Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
10310/16.0T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Nº do Documento: RP2017060110310/16.0T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 06/01/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 97, FLS.144-151)
Área Temática: .
Sumário: I - As regras de competência do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro de 2012, aplicam-se desde que o demandado tenha domicílio num Estado-Membro; à competência dos tribunais desse Estado-Membro, decorrente das normas do Regulamento, não obsta a circunstância de o demandado não ser nacional desse Estado ou de nenhum outro Estado da União Europeia, nem a circunstância de a relação material controvertida possuir elementos de conexão com a ordem jurídica de um Estado não Membro da União Europeia.
II - Um órgão jurisdicional de um Estado-membro não pode declinar a competência que lhe é conferida pelo Regulamento por considerar que um órgão jurisdicional de um Estado não Membro é um foro mais adequado para conhecer do litígio.
III - Nos termos da alín. b) do art. 62.º do CPC, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes mesmo que só alguns dos factos que constituem a causa de pedir tenham sido praticados em território português, independentemente da sua importância no conjunto dos pressupostos do direito do autor, da complexidade do apuramento dos demais factos na instrução do processo ou da maior ligação dos demais factos a outro Estado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
Processo n.º 10310/16.0T8PRT-A.P1 [Comarca do Porto/Juízo Central Cível do Porto]

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
B…, Lda., pessoa colectiva n.º ………, com sede no Porto, instaurou acção declarativa contra C…, titular do NIF ……….., residente no Porto, terminando a petição inicial com a dedução do seguinte pedido: condenação do réu a pagar à autora a quantia de €333.613,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa das operações comerciais, desde a data em que o réu recebeu da autora essa quantia até integral pagamento, “ou, alternativamente”, condenação do réu a restituir à autora a quantia de €333.613,00.
Para o efeito, alegou que em 2013 no exercício do seu objecto social e da actividade profissional do réu, este lhe apresentou uma proposta de investimento no Brasil nas áreas da construção civil e energias renováveis, envolvendo os projectos de construção de 1.300 casas e de concepção e construção de uma central de geração de energia fotovoltaica, sendo que a intervenção da autora, a concretizar-se nos termos propostos pelo réu, teria lugar ao nível da concepção, implementação e posterior venda dos projectos, em parceria com as empresas brasileiras indicadas pelo réu, daí retirando, a final, o respectivo lucro. Autora e réu celebraram um acordo mediante o qual o réu se obrigou a intermediar a entrada da autora nesses projectos, tendo a autora assumido o compromisso de pagar, como contrapartida pelos serviços do réu, a quantia global de €333.613,00, que a autora pagou na totalidade por transferência bancária. O réu assumiu a obrigação de imediatamente após receber essa quantia celebrar os contratos necessários à participação da autora nos projectos, o que não veio a ocorrer, acabando o réu por admitir que não conseguiria diligenciar pela entrada da autora nos projectos. Por essa razão as partes assumiram a resolução do contrato por incumprimento culposo do réu e este assumiu a obrigação de restituir à autora o que esta lhe tinha pago, o que não cumpriu.
Pretende assim a autora que o réu seja condenado a restituir o que lhe pagou seja em consequência da resolução do contrato por incumprimento, seja, alternativamente, por efeito do instituto do enriquecimento sem causa, uma vez que o negócio que as partes inicialmente configuraram se revelou de impossível concretização, não tendo o réu condições para cumprir a prestação de facere a que se obrigou.
O réu foi citado por carta registada com aviso de recepção remetida para o endereço no Porto indicado na petição inicial, tendo a correspondência sido recebida e o aviso de recepção assinado por outra pessoa, pelo que o tribunal procedeu de seguida ao envio, para a mesma morada, de carta registada com a advertência prevista no artigo 233.º do Código de Processo Civil.
Na contestação que apresentou, o réu começou por arguir a excepção da incompetência absoluta dos tribunais portugueses, alegando para o efeito que a acção está relacionada com um contrato de prestação de serviços celebrado verbalmente no Brasil entre o réu e a sociedade d…, S.A., representada pelo legal representante da autora, para ser cumprido nesse país, onde o réu tinha então e ainda hoje tem residência, não havendo assim qualquer conexão factual ou legal com o território português para que se verifique a competência dos Tribunais Portugueses para dirimir o conflito.
A autora respondeu à excepção defendendo a competência internacional dos tribunais portugueses, argumentando para o efeito que muito embora parte da relação contratual se tenha desenvolvido no Brasil, o réu tem residência e domicílio fiscal em Portugal, no Porto, onde foi citado, e tem em Portugal a conta bancária para onde foi feito o pagamento, por transferências bancárias, dos montantes acordados como remuneração da prestação dos serviços.
Sobre esta excepção a Mma. Juíza a quo proferiu, na audiência prévia, a seguinte decisão:
« […] O artigo 59.º do CPC concede primazia ao direito comunitário ao referir “sem prejuízo do que se ache estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos arts. 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do art.º 94.º”.
No caso em apreço, a questão da competência internacional coloca-se entre os tribunais portugueses e os tribunais brasileiros, não existindo qualquer Regulamento ou Tratado entre Portugal e Brasil sobre esta matéria, pelo que os tribunais portugueses serão internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos no art.º 62.º do CPC.
Segundo o art.º 62.º do CPC, “os tribunais portugueses são internacionalmente competentes: a) Quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa.”
Este critério radica no princípio da coincidência, isto é a competência internacional dos tribunais portugueses resulta da circunstância de a acção dever ser proposta em Portugal, segundo as regras da competência interna territorial da lei portuguesa, que constam dos arts. 70.º e ss.
Segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa, destinando-se a acção a exigir a restituição da importância paga ao Réu em virtude da resolução do contrato de prestação de serviços por incumprimento daquele, segundo o art.º 71.º do CPC “deve ser proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana.”
« A competência é um pressuposto processual que se determina tendo em atenção o modo como o autor configura a lide na petição inicial. Diz-se, a propósito, que a competência se determina pelo pedido do autor» (Ac STJ de 8/4/2010, Proc. nº 4632/07.8TBBCL.G1.S1, www.dgsi.pt).
Na petição inicial, a Autora alegou que o Réu reside em Portugal, celebrou com ele um contrato de prestação de serviços, que este incumpriu, pretendendo que este lhe restitua o valor que recebeu de honorários pelos serviços que devia ter cumprido no Brasil e não cumpriu, por ter procedido à resolução do referido contrato. O Réu foi citado na morada constante da PI, Rua …, …, …, no Porto, e afirmou ser residente nessa mesma morada quando outorgou procuração à Il. Mandatária que subscreve a contestação a fls. 167.
Sendo assim, ainda que porventura também tenha residência no Brasil, por força do trabalho que lá exerce, assumiu-se nestes autos como residente também em Portugal, pelo que, pode ser demandado em Portugal (art.º 82.º do C. Civil), logo, tendo o Réu domicílio em Portugal, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para decidir esta acção.
Pelo exposto, julga-se improcedente a excepção da incompetência internacional deste tribunal.»
Do assim decidido, o réu interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões (eliminam-se as que são meras repetições sem relevo conclusivo):
«I. […] IV. O aqui Recorrente sempre referiu e assumiu que a sua residência é no Brasil, motivo pelo qual não têm competência os tribunais portugueses.
V. Não foi o aqui Recorrente quem foi citado na morada indicada pela Autora, sendo que quem assinou o Aviso de Recepção da citação foi a empregada doméstica do seu Pai que presta serviços na dita morada, no Porto.
VI. A citação foi realizada em terceira pessoa.
VII. Tendo esta sido enviada via email para o Recorrente, que a recebeu na sua habitação no Brasil.
VIII. Pelo que, fica com facilidade demonstrado que o aqui Recorrente não foi citado em território nacional.
IX. […] X. Assim, não poderá ser tido em consideração para efeitos de aferição do domicílio do Recorrente o local da sua citação.
XI. Não se verifica um dos elementos de conexão com o território português e que permite aos olhos do Tribunal a quo determinar a sua competência para o julgamento da causa.
XII. […] XIV. O Recorrente junta documentos oficiais e originais, bem como afirma peremptoriamente que reside no Brasil, não tendo sequer, domicílio fiscal em Portugal.
XV. De todos os factos e documentos constantes dos autos, com a exceção da referida procuração, consta como residência permanente do Recorrente o estado de …, no Brasil.
XVI. Entende o Recorrente que as conexões consideradas pelo Tribunal a quo em preterição de todos os factos e documentos oficiais juntos aos presentes autos, não poderão ser ponderadas nos termos em que o foram.
XVII. O aqui Recorrente foi contactado pela gerente da Recorrida em representação de um grupo de empresas portuguesas para, no Brasil, encetar contactos com pessoas do Estado do … que lhe permitissem iniciar a sua actividade de construção e instalação de equipamentos fotovoltaicos naquele referido estado.
XVIII. Foi então celebrado entre o Recorrente e o gerente da Recorrida em representação de um grupo de sociedades, um contrato de prestação de serviços, em que o Recorrente assumia o compromisso de “abrir portas” e contactar pessoas e entidades que permitissem a implementação da actividade do Grupo D… no referido estado brasileiro.
XIX. Por conta do referido contrato de prestação de serviços o Recorrente receberia uma percentagem do valor de cada negócio celebrado pelo Grupo D…, percentagem essa ascendente a 3%.
XX. Assim, o Recorrente encetou todas as diligências e contactos com diversas entidades, com vista ao cumprimento da sua parte do contrato celebrado, tendo sido agendadas reuniões e trocada diversa correspondência.
XXI. O que resultou no incumprimento de variados contratos por parte do Grupo D… face a empresas e autoridades governamentais brasileiras.
XXII. Importa referir que os factos alegados dizem respeito a um contrato celebrado no Brasil, para ser cumprido no Brasil e respeitante a construções e mediações a serem realizadas em território brasileiro.
XXIII. Ou seja, os factos que servem de causa de pedir na acção interposta pela Recorrida, não foram praticados em território português.
XXIV. Realce-se que no ano de 2013, o Recorrente tinha a sua residência estabelecida no Brasil, sendo que ainda a mantem actualmente.
XXV. Os referidos factos motivaram que o Recorrente em sede de contestação, invocasse a excepção dilatória da incompetência absoluta dos tribunais portugueses para a presente acção.
XXVI. Em sede de audiência prévia, a Meritíssima Juiz a quo proferiu despacho, fundamentando que neste caso, os tribunais portugueses são competentes para julgar a questão com base no princípio da coincidência, isto é, que a competência internacional dos tribunais portugueses resulta da circunstância de a acção dever ser proposta em Portugal, segundo as regras da competência interna territorial da lei portuguesa, que constam dos artigos 70.º e seguintes do Código do Processo Civil.
XXVII. Por sua vez, o artigo 71.º desse mesmo diploma estipula que “a acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu…”, ora o domicílio do réu, aqui Recorrente, não é no Porto, nem em Portugal.
XXVIII. Como prova de tal facto, foram juntos aos autos as declarações de IRS do aqui Recorrente nesse Estado, tendo aí o seu domicílio fiscal.
XXIX. O Recorrente mantém uma relação laboral no Brasil com a empresa “E…, S.A.”, desde o dia 1 de Novembro de 2012.
XXX. […] XXXII. Importa referir que nem o Recorrente nem a sociedade com quem foi celebrado o contrato, atribuíram competência específica aos Tribunais portugueses para dirimirem qualquer conflito que resultasse daquele mesmo contrato.
XXXIII. Entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa, não existe qualquer elemento de conexão, seja este de índole pessoal ou real.
XXXIV. Deste modo, é entendimento do Recorrente que, são os Tribunais brasileiros que têm competência para julgar a questão […].»
Não consta que a recorrida tenha respondido a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se os tribunais portugueses são competentes para preparar e julgar a presente acção.
III. Os factos:
Os factos que relevam para a decisão a proferir são os que constam do relatório que antecede.
IV. O mérito do recurso:
Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 608.º, nº 2, 609.º, 5.º, 635.º, nº 4, e 639.º, do Código de Processo Civil, o thema decidendum do recurso é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não sendo permitido ao tribunal ad quem conhecer de questões que extravasem as conclusões de recurso, excepto se as mesmas forem de conhecimento oficioso.
Sendo a competência internacional de conhecimento oficioso (artigo 97.º) e estando em causa somente a interpretação e aplicação dos preceitos legais que regem sobre essa matéria, esta Relação pode confirmar ou revogar a decisão recorrida com outros fundamentos que não aqueles que apoiam a decisão recorrida, ainda que nas suas alegações a recorrente defenda a competência dos tribunais portugueses com fundamento noutra norma ou noutra interpretação da mesma norma e não tenha referido a interpretação que a Relação entenda seguir.
Isto dito.
Discute-se nos autos a competência internacional dos tribunais portugueses para preparar e julgar a presente acção.
Sendo a acção instaurada por uma sociedade comercial (autora) cuja sede social é em Portugal contra um cidadão nacional (réu) que a autora indica como tendo domicilio em Portugal, facto que este contesta alegando ter domicilio no Brasil, e tendo a acção como causa de pedir o incumprimento pelo réu de um contrato celebrado no Brasil entre a autora e o réu no âmbito da qual este se obrigou a prestar àquela determinados serviços no Brasil (não se cuida por ora da sua qualificação jurídica mas apenas de definir e localizar a execução das prestações), estamos seguramente perante um litígio emergente de uma relação plurilocalizada ou transnacional.
Essa circunstância coloca o problema da competência internacional para o julgamento da acção que aqui importa decidir, sendo certo que a «incompetência absoluta implica a absolvição do réu da instância» (artigo 99.º do Código de Processo Civil).
A legislação portuguesa, como as dos demais países, define os critérios em função dos quais reconhece aos tribunais portugueses competência internacional, os quais estão contidos nos artigos 62.º, 63.º e 94.º do Código de Processo Civil. Todavia, nos termos do artigo 59.º do Código de Processo Civil esses critérios não prejudicam o que «se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais».
Não temos conhecimento da existência de qualquer instrumento internacional que vincule em simultâneo e de forma recíproca Portugal e o Brasil sobre esta matéria. Contudo, uma vez que Portugal faz parte da União Europeia, não podem ser ignoradas as normas jurídicas europeias sobre esta matéria, mais especificamente o Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012.
Nos termos do artigo 81.º, com excepção dos artigos 75.º e 76.º que se aplicam desde data anterior, este Regulamento aplica-se desde o dia 10.01.2015 às acções judiciais intentadas a partir dessa data, cujo objecto seja constituído por matéria civil e comercial, na acepção do próprio Regulamento, isto é, por relações jurídicas de direito privado que não estejam incluídas nas que o próprio Regulamento exclui de forma expressa (cf. Marco C. Gonçalves, in Competência Judiciária na União Europeia, in Scientia Iuridica, n.º 339, 2015, pág. 417 e seguintes), como sucede com a presente acção.
Nos termos do artigo 4.º, em regra as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas nos tribunais desse Estado-Membro, independentemente de a sua nacionalidade corresponder ou não à do Estado-Membro do domicílio. Nos termos do artigo 6.º, se o requerido não tiver domicílio num Estado-Membro, a competência dos tribunais de cada Estado-Membro é, sem prejuízo do artigo 18.º, n.º 1, do artigo 21.º, n.º 2, e dos artigos 24.º e 25.º, regida pela lei desse Estado-Membro. Daqui resulta que o Regulamento é aplicável sempre que o demandado tenha domicílio num Estado-Membro, não sendo necessário que o demandado tenha a nacionalidade desse Estado-Membro ou de qualquer outro Estado-Membro.
Em sede de interpretação do artigo 2.º da Convenção de Bruxelas que é o antecedente legislativo desta matéria na Europa, o Tribunal de Justiça, no Acórdão de 01.03.2005 (processo C-281/02, Owusu/Jackson), manifestou o entendimento de que que «…para efeitos da aplicação do artigo 2.° da Convenção de Bruxelas, o caracter internacional da relação jurídica em causa não tem de necessariamente decorrer da implicação de diversos Estados contratantes, devido ao mérito da questão ou ao domicílio respectivo das partes no litígio. A implicação de um Estado contratante e de um Estado terceiro, em virtude, por exemplo, do domicílio do demandante e de um demandado no primeiro Estado e da localização dos factos controvertidos no segundo, também é susceptível de conferir natureza internacional à relação jurídica em causa. Com efeito, esta situação é susceptível de suscitar no Estado contratante, como acontece no processo principal, questões relativas à determinação da competência dos órgãos jurisdicionais na ordem jurídica internacional, que constitui precisamente uma das finalidades da Convenção de Bruxelas, como resulta do terceiro considerando do seu preâmbulo»(n.º 26), e que por isso mesmo «…o artigo 2.° da Convenção de Bruxelas se aplica a uma situação [...] que abrange as relações entre os órgãos jurisdicionais de um único Estado contratante e as de um Estado não contratante e não as relações entre os órgãos jurisdicionais de diversos Estados contratantes».
Segundo Teixeira de Sousa, in https://blogippc.blogspot.pt/2016/07/jurisprudencia-414.html, esta interpretação do Tribunal de Justiça sobre o artigo 2.º da Convenção de Bruxelas deve ser seguida na interpretação do «…correspondente art. 4.º, n.º 1, Reg. 1215/2012, pelo que a circunstância de a acção ter conexão com um Estado terceiro (Moçambique) não é suficiente nem para afastar a aplicação do Reg. 1215/2012, nem para excluir a competência internacional dos tribunais do Estado do domicílio do demandado que é atribuída pelo art. 4.º, n.º 1, Reg. 121572012 (na doutrina, cf. Kropholler/von Hein, Europäisches Zivilprozessrecht. 9.º ed. (2011), vor Art. 2 EuGVO 8; Schlosser/Hess, EuZPR, 4.ª ed. (2015), Vor Art. 4-35 EuGVVO 5). Noutros termos: a circunstância de a opção ser entre a competência internacional dos tribunais portugueses ou a competência internacional dos tribunais moçambicanos não é suficiente para excluir a aplicação do Reg. 1215/2012, pelo que teria bastado a aplicação do disposto no art. 4.º, n.º 1, Reg. 1215/2012 para justificar a competência internacional dos tribunais portugueses. Dado o primado do direito europeu sobre o direito nacional, a aplicabilidade do Reg. 1215/2012 à determinação da competência internacional dos tribunais portugueses afasta a aplicação de qualquer regime interno.»
Por aqui se vê, portanto, a importância de determinar se o demandado tem domicílio em Portugal ou no Brasil: se tiver domicílio em Portugal, por força do disposto no próprio Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, e no artigo 59.º do Código de Processo Civil, os tribunais portugueses serão, sem mais, internacionalmente competentes para preparar e julgar a presente acção, independentemente do local da celebração do contrato ou onde as respectivas obrigações deveriam ser cumpridas.
Não obstará a essa conclusão a intensidade da ligação do caso ao Brasil pois no já citado Acórdão de 01.03.2005 (processo C-281/02, Owusu/Jackson) o Tribunal de Justiça decidiu que a mencionada norma da Convenção de Bruxelas «opõe-se a que um órgão jurisdicional de um Estado contratante decline a competência que lhe é conferida pelo artigo 2.° da referida convenção por considerar que um órgão jurisdicional de um Estado não contratante é um foro mais adequado para conhecer do litígio em causa, mesmo que a questão da competência de um órgão jurisdicional de outro Estado contratante não se coloque ou que esse litígio não tenha qualquer nexo com outro Estado contratante»[1].
As partes divergem quanto a esse aspecto, sustentando a autora que o réu tem domicílio em Portugal e defendendo este que o seu domicílio é no Brasil. Sendo esse aspecto controvertido nos autos não cremos, salvo melhor opinião, que o mesmo pudesse ser decidido sem a produção de prova e, sobretudo, decidido apenas pelo facto de o réu ter sido citado por via postal em Portugal e ter junto aos autos procuração forense onde indica como sua residência o local para onde a citação foi expedida.
Não é, com efeito, anormal ou inverosímil que um cidadão nacional possua em Portugal um endereço onde pode ser contactado através de terceiros e não obstante o seu domicílio estar situado no estrangeiro e ai estar fixada a sua vida quotidiana, familiar e profissional. É seguramente o caso de centenas de milhares de emigrantes que têm casa em Portugal e em diversos documentos particulares e oficiais indicam esse local como a sua residência em Portugal, apesar de a sua vida estar radicada e localizada no país estrangeiro de acolhimento que constitui inequivocamente o do seu domicílio, enquanto em Portugal familiares, amigos ou vizinhos recebem correspondência e tratam de assuntos em sua representação.
No caso do réu, aliás, não se pode dizer que tenha sido ele a receber a citação por via postal endereçada para o local no Porto indicado pela autora. Quem recebeu a citação foi outra pessoa que presumivelmente aceitou estar em condições de a entregar prontamente ao réu (artigo 288.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), mas isso não garante que a entrega tenha sido feita em Portugal e não, por qualquer via expedita (mail ou fax), no Brasil, como este alegou.
O mesmo se diga quanto ao que consta da procuração forense outorgada pelo réu e apresentada pela ilustre mandatária que o representa na acção. A menção da sua residência em Portugal tem a finalidade acessória de identificar o mandante, sendo certo que para efeitos processuais as partes se vinculam através do que alegam nos articulados ou requerimentos ou do que afirmam nos respectivos depoimentos ou declarações de parte. A menção constante da procuração até pode ser relevada em sede de avaliação da prova documental que se produza para esclarecer onde se localiza o domicílio da parte, mas não constitui de forma alguma uma declaração com valor confessório desse facto que importe a sua prova plena ou obste à produção de qualquer outro meio de prova sobre tal facto.
Sendo assim, como nos parece, se a questão da competência não puder ser decidida independentemente da determinação do domicílio do réu (isto é, não puder, por aplicação das regras de competência internacional do direito interno, ser decidida no mesmo sentido em que o seria por aplicação das regras do Regulamento n.º 1215/2012, qual seja, no sentido da competência dos tribunais portugueses por força do domicílio em Portugal), a decisão recorrida terá de ser anulada para que se proceda à instrução do incidente e se apure o local de domicílio do réu por forma a decidir só então a questão da competência.
Impõe-se assim apurar se as regras de competência internacional do direito interno permitem concluir, por outro critério que não o do domicílio, no sentido da competência dos tribunais portugueses.
Excluída a possibilidade de a acção estar compreendida em alguma das situações de competência exclusiva dos tribunais nacionais previstas no artigo 63.º do Código de Processo Civil, resta a possibilidade de se verificar o preenchimento de algum dos factores de atribuição de competência internacional previstos no artigo 62.º do mesmo diploma.
Esses factores são os seguintes: a acção poder ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa [alínea a)]; ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção ou algum dos factos que a integram [alínea b)]; o direito invocado não poder tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real [alínea c)].
O último dos factores não foi sequer alegado e quanto ao primeiro, elegendo a lei interna o critério de competência do domicílio do réu (artigo 71.º do Código de Processo Civil), a verificação do seu preenchimento levar-nos-ia de novo à necessidade de apurar a localização desse domicílio. Por essa razão apenas nos interessa o factor da alínea b): se através dele for possível afirmar a competência internacional dos tribunais portugueses, estes serão competentes tenha o réu domicílio em Portugal ou no Brasil.
Segundo a norma de competência em causa, os tribunais portugueses são competentes desde que tenha sido praticado em território português «o facto que serve de causa de pedir na acção ou algum dos factos que a integram».
Como vimos, na presente acção a autora pretende recuperar uma quantia que pagou ao réu como contrapartida de um contrato no qual este assumiu a obrigação de representar os interesses da autora em determinados projectos de investimentos no Brasil e obter para a autora uma participação nesses projectos.
Para fundamentar esse pedido a autora alegou que o contrato foi celebrado, que ela cumpriu a sua prestação e que o réu, por sua vez, não cumpriu a respectiva prestação que era contrapartida daquela, fundando a obrigação sucedânea de restituição do valor entregue na resolução do contrato por incumprimento culposo do réu ou, subsidiariamente (incorrectamente o réu fala em alternatividade), no enriquecimento sem causa.
As partes parecem convergir quanto ao local de celebração do contrato e ao local onde a prestação do réu deveria ter sido cumprida, aceitando que se trata do Brasil. Da mesma forma parecem aceitar que o pagamento da contraprestação da autora foi realizado através de transferências a partir de conta da autora aberta em banco a operar em Portugal para conta do réu aberta em banco igualmente a operar em Portugal, ou seja, que esse pagamento foi efectuado em Portugal.
A causa de pedir da presente acção tem, assim, em simultâneo, ligações com Brasil e Portugal. A celebração do contrato teve lugar no Brasil, a prestação do réu alegadamente não cumprida deveria ser executada no Brasil, o incumprimento dessa prestação ocorreu no Brasil, a prestação da autora foi executada em Portugal e o réu obteve em Portugal o enriquecimento que a autora alega ser sem causa.
Nos termos do n.º 4 do artigo 581.º do Código de Processo Civil, a causa de pedir é o facto jurídico concreto do qual emerge a pretensão deduzida na acção.
Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 4.ª edição, pág. 127, destacava que «a causa de pedir nada tem que ver com a qualificação jurídica do facto ou factos submetidos à apreciação do tribunal; a causa de pedir está no facto oferecido pela parte, e não na valoração jurídica que ela entenda atribuir-lhe. Essa valoração é simples apreciação ou ponto de vista mental; se a parte ou o tribunal modificar a qualificação ou valoração, nem por isso se dirá que houve mudança da causa de pedir.»
A causa de pedir pode ser simples ou complexa. É simples quando radica em factos jurídicos individuais (que não factos naturalísticos únicos) que preenchem de forma isolada todos os pressupostos jurídicos do direito correspondente à pretensão. É complexa quando é constituída por um conjunto de factos independentes uns dos outros mas cuja relevância jurídica se combina para reunir o grupo daqueles pressupostos e permitir a afirmação do direito do autor.
Esta classificação tem, note-se, função puramente descritiva do fenómeno, pois em qualquer circunstância o que releva é a determinação dos factos que são necessários para fundamentar o concreto direito que se pretende tutelar e não a sua natureza simples ou complexa.
Nos termos da alínea b) do artigo 62.º do Código de Processo Civil, para os tribunais portugueses serem internacionalmente competentes não é imprescindível que tenham sido praticados em território português todos os factos que constituem a causa de pedir[2], basta que algum desses factos o tenha sido, independentemente da sua importância no conjunto dos pressupostos do direito do autor, da complexidade do apuramento dos demais factos na instrução do processo ou da maior ligação dos demais factos a outro Estado.
Ora no caso concreto a autora pretende que o réu seja condenado a restituir-lhe a quantia que recebeu da autora ao abrigo do contrato celebrado entre ambos, fundamentando o seu direito a obter a restituição na circunstância de o réu não ter cumprido a sua prestação contratual e a autora ter, em consequência, procedido à resolução do contrato (ou, numa certa leitura dos artigos 25.º e 26.º da petição inicial, terem as partes acordado essa resolução), sendo que essa resolução tem efeitos equiparados à nulidade.
Pese embora a autora alegue que em virtude desse incumprimento tem ainda o direito de ser indemnizada dos danos que o comportamento do réu lhe causou, a verdade é que não formula qualquer pedido de indemnização, formula apenas o pedido de restituição da prestação que efectuou a favor do réu e que era contrapartida da prestação contratual que este não realizou.
Configurada assim a acção, parece inevitável a conclusão de que a causa de pedir da acção não é constituída somente pela celebração do contrato e pelo incumprimento da prestação a cargo do réu, cujos factos ocorreram no Brasil, mas ainda pelo cumprimento por parte da autora da sua prestação contratual, o pagamento da retribuição do réu, o qual ocorreu, como vimos, em Portugal. Com efeito, para poder reclamar da outra parte do contrato que lhe restitua a prestação realizada (artigos 801.º, n.º 2, 433.º, 434.º e 289.º do Código Civil), a parte não inadimplente necessita de alegar e demonstrar que realizou a prestação cuja restituição pretende, sendo certo que do contrato resulta a obrigação, não o cumprimento da prestação que constitui o objecto dessa obrigação.
Nesse contexto, uma vez que o pagamento da retribuição do réu cuja restituição a autora reclama teve lugar em Portugal e que tal pagamento não pode deixar de ser considerado facto que integra a causa de pedir da acção, a competência internacional dos tribunais portugueses acaba afinal por resultar do disposto na alínea b) do artigo 62.º do Código de Processo Civil.
Parece ter sido esse também, em casos muito aproximados, o entendimento do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.09.2013, Abrantes Geraldes, no proc. 738/08.4TVLSB.L1.S1 [em cujo sumário se lê: «Numa acção declarativa de condenação no pagamento da comissão devida pela execução de um contrato mediante o qual as AA. se obrigaram a realizar diligências que propiciassem um determinado resultado, também integram a causa de pedir os factos correspondentes à execução das referidas diligências. Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando, apesar de o contrato ter sido celebrado no estrangeiro e de as empresas outorgantes estarem matriculadas e sedeadas no estrangeiro, a realização das diligências ocorreu essencialmente em território nacional, junto de entidades portuguesas»], do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.01.2013, Salazar Casanova, no proc. 1705/08.3TBVNO.C1.S1 [em cujo sumário se menciona que: «A outorga do negócio jurídico unilateral que é a procuração efectuada em Portugal e ao abrigo da qual foram realizados actos de administração noutro Estado constitui um dos factos que integram a aludida causa de pedir complexa de que resulta a obrigação de prestar contas, preenchendo-se, assim, o segmento da parte final do art. 65.º, n.º 1, al. c), do CPC (ter sido praticado em território português algum dos factos que integram a causa de pedir) e, por conseguinte, os tribunais portugueses são competentes em razão da nacionalidade para exigir a prestação de contas respeitante aos aludidos actos de administração»] e do Acórdão da Relação de Lisboa de 28.03.2017, Rosa Coelho, no proc. 19121/15.9T8LSB-A.L1-7 [em cujo sumário se assinala que: «Para que os tribunais portugueses tenham competência internacional para julgar um litígio, basta que tenha sido praticado em Portugal um dos factos que integram a causa de pedir. Pode ser accionada em Portugal uma sociedade brasileira que no Brasil concedeu uma garantia cobrindo as obrigações emergentes de um contrato celebrado por uma outra sociedade em Portugal.»], todos in www.dgsi.pt.
Pelo exposto, a conclusão de que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar a presente acção mostra-se correcta e deve ser confirmada.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo recorrente (tabela I-B).

Porto, 1 de Junho de 2017.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto350)
Inês Moura
Paulo Dias da Silva
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[1] Segundo Marco C. Gonçalves, loc. cit., «Sendo a competência fixada em função do domicílio do réu, o Reg. 1215/ 2012 não permite a aplicação da teoria do fórum non conveniens, tradicionalmente adoptada nos países da common law, segundo a qual um tribunal pode declinar a sua jurisdição para conhecer um determinado litígio se considerar que um tribunal de uma outra jurisdição está em melhores condições para conhecer esse mesmo litígio.»
[2] No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.01.1908, Fernando Fabião, in www.dgsi.pt, rejeitou-se a competência internacional dos tribunais portugueses precisamente porque todos os factos ocorreram no estrangeiro [«os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para decidir a acção proposta pela Radiotelevisão Portuguesa, SA, contra a TV Globo, Lda., em que a causa de pedir é complexa, situando-se no Brasil todos os factos integrantes, isto é, um contrato (protocolo) cujo cumprimento se pede, o qual foi celebrado no mesmo País, e ainda as condutas que corporizam o incumprimento das obrigações assumidas pela Ré através de tal contrato.»]