Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1070/17.8T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
PROCESSO PENAL
Nº do Documento: RP201901071070/17.8T8VFR.P1
Data do Acordão: 01/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 687, FLS 340-353)
Área Temática: .
Sumário: I - O pedido de indemnização civil que pode ser deduzido num processo penal é aquele que se funda na prática de crime que é objeto desse processo.
II - A autoridade do caso julgado formado pela decisão proferida em sede de processo penal não impede o julgamento de nova pretensão em sede de processo civil, quando se julga improcedente o pedido de indemnização civil, absolvendo-se o réu do pedido, “com a causa de pedir delimitada pelo objeto do concreto processo crime” e na nova ação se visa a apreciação de factos relacionados com diferente ilícito criminal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: CasoJulg-1070/17.8T8VFR.P1
-
Juiz Desembargador Relator: Ana Paula Amorim
Juízes Desembargadores Adjuntos: Manuel Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
*
*
*
Acordam neste Tribunal da Relação do Porto[1] (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
Na presente ação que segue a forma de processo comum em que figuram como:
- AUTORES: B... e C..., casados no regime de comunhão de adquiridos, residentes na Rua ..., Lote ..., 1.º direito, ....-... ...; e
- RÉU: D..., casado, engenheiro civil, residente na Rua ..., n.º ..., freguesia ..., Santa Maria da Feira
pedem os autores a condenação do réu no pagamento da quantia de €176.138,48 a título de danos patrimoniais, a quantia de €50.000,00 a título de danos não patrimoniais e ainda, a quantia a liquidar em execução de sentença referente a danos patrimoniais e não patrimoniais, juros de mora desde a citação, custas e procuradoria.
Alegaram para o efeito e em síntese que adquiriram, em 2002, uma fração autónoma designada pela letra “A”, correspondente a uma habitação de tipo T3, sita na freguesia ... à sociedade “E..., Lda”. A mesma, porém, padece de defeitos de construção e de vícios estruturais que impediam a sua normal utilização e que colocavam em perigo a integridade física e mesmo a sua vida e das demais pessoas que frequentavam a mesma fração. Os danos que a mesma apresenta resultaram da inadequação das obras efetuadas com o projeto aprovado, assim como a da não utilização dos materiais previstos quer em quantidade quer em qualidade e bem assim, das alterações efetuadas ao projeto inicialmente aprovado sem que fossem acompanhadas do prévio estudo de estabilidade.
Mais alegam que a Câmara Municipal ... emitiu a licença de utilização relativa à fração em causa pois que pelo aqui R. foi subscrito o respetivo termo de responsabilidade a assumir como verdadeiro estar a dita fração construída, concluída, tudo de acordo com o projeto aprovado e em obediência às regras legais.
Assim, o R. enquanto diretor de obra, e no exercício da sua atividade profissional, infringiu quer os dispositivos legais que devem ser observados no planeamento, direção e execução da construção, quer as boas práticas de construção, sendo que atuando desse modo, provocou danos irreparáveis na habitação dos AA. e nas contíguas, colocando-as em risco iminente de derrocada.
Mais alegou que no que diz à execução das obras, o réu D... era o seu Diretor Técnico e responsável por todos os projetos, motivo pelo qual tinha o dever de acompanhar a realização da obra e de verificar que a obra estava a ser executada dentro das regras da arte, tendo permitido, por ação e por omissão, que a obra fosse executada de forma deficiente e com recurso a materiais e técnicas desadequadas, mas no entanto não se coibiu de assumir a responsabilidade por tal, ao declarar falsamente perante a Câmara Municipal ... que a obra tinha sido executada corretamente, através do respetivo termo de responsabilidade com base no qual aquela edilidade, fazendo fé na declaração sob honra do aqui Réu, veio a conceder a licença de utilização.
Refere, ainda, que competia ao Réu D..., como subscritor do termo de responsabilidade, o dever de não prestar falsas declarações sobre a obra em causa. Sabia o Réu, que atuando do modo descrito causava perigo para a integridade física e até mesmo para a vida dos Autores, e seu agregado familiar, que adquiriam uma daquelas habitações, e bem assim das pessoas que ali passassem, ainda que como simples visita, pois que aquelas frações autónomas podiam e podem ruir a qualquer momento, fruto dos defeitos estruturais graves que apresentam.
O Réu atuou sempre, de forma conivente com os responsáveis pela construção, pois a última palavra a si cabia, ao subscrever o termo de responsabilidade, comprovativo (mediante essas falsas declarações) de que a obra estava construída de acordo com o projeto e de acordo com as regras legais da arte, no sentido de obtenção da licença de utilização e para assim acelerar a comercialização das referidas moradias.
O Réu, ao sufragar, através do termo de responsabilidade, factos falsos e bem sabendo que os mesmos não correspondiam à verdade, ainda assim conformou-se com tal declaração pois sabia que a mesma era imprescindível e necessária para a Câmara Municipal ... emitir a licença de utilização, pois sem esse documento, essa declaração da sua parte, a licença de utilização não seria emitida, já que é o documento com valor legal relevante no qual a entidade camarária competente faz fé no cumprimento de todas normas legais e técnicas supra mencionadas e emite o dito alvará sem o qual não é possível que o imóvel seja vendido.
O Réu atuou deliberada, livre e conscientemente, ao emitir falsas declarações, que sabia não corresponderem à verdade e bem sabendo que sem essas falsas declarações não seria possível obter a licença de utilização.
Os factos - falsas declarações em documento relevante perante entidade pública - praticados pelo Réu causaram elevadíssimos danos, patrimoniais e não patrimoniais, aos Autores, porquanto o estado em que se encontra a fração adquirida pelos Autores está condenada a ser demolida, dada a insegurança que lhe é inerente e a inviabilidade económica para a sua reparação.
Alegam que se tivessem sido esclarecidos previamente pelo Réu, que a construção teria os defeitos e ónus, agora verificados, nunca teriam efetuado o negócio de aquisição da fração “A”. Os Autores destinaram a fração autónoma à sua habitação própria e permanente, bem como à das suas filhas, a F..., atualmente com dezassete anos de idade (nascida a 17.08.2000) e a G... atualmente com treze anos de idade (nascida a 19.10.2003), o que era do inteiro conhecimento do Réu - pois bem sabia que estava a prestar falsas declarações e que as mesmas eram relevantes e imprescindíveis para a obtenção da licença de utilização.
Mais referem que os graves defeitos de construção foram assumidos de forma dolosa, por ação e omissão, pelo Réu, que subscreveu o termo de responsabilidade sabendo e devendo saber que a obra não estava executada em obediência ao projeto, nem às regras da arte e muito menos em obediência às regras de segurança das construções, mas mesmo assim, com o fito de permitir que as frações habitacionais pudessem entrar no comércio, subscreveu, contra a verdade dos factos, os documentos idóneos a obter da entidade competente, a Câmara Municipal ..., a emissão da licença de utilização, a qual veio entretanto a declarar a cassação dos alvarás de utilização.
Alega um conjunto de danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes da atuação do réu e cuja indemnização peticiona na presente ação.
-
Citado o réu veio contestar, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Por exceção invocou a exceção do caso julgado, alegando para o efeito que os aqui AA. deduziram no âmbito dos autos de processo comum coletivo nº512/07.5TAVFR, pedido de indemnização civil, o qual foi já decidido com acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, com trânsito em julgado, sendo que os factos são os mesmos, são os mesmos intervenientes, as mesmas imputações e o mesmo tipo de pedidos.
Alega ainda as exceções da prescrição e da ilegitimidade.
-
Os AA. pronunciaram-se no sentido da improcedência de tais exceções e quanto ao caso julgado alegam que na presente ação, a causa de pedir e o pedido de indemnização nela consubstanciados assentam nas falsas declarações prestadas pelo R. e como tal, não se verifica o caso julgado.
-
Realizou-se audiência prévia.
-
Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:
.....................................................
.....................................................
.....................................................
-
II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
A questão a decidir consiste em saber se a decisão proferida no âmbito do Proc.512/07.5TAVFR – Comum Coletivo - que recaiu sobre o pedido cível ali formulado tem o efeito de caso julgado em relação à pretensão formulada na presente ação.
-
2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
1) Os AA. em 27/09/2002, adquiriram à empresa E..., Ldª, pessoa coletiva nº ........., com sede na Rua ..., nº .., em ..., por escritura de compra e venda, num conjunto de moradia geminadas por tal empresa edificadas, uma Fração autónoma designada pela letra “A”, correspondente a habitação tipo T-3, com cave, rés-do-chão e andar, destinada a habitação, com entrada pela rua ..., nº..., do prédio urbano descrito na CRP de Santa Maria da feira sob o nº 01106 da freguesia ..., concelho de Santa Maria da Feira.
2) Em 10 de Outubro de 2006 ocorreu um estrondo no prédio com a placa de teto da fração dos AA. a abater cerca de 5 cm e um afundamento dos pilares, com o aparecimento de fissuras e fendas que puseram em causa a segurança da habitação.
3) Os AA. apresentaram em 10-04-2007, queixa-crime contra a sociedade vendedora, E... , Ldª e contra o aqui Réu D..., imputando-lhes a prática de crime de infração de regras de construção, dano em instalações, p.e p. no artigo 277º do CP, quando á denunciada empresa, e, quanto ao denunciado D..., um crime de Falsas Declarações, p. p. pelo artigo 256º do CP.
4) Os aqui AA., B... e C..., em 29/11/2007 deram entrada no Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira de uma ação cível de condenação sob a forma de processo ordinária contra E..., Ldª, D... e Município ..., tendo sido proferido despacho a julgar extinta a instância face ao não pagamento prévio da taxa de justiça inicial.
5) No termo do inquérito, Proc. nº 512/07.5TAVFR, 3ª Subsecção dos Serviços do Ministério Público de Santa Maria da Feira, apurados os factos quer denunciados quer surgidos no decurso da investigação, foi concluído o inquérito, sem acusação quanto ao denunciado crime de falsas declarações, entendendo o Ministério Público haver indícios de crime por violação de regras de construção, pelo que deduziu acusação, para serem julgados em Processo Comum com intervenção do Tribunal Coletivo, D..., H... e I..., sócios da sociedade E..., Ldª.
6) Naqueles autos os aqui AA. deduziram pedido de indemnização civil, nomeadamente contra o Réu nestes autos, D..., pedindo indemnização por todos os danos patrimoniais alegadamente sofridos no prédio e ainda os não patrimoniais, no valor de €203.460,00 e ainda em quantia a liquidar em execução de sentença, juros de mora e procuradoria.
7) De tal pedido de indemnização civil consta o seguinte:
(30º) «Assim, no exercício da sua atividade profissional, infringiram os demandados, quer os dispositivos legais que devem ser observados no planeamento, direção e execução da construção, quer as boas práticas de construção, sendo que atuando desse modo, provocaram danos irreparáveis na habitação dos demandantes e nas contíguas, colocando-as em risco iminente de derrocada, com o necessário e consequente perigo para a vida e integridade física daqueles e de todos os que habitam ou visitam tal fração.»
(32º) «De salientar que, no que diz respeito à execução da obra, o demandado D... era o seu Diretor Técnico e responsável por todos os projetos, motivo pelo qual tinha o dever de acompanhar a realização da obra e de verificar que a obra estava a ser executada dentro das regras da arte, tendo permitido, por ação e por omissão, que a obra fosse executada de forma deficiente e com recurso a materiais e técnicas desadequadas, mas no entanto não se coibiu de assumir a responsabilidade por tal, ao declarar perante a Câmara Municipal ... que a obra tinha sido executada corretamente, através do respetivo termo de responsabilidade com base no qual aquela edilidade veio a conceder a licença de utilização.»
8) Realizado o julgamento pelo Tribunal Coletivo, foi proferido em 22.03.2011 Acórdão pelo qual o arguido D... foi absolvido da responsabilidade criminal e quanto ao pedido cível, foi condenado parcialmente a pagar aos demandantes (aqui AA.) a quantia de € 22 500,00 a título de danos não patrimoniais e“ a quantia que se vier ulteriormente a liquidar, nos termos do 82ª, nº1 Código de Processo Penal e 378º e segs. do Código de Processo Civil, correspondente á diferença entre o valor monetário hipotético que a fração autónoma-designada pela letra A, com entrada pela Rua ..., nº ..., descrita na CRP de S. M. Feira sob o nº 01106 teria se não padecesse dos vícios de que padece e o valor monetário real que tem a mesma fração autónoma, no estado em que se apresenta (sempre como o limite correspondente ao montante do pedido formulado nos presentes, deduzido do montante arbitrado nesta decisão a título de danos não patrimoniais).
9) Não se conformando com tal decisão o aqui R. D... bem como os aqui AA. interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto, tendo sido proferido Acórdão a negar provimento aos recursos interpostos e a confirmar a decisão da 1ª instância.
10) O aqui R. D... não se conformando, interpôs recurso de revista excecional e por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13.04.2014, foi dado provimento ao recurso tendo sido revogada a decisão recorrida e julgado improcedente o pedido de indemnização civil deduzido contra o ali recorrente, com a causa de pedir delimitada pelo objeto deste processo-crime, dele o absolvendo.
-
3. O direito
- Do caso julgado -
Nas conclusões de recurso insurge-se o apelante contra a sentença pelo facto de julgar procedente a exceção do caso julgado e absolver o réu da instância.
Na sentença depois de se analisarem os pressupostos da exceção do caso julgado e natureza da exceção, com recurso à interpretação da doutrina, considerou-se, como se passa a transcrever:
“Estes preceitos legais referem-se ao caso julgado material, ou seja, ao efeito imperativo atribuído à decisão com trânsito (cfr. artº 628º), que tenha recaído sobre a relação jurídica substancial.
Porque a decisão invocada para a ocorrência do caso julgado foi proferida em processo de natureza criminal, importa, ainda, chamar à colação as disposições relativas a esse tipo de processo.
Assim, dispõe o artº 84º do Código de Processo Penal (CPP) sob a epígrafe “Caso Julgado” que "A decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido civil constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis”.
E em processo penal vigora o princípio de adesão obrigatória, por força do qual “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei” - artº 71 do CPP).
Procurando clarificar o âmbito da indemnização a atribuir na ação penal ao abrigo do mencionado artº 71 do CPP, o Assento nº 7/99 do STJ, DR, I série A, de 03/08/1999, hoje com força de acórdão de uniformização de jurisprudência, fixou jurisprudência segundo a qual “Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377º, nº 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual".
Destas considerações resulta, por um lado, a natureza extracontratual da indemnização a apreciar em processo penal e, por outro lado, a formação do caso julgado em termos idênticos aos regulados pela lei para “as sentenças civis”.
Daí que, para concluir da possibilidade da formação do caso julgado pela decisão do pedido de indemnização no processo penal, assim como da exceção da autoridade do caso julgado, se imponha averiguar o tribunal da tríplice identidade estabelecida nos artºs 580º, nº 1, e 581º, nºs 2 a 4, nos termos que atrás se referiram.
No que respeita à identidade de sujeitos, é inquestionável face aos factos a considerar, que ela existe entre as partes no pedido de indemnização civil deduzido no processo-crime e AA. e R. nos presentes autos.
Por outro lado, quanto à identidade dos pedidos, e pese embora os valores não sejam totalmente coincidentes, eles são idênticos uma vez que se formula pedido de indemnização civil quanto aos danos patrimoniais e não patrimoniais e ainda em quantia a liquidar em execução de sentença quanto aos mesmos.
É que, definindo-se o pedido como o efeito jurídico a que tende a ação, mediante a correspondente declaração do autor na petição, há que convir que os efeitos visados nas duas causas coincidem, porque em ambos se procura obter a condenação do demandado no pagamento dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.
Verifica-se, portanto, a identidade dos pedidos.
Resta analisar se ocorre identidade de causas de pedir.
A causa de pedir, por força da teoria da substanciação consagrada no direito processual civil, não é senão o título (facto jurídico) em que se baseia o direito do autor, referindo expressamente o nº 4 do artº 581º que, nas ações reais, ou seja, nas ações destinadas a fazer valer um direito real, a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real, e que nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.
Os factos que servem de fundamento ao pedido constituem a causa de pedir e esta delimita o pedido para o efeito de, juntamente com ele e com as partes, identificar a causa que é insuscetível de ser repetida sem ofensa de caso julgado, como lógica consequência da coincidência do objeto da decisão com o objeto do pedido (Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, ob. cit., p. 57-58, nota 40).
Ora, as causas de pedir na presente ação e no pedido de indemnização civil deduzido no processo-crime são idênticas.
Como resulta dos factos provados e não provados no processo-crime a causa de pedir do pedido de indemnização civil, do qual o demandado foi absolvido, assentava em factos que constituíam ilícito criminal, com exclusão, portanto, da responsabilidade civil contratual. E tal como acima se deixou transcrito, o pedido de indemnização civil aí deduzido assentava no facto do aí demandado, aqui R. D... ser Diretor Técnico e responsável por todos os projetos, motivo pelo qual tinha o dever de acompanhar a realização da obra e de verificar que a obra estava a ser executada dentro das regras da arte, tendo permitido, por ação e por omissão, que a obra fosse executada de forma deficiente e com recurso a materiais e técnicas desadequadas, mas no entanto não se coibiu de assumir a responsabilidade por tal, ao declarar perante a Câmara Municipal ... que a obra tinha sido executada corretamente, através do respetivo termo de responsabilidade com base no qual aquela edilidade veio a conceder a licença de utilização.
Nestes autos, a causa de pedir assenta em factos em tudo idênticos, veja-se que a petição inicial é em tudo semelhante ao pedido de indemnização civil deduzido no processo crime (cfr. artigos 30º e 32º da PI e artigos 30º e 32º do pedido de indemnização civil).
Comparados os factos concretos invocados no pedido de indemnização cível deduzido no processo penal com os factos invocados na petição inicial do presente processo, verifica-se que em ambos os factos se referem aos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos (art. 483.º, n.º 1 do CC) – facto voluntário, ilicitude, culpa, danos patrimoniais e não patrimoniais e nexo de causalidade entre o facto e o dano. Em ambos visa-se eliminar o dano do património dos ofendidos, colocando-se estes na situação em que estariam se não tivesse sido cometida a lesão (teoria da diferença).
Ora, uma vez que os factos alegados foram apreciados e julgados, fecha aos aqui autores a porta para uma nova ação civil com a mesma causa de pedir, sujeitos e pedido.
Como tal, e em face de tudo quanto ficou exposto, julgo procedente a invocada exceção dilatória de caso julgado e, consequentemente, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 576º/1 e 2, 577º/i), todos do CPC, o Réu terá que ser absolvido da instância, o que se decide em conformidade”.
Considera o apelante que não se verifica a exceção de caso julgado por não existir identidade de causa de pedir e fundamenta a sua discordância com o decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de setembro de 2014, proferido no âmbito do referenciado processo comum coletivo, que operou o trânsito em julgado da decisão em relação ao pedido cível ali formulado pelos aqui apelantes (acórdão junto pelo réu com a contestação e que consta de fls. 271 verso a 277 – reqto 16.05.2017, ref.25731298).
A questão que se coloca consiste em apurar se atenta a pretensão dos autores estão reunidos os pressupostos do caso julgado face à decisão proferida a respeito do pedido cível no âmbito do Proc. 512/07.5TAVFR – processo comum coletivo.
O caso julgado, que constitui uma exceção dilatória, pressupõe a repetição de uma causa, depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário – art. 580º CPC.
Distingue a lei o caso julgado material, do caso julgado formal.
O caso julgado formal consiste em estar excluída a possibilidade de recurso ordinário, não podendo a decisão ser impugnada e alterada por esta via (art. 620º e 628º CPC).
O caso julgado material, que nos interessa analisar na situação presente, consiste na definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal, quer a título prejudicial (art. 619º CPC).
O caso julgado verifica-se em relação às decisões que versam sobre o fundo da causa e portanto sobre os bens discutidos no processo; as que definem a relação ou situação jurídica deduzida em juízo, as que estatuem sobre a pretensão do Autor.
Por sua vez determina o art. 625º/1 CPC que: “Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumprir-se-á a que passou em julgado em primeiro lugar.”
A exceção tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior – art. 580º/2 CPC.
Como refere MANUEL DE ANDRADE “o caso julgado tem como fundamento o prestígio dos tribunais e uma razão de certeza ou segurança jurídica”[2].
O caso julgado é uma exigência da boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, pois que evita que uma mesma ação seja instaurada várias vezes, obsta a que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante a resolução definitiva dos litígios que os tribunais são chamados a dirimir, Ele é, por isso, expressão dos valores de segurança e certeza que são imanentes a qualquer ordem jurídica[3].
MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA salienta que o “caso julgado das decisões judiciais é uma consequência da caracterização dos tribunais como órgãos de soberania (art. 113º/1 CRP). Neste enquadramento, o art. 208º/2 CRP estabelece que as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas (nomeadamente, outros tribunais e entes administrativos) e privadas, prevalecendo, por isso, sobre as de quaisquer outras entidades. Aquela obrigatoriedade e esta prevalência são conseguidas, em grande medida, através do valor de caso julgado dessas decisões”[4].
Os limites dentro dos quais opera a força do caso julgado material são traçados pelos elementos identificativos da ação – as partes, o pedido e a causa de pedir.
Como se dispõe no art. 581º CPC: “repete-se uma causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.
Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas, sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico.
O que a lei quer significar é que uma sentença pode servir como fundamento da exceção de caso julgado quando o objeto da nova ação, coincidindo no todo ou em parte com o da anterior, já está total ou parcialmente definido pela mesma sentença; quando o Autor pretenda valer-se na nova ação do mesmo direito que já lhe foi negado por sentença emitida noutro processo – identificado esse direito não só através do seu conteúdo e objeto, mas também através da sua causa ou fonte (facto ou título constitutivo)[5].
No que respeita aos limites do pedido e da causa de pedir, refere ANTUNES VARELA que: “[…] o caso julgado forma-se diretamente sobre o pedido, que a lei define como o efeito jurídico pretendido pelo autor[…] é sobre a pretensão do autor, à luz do facto invocado como seu fundamento, que se forma o caso julgado.
É a resposta dada na sentença à pretensão do Autor, delimitada em função da causa de pedir, que a lei pretende seja respeitada através da força e autoridade do caso julgado.
A força do caso julgado cobre apenas a resposta dada a essa pretensão e não o raciocínio lógico que a sentença percorreu, para chegar a essa resposta“[6].
Vigorando entre nós o princípio da substanciação, a causa de pedir consiste no ato ou facto jurídico donde o Autor pretende ter derivado o direito tutelar; o ato ou facto jurídico que ele aduz como título aquisitivo desse direito (art. 581º/4 CPC).
MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA refere, por sua vez, que reconhecer que a “decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independente dos respetivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”[7].
Considera, ainda, o mesmo autor, que o caso julgado da decisão possui um valor enunciativo, na medida em que a eficácia de caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada.
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem acolhido esta mesma interpretação sendo disso exemplo, entre outros, os Acórdãos STJ 26.04.2012 (Proc. 289/10.7TBPTB.G1.S1), Ac. STJ 20.10.2011 (Proc. 994/2003.4TMBRG.S1.L1), 15.09.2010 (Proc. 415/06.0TTLSB.L1.S1), Ac. STJ 13.07.2010 (Proc.464/05.6TBCBT-C.G1.S1), todos em www.dgsi.pt
Cita-se, como síntese do exposto, a seguinte passagem do Ac. STJ 13.07.2010:
“Na perspetiva do respeito pela autoridade do caso julgado, isto é, da aferição do âmbito e limites da decisão ou dos “termos em que se julga” (art. 673º CPC), entende-se que a determinação dos limites do caso julgado e sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da sentença, nomeadamente quanto aos seus fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado.
Porque a decisão não é mais nem menos que a conclusão dos pressupostos lógicos que a ela conduzem – os fundamentos - e aos quais se refere, o caso julgado deve abranger a decisão e os seus fundamentos logicamente necessários, ou a decisão e as questões solucionadas na sentença conexas com o direito a que se refere a pretensão do autor, ou só a própria decisão.”
A doutrina, a respeito dos limites do caso julgado, tem autonomizado os “limites temporais”, servindo como referência os estudos de MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA Estudos sobre o Novo Processo Civil, pag. 583.
Defende-se, assim, que o momento de referência do caso julgado não é aquele em que a decisão é proferida, mas o do termo da discussão na fase da audiência final. Daqui resulta, para efeito de caso julgado, que apenas os factos ocorridos depois do encerramento da discussão são considerados factos novos e podem ser invocados como uma nova causa de pedir numa ação posterior.
Apesar de não concordar com a criação de mais este limite do caso julgado, CASTRO MENDES, aceita os fundamentos que estão subjacentes a tal limite, por “exprimirem o que consta no nosso direito, do art. 663º/1 CPC: a decisão final – sentença – deve corresponder “à situação existente no momento do encerramento da discussão”[8].
A referência temporal do caso julgado determina várias consequências:
- a preclusão da invocação num processo posterior de questões não suscitadas no processo findo, mas anteriores ao encerramento da discussão na fase da audiência final e que nele podiam ter sido apresentadas;
- caducidade do caso julgado e a suscetibilidade de modificação da decisão transitada se se verificar uma alteração na situação de facto após o encerramento da discussão na audiência final[9].
A respeito da preclusão, refere MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “quanto ao Autor[…] só ficam precludidos os factos que se referem ao objeto apreciado e decidido na sentença transitada. Assim, não está abrangida por essa preclusão a invocação de uma outra causa de pedir para o mesmo pedido, pelo que o autor não está impedido de obter a procedência da ação com base numa distinta causa de pedir. Isto significa que não há preclusão sobre factos essenciais, ou seja, sobre factos que são suscetíveis de fornecer uma nova causa de pedir para o pedido formulado. Mas está precludida a invocação pelo autor de factos que visam completar o objeto da ação anteriormente apreciada […], não pode propor uma nova ação em que supre a falta de alegação de um requisito”[10].
A caducidade do caso julgado ocorre quando deixa de se verificar a situação de facto subjacente à decisão.
MANUEL DE ANDRADE defendia que a “[…]sentença só define a relação material controvertida, tal como ela existia ao tempo em que a mesma decisão foi pronunciada[…]. Não impede as vicissitudes ulteriores próprias da relação tal como foi definida – nem obsta, portanto, a novas decisões proferidas nessa conformidade“[11].
Conclui-se, assim, o efeito do caso julgado não impede que o Autor instaure nova ação, com o mesmo pedido, com fundamento em factos novos para fundamentar a sua pretensão, contanto que se tratem de factos essenciais e que não visem apenas completar a anterior causa de pedir.
No fundo trata-se de alegação de nova causa de pedir, motivo pelo qual não se pode considerar que existe identidade de causas de pedir, o que obsta à verificação da exceção.
Estando em causa a apreciação da exceção em relação a decisão proferida no âmbito do processo penal, cumpre ter presente as particularidades deste regime.
Prevê o artº 84º do Código de Processo Penal (CPP) sob a epígrafe “Caso Julgado” que "A decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido civil constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis”.
Nos termos do art. 71º CPP “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei” – onde se consagra o princípio da adesão obrigatória.
Procurando clarificar o âmbito da indemnização a atribuir na ação penal ao abrigo do mencionado artº 71 do CPP, o Assento nº 7/99 do STJ, DR, I série A, de 03/08/1999, hoje com força de acórdão de uniformização de jurisprudência, fixou jurisprudência segundo a qual “Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377º, nº 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual".
Destas considerações resulta, por um lado, a natureza extracontratual da indemnização a apreciar em processo penal e, por outro lado, a formação do caso julgado em termos idênticos aos regulados pela lei para “as sentenças civis”.
Outra conclusão também se extrai deste regime, o pedido de indemnização civil que pode ser deduzido num processo penal é aquele que se funda na prática de crime que é objeto desse processo[12].
Ponderando o exposto e tendo presente os fundamentos da ação e o teor do douto acórdão de 13 de setembro de 2014 do Supremo Tribunal de Justiça proferido no Proc. 512/07.5TAVFR, somos levados a concluir que não ocorre a exceção do caso julgado, por não estarmos perante idêntica causa de pedir.
Resulta dos factos apurados em confronto com os documentos juntos aos autos a fls. 122 a 277 que no âmbito do processo de inquérito nº 512/07.5TAVFR o Ministério Público formulou acusação contra D..., aqui réu e apelado, pela prática do crime de infração de regras de construção. Nada se refere a respeito do crime de falsas declarações (fls. 133 a 144).
Em sede de processo comum coletivo – Porc. 512/07.5TAVFR -, os autores-apelantes e ali lesados formularam pedido de indemnização civil.
No acórdão proferido em 1ª instância o réu-apelado foi absolvido do crime pelo qual vinha acusado. Contudo, em relação ao pedido cível, foi o arguido condenado no pagamento de uma indemnização aos lesados, com fundamento em responsabilidade civil pela prática de facto ilícito. Nesta sede a ilicitude da conduta do arguido foi apreciada à luz do regime jurídico do urbanismo, considerando-se na fundamentação:”[v]olvendo a nossa atenção para a factualidade provada, decorre que a subscrição do termo de responsabilidade pelo arguido D..., nos termos em que o fez, sabendo que a obra não fora executada de acordo com o projeto de estabilidade aprovado, e que não a acompanhara durante a fase de edificação da respetiva estrutura, configura conduta antijurídica e culposa” (cfr. fls. 143 verso).
Interposto recurso pelo arguido e lesados veio a decisão a ser confirmada por acórdão do Tribunal da Relação do Porto 26 de junho de 2013 (fls. 225 a 251).
O arguido interpôs recurso de revista excecional, que admitido foi julgado por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de setembro de 2014 (fls. 270 verso a fls. 277), no qual se proferiu a seguinte decisão:
“Em face do exposto, no provimento do recurso, os juízes do Supremo Tribunal de Justiça revogam a decisão recorrida e julgam improcedente o pedido de indemnização civil deduzido contra o recorrente, com a causa de pedir delimitada pelo objeto deste processo-crime, dele o absolvendo.
Custas pelos recorridos”.
Atenta a pertinência dos fundamentos da decisão, passamos a transcrever a seguinte passagem:
“[…]Os danos que a moradia apresenta têm como causas a "inadequação das obras efectuadas com o projecto de estabilidade que fora aprovado", a "não utilização dos materiais previstos, quer em quantidade, quer em qualidade, no tocante à estrutura" e "inexistência de um estudo geotécnico e hidrológico do terreno".
O projecto de estabilidade elaborado pelo recorrente revelou-se inadequado para a construção realizada, substancialmente diversa da projectada. E foi para esta que o recorrente o concebeu; não para aquela. Não estando provado que na altura em que a estrutura foi construída, com as ditas alterações ao projecto de arquitectura, que ele tivesse efectivamente a direcção técnica da obra nem mesmo que dela soubesse, nenhuma responsabilidade lhe pode ser assacada pela inadequação do seu projecto de estabilidade à obra construída.
E não tendo a efectiva direcção técnica da obra nessa altura, também nada lhe pode ser apontado pelo facto de não terem sido utilizados os "materiais previstos, quer em quantidade, quer em qualidade".
Foi por estas razões que o tribunal de 1ª instância o absolveu da acusação, onde se lhe imputava a prática do crime de infracção de regras de construção, p. e p. pelo art° 277°, nº 1, alínea a), do CP. Esse tribunal, referindo-se à subscrição pelo recorrente daquele termo de responsabilidade, considerou que tal facto "não comporta seguramente, violação da regra legal, regulamentar ou técnica atinente ao planeamento, à execução ou à direcção da obra, no sentido jurídico penalmente relevante", contendendo antes e só com "o acto administrativo do licenciamento da respectiva utilização".
Não obstante a absolvição na parte criminal, o tribunal de 1a instância, fazendo apelo ao disposto no art° 377° do CPP, condenou o recorrente em indemnização, nos termos já referidos, valorando nessa sede o facto de o recorrente haver subscrito o mencionado termo de responsabilidade, quando sabia que "a obra não fora executada de acordo com o projecto de estabilidade aprovado, e que não a acompanhara durante a fase de edificação da respectiva estrutura". Teve essa conduta como "antijurídica e culposa" e considerou que os danos dos demandantes - "aquisição a título oneroso de uma fracção urbana com vícios construtivos, edificada em desconformidade com o projecto de estabilidade, e que se encontra em risco de colapso, colocando em risco a integridade física dos seus ocupantes" - são "consequência adequada" daquela conduta, na medida em que o termo de responsabilidade foi condição da emissão da licença de utilização e esta condição da realização da escritura de compra e venda.
O facto ilícito considerado em 1ª instância fundador do direito à indemnização foi, pois, a subscrição daquele termo de responsabilidade.
A Relação, situando-se na mesma linha, confirmou o decidido pelo tribunal de 1ª instância.
O recorrente discorda.
E assiste-lhe razão.
O pedido de indemnização civil que pode ser deduzido num processo penal é, nos termos do art. 71º do CPP, aquele que se funda na prática de crime que é objecto desse processo. E só esse pedido civil pode ser admitido e obter procedência no processo penal.
Fundando-se o pedido de indemnização na prática de um crime, ainda que haja absolvição na parte criminal, haverá lugar a condenação em indemnização civil, se o pedido respectivo se revelar «fundado», como estabelece o art. 377º, nº 1, do CPP.
O pedido será «fundado» se, além do mais, respeitar a exigência do art. 71º do CPP, isto é, se tiver como causa de pedir os factos imputados ao arguido como sendo integradores de um ou mais crimes que fazem parte do objecto do processo penal em que é deduzido, e esses factos se provam, pelo menos numa vertente que sustente a condenação em indemnização civil.
Não é isso que acontece no caso.
O MP deduziu acusação contra o recorrente pela prática do crime p. e p. pelo art° 277°, n° 1, alínea a), do CP, alegando que
-foi o director técnico da obra, para além de autor dos projectos de estabilidade e arquitectura;
-na qualidade de directo técnico da obra competia-lhe "acompanhar a sua construção, verificar que os projectos de arquitectura e estabilidade aprovados estavam a ser executados em conformidade, zelar pelo bom andamento da obra"; -após a aquisição da habitação, verificou-se que "padecia de inúmeros defeitos de construção e de vícios estruturais que impediam a sua normal utilização e que colocavam em perigo sério a integridade físíca e até mesmo a vida dos ofendidos e das demais pessoas que frequentavam a referida fracção";
-"em consequência de tais vícios", no dia 10/10/2006, "a placa do tecto abateu cerca de 5 centímetros, em virtude do afundamento de um dos pilares";
-"tal afundamento originou que, não só o tecto da cave, como a caixa das escadas, as paredes e os tectos do rés-do-chão e do 1° andar apresentassem fissuras, fissuras essas que se agravaram significativamente com esse abatimento";
-"todos esses danos, assim como outros entretanto verificados, resultaram da inadequação das obras efectuadas com o projecto aprovado, assim como da não utilização dos materiais previstos, quer em quantidade, quer em qualidade, e bem assim das alterações efectuadas ao projecto inicialmente aprovado, alterações essas efectuadas sem que fossem acompanhadas de prévio estudo de estabilidade,";
-"essas alterações tinham evidentes implicações ao nível da estrutura das habitações";
-"assim, e no exercício da sua actividade profissional, infringiram os arguidos, quer os dispositivos legais que devem ser observados no planeamento, direcção. e execução da construção, quer as boas práticas de construção, sendo que, actuando desse modo, provocaram danos irreparáveis na habitação dos ofendidos e nas contíguas, colocando-as em risco iminente de derrocada, com o necessário e consequente perigo para a vida ou integridade física daqueles".
-actuaram deliberada, livre e conscientemente, em conjugação de esforços, e na execução do plano por todos traçado, no sentido de gastar o menos possível na construção de tais moradias geminadas e de ignorar as mais elementares regras de construção, bem sabendo da ilicitude das suas condutas".
Ora, estes factos não se provaram, e a condenação do recorrente em indemnização procurou fundamento num outro facto: a subscrição do termo de responsabilidade, fazendo nele declarações falsas.
Mas esse facto é estranho à acusação, onde não é referido nem, consequentemente se imputa ao recorrente qualquer infracção com base nele.
Só no acórdão do tribunal de 1a instância é que se considerou que esse facto integrará um crime de falsificação de documento, nos termos do art.º100º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação [«As falsas declarações ou informações prestadas pelos responsáveis referidos nas alíneas e) e f) do n° 1 do artigo 98° nos termos de responsabilidade ou no livro de obra integram o crime de falsificação de documentos, nos termos do artigo 256º do Código Penal»], e, em consequência, se remeteu ao MP certidão para efeito do respectivo procedimento criminal.
Deste modo, neste processo penal, por não correr por crime preenchido com as falsas declarações feitas pelo recorrente no termo de responsabilidade, não podia ser deduzido pedido de indemnização fundado na prática desse facto ilícito. O art° 71° do CPP não o permitia. E se o pedido de indemnização fundado nesse facto ilícito não podia ser deduzido neste processo penal, também nele não pode haver condenação em indemnização com base nesse mesmo facto ilícito.
Nem o pedido deduzido pelos demandantes se funda nas falsas declarações do termo de responsabilidade, antes faz apelo, na linha da acusação à violação dos normativos legais e regulamentares acerca do planeamento, direcção e execução da obra, para além do dever de assegurar que os trabalhos em curso cumpriam os requisitos mínimos de segurança e estabilidade e as orientações de construção do Laboratório de Engenharia Civil. Refere-se o termo de responsabilidade, mas sem alcandorar a causa do dano. É mencionado no âmbito da alegação de que, aquando da celebração da escritura de compra e venda, a moradia ainda não estava concluída, e, não obstante, a Câmara Municipal ... emitira a licença de utilização, “pois que pelo demandado D... fora subscrito o respetivo termo de responsabilidade”.
O pedido de indemnização pelos danos que possam ter sido consequência da emissão pelo recorrente do referido termo de responsabilidade só poderá ser deduzido e ser considerado fundado no processo que eventualmente correr pelo ilícito configurado pelas falsas declarações constantes desse termo”.
O arguido foi absolvido do pedido em relação ao pedido cível deduzido com fundamento nos factos que configuravam a prática do crime de violação das regras de construção, Por uma questão de ordem formal estava o tribunal impedido de apreciar o pedido cível nos moldes em que foi decidido em 1ª instância e pelo Tribunal da Relação do Porto, atenta as especificidades do processo penal. A absolvição do pedido cível assenta no facto de não se verificarem os pressupostos do art. 71º CPP, conjugado com o art. 377º CPP.
O douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça não reapreciou a decisão de mérito do acórdão proferido em 1ª instância e confirmado pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto resultando do citado acórdão de forma expressa o motivo que impedia a apreciação do pedido cível nos moldes em que foi julgado e decidido. O pedido de indemnização civil que pode ser deduzido num processo penal é aquele que se funda na prática de crime que é objeto desse processo e no caso presente não foi deduzida acusação com fundamento no crime de falsas declarações, pelo que, não podia ser apreciada a responsabilidade civil do arguido com base em factos que configurassem tal enquadramento do ilícito criminal.
Na presente ação que se insere no âmbito das ações de responsabilidade civil, pela prática de facto ilícito, o pedido de indemnização quantificado em montante distinto do pedido cível formulado em processo penal, tem uma causa de pedir complexa, que inclui factos que já foram julgados e apreciados em sede de processo penal (art. 1º a 41º da petição). Porém, aqui, o facto ilícito imputável ao agente assenta apenas nas “falsas declarações”, sendo a partir dessa conduta que os apelantes-autores estruturaram a responsabilidade civil do réu, estabelecendo o nexo de causalidade entre a conduta e os danos (cfr. art. 32º, 42º a 51º, 73º, 84º da petição).
A decisão proferida no processo comum coletivo, Proc. 512/07.5TAVFR, não constitui caso julgado, porque não foi apreciado o mérito da pretensão dos autores nesta vertente, na medida em que a sentença proferida pelo tribunal de 1ª instância, nessa parte, foi revogada por motivos de ordem formal e que se prendem com o regime específico do processo penal. Para efeitos de apreciação da responsabilidade civil, sobre os concretos factos relacionados com o ilícito criminal pelo qual o arguido foi acusado e posteriormente absolvido, o tribunal de 1ª instância não se pronunciou, acabando o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça por tomar posição sobre tal matéria, com absolvição do arguido, apenas nessa parte, do pedido, deixando em aberto o apuramento da responsabilidade criminal e civil do arguido com fundamento na prática do crime de falsas declarações.
Apesar da identidade de sujeitos e até do pedido, não existe entre as duas ações – pedido cível enxertado na ação penal e a presente ação – identidade de causa de pedir e por isso, não estão reunidos os pressupostos da exceção do caso julgado.
Entendemos, ainda, que a autoridade do caso julgado formado pela decisão do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferida em 13 de setembro de 2014 não impede o julgamento da pretensão agora formulada pelos autores, por não se verificar qualquer relação de prejudicialidade entre as duas ações, na medida em que o núcleo fulcral das questões de direito e de facto ali apreciadas e decididas não são as mesmas que os apelantes aqui pretendem ver apreciadas e discutidas, pois no citado acórdão julgou-se improcedente o pedido de indemnização civil, absolvendo-se o réu do pedido, “com a causa de pedir delimitada pelo objeto do concreto processo crime” e que consistia na violação das regras de construção. Neste processo está em causa a apreciação de factos relacionados, como se referiu, com a prestação de falsas declarações.
Neste contexto improcede a exceção do caso julgado, com a consequente revogação da sentença, prosseguindo os autos os ulteriores termos, com a apreciação das restantes exceções.
Procedem as conclusões de recurso.
-
Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pelo apelado.
-
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e revogar a sentença e nessa conformidade, julgar improcedente a exceção de caso julgado, prosseguindo os autos os ulteriores termos.
-
Custas a cargo do apelado.
*
*
*
Porto, 7 de Janeiro de 2019
(processei e revi – art. 131º/5 CPC)
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
______________
[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico [com exceção da transcrição de excertos do Ac. STJ 13 de setembro de 2014]
[2] MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1993, pag. 306
[3] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, Lisboa, Lex, 1997, pag. 568
[4] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA Estudos sobre o Novo Processo Civil, ob. cit., pag. 568
[5] MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil ob. cit., pag. 320
[6] ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO e NORA Manual de Processo Civil, 2ª edição, revista e atualizada, Coimbra, Coimbra Editora, Lda, 1985, pag. 712
[7] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA Estudos sobre o Novo Processo Civil, ob. cit., pag. 578
[8] JOÃO CASTRO MENDES Direito Processual Civil, vol. III, AAFDL, Lisboa pag. 279
[9] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA Estudos sobre o Novo Processo Civil, ob. cit., pag.584
[10] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA Estudos sobre o Novo Processo Civil, ob. cit., pag. 585
[11] MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, ob. cit., pag. 325
[12] Cfr. Ac. STJ 09 de novembro de 2017, Proc. 765/08.1TDLSB.L1.S1; Ac. STJ 25 de maio de 2016, Proc. 431/11.0TACHV.G1.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt