Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
170/18.1T8MCN.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA
PARCELA SOBRANTE
REIVINDICAÇÃO
Nº do Documento: RP20210621170/18.1T8MCN.P1
Data do Acordão: 06/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As meras considerações sobre a prova, ou não prova, do quadro factual que nos autos resultou assente, embora referenciada a determinados pontos, não merece qualquer relevo para efeitos de reapreciação da prova, uma vez que a lei subordina a impugnação, apenas aos pressupostos de natureza formal previstos no artigo 640.º do CPCivil.
II - Declarada a utilidade pública de uma parcela de um prédio a favor de uma determinada entidade expropriante, a ocupação da parte restante sem qualquer título, confere ao proprietário da parcela o direito de pedir o reconhecimento do seu direito de propriedade e a sua entrega (art. 1311.º do CC).
III - A invocação ou aplicação do princípio da intangibilidade da obra pública apenas é viável em casos, em que a apropriação de prédios por uma entidade pública correspondente a expropriações de facto, é feita num quadro de ausência de culpa ou de culpa leve, seguida da realização de obras ou de investimentos na parcela do prédio ocupado.
IV - Nessa eventualidade, em lugar da condenação na restituição do bem, admite-se que a entidade ocupante possa ser condenada no pagamento de uma indemnização ao proprietário.
V - Não há que aplicar o referido princípio se, na área ocupada de forma ilícita, não foi levada a cabo qualquer construção.
VI - Os bens do domínio público rodoviário do Estado só compreendem os terrenos destinados ao alargamento e exploração da estrada se e quando expropriados [cfr. artigo 28.º, nº 1 a l. c) da Lei n.º 34/2015 de 27/04].
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 170/18.1T8MCN.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Local Cível do Porto-J3
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
B…, Lda., com sede na Zona Industrial, rua ., …, freguesia …, Marco de Canaveses, instaurou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra Infra-estruturas de Portugal, S.A., com sede no …, …, ….-… Almada pedindo que a presente acção seja julgada provada e procedente e, em consequência, se condene a Ré:
a) A reconhecer a propriedade da Autora sob os prédios descritos no art. 1.º da petição inicial;
b) A restituir à Autora livre de pessoas e coisas as aludidas parcelas de terreno com as áreas de 275,70m2 e 213,58m2, que intitulada e abusivamente retém, sendo aquelas, como efectivamente são, parte integrante dos prédios da Autora;
c) A destruir todas as obras efectuadas e a repor os prédios da Autora, no estado anterior às obras;
d) E a pagar-lhe, a título de compensação pelo dano moral causado, quantia nunca inferior a 2.500,00 euros.
e) Ou, se assim não se entender, condenar-se a Ré a pagar à Autora uma compensação pelo dano moral causado, quantia nunca inferior a 2.500,00 euros e, ainda a título de indemnização, pelo dano patrimonial causado – o que se vier a liquidar em execução em sentença.
Para tanto, e em síntese, alegou que é titular do direito de propriedade sobre os prédios identificados no art. 1.º da petição inicial e, no período compreendido entre 2001 e 2002, a Ré procedeu a obras de construção do “acesso de Baião ao IP4 (1.ª fase), variante à E.N. … e variante à E.N. …”, tendo invadido e ocupado parte dos aludidos bens imóveis contra a vontade da Autora.
Em consequência disso, devido à diminuição de área, está impedida de edificar quaisquer prédios, não obstante se trate de solo destinado à construção. Esta situação tem causado prejuízos patrimoniais e incómodos aos seus legais representantes.
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A Ré contestou apresentando defesa por impugnação, excepcionando ainda a prescrição do direito de indemnização nos termos do n.º1 do artigo 498.º do Código Civil por ter decorrido o prazo de 3 anos desde o conhecimento dos factos que servem de fundamento à presente acção.
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A Autora respondeu, mantendo a posição assumida na petição inicial, invocando que a presente acção é uma acção de reivindicação.
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Por despacho de 16.10.2018, a Autora foi convidada a suprir imprecisões na exposição e concretização da matéria de facto alegada no respectivo articulado, concretamente por que incumbia à Autora a alegação e prova dos factos atinentes aos prejuízos/danos alegados na petição inicial e que fundamentam o pedido subsidiário indemnizatório cuja fixação do seu montante a Autora relegou para incidente de liquidação.
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A Autora apresentou petição inicial aperfeiçoada, pedindo que a presente acção seja julgada provada e procedente e, em consequência:
a) A reconhecer a propriedade da Autora sob os prédios descritos no art. 1.º da petição inicial;
b) A restituir à Autora livre de pessoas e coisas as aludidas parcelas de terreno com as áreas de 275,70 m2 e 213,58m2, que intitulada e abusivamente retém, sendo aquelas, como efectivamente são parte integrante dos prédios da Autora;
c) A destruir todas as obras efectuadas e a repor os prédios da Autora no estado anterior às obras;
d) E pagar-lhe, a título de compensação pelo dano moral causado, quantia nunca inferior a 2.500,00 euros;
e) Ou, se assim não se entender, condenar-se a Ré a pagar à Autora uma compensação pelo dano moral causado, quantia nunca inferior a 2.500,00 euros e, ainda a título de indemnização, pelo dano patrimonial causado que se traduz no montante global de 34.356,80 euros.
A convite do Tribunal, a Autora concretizou/esclareceu que:
- Tendo em conta a área ocupada pela Ré – 275,70 m2 da Parcela A mais 213,58 m2 da Parcela B, resulta um total de 489,28 m2 de área de terreno que a Ré, efectivamente, ocupa de forma abusiva e intitulada, calculando-se o preço m2 no valor de 60,00 euros, o que perfaz o global de 29.356,80 euros;
- Os prédios em causa situam-se numa zona residencial destinada a habitação com excelentes características para edificação, tendo em conta as condições de exposição, situação e infra-estruras existentes, sendo certo que o valor atribuído de 60 euros/por m2 está de acordo com o mercado e a procura para imóveis desta categoria;
- A diferença existente entre a área real dos lotes (plasmada na ficha predial de cada um dos lotes) e a área actual (aquela que consta das plantas juntas) tem causado sérios transtornos na venda de tais imóveis face às implicações daí decorrentes, nomeadamente para efeitos de avaliação e projectos (implantação dos imóveis, afastamentos legais, construção de logradouros) afastando desse modo os potenciais compradores, que se recusam a comprar enquanto a actual situação se mantiver;
- Esta situação manter-se-á até que seja proferida uma decisão judicial definitiva, e em consequência resulta que prejuízos daí decorrentes, só poderão ser liquidados em execução de sentença; contudo, é já possível apurar prejuízos calculados até à presente data, em resultado da factualidade supra referida, nomeadamente as dificuldades encontradas em concretizar as vendas, que só não ocorreram pelas razões expostas, com prejuízos para a Autora que calcula no montante de 5.000,00 euros;
- A situação de ilegalidade imputada à Ré, traduz ainda, para os representantes legais da Autora um grande incómodo, transtorno e desgosto, por verem a Ré concretizar uma ameaça ilegítima;
- Os legais representantes da Ré andaram incomodados e deprimidos, fruto da acção desmedida da Ré que a coberto de uma encapotada expropriação invadiu e destruiu o coberto vegetal dos prédios da Autora ao mesmo tempo que com o uso de maquinaria apropriada fez escavações no terreno á vista de toda a gente e dos legais representantes da Autora o que lhes provocou um sério sentimento de humilhação e impotência, uma vez que nada podiam fazer para impedir a Ré de executar tais actos;
- Este dano moral, pela sua gravidade, intensidade de dolo e perduração, merece tutela do direito e postula, para compensação, quantia nunca inferior a 2.500,00 euros.
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Fixado o valor da acção foi proferido despacho saneador que identificou o objecto do litígio e, relegou para final o conhecimento da excepção peremptória de prescrição do respectivo direito indemnizatório.
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Realizou-se audiência prévia tendo sido determinada a realização de perícia colegial.
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Concluída a referida perícia teve lugar a audiência de julgamento que decorreu com observância do legal formalismo.
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A final foi proferida decisão que:
a) Julgou procedente a excepção peremptória de prescrição suscitada pela Ré infra-estruturas de Portugal, S.A., absolvendo-a dos pedidos de condenação em pagamento à Autora B…, Lda. de compensação pelos danos morais e de indemnização pelos danos patrimoniais invocados.
b) Condenou a Ré infra-estruturas de Portugal, S.A. a:
- Reconhecer a propriedade da Autora B…, Lda. sob os prédios descritos no ponto 1) da presente decisão;
- Restituir à Autora livre de pessoas e coisas as parcelas de terreno que intitulada e abusivamente retém e repondo os prédios da Autora no estado anterior às obras, concretamente eliminando a vedação em rede armada assente em postes de madeira que atravessa os prédios urbanos identificados e executando muro ou muros de suporte para efectiva utilização das áreas previstas no alvará de loteamento.
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Não se conformando com o assim decidido veio a Ré interpor o presente recurso rematando com as seguintes conclusões:
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Devidamente notificado contra-alegou a Autora concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 3, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa decidir:
a) saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- decidir em conformidade face à alteração factual e, em todo o caso, saber se a sua subsunção jurídica se encontra correctamente feita.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É o seguinte o quadro factual que vem dado como provado pelo tribunal recorrido:
1) Encontram-se inscritos na matriz predial urbana da freguesia …, concelho de Marco de Canaveses, a favor da Autora, B…, Lda. e a aquisição, por compra à sociedade denominada “C…, S.A.”, pela Ap. 4 de 1997/04/30, inscrita na Conservatória do Registo Predial de Marco de Canaveses a favor da Autora, dos seguintes prédios urbanos situados em …:
i. Prédio urbano composto de parcela de terreno para construção urbana, com a área de 442 m2, denominado lote 52, que confronta a norte com a Estrada nacional, sul com o arruamento, nascente D…, poente, lote n.º 53, inscrito na matriz sob o artigo 1163 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Marco de Canaveses, sob a ficha nº 622/19960109;
ii. Prédio urbano composto de parcela de terreno para construção urbana com a área de 396 m2, denominado lote 53, que confronta a norte com Estrada Nacional, sul, arruamento, nascente, lote 52, poente, lote 54, inscrito na matriz sob o artigo 1164 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob a ficha 623 de …;
iii. Prédio urbano composto de parcela de terreno para construção urbana com a área de 396 m2, denominado lote 55, que confronta a norte com a Estrada Nacional, sul, arruamento, nascente, lote 54, poente lote 56, inscrito na matriz sob o artigo 1164, descrito na Conservatória do Registo Predial sob a ficha 625 de …;
iv. Prédio urbano composto de parcela de terreno para construção urbana com a área de 396 m2, denominado lote 56, que confronta a norte com a Estrada Nacional, sul, arruamento, nascente, lote 54, poente, lote 56, inscrito na matriz sob o artigo 1167, descrito na Conservatória do Registo Predial sob a ficha 626 de …;
v. Prédio urbano composto de parcela de terreno para construção urbana com a área de 396 m2, denominado lote 57, que confronta a norte com a Estrada Nacional, sul, arruamento, nascente, lote 56, poente lote 58, inscrito na matriz sob o artigo 1168, descrito na Conservatória do Registo Predial sob a ficha 627 de …;
vi. Prédio urbano composto de parcela de terreno para construção urbana com área de 396 m2, denominado lote 58, que confronta a norte com a Estrada Nacional, sul, arruamento, nascente, lote 57, poente, lote 59, inscrito na matriz sob o artigo 1169, descrito na Conservatória do Registo Predial sob a ficha 628 de ….
2) Desde a referida aquisição por compra, em 1997, a Autora tem estado na sua fruição, colhendo as suas utilidades, cortando o mato, fazendo limpezas, pagando as respectivas contribuições, à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de quem quer que seja, e tudo isto em seu próprio nome, como quem usufrui coisa sua e com intenção de adquirir a sua propriedade.
3) A Ré resultou da fusão entre a “REFER E.P.E.-Rede Ferroviária Nacional” e a “E.P., Estradas de Portugal, S.A.”, conforme Decreto-Lei n.º 91/2015, de 29.05; e, por sua vez, a “E.P- Estradas de Portugal, S.A.” sucedeu à “JAE-Junta Autónoma das Estradas” e ao “I.E.P.-Instituto das Estradas de Portugal”.
4) A planta parcelar e o mapa de expropriações da referida obra foram aprovados em 04.07.1997.
5) A Declaração de Utilidade Pública (D.U.P.) da expropriação tendo em vista a construção do “acesso de Baião ao IP 4 (1ª fase)–variante à E.N. … e variante à E.N. …” foi publicada no D.R. II Série, n.º 103, de 05.05.1998, nela constando que foi declarada a utilidade pública, com carácter de urgência da expropriação da “parcela 90.2”, com a área de 364 m2 e que se identificou ser pertença de “B1…, Lda.”, sita em … - …. Marco de Canaveses–com o esclarecimento de que esta “parcela 90.2” não corresponde parcial ou totalmente à área ocupada pela via.
6) E foi remetido à C.M. do … o respectivo edital.
7) Em data não concretamente apurada, mas nunca depois do ano de 2002, a Ré procedeu às obras de corte, remoção e movimentação de terras para o fim descrito em 5).
8) Com a realização de tais obras (alargamento da E.N. …), a Ré passou a ocupar, contra a vontade da Autora, uma faixa estreita de configuração triangular e com uma área aproximada de 108,00m2, invadindo os supra identificados lotes n.ºs 52, 53 e 54, na confrontação com a E.N.–com o esclarecimento de que para tanto contribuiu a existência de uma vedação em rede armada assente em postes de madeira que atravessa os lotes referidos, mas que pode ser eliminada pela Ré.
9) A designada “Parcela A” constante do documento de folhas 41 dos autos tem área de cerca de 185,00m2 e a aí designada “Parcela B” tem área de cerca de 369,00m2; ambas com configuração irregular, de rectângulo alongado; e são áreas que integram actualmente o talude, berma e pavimento das variantes referidas em 5), apresentando desnivelamento–com o esclarecimento de que esse desnivelamento ocorre entre a parte superior (arruamento do loteamento) e inferior (E.N.).
10) O lote 52 tem actualmente a área de 255,00 m2 – com o esclarecimento de que existe aí vedação supra referida.
11) O lote 53 tem actualmente a área de 264,00 m2 – com o esclarecimento de que existe aí vedação supra referida.
12) O lote 55 tem actualmente a área de 311,00 m2 – com o esclarecimento de que existe aí vedação supra referida.
13) O lote 56 tem actualmente a área 359,00 m2 – com o esclarecimento de que existe aí vedação supra referida.
14) O lote 57 tem actualmente a área de 377,00 m2 – com o esclarecimento de que existe aí vedação supra referida.
15) O lote 58 tem actualmente a área de 374,00 m2 – com o esclarecimento de que existe aí vedação supra referida.
16) Em consequência das referidas obras.
17) Tudo isto contra a vontade da Autora.
18) A Autora está agora impedida de edificar convenientemente nos seus prédios nos termos das especificações técnicas aprovadas pelo alvará de loteamento n.º ../95 emitido em 20 de Julho de 1995 pela Câmara Municipal …, uma vez que as áreas dos lotes em causa foram reduzidas, prejudicando a sua utilização e uso para construção.
19) Apenas que, tendo em conta a área ocupada pela Ré, foi afectada a capacidade edificativa no lote 52–com o esclarecimento de que no caso do lote 52, uma vez que a distância ao limite posterior do lote é inferior a 5 m. A área máxima possível de edificar é de 161,70m2, inferior ao inicialmente previsto de 187,50m2. A desvalorização causada pela diminuição da área de construção é de 3.173,40€.
20) Para a efectiva utilização das áreas previstas no alvará de loteamento, quanto ao referido lote, haveria que executar muro ou muros de suporte.
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Factos não provados:
Não se provou que:
a) As obras referidas em 5) ocorreram entre os anos de 1998 e 2000.
b) A Autora sempre se opôs a tais obras e à ocupação ilegítima.
c) Tendo em conta a área ocupada pela Ré–275,70 m2 da “Parcela A” mais 213,58 m2 da “Parcela B”, resulta um total de 489,28 m2 de área de terreno que a Ré efectivamente ocupa de forma abusiva e intitulada, calculando-se o preço m2 no valor de 60,00 euros, o que perfaz o global de 29.356,80 euros;
d) Os prédios em causa situam-se numa zona residencial destinada a habitação com excelentes características para edificação, tendo em conta as condições de exposição, situação e infraestruras existentes, sendo certo que o valor atribuído de 60 euros/por m2 está de acordo com o mercado e a procura para imóveis desta categoria.
e) A diferença existente entre a área real dos lotes (plasmada na ficha predial de cada um dos lotes) e a área actual (aquela que consta das plantas juntas) tem causado sérios transtornos na venda de tais imóveis face às implicações daí decorrentes, nomeadamente para efeitos de avaliação e projectos (implantação dos imóveis, afastamentos legais, construção de logradouros) afastando desse modo os potenciais compradores, que se recusam a comprar enquanto a actual situação se mantiver.
f) Tal situação se manterá até que seja proferida uma decisão judicial definitiva, e em consequência resulta que prejuízos daí decorrentes.
g) As dificuldades encontradas em concretizar as vendas, que só não ocorreram pelas razões expostas, resultaram em prejuízos para a Autora no montante de 5.000,00 euros.
h) A situação de “ilegalidade” imputada a Ré traduz ainda, para os representantes legais da Autora um grande incómodo, transtorno e desgosto, por verem a Ré concretizar uma ameaça ilegítima.
i) Os legais representantes da Ré andaram incomodados e deprimidos, fruto da acção desmedida da Ré, o que lhes provocou um sério sentimento de humilhação e impotência, uma vez que nada podiam fazer para impedir a Ré de executar tais actos.
j) Aquando do desenvolvimento dos actos preliminares à emissão da D.U.P. da expropriação, constatou-se que o projecto, dada a sua relativa antiguidade, se encontrava desactualizado, uma vez que não contemplava as alterações introduzidas com a construção da nova ponte sobre o rio …, pela F… (no âmbito da construção da barragem do …) nem outras alterações introduzidas pela Câmara Municipal ….
k) Pelo que o projecto foi objecto de uma revisão e actualização, tendo sido criada, na zona em questão, a “parcela 90.2”.
l) A referida “parcela 90.2” corresponde exclusivamente ao talude da estrada e, nos termos do Estatuto das Estradas Nacionais, é parte integrante da zona da estrada e como tal pertença do “Domínio Público Rodoviário”.
m) Nestes termos, entendeu-se não haver lugar a expropriação, informação que foi transmitida aos interessados erroneamente considerados como proprietários da “parcela 90.2”.
n) Neste segmento inicial, foram mantidas as características da via já existente, tanto no que respeita as 3 vias de circulação existentes, como no que respeita às cotas, até como única forma de manter a sua continuidade com o troço contíguo.
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III. O DIREITO
Como se se referiu a primeira questão que nos autos vem colocada prende-se com:
a) saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como resulta do corpo alegatório e das respectivas conclusões a Ré impugna a decisão da matéria de facto no sentido de que deveriam ter sido dados como provados os factos constantes das alíneas j), k), l) e m) da resenha dos factos não provados.
Mas será que a Ré cumpre, ao impugnar a decisão da matéria de factos, os ónus impostos pelo artigo 640.º do CPCivil?
Analisando.
Preceitua o artigo o artigo 640.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão de facto” que:
1- Quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. (…).
Esta norma impõe rigor e precisão, onerando o recorrente com o dever de especificar os factos e os meios probatórios que, em concreto, questiona bem como o sentido decisório que devem ter as questões de facto impugnadas.
Acontece que, lendo as alegações recursivas e as respectivas conclusões, a apelante limita-se a tecer um conjunto de considerações que se revelam inócuas para preencher a facti species da supra referida norma adjectiva.
A lei impõe aos recorrentes que indiquem o porquê da discordância, isto é, em que é que os referidos meios probatórios contrariam a conclusão factual do Tribunal recorrido, por outras palavras, importa apontar a divergência concreta entre o decido e o que consta dos citados meios probatórios.
É exactamente esse o sentido da expressão legal “quais os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação... que imponham decisão, sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida” (destaque e sublinhado nossos).
Repare-se na letra da lei: “Imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida”!
Trata-se, aliás, da imposição de um ónus perfeitamente lógico e necessário, em primeiro lugar, porque ninguém está em melhor posição do que o recorrente para indicar os concretos pontos da sua discordância relativamente ao apuramento da matéria de facto, indicando os concretos meios de prova constantes do registo sonoro que, em seu entendimento, fundamentam tal discordância e qual a concreta divergência detectada.
Em segundo lugar, para permitir que a parte contrária conheça os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, para os poder contrariar cabalmente, assim se garantindo o devido cumprimento do princípio do contraditório.
O que se pretende que a parte faça?
Certamente que apresente um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, dizendo onde se encontram no processo e, tratando-se de depoimentos, identifique a passagem ou passagens pertinentes, e, em segundo lugar, produza uma análise crítica dessas provas, pelo menos elementar.
Ora, só coloca uma questão se elaborar uma argumentação que se oponha à argumentação produzida pelo juiz em 1.ª instância, colocando então o tribunal de recurso perante uma questão a resolver.
E se é verdade que na grande maioria dos casos a impugnação da matéria de facto se funda, essencialmente, na existência de provas que conduzem a um resultado probatório diferente daquele que foi acolhido na decisão sob censura, estes casos não esgotam o universo das situações passíveis de motivar inconformismo contra a decisão de facto.
Assim, o erro no julgamento da matéria de facto pode derivar simplesmente do meio de prova aduzido para fundamentar a decisão do ponto de facto impugnado não conduzir a tal resultado probatório.
Por exemplo, é afirmado que se julga provado o facto X, com base no depoimento da testemunha Y, quando, analisado tal depoimento, se chega à conclusão de que efectivamente essa testemunha não produziu um depoimento que permita a prova de tal facto, não tendo feito qualquer referência directa ou indirecta ao facto dado como provado, ou mesmo que o seu depoimento considerado credível pelo tribunal, não o deveria ter sido, invocando-se, para o efeito, determinados argumentos e razões não atendidas pelo julgador, etc.
Porém, não é isso que ocorre na impugnação deste segmento da matéria de facto feita pela Ré recorrente, cuja argumentação expendida se revela inócua para efeitos de impugnação da matéria de facto concretamente indicada.
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Consequentemente, em obediência ao preceituado no artigo 640.º, nº 2 al. a) do CPCivil, impõe-se rejeitar o recurso, no que à matéria de facto diz respeito, improcedendo, assim, as conclusões I a IX formuladas pela apelante.
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Permanecendo inalterada a matéria de facto, vejamos agora se, ainda assim:
b) a sua subsunção jurídica, se mostra, ou não, correcta.
Alega a recorrente que mesmo que se considerasse que parte ou a totalidade da parcela não está ocupada com talude mesmo essa parte está ocupada pela obra rodoviária, encontrando-se dentro da delimitação da vedação de rede armada, pelo que em qualquer dos casos, tendo tal área sido ocupada com a obra rodoviária aplica-se o “princípio da intangibilidade da obra pública”, o qual se traduz na manutenção da posse por parte da Administração quando, apesar de essa posse assentar em título ilegal, não representando um atentado grosseiro ao direito de propriedade, deva ser mantida, sob pena de resultarem danos graves para o interesse publico, como os resultantes da subtracção da coisa irregularmente apropriada ao uso público.
Quid iuris?
Como se sabe a expropriação por utilidade pública constitui um modo de aquisição originária (e da correspondente extinção na esfera do expropriado) do direito de propriedade determinada pela prática de um acto administrativo, impondo-se ao expropriado a quem, em contrapartida, é reconhecido direito a obter a justa indemnização, de acordo com as regras que constam do Cód. de Expropriações (cfr. artigo 1310.º do CCivil).
Perante actos de que resulte a violação ilegítima do direito de propriedade- ilegitimidade que ocorre designadamente nos casos em que alguma entidade se apropria de um prédio fora do quadro do processo expropriativo ou excedendo materialmente os limites desse acto–o proprietário pode obter o reconhecimento do seu direito e a reconstituição da situação anterior, mediante a restituição do bem e, eventualmente, a atribuição de uma indemnização pelos danos decorrentes da ocupação ilegal.
Esta é a solução que, em regra, também deve ser adoptada sempre que se verifique uma situação que se reconduza ao que pode apelidar-se de expropriação de facto, em resultado da apropriação ou ocupação de um prédio que não seja legitimada pelas regras que regulam o instituto da expropriação por utilidade pública.
Todavia, a diversidade de motivações ou de circunstâncias que envolvem as situações de apropriação ilegítima de um prédio alheio é susceptível de convocar a aplicação de outras regras ou de outros princípios que permitem moderar o resultado que se obteria a partir das da aplicação irrestrita das regras a que obedece a acção de reivindicação.
A apropriação ou ocupação de prédios alheios por entidades públicas pode apresentar-se sob vários conspectos que vão desde o desrespeito flagrante das regras sobre a expropriação por utilidade pública até situações em que a violação objectiva do direito de propriedade é resultado de comportamentos que se inscrevem na mera culpa ou na ausência de culpa, ou é traduzida em situações que se manifestam através da violação dos limites objectivos do prédio expropriado, por vezes, em resultado de um mero erro ou de excesso na execução do acto expropriativo.
Em tais circunstâncias, a aplicação dos efeitos típicos da acção de reivindicação poderia revelar-se excessiva, designadamente quando, na sequência da ocupação ou apropriação, a entidade pública aplicou o imóvel a fins de utilidade pública ou à realização de obra pública, envolvendo vultuosos investimentos.
O reconhecimento puro e simples do direito de propriedade, com a consequente condenação da entidade ocupante na restituição do prédio nas condições em que o mesmo se encontrava, pode revelar-se desproporcionado e gravemente lesivo dos interesses de ordem pública, tendo em consideração os investimentos ou as despesas entretanto realizadas.
Ora, para situações como estas tem sido desenvolvida uma tese, intermediada pelos tribunais em face dos casos concretos, que legitima uma limitação ao exercício do direito de reivindicação, substituindo-o pela atribuição de uma indemnização correspondente ao valor expropriativo do prédio, ponderando o princípio da intangibilidade da obra pública que mais não é do que uma versão administrativista das figuras do abuso de direito ou da colisão de direitos previstas nos artigos 334.º e 335.º do CCivil.
Não obstante tal princípio não esteja expressamente consagrado na lei, encontra sustentação no disposto nos artigos 159.º e segs. do CPTA, na medida em que se permite afastar a execução de julgado em casos em que esta provoque grave lesão do interesse público, ou ainda no artigo 173.º, nº 3, do mesmo diploma legal, nos termos do qual a situação jurídica fundada em actos consequentes praticados há mais de um ano é susceptível de obter uma garantia que impede a sua modificação quando os danos sejam de difícil ou impossível reparação e for manifesta a desproporção existente entre o interesse na manutenção da situação e o interesse na execução da sentença anulatória. E também no art. 134º, nº 3, do CPA, nos termos do qual o efeito da nulidade do acto administrativo “não prejudica a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais do direito”.
Também o artigo 162.º, nº 3, do novo Cód. de Proc. Administrativo, aprovado pela Lei nº 4/15, de 7-1, preceitua quanto à nulidade dos actos administrativos que: “não prejudica a possibilidade de atribuição de efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos, de harmonia com os princípios da boa-fé, da protecção da confiança e da proporcionalidade ou outros princípios jurídicos constitucionais, designadamente associados ao decurso do tempo”.
Com recurso a tal princípio geral, em casos em que a condenação na restituição do prédio livre e desocupado constituiria um resultado manifestamente inadequado, por resultarem gravemente afrontados interesses de ordem pública, é possível sustentar uma solução diversa daquela que resultaria da aplicação das regras exclusivamente extraídas do direito privado.
Como supra se referiu, não obstante mão exista expressamente consagrado tal princípio (e embora também não seja pacífica a sua admissibilidade no nosso ordenamento jurídico, negada, por exemplo, no Ac. do STA, de 6-2-01[1]), o certo é que a sua intervenção é limitada a casos que verdadeiramente o justifiquem e que se caracterizem por comportamentos adoptados pela entidade a favor de quem foi declarada a utilidade pública expropriativa e que não ultrapassem subjectivamente os limites da culpa leve, sendo neste sentido que a aplicabilidade de tal princípio tem sido admitida no STJ.[3]
Evidentemente, que tal solução de raiz jurisprudencial e doutrinal apenas é defensável na medida em que corresponda aos interesses da entidade pública, admitindo-se que os interesses públicos e da comunidade sejam susceptíveis de se sobreporem aos meros interesses particulares, especialmente nos casos em que no prédio já tenha sido edificada ou implantada alguma obra pública.
Postos estes breves considerandos, no caso concreto não é de aplicar o referido princípio o princípio da intangibilidade da obra pública, pela simples razão de que na ocupação ilícita dos terrenos da Autora feita pela Ré, não existe qualquer obra edificada.
Efectivamente, o que se verifica é que, com as obras de alargamento da E.N. … a Ré passou a ocupar, contra a vontade da Autora uma faixa estreita de configuração triangular e com uma área aproximada de 108,00m2, invadindo os lotes n.ºs 52, 53 e 54, na confrontação com a E.N. sendo que, tal ocupação se traduz na existência de uma vedação em rede armada assente em postes de madeira que atravessa os lotes referidos, mas que pode ser eliminada pela Ré [cfr.ponto 8) da fundamentação factual].
Significa, portanto, que na área ocupada não existe qualquer edificação, havendo apenas, no lote 52, que executar muro ou muros de suporte para que desse modo se salvaguarde o referido princípio.
E contra isso não se argumente com o disposto no artigo 28.º, nº 1 al. c) do Estatuto das Estradas da Rede Rodoviária Nacional, aprovado pela Lei n.º 34/2015 de 27/04 que refere que “Os bens do domínio público rodoviário do Estado compreendem:
a (…)
b (…)
c) Os terrenos destinados ao alargamento e exploração da estrada, se e quando expropriados;
(…).
Com efeito os referidos terrenos só estariam compreendidos no domínio público rodoviário do Estado com vista ao alargamento e exploração da estrada se tivessem sido expropriados o que, como se viu, não aconteceu.
Decorre do exposto que não havia fundamento para que a restituição dos terrenos em causa não fosse ordenada (cf. artigo 1311.º, nº 2 do CCivil).
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Improcedem, desta forma, as conclusões X a XX formuladas pela recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedente, por provada não provada e, consequentemente confirmar a decisão recorrida.
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Custas da apelação pela Ré apelante (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 21 de Junho de 20121.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] In www.dgsi.pt
[2] Cfr. neste sentido Ac. do STJ de 05/02/2015 in www.dgsi.pt e que seguimos de perto.
[3] Cfr. Acs. de 9-1-03 (Rel. Alves Correia), de 29-4-10 (Rel. Alves Velho) e de 18-2-14 (Rel. Pinto de Almeida in www.dgsi.pt.