Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
543/13.6TBPNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MÁRCIA PORTELA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
RESPONSABILIDADE CIVIL
ALEGADA NEGLIGÊNCIA DE NOTÁRIO NO EXERCÍCIO DE FUNÇÕES
Nº do Documento: RP20150708543/13.6TBPNF.P1
Data do Acordão: 07/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Constitui entendimento corrente da doutrina e da jurisprudência que a competência do tribunal, como pressuposto processual que é, determina-se pelos termos em o autor estruturou o pedido e a causa de pedir.
II - A competência traduz-se na medida de jurisdição atribuída a cada tribunal, assentando a competência material na natureza do litígio.
III - Os tribunais da ordem administrativa tem competência para administrar nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.
IV - A relação jurídica administrativa é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração.
V - Os tribunais judiciais têm uma competência residual, pois são da sua competência as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
VI - A relação que se estabeleceu entre o notário, profissional liberal, e o apelante, particular que recorreu aos seus serviços para celebrar uma escritura pública, não é seguramente uma relação de direito administrativo, mas sim uma relação de direito privado, para cuja apreciação são competentes os tribunais judiciais, por não ser enquadrável em nenhuma das alíneas do artigo 4,º ETAF, que delimitam a competência dos tribunais administrativos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
Apelação n.º 543/13.6TBPNF.P1


Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
B…, solteiro, maior, NIF ………, residente na Rua …, ../.., freguesia e concelho de Penafiel, intentou acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra Dr. C…, NIF ………, Notário, com domicílio profissional sito na …, ..º Esq, freguesia e concelho de Ponte de Lima, D…, NIF ……… e esposa E…, NIF ………, residentes na …, … ..º Esq, freguesia …, concelho de Penafiel, e Conservatória do Registo Predial e Comercial do concelho de Penafiel, NIPC 600 021 220, com sede na … …-R/C,
Freguesia e concelho de Penafiel, pedindo a sua condenação solidária no pagamento de uma indemnização pelos danos patrimoniais a liquidar em execução de sentença e ainda uma indemnização pelos danos morais num montante nunca inferior a € 5.000,00.
Alegou para tanto, e em síntese, por escritura pública, celebrada no dia 20 de Junho de 2008, no Cartório Notarial de Penafiel do Dr. C…, ..º R., o A. adquiriu um prédio urbano, composto de casa de três pisos e logradouro, sito na Rua …, freguesia e concelho de Penafiel descrito na Conservatória de Registo Predial de Penafiel sob o n.º 1934 da freguesia de Penafiel, com as seguintes confrontações: a norte um caminho público, a sul um prédio de F…, a Nascente um carreiro e um prédio de F… e a poente G….

O prédio é composto por três pisos com logradouro, com o valor patrimonial de € 195.120,00, destinando-se à sua habitação própria e permanente.

Da escritura celebrada consta que o prédio tinha duas penhoras registadas a favor da Fazenda Nacional, cujo cancelamento se encontrava assegurado, conforme certidão que foi exibida ao 1.º R.

Em 20 de Maio de 2009, apresentou pedido de registo de aquisição a seu favor do prédio supra descrito junto da Conservatória do Registo Predial de Penafiel, tendo sido notificado para suprir deficiências, apresentando em cinco dias documento que comprovasse a legitimação dos transmitentes, uma vez que do registo não constava qualquer inscrição de transmissão a favor dos vendedores, sob a cominação de, não sendo suprida a deficiência o registo seria lavrado como provisório por dúvidas, como veio a suceder.

Dirigindo-se à Conservatória do Registo Predial de Penafiel, onde, através de uma busca pelo nome dos titulares, verificou-se a existência da duplicação de descrições, a saber, a descrição n.º 1062 e a descrição n.º 1934 (supra citada).

A descrição com o n.º 1062 refere-se a um prédio urbano composto de casa de rés-do-chão e andar com logradouro, sito no …, omisso na matriz, com as seguintes confrontações: a norte um caminho público, a sul um prédio de F…, a Nascente um carreiro e um prédio de F… e a poente G…, criada em 12 de Setembro de 1994. Nesta descrição encontram-se registadas duas hipotecas voluntárias a favor do H…, S.A.

A descrição n.º 1934 foi criada aquando da apresentação pela Fazenda Nacional do pedido de penhora de 2007/01/04, por negligência da 3.ª R., que não efectuou uma busca pelo nome dos sujeitos passivos, caso em que teria verificado que, apesar de o artigo e a composição do prédio não corresponderem, as confrontações, as áreas declaradas e os titulares são os mesmos, evitando desta forma uma duplicação e os prejuízos que daí poderiam advir, como advieram.

Os 2.ºs RR., aproveitando-se da falta de rigor e de atenção dos 1.º e 3.ª RR., e ocultaram a existência de outros ónus e encargos existentes sobre o prédio que venderam (as hipotecas supra identificadas), e, tendo transmitido o prédio ao A., deixaram de pagar os empréstimos que as supra referidas hipotecas visavam salvaguardar, o que motivou a penhora do prédio.

Atentos os factos supra descritos, decorre para o A. um prejuízo patrimonial, no valor dos empréstimos concedidos aos 2.º RR., e que actualmente se cifra em € 195.120,00.
Contestou o 1. º R., excepcionando, além do mais, a incompetência absoluta do tribunal cível por o A. invocar o incumprimento da função notarial na sua dimensão pública. Deduziu a intervenção principal da sua seguradora, I…, a qual foi admitida.
Também a Conservatória do Registo Predial, excepcionando, além do mais, a incompetência absoluta do tribunal cível, por ser competente a jurisdição administrativa, porque o A. pretende a responsabilização da Conservatória, que é um serviço integrado na orgânica de uma pessoa colectiva de direito público.
Replicou o A. sustentando que entre ele e o 1.º R. foi celebrado um contrato de prestação de serviço, que em nada reveste a natureza administrativa.
Foi proferida decisão, julgando o tribunal cível incompetente para julgar a acção, e, consequentemente absolvendo da instância os 1.º e 3.º RR., prosseguindo a acção relativamente aos demais RR.
Entretanto, a acção foi declarada extinta relativamente aos 2.ºs RR. por terem sido declarados insolventes.
Inconformado com a decisão que declarou a incompetência absoluta do tribunal cível relativamente ao 1.º R., apelou o A., apresentando as seguintes conclusões:
«A) Não se conforma o recorrente com o douto despacho que julgou procedente a exceção de incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal “a quo”, considerando materialmente competente para a tramitação e julgamento desta ação, quanto a ao Réu C…, notário, o Tribunal Administrativo e Fiscal.
B) Sustentou no despacho, ora recorrido que dúvidas não existem que a função que exerceu e exerce, enquanto notário, tem natureza pública e privada e é incindível, nos termos do artigo 2º do Estatuto do Notariado.
C) E que (…) as mesmas são demandadas em virtude do exercício daquela função de natureza pública, pretendendo-se acionar a sua invocada responsabilidade extracontratual por factos ilícitos.
Trata-se, assim, de uma relação material controvertida de natureza exclusivamente administrativa para a qual são competentes os Tribunais Administrativos e Fiscais e não os Tribunais Comuns (artº 212º, nº 3, do CRP, e artº 1º, nº 1, do ETAF, e ainda o artº 4º do ETAF e artº 2º, nº 2, al. f), do CPTA).
D) Também em relação à interveniente I… - Companhia de Seguros, S.A., fundamentando-se a sua intervenção na existência de um contrato de seguro válido e eficaz à data dos factos invocados pelo autor, contrato de seguro este de responsabilidade civil profissional do réu C… foi decidido que também a relação material controvertida, na perspetiva desta interveniente, tem natureza administrativa quanto a si, pelo que, também, a exceção de incompetência absoluta, em razão da matéria, deste Tribunal e verifica quanto à mesma.
E) Com base neste entendimento foi o Réu C…, notário a interveniente companhia de seguros I… - Companhia de Seguros, S.A., absolvidos da instância.
F) Salvo o devido respeito, que é muito, não concorda o recorrente com o entendimento sufragado pelo Tribunal a quo.
G) Na verdade, grande parte da doutrina defende que a função notarial caracteriza-se pela existência de uma natureza bifronte na função: por um lado, não resultam dúvidas na existência de uma delegação do Estado que lhe atribui uma função pública, melhor dizendo, função pública de uma atividade privada, e por outro lado, o notário é também um profissional do direito que, como refere Savatier, celebra um contrato com os seus clientes e é dessa relação jurídica que derivam os efeitos do incumprimento.
H) O pedido do requerente não é emergente de uma relação jurídica administrativa, nem o Recorrente tem intenção de dirimir um conflito de interesses públicos ou privados no âmbito de uma relação administrativa.
I) A intervenção notarial pode analisar-se em dois momentos distintos, a imperativa intervenção notarial - “ope legis” – inerente à formalização essencial ao negócio (ato de gestão privada) e a fé pública garantida por aquela intervenção (ato de gestão pública).
J) O facto de a função notarial conferir fé pública a determinados atos tal não implica de per si e forçosamente que qualquer desempenho notarial seja exclusivamente um ato de gestão pública.
K) Ora, a relação jurídica da qual emerge o pedido do Recorrente é um contrato de compra e venda que titula a transmissão de um direito real para satisfação de interesses de carácter exclusivamente privado – um ato de gestão privada.
L) Tanto mais que o Notário intervém apenas na necessária formalização de um ato de gestão privada, não no preenchimento dos requisitos substanciais do negócio de alienação.
M) A diferenciação entre atos de gestão pública e privada apenas numa eventual posição de paridade entre as partes é redutor e descaracteriza a evolução do próprio Direito uma vez que, nesse caso, qualquer conflito entre um órgão da Administração e um particular nunca poderia ser julgado no foro comum.
N) O Tribunal Judicial é o competente em razão da matéria para decidir e julgar o pedido indemnizatório formulado contra o Réu Notário.
O) Sendo que tal pedido (como os demais pedidos) não decorre do exercício de uma função pública.
P) Como ensina a melhor doutrina na matéria, para que houvesse responsabilidade civil extracontratual do Estado, necessário se tornava que o Notário agisse no âmbito de uma relação administrativa.
Q) No caso dos autos, e tal como vem alegado pelo Recorrente, a atuação do Notário insere-se no âmbito de uma relação jurídicoprivada, donde não se verificar uma situação que integre o disposto no artigo 4.º do ETAF.
R) A entender-se que o Tribunal Administrativo e Fiscal seria o Tribunal competente, estaríamos a tratar de forma diferentes situações iguais, só porque a profissão não tem uma função pública, conforme a que decorre da profissão de Notário.
S) Assim, e em função do disposto nos artigos 64.º do CPC, 4.º do ETAF e o 1.º do Código do Notariado, que se mostram violados, deve o douto despacho, na parte que ora se recorre, ser revogado.
TERMOS EM QUE DEVE SER JULGADO PROCEDENTE O PRESENTE RECURSO E CONSEQUENTEMENTE SER O DOUTO DESPACHO ORA RECORRIDO REVOGADO E SUBSTITUIDO POR UM OUTRO QUE CONSIDERE IMPROCEDENTE A EXCEÇÃO RELATIVA À INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA, COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS, FAZENDO-SE ASSIM INTEIRA E SÃ JUSTIÇA»
Contra-alegou o 1.º apelado, assim concluindo:
«1. O A. funda o pedido deduzido na P.I. na violação dos deveres do R. apelado como oficial público de prossecução do interesse público;
2. Não o suporta na violação do direito de outrem ou de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, nem no incumprimento de direitos subjectivos de crédito ou no incumprimento de obrigações em sentido técnico-jurídico, emergentes de contrato que não alega, não tipifica, nem caracteriza.
3. É o que resulta da P.I. e não se mostra alterado na réplica em que o A., na pronúncia sobre a excepção de incompetência material absoluta do Tribunal a quo, se limita a pugnar pela respectiva improcedência com base em meras conclusões e nenhuns factos que não acrescentou aos alegados na P.I.,
4. Mantendo-se assim intangível a causa de pedir e o pedido, tal como resulta da configuração que o A. deu à acção no articulado inicial.
5. Para fundamentar o pedido o A. invoca assim e só o incumprimento da função notarial do réu apelado na sua dimensão pública, ou seja, enquanto actor da função do Estado que é a de prosseguir o interesse público, de dar forma legal e conferir autenticidade aos actos jurídicos,
6. É o que resulta do alegado nos arts. 27º, 29º e 30º da P.I.,
7. Tudo a consubstanciar e integrar uma relação de índole exclusivamente administrativa,
8. Para cujo julgamento são competentes os tribunais administrativos e fiscais, nos termos do previsto nos arts 212º nº 3 da C.R.P. e art. 1º nº 1 do ETAF, cujo âmbito abrange as questões de responsabilidade civil extracontratual tal como a configurada pelo A.- os citados normativos e o art. 10º nº 7 do C.P.T.A. - (v. ac. S.T.J . de 12-02- 2007 in www.dgsi.pt )-,
9. Em face disso e do previsto no art. 64º do C.P.C. que dispõe que são da competência dos Tribunais Judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, é manifesta a incompetência absoluta em razão da matéria do Tribunal recorrido.
10. Donde, a decisão recorrida fez correcta interpretação dos factos e aplicação do Direito e não violou qualquer normativo, pelo que não merece qualquer censura.
TERMOS EM QUE negando V.Exªs provimento ao presente recurso farão, como sempre, inteira e sã Justiça».

3. Do mérito do recurso

O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigo 608.º, n.º 2, in fine, e 635.º, n.º 5, CPC), consubstancia-se em saber qual o tribunal competente para julgar uma acção de responsabilidade civil intentada contra um notário por alegada negligência no exercício das suas funções.

Constitui entendimento corrente da doutrina e da jurisprudência que a competência do tribunal, como pressuposto processual que é, determina-se pelos termos em o autor estruturou o pedido e a causa de pedir.

Nas palavras de Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pg. 90-1, acerca dos critérios determinativos da competência dos tribunais,

«São vários esses elementos também chamados índices de competência (CALAMANDREI). Constam das várias normas que provêem a tal respeito. Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um, deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção — seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal – ensina REDENTI (1), afere-se pelo “quid disputatum” (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor. E o que está certo para os elementos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes».

A nível jurisprudencial e a título meramente exemplificativo, refiram-se os acórdãos do S.T.J., de 2009.02.12, Paulo Sá; de 2008.12.15, Salvador da Costa; de 2008.03.13, Sebastião Póvoas; 2008.02.28, Fonseca Ramos; de 2005.04.07, Araújo Barros; de 2004.11.18, Salvador da Costa; de 2004.10.19, Neves Ribeiro; de 2004.05.13, Afonso de Melo; de 2004.02.12, Araújo Barros; de 2004.01.27, Fernandes Magalhães, em www.dgsi.pt.jstj, proc. 09A0078, 08B3962, 08B2778, 08A391, 07A4710, 06A2197, 05B2224, 04B3847, 04B3001, 04A1213, 04B128, e 03A4065, respectivamente, para citar apenas acórdãos do STJ.

A competência traduz-se na medida de jurisdição atribuída a cada tribunal, assentando a competência material na natureza do litígio.

Como tem sido sublinhado por doutrina e jurisprudência, a distribuição de competência pelos vários tribunais especializados assenta no pressuposto da maior idoneidade desse tribunal para a apreciação das matérias que lhe são atribuídas, por forma a que as causas sejam julgadas por magistrados com a preparação específica adequada (cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao Processo Civil, Coimbra Editora, vol. I, pg. 107). Trata-se, pois, da habilitação funcional do tribunal relativamente a certa matéria, nas palavras de Neves Ribeiro, acórdão do STJ, de 2004.03.19, www.dgsi.pt.jstj, proc. 04B3001.

O artigo 211.º, n.º 1, CRP, estabelece que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
Preceito idêntico consta do artigo 80.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário), nos termos do qual compete aos tribunais de comarca preparar e julgar os processos relativos a causas não abrangidas pela competência de outros tribunais.
E o artigo 64.º CPC não dispõe coisa diversa: são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Significa isto que os tribunais judiciais têm uma competência residual.
Assim, para determinar qual o tribunal competente, importa apurar, em primeiro lugar, se a competência para julgar esta acção cabe aos tribunais administrativos.
Nos termos do n.º 3 do artigo 212.º CRP, compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Na linha deste preceito constitucional, dispõe o artigo 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, os tribunais da ordem administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
É o seguinte o teor do artigo 4.º do ETAF:
1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração;
c) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;
e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;
l) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal.
2 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de:
a) Actos praticados no exercício da função política e legislativa;
b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;
c) Actos relativos ao inquérito e à instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas decisões.
3 - Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso;
b) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;
c) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo seu presidente;
d) A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas.
O cerne da competência dos tribunais administrativos e fiscais é, pois, a existência de uma relação jurídica administrativa e fiscal.
A este propósito, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa, de 2009.03.05, Ondina Carmo Alves, www.dgsi.pt.jtrl, proc. 11181/08, onde se lê:
«Segundo Freitas de Amaral, Direito Administrativo, III vol., 423 e segts., a relação jurídica administrativa é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração.
Este tipo de relação jurídica, pressupõe assim a intervenção da Administração Pública investida do seu poder de autoridade “jus imperium”, impondo aos particulares restrições que não têm na actividade privada. É para dirimir os conflitos de interesses surgidos no âmbito destas relações e para garantir o interesse público que se atribui competência específica aos tribunais administrativos.
Para Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Dicionário de Contencioso Administrativo, 2007, 117-118, por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas.
E, para J. C. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa”, Lições, 79, apesar dos vários sentidos que pode ser tomado o conceito de relação jurídica administrativa, define a mesma como sendo “aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.
Pela análise das diversas alíneas do artigo 4º do ETAF se conclui que o legislador pretendeu consagrar o princípio de que a jurisdição administrativa está vocacionada para o conhecimento de todos os litígios emergentes de relações administrativas.
Tal significa que o foro administrativo apenas é competente quando estão em causa litígios emergentes de relações jurídico-administrativas.
Como esclarecem Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., loc. cit. a aludida qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras:
(1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração);
(2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal.
Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil».
Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal».
Revertendo ao caso dos autos, compulsado o artigo 4.º ETAF, verifica-se que a situação trazida pelo apelante não é susceptível de se enquadrar em qualquer das alíneas. Aliás, a sentença recorrida invoca o artigoº 4.º ETAF mas não concretiza nenhuma das alíneas.
Ora, o notário é um profissional liberal, embora exerça, por delegação do Estado, a fé pública notarial. Não é titular de órgão público, não é funcionário, agente nem servidor público.
O artigo 1.º do Estatuto do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 26/2004, de 4 de Fevereiro, define a natureza do notário e da actividade notarial.
É o seguinte o teor deste artigo:
1 - O notário é o jurista a cujos documentos escritos, elaborados no exercício da sua função, é conferida fé pública.
2 - O notário é, simultaneamente, um oficial público que confere autenticidade aos documentos e assegura o seu arquivamento e um profissional liberal que actua de forma independente, imparcial e por livre escolha dos interessados.
3 - A natureza pública e privada da função notarial é incindível.
A relação que se estabeleceu entre o notário, profissional liberal, e o apelante, particular que recorreu aos seus serviços para celebrar uma escritura pública, não é seguramente uma relação de direito administrativo, mas sim uma relação de direito privado, para cuja apreciação são competentes os tribunais judiciais, por não ser enquadrável em nenhuma das alíneas do artigo 4,º ETAF, que delimitam a competência dos tribunais administrativos.
A circunstância de o notário ser também um oficial público que confere autenticidade aos documentos não altera a natureza da relação estabelecida entre ele e os particulares que recorrem aos seus serviços.
Com efeito, outras entidades, como advogados, solicitadores, câmaras de comércio e indústria (cfr. Decreto-Lei n.º 237/2001, de 30 de Agosto, e Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março) também têm competência para a prática de certos actos que antes estavam reservados aos notários, sem que seja cometida aos tribunais administrativos a resolução de litígios que surjam no exercício dessa actividade
Conclui-se, portanto, que o tribunal judicial é o competente.

4. Decisão
Termos em que, julgando a apelação procedente, revoga-se a decisão recorrida, julgando-se competente o tribunal judicial para apreciar o litígio entre o apelante e o apelado.
Custas pelo apelado.

Porto, 8 de Julho de 2015
Márcia Portela
Francisco Matos
Maria de Jesus Pereira
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Sumário
1. Constitui entendimento corrente da doutrina e da jurisprudência que a competência do tribunal, como pressuposto processual que é, determina-se pelos termos em o autor estruturou o pedido e a causa de pedir.
2. A competência traduz-se na medida de jurisdição atribuída a cada tribunal, assentando a competência material na natureza do litígio.
3. Os tribunais da ordem administrativa tem competência para administrar nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.
4. A relação jurídica administrativa é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração.
5. Os tribunais judiciais têm uma competência residual, pois são da sua competência as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
6. A relação que se estabeleceu entre o notário, profissional liberal, e o apelante, particular que recorreu aos seus serviços para celebrar uma escritura pública, não é seguramente uma relação de direito administrativo, mas sim uma relação de direito privado, para cuja apreciação são competentes os tribunais judiciais, por não ser enquadrável em nenhuma das alíneas do artigo 4,º ETAF, que delimitam a competência dos tribunais administrativos.

Márcia Portela