparada, sem a figura do pai biológico, que lhes tinha o afeto próprio da relação pai-filho.
Seriamente sentida foi também a falta do falecido por parte do seu cônjuge.
Não sendo vinculativos, mas orientadores para os tribunais, os critérios enunciados na Portaria n.º 377/08, de 26 de maio, com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho[35], são os seguintes: para o cônjuge com menos de 25 anos de casamento, a quantia até 20.520,00€; a cada filho com idade menor a 25 anos, a quantia até € 15.390,00 (cf. anexo II, grupo I).
Assim, mais uma vez recorrendo necessariamente à equidade, ponderando as referidas circunstâncias do caso e os valores que, atualmente, são normalmente praticados na jurisprudência, corrigem-se os valores dos danos não patrimoniais da A. e de cada um dos dois filhos para as quantias de € 30.000,00 e € 25.000,00, respetivamente.

- O dano presente e futuro emergente da perda de rendimento do cônjuge da vítima e dos filhos
O direito dos AA., enquanto mulher e filhos da vítima está previsto no art.º 495º, nº 3, do Código Civil, segundo o qual, “têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural”. O cônjuge, como os filhos menores não emancipados e maiores enquanto não tiverem completado a sua formação profissional ou os seus estudos, em regra, até aos 25 anos de idade, têm direito a alimentos a que o falecido estaria obrigado nos termos dos art.ºs 1878º, nº 1, 1880º e 1905º do Código Civil.
Porém, o prejuízo a indemnizar é somente o da perda de alimentos decorrente da falta da vítima. A seguradora não pode ser condenada em prestação superior (quer no valor, quer na duração) àquela que o lesado suportaria se fosse vivo.[36] Por outro lado, não se olvidará que a obrigação alimentar entre os cônjuges é recíproca (dever de assistência), pelo que, se o lesado fosse vivo, também poderia beneficiar dos contributos a que a A. estaria obrigada e pudesse prestar (art.ºs 1672º e 1675º do Código Civil).
Na determinação do valor do dano, há de atender-se, nos termos do art.º 564º, nº 2, do Código Civil, aos danos futuros, desde que sejam previsíveis, e, não podendo ser averiguado o seu valor exato, julgar-se-á mediante o recurso à equidade, nos termos do art.º 566º, nº 3, do mesmo código. Se não puder ser quantificado, em termos de exatidão, o montante desses danos, julgará o tribunal equitativamente, dentro dos limites que tiver por provados, de acordo com o disposto no art.º 566º, n.º 3, do Código Civil. A medida da indemnização deve ser determinada (tendencialmente) pelo cômputo da perda do montante global de alimentos que os interessados poderiam receber do lesado.
A vítima auferia um rendimento líquido mensal de € 1.000,00. Era técnico superior, sendo previsível que, ao longo da sua carreira, melhorasse um pouco mais (não muito) a sua condição financeira. A A., sua mulher, era professora, o seu rendimento mensal (do trabalho) não ia além de € 253,86, o que indicia um exercício laboral a tempo parcial e que, previsivelmente, vai evoluir, pelo menos, para valor próximo do rendimento mínimo mensal garantido, atualmente de € 665,00 (Decreto-lei nº 109-A/2020, de 31 de dezembro).
Dada a forte dependência familiar do rendimento da vítima, é de admitir que mais de 2/3 do rendimento anual do trabalho (€ 14.000,00) seria afetado às despesas comuns do seu agregado familiar, ou seja, mais de 9.350,00/ano. Mas, as despesas dos filhos tendem a aumentar à medida que vão progredindo na idade e nos estudos, ampliando-se a necessidade de alimentos.
O pedido da ação, relativamente a este dano, foi de € 500.000,00, sendo € 100.000,00 para o filho mais velho (o A. C…), € 125.000,00 para o filho mais novo (o A. D…) e o remanescente de € 275.000,00 para a A. B….
Ninguém pode duvidar que a fixação desta indemnização é melindrosa, nomeadamente por assentar em variáveis por vezes pouco seguras, como seja a possível variação remuneratória a que a vítima poderia estar sujeita, que passa mesmo pela possibilidade de perder ou de mudar de emprego.
No entanto, a dinâmica da vida não obsta à ponderação critérios tanto quanto possível objetivos, que a jurisprudência tem vindo a identificar[37], quais sejam:
1º- A indemnização pela frustração dos alimentos deve corresponder a um capital produtor do rendimento que o lesado não receberá do falecido e que se extingue no termo do período provável da vida do falecido, altura em que este deixaria necessariamente de prestar alimentos ao cônjuge, e quanto aos filhos, no momento em que estes previsivelmente irão concluir a sua formação académica e, por conseguinte, iniciarão o seu percurso profissional, provendo ao seu próprio sustento, com o limite máximo dos 25 anos de idade;
2º- No cálculo desse capital interfere necessariamente, e de forma decisiva, a equidade, o que implica que deve conferir-se relevo às regras da experiência e àquilo que, segundo o curso normal das coias, é razoável;
3º - As tabelas financeiras por vezes utilizadas para apurar a indemnização têm um mero caráter auxiliar, indicativo, não substituindo de modo algum a ponderação judicial com base na equidade;
4º- Deve ser proporcionalmente deduzida no cômputo de indemnização a importância que o próprio falecido gastaria consigo mesmo ao longo da vida (em média, para despesas de sobrevivência, um terço dos proventos auferidos);
5º- Deve ter-se em consideração a natural evolução do salário do falecido, pelo que deverá ser introduzido um fator que considere essa evolução salarial previsível;
6º - Deve ponderar-se o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros; logo, impõe-se considerar esses proveitos, introduzindo um desconto no valor achado, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado à custa alheia; e
7º- Deve ter-se preferencialmente em conta, mais do que a esperança média de vida ativa do falecido, a esperança medida de vida deste, uma vez que, como é óbvio, aquele irá ter de contribuir para as despesas do lar, caso fosse vivo, até ao termo da sua vida em relação ao seu cônjuge.[38]
À data do óbito, os filhos tinham 3 e 5 anos de idade. O pai faleceu com 35 anos. Aqueles estariam dependentes da vítima até próximo dos 25 anos, idade em que, previsivelmente, completariam a sua formação académica/profissional, ou seja, por mais 22 e 20 anos, respetivamente.
Não fosse o acidente, também a A. poderia beneficiar do rendimento do cônjuge para o seu agregado familiar por, por aproximadamente mais 45 anos, por ser de admitir que viveria por mais esse período de tempo casada com ele, auferindo remuneração do trabalho e, após os 66 nos de idade, pensão de reforma de valor equivalente.
Sendo também de admitir que a vítima auferia, como é comum, subsídio de férias e de Natal de valor idêntico à remuneração mensal e, tendo assim uma remuneração anual líquida de € 14.000,00 à data da morte, o falecido destinava mais de € 9.333,33 por ano às despesas dos dois filhos e do cônjuge, ou seja, quantia mensal não inferior a € 777,77 (€ 259,25 cada um deles).
Com a saída dos filhos do seu agregado familiar, haveria uma reafectação do seu rendimento às despesas próprias do G… e do seu cônjuge (a A.). Assim, cerca de € 6.222,22/ano seriam direcionados para as despesas comuns do casal.
Numa perspetiva estática, não fosse a morte da vítima:
- O filho mais velho (dependente por 20 anos a contar da data do acidente) obteria alimentos do pai pelo valor de cerca de € 62.220,00 (20 anos x € 3.111,00);
- O filho mais novo (dependente por 25 anos a contar da data do acidente), obteria alimentos daquele pelo valor de cerca de € 77.775,00 (25 anos x € 3.111,00);
- O cônjuge da vítima estaria a beneficiar da quantia de € 62.220,00 relativa a 20 anos (€ 3.111,00/ano), após o que passaria a beneficiar de mais € 1.555,50 por cada um dos 5 anos seguintes (dada a autonomização económica do filho mais velho e a afetação do respetivo valor aos dois membros do casal), ou sejam, € 4.666,50/ano, no total de € 23.332,50 nos 5 anos, após o que, com a saída do filho mais novo do agregado familiar, passaria a beneficiar, juntamente com o marido, do rendimento anual de € 9.333,33, ou seja de € 4.666,65 por ano, a partir de 2043, até ao ano 2063, ou sejam, € 93.333,30 (€ 4.666,65 x 20 anos) data em que o falecido atingiria 80 anos de idade e, previsivelmente, o termo da sua via. Com efeito, a soma do rendimento perdido pela A. atinge o valor de € 178.885,80.
Refere-se no citado acórdão de 11.4.2019 que “o cálculo do quantum indemnizatório, fixado pela perda do contributo remuneratório, enquanto dano patrimonial pela frustração de alimentos, tem, necessariamente, por base, critérios de equidade que assentam numa ponderação prudencial e casuística, dentro de uma margem de discricionariedade que ao julgador é consentida, que, de todo, colida com critérios jurisprudenciais actualizados e generalizantes, de forma a não pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio de igualdade.
Assim, haverá que ter sempre presente a figura da equidade, a qual visa alcançar a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei, de forma que se tenha em conta, as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida”.
Naquele acórdão foi utilizada uma fórmula matemática que, considerando os dados que relevam no nosso caso, se apresenta da seguinte forma, por exemplo, quanto a cada um dos dois filhos da vítima:
(€ 222,25 é o valor de afetação mensal a cada um deles e da progenitora, a partir da remuneração líquida do falecido, de € 1.000,00)
O filho mais velho:
- [(€ 222,25 x 14 meses x 20 anos)] x 1% = € 61.607,70

O filho mais novo:
- [(€ 222,25 x 14 meses x 25 anos)] x 1% = € 77.009,63

A soma destes valores com o valor encontrado para o dano da A. (considerando a mesma taxa de juro) atinge o total de € 315.714,82.
Este raciocínio é semelhante ao que acima desenvolvemos, sendo-o também os respetivos resultados. A diferença está na ponderação da taxa de juro de 1%, julgada equitativa e ajustada, na linha do rendimento do capital, aplicado em produto sem risco, a reduzir ao montante do capital a atribuir aos AA.
Os valores assim obtidos não são de aplicação indiscutível e devem ser ponderados nas circunstâncias e especificidades de cada caso, atendendo à evolução dos salários, quando previsível, e à tendência atual para o melhoramento progressivo da qualidade de vida da generalidade dos trabalhadores e das populações em geral.
Decorre do exposto que o dano total encontrado pelo tribunal recorrido, no valor de € 350.000,00 pela perda de rendimento dos AA., presente desde a data do acidente e futuro é perfeitamente consentido pela utilização dos critérios normalmente utilizados na jurisprudência e não peca, seguramente, por defeito; razão pela qual não devem ser corrigidos para os valores superiores pretendidos pelos recorrentes.
Ajustada se nos afigura ser também a distribuição efetuada na 1ª instância do valor dos danos em função de cada lesado, de € 175.000,00 para a A. viúva, € 85.000,00 para o A. C… (o filho mais velho) e € 90.000,00 para o A. D… (o filho mais novo).
Não procede, assim, o pedido de fixação desta indemnização formulado pelos AA. pelo valor total de € 416.000,00, por ser excessivo o valor do pedido relativo ao dano da A. viúva.

Uma breve nota relativa à indemnização por dano patrimonial que o tribunal fixou em € 1.187,40, relativo aos custos das cerimónias fúnebres.
Considerando que aquele dano foi fixado na 1ª instância em € 1.583,20 e que a indemnização foi reduzida para a referida quantia em razão da quota-parte de responsabilidade que se imputou à R. seguradora (75%), responsabilidade que agora se estabeleceu em 100%, a indemnização passa a corresponder ao referido valor total do dano.

Em tudo o mais se mantém a sentença recorrida.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
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V.
Pelo exposto, de facto e de Direito, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, considerando a culpa total do condutor do veículo segurado, altera-se a sentença, condenando-se a R. seguradora nos seguintes termos:
1. Quanto ao dano morte, a que corresponde a perda do direito à vida, na indemnização a favor dos AA. que fixa em € 85.000,00;
2. Relativamente ao dano não patrimonial sofrido pela vítima entre o momento do acidente e o momento da morte, na indemnização de € 20.000,00;
3. Pelos danos patrimoniais relativos ao custo das cerimónias fúnebres, a quantia de € 1.583,20;
4. Pelos danos não patrimoniais sofridos por cada um dos AA., nas quantias indemnizatórias de € 30.000,00 para a A. viúva e € 25.000,00 para cada um dos dois filhos da vítima;
5. Pelos danos resultantes da perda de contribuição do falecido G… para o sustento da mulher e dos filhos, nas indemnizações de € 175.000,00 para a A. B…, € 85.000,00 para o A. C… (o filho mais velho) e € 90.000,00 para o A. D… (o filho mais novo).
Em tudo o mais se mantém a sentença, designadamente quanto a juros.
*
Custas da apelação pelos recorrentes e pela recorrida, na proporção do decaimento (art.º 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), sem prejuízo do que já foi pago de taxas de justiça.
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Porto, 9 de junho de 2021
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
______________
[1] Por transcrição.
[2] Por transcrição.
[3] A que pertence qualquer referência a paginação que for efetuada sem menção de origem.
[4] Neste sentido, A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L. Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Almedina, 2019, pág.s 746 e 747.
[5] Comentários ao Código de Processo Civil, I Volume, Almedina, 2ª Edição, 2004, pág. 563, citado por Luís Filipe Pires de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, Almedina, 2013, 2ª edição, pág. 167.
[6] Obra citada, da sua autoria.
[7] O negrito é nosso.
[8] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.2.2006, Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. I, pág. 85.
[9] Pessoa Jorge, “Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, pág. 69.
[10] “Obrigações”, 3ª Edição, pág. 176.
[11] Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Almedina, 2ª edição, pág. 295.
[12] cf. Acórdãos da Relação de Coimbra de 15/3/1983 e de 21/1/1985, Colectânea de Jurisprudência, T.s II e III, pág.s 15 e 81, respetivamente, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.11.2000, Colectânea de Jurisprudência III, pág. 105.
[13] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Fevereiro de 2007, Colectânea de Jurisprudência Sup. T. I, pág. 72.
[14] Cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de fevereiro de 2011, proc. nº 667/06.8TBOHP.C2.S1 - e de 24 de abril de 2012, proc. nº 32/10.0T2AVR.C1.S1, in www.dgsi.pt.
[15] Cf. acórdão do S.T.J. de 11.10.1994, BMJ 440/449 e, das Relações, acórdãos da Relação de Lisboa de 13.2.1997, Colectânea de Jurisprudência, Tomo I, pág. 123.
[16] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.11.2005, Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. III, pág. 127.
[17] Cf. acórdão da Relação do Porto de 10.12.2012, proc. 2604/09.7TBPVZ.P1, in www.dgsi.pt, citando jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (acórdão STJ, de 10.07.2008, proc. 08B2101, in www.dgsi.pt.).
[18] Jorge Sinde Monteiro, Reparação dos Danos Pessoais em Portugal, CJ, 86, IV, pág. 11.
[19] Proc. 6/15.5T8VFR.P1.S1, também no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.9.2016, proc. 492/10.0TBBAO.P1.S1, ambos in www.dgsi.pt.
[20] Este excerto foi reproduzido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Março de 2017, proc. n.º 294/07.0TBPCV.C1.S1, e no acórdão do mesmo Tribunal de 11.04.2019, proc. 465/11.5TBAMR,G1.S1, todos in www.dgsi.pt.
[21] Proc. 465/11.5TBAMR,G1.S1, in www.dgsi.pt.
[22] Leite Campos, A Vida, a morte e a sua indemnização, in BMJ, nº 365, pág. 15.
[23] Proc. nº 65/17.6GTALQ -5, in www.dgsi.pt.
[24] Proc. 625/18.8T8AGH.L1.S1, in www.dgsi.pt.
[25] Proc. 4086/18.3T8FAR.E1.S1, in www.dgsi.pt.
[26] Cfr. O recente Acórdão do STJ, de 11.02.2021 (processo nº 621/18.8T8AGH.L1.S1), ainda não publicado.
[27] Relatado pela Juíza Conselheira Maria da Graça Trigo, subscrito pela ora relatora como 1.ª Adjunta, e acessível em www.dgsi/stj.pt.
[28] Relatado pelo Juiz Conselheiro Tomé Gomes, subscrito pela ora relatora como 2.ª Adjunta, e acessível em www.dgsi/stj.pt.
[29] Neste sentido, entre muitos outros, os acórdãos do STJ, de 08.09.2011 (proc. nº 2336/04.2TVLSB.L1.S1); de 27.09.2011 (proc. nº 425/04.2TBCTB.C1.S1); de 24.10.2013 (proc. nº 225/09.3TBVZL.S1); de 29.10.2013 (proc. nº 62/10.2TBVZL.C1.S1); de 28.11.2013 (proc. nº 177/11.0TBCP.S1) de 15.09.2016 (proc. nº 492/10.0TBBAO.P1.S1) e de 02.03.2017 (proc. nº 36/12.9TBVVD.G1.S1), acessíveis in www.dgsi.pt ou em sumários da jurisprudência cível, www.stj.pt.
[30] Proc. 6/15.5T8VFR.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[31] Proc. 33/12.4GTSTB.E1.S1, in www.dgsi.pt.
[32] Proc. 726/16.7T8CSC.L1-6, in www.dgsi.pt.
[33] Dúvidas existem quanto à indemnização de danos não patrimoniais reflexos em caso de ofensa corporal, que a doutrina e a jurisprudência tradicional negam (cf., entre outros o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.9.2009, proc. 292/1999-S1, in www.dgsi.pt. e Guilherme Cascarejo, in Danos Não Patrimoniais dos Familiares da Vítima de Lesão Corporal Grave, Almedina, 2016, pág.s 59 e seg.s).
[34] Proc. 313/13.1PGPDL.L1.S1, internet https://dre.pt/web/guest/pesquisa-avancada/-/asearch/116181109/details/maximized?emissor=Supremo+Tribunal+de+Justi%C3%A7a&perPage=100&types=JURISPRUDENCIA&search=Pesquisar
[35] O que vale, aliás, para o cálculo de todas as indemnizações previstas naquela legislação.
[36] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.1.2012, proc. 875/05.7TBILH.C1.S1, A. Varela, Código Civil anotado, vol. V, pág. 576 e Vaz Serra, anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.4.1974, RLJ, Ano 108º, pág.s 180 e seg.s.
[37] Citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.4.2019.
[38] Ali se citando o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.03.2012, proc. 26/09.PTEVR.E1.S1 e o acórdão da Relação do Porto de 23.03.2015, proc. 1783/11.8TBPNF.P1, in www.dgsi.pt.