Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
78601/18.6YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: EMPREITADA
COMPRA E VENDA
DEFEITOS
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
Nº do Documento: RP2020070278601/18.6YIPRT.P1
Data do Acordão: 07/02/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Provando-se apenas que a autora forneceu à ré artigos por si produzidos para comercializar, estamos perante um contrato de compra e venda.
II - Tendo o adquirente procedido à denúncia de defeitos em parte dos artigos adquiridos e procedido, por acordo com o fornecedor, à sua restituição para substituição, pode invocar a excepção de não cumprimento do contrato em relação ao preço dos artigos que apresentavam defeitos, foram restituídos ao fornecedor e este não substituiu por novos artigos sem defeito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2020:78601.18.6YIPRT.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
B… - Sociedade Unipessoal, Lda., contribuinte fiscal n.º ………, com sede em …, Santa Maria da Feira, apresentou contra C…, S.A., contribuinte fiscal n.º ………, com sede em Albergaria-A-Velha, requerimento de injunção reclamando o pagamento de 9.445,79€ de capital, 392,00€ de juros de mora vencidos e juros vincendos.
Alegou para o efeito que no exercício da sua actividade de tipografia, impressão e grifagem forneceu à requerida a pedido desta os bens descritos nas facturas n.º ….., no valor de 6.949,50€, emitida em 08.09.2017 e vencida em 07.11.2017, n.º ….., no valor de 2.471,69€, emitida em 17.10.2017 e vencida em 16.12.2017, e n.º ….., no valor de 24,60€, emitida em 02.11.2017 e vencida em 24,60€, os quais foram entregues à requerida que os recebeu sem fazer qualquer reparo ou reclamação, não tendo, todavia, efectuado o pagamento do respectivo preço.
A requerida ofereceu oposição, alegando que entre 2015 e finais de 2017 a requerente lhe forneceu etiquetas autocolantes para identificação de andaimes para a construção civil fabricados e comercializados pela requerida, os quais têm de conter uma informação precisa, um grau de resistência, coloração e aderência elevados e acima do normal, razão porque o seu preço é muito mais elevado do que o das etiquetas correntes. A partir de Outubro do ano de 2017, a requerida passou a receber reclamações de clientes que informavam que as etiquetas ficavam descoloradas, após exposição aos raios ultravioletas e se deterioravam rapidamente. A requerida transmitiu essas reclamações à requerente, e devolveu-lhe 400 exemplares, para substituição. A requerente reconheceu as deficiências e procedeu à substituição de algumas etiquetas, mas não de todas, nada mais tendo feito pelo que a requerida não pode ser obrigada a pagar um material que não serviu o fim para que se destinava e que lhe causou prejuízos.
A requerida deduziu ainda reconvenção que não foi admitida.
Em virtude da dedução da oposição o requerimento de injunção converteu-se em acção judicial. Após tramitação realizou-se julgamento e foi proferida sentença, julgando a acção improcedente, absolvendo a ré do pedido.
Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. O tribunal recorrido entendeu que o contrato celebrado entre as partes revestia a natureza de contrato de empreitada.
2. O contrato de empreitada anda associado à prestação de um facto: a realização da obra.
3. Já no contrato de compra e venda, comercial ou civil, o que está em causa é a transferência da propriedade de uma coisa ou de outro direito, mediante um preço.
4. Tomando por referência o critério de distinção doutamente explanado pelo Tribunal da Relação do Porto, no acórdão recente de 09.05.2019, proferido no âmbito do proc. n.º 9188/18.3YIPRT, diremos que: «Não sendo possível apontar critérios gerais taxativos, deverá considerar-se como melhor, mas não exaustivo, o critério segundo o qual há empreitada, se o fornecimento de materiais é simples meio para a feitura da obra e se o trabalho constitui o fim do contrato. Pelo contrário, há compra e venda se o trabalho é simplesmente um meio para obter a transmissão da matéria (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, 3ª edição revista e comentada, Vol. II pág.789). Como refere Romano Martinez, Contrato de Empreitada, Almedina, 1994, pág 34 e seguintes, segundo a doutrina italiana, «o critério está na predominância do factor trabalho (empreitada) ou material (compra e venda). «O acento tónico da distinção, num plano objectivo, entre as duas espécies contratuais é sintetizado na doutrina e jurisprudência comparada pelos seguintes critérios objectivos: -Prevalência da obrigação de darem ou da obrigação de facere, tratando-se naquele caso de compra e venda e neste de empreitada; - Na empreitada, ao invés da venda, a prestação dos materiais constitui um simples meio para a produção da obra, e o trabalho o escopo essencial do negócio; - Além disso, na empreitada o bem produzido representa um quid novo relativamente à produção originária do empreiteiro, implicando a introdução nesta de modificações substanciais concernentes à forma, à medida e à qualidade do objecto fornecido.»
5. Face aos factos constantes da fundamentação da sentença recorrida (pontos 1, 2, 3, 4, 5 e 8) e ao aludido critério de distinção, a recorrente entende que, in casu, o contrato celebrado entre as partes é um contrato de compra e venda e que essa compra e venda assume natureza comercial.
6. Com efeito, trata-se de um contrato celebrado entre duas sociedades comerciais (cfr. art. 2º do Código Comercial) e um contrato que teve por objecto bens móveis trabalhados, isto é, transformados pela empresa compradora, e destinados a revenda (cf. art. 463º do Código Comercial).
7. Seguindo, ainda, a fundamentação de facto da sentença recorrida, sabemos que na presente acção está em causa saber se essa compra e venda celebrada entre as partes teve por objecto artigos defeituosos e se face a essa situação era possível á ré não liquidar o respectivo preço, sendo certo que, esta não invocou a excepção de não cumprimento.
8. A compra e venda comercial de coisas defeituosas está sujeita às normas do Código Comercial, sendo que o recurso às normas do direito civil só é permitido para preencher lacunas do direito comercial, relativamente a questões que não possam ser resolvidas nem pelo texto do Código Comercial nem pelo seu espírito, nem pelos casos análogos nela prevenidos (art. 3º do Código Comercial).
9. O art. 471º do Código Comercial prevê um regime de denúncia de defeitos mais restritivo do que aquele que está previsto no CC. Nos termos desta disposição legal, «as condições referidas nos dois artigos antecedentes haver-se-ão por verificadas e os contratos como perfeitos, se o comprador examinar as cousas compradas no acto de entrega e não reclamar contra a sua qualidade, ou não as examinando, não reclamar dentro de oito dias».
10. Conforme refere o Prof. Ferrer Correia, in Reforma da Legislação Comercial Portuguesa: «Este regime, diverso do estabelecido na lei civil para as vendas do mesmo tipo (CC, art. 916) tem na base a ideia de que a rescisão de um contrato pode causar ao comércio entorpecimento ou danos, no sentido de que envolva insegurança para os direitos, perturba a rapidez das actividades e, ao originar a ineficácia de mera operação já realizada, transforma ou impede o encadeamento económico das operações sucessivas.»
11. O interesse geral da segurança das transacções comerciais exige que as consequências da perturbação do contrato de compra e venda por alegado incumprimento defeituoso, em particular entre comerciantes, sejam conhecidas e solucionadas com a maior brevidade possível, não sendo admissível que o vendedor tenha de prestar contas pela coisa vendida para além de certo prazo.
12. Desta forma, é entendimento unânime na jurisprudência que, na compra e venda comercial, incumbe ao comprador o ónus de examinar a mercadoria e denunciar ao vendedor qualquer defeito no prazo de 8 dias a contar da sua entrega ou de provar o surgimento tardio do mesmo.
13. Ora, in casu, face à factualidade provada, a ré só devolveu à autora 400 peças num universo de 27.500, que lhe foram fornecidas em Setembro, Outubro e Novembro de 2017 (consoante a descriminação feita nas facturas juntas aos autos e referidas no ponto 4) da fundamentação de facto da sentença).
14. Nada mais consta provado ou sequer foi alegado pela recorrida que permita saber se efectivamente ocorreram defeitos noutras peças, em que termos é que ocorreram esses defeitos, em que data, e se a sua denúncia foi efectuada no prazo prescrito na lei.
15. Relativamente às aludidas 400 peças, a recorrente aceitou verificar os defeitos reclamados e até procedeu à sua substituição (cfr. pontos 13, 14, 15 e 16 da sentença recorrida).
16. Ora, tal qual a ré devolveu as aludidas 400 peças poderia e deveria ter devolvido quaisquer outras que tivessem sido fornecidas pela autora e se encontrassem com os defeitos de descoloração alegados quanto àquelas.
17. Certo é que a ré não o fez e a recorrente vê-se, agora, privada do preço de 27.500 etiquetas que produziu e forneceu, quando afinal só resultou provado o seu cumprimento defeituoso relativamente a 400 dessas peças, incumprimento este que aquela, inclusive, sanou, já que aceitou verificar e substituir as etiquetas reclamadas (cfr. pontos 12, 13, 14 16 da fundamentação de facto da sentença recorrida).
18. Acresce que, embora o Tribunal recorrido tenha fundamentado a sua posição na excepção de não cumprimento constituída a favor da ré, certo é que esta não alegou nem invocou essa faculdade.
19. Aliás, nem o poderia fazer, porque a testemunha da ré D…, engenheiro industrial e administrador da área de operações da ré, admitiu em Juízo, de forma clara e expressa, que todas as etiquetas que tinham sido fornecidas pela recorrida tinham sido utilizadas e revendidas nos andaimes.
20. Ora, é sabido que a excepção de não cumprimento é uma excepção dilatória e que apenas obsta ao pagamento do preço temporariamente.
21. Com efeito, o direito à suspensão da exigibilidade do preço apenas se manterá enquanto o vendedor se recusar a cumprir a sua prestação.
22. In casu, a recorrida não invocou essa excepção porque já não tinha na sua posse as peças que alega estarem defeituosas.
23. Aliás, é de todo adverso às regras da experiência comum reclamar um defeito, o qual se alega incidir sobre uma característica fundamental do bem, e seguidamente utilizar no processo de fabrico esse mesmo bem, como se afinal tudo se encontrasse dentro da normalidade pretendida (ora, é esta a postura assumida pela ré/recorrida no presente processo).
24. Com todo o devido respeito, que é muito, a recorrente considera que a sentença recorrida não está de acordo com os princípios e regras de direito, já que viola o disposto nos artigos 2º, 463º e 471º do Código Comercial e no artigo 428º do Código Civil.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida qual a consequência jurídica quanto aos direitos do vendedor dos defeitos que parte das coisas vendidas pela autora à ré apresentaram.
III. Os factos:
Na decisão recorrida foram julgados provados os seguintes factos:
1) A requerente dedica-se à actividade de tipografia, impressão e grifagem.
2) A requerida dedica-se ao comércio de metais e andaimes.
3) No exercício das respectivas actividades comerciais, a requerente forneceu à requerida, a pedido desta, vários artigos do seu comércio.
4) Esses fornecimentos encontram-se titulados pelas seguintes facturas:
- Factura n.º ….., do valor de 6.949,50€, emitida em 08.09.2017 e vencida em 07.11.2017;
- Factura n.º ….., do valor de 2.471,69€, emitida em 17.10.2017 e vencida em 16.12.2017 e
- Factura n.º ….., do valor de 24,60€, emitida em 02.11.2017 e vencida em €24,60 (sic).
5) Os artigos descriminados nas supra aludidas facturas, bem como estes documentos, foram entregues à requerida que os recebeu.
6) O valor total dos aludidos fornecimentos ascende a 9.445,79€.
7) A requerida não pagou as aludidas facturas nem na data do seu vencimento nem posteriormente.
8) A requerente, a partir do ano de 2015 e até finais do ano de 2017, forneceu produtos do seu comércio – etiquetas autocolantes – para a requerida, etiquetas que esta utiliza na identificação dos andaimes para a construção civil, equipamentos que a ora requerida fabrica e comercializa.
9) Essa etiquetas destinam-se a identificar os andaimes fabricados e/ou alugados pela requerida, distinguindo-os de outros, fabricados e comercializados por outras entidades, nomeadamente quanto a algumas características desses equipamentos.
10) Essas etiquetas têm de conter uma informação precisa, um grau de resistência, coloração e de aderência elevados e acima do normal, o que é do conhecimento da requerida, sendo o respectivo preço muito mais elevado do que o das etiquetas correntes.
11) Essas etiquetas são coladas nas peças metálicas – andaimes, sobretudo nos prumos – que estão ao ar livre, sujeitas a regimes temporais severos, raios ultra violetas, calor, humidade, fricção pelo uso e outros.
12) A partir do mês de Outubro do ano de 2017, a requerida passou a receber várias reclamações de clientes, que informavam que as etiquetas ficavam descoloradas, após exposição aos raios ultravioletas e que se deterioravam rapidamente.
13) A requerida transmitiu essas reclamações à requerente e devolveu-lhe 400 exemplares para verificação dos defeitos – cf. doc de fls. 18 dos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido.
14) A requerente reconheceu as deficiências - perda de cor após exposição aos raios UV - e procedeu à substituição de algumas etiquetas, mas não de todas.
15) Em 30 de Novembro de 2017 realizou-se uma reunião entre os representantes da requerente e da requerida, para analisar a situação das etiquetas, onde foi reconhecido mais uma vez pela ora requerente que as etiquetas não tinham as características exigidas, conforme se descreve nos artigos anteriores.
16) A requerida transmitiu estas reclamações à requerente, que, embora tenha tomado consciência delas, apenas procedeu à substituição de algumas das etiquetas, nada mais tendo feito.
IV. O mérito do recurso:
Na sentença recorrida qualificou-se juridicamente a relação contratual estabelecida entre a autora e a ré como um contrato de empreitada. A recorrente insurge-se contra essa qualificação e defende que se trata sim de um contrato de compra e venda.
Tanto quanto resulta da matéria de facto as partes celebraram contratos mediante os quais a autora transferiu para a ré a propriedade de mercadoria por si fabricada e comercializada e a ré adquiriu esse direito sobre a mercadoria para a afectar ao seu comércio. Nada mais se tendo provado para além disto, não se vislumbra que seja possível qualificar a relação jurídica como um contrato de empreitada.
Na definição do artigo 1207º do Código Civil, «empreitada é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço», enquanto na definição do artigo 874.º do mesmo diploma «compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço».
Em face destas definições entende-se que enquanto o empreiteiro está adstrito a uma prestação de facto (de facere: a execução de uma obra), sobre o vendedor impende uma prestação de coisa (de dare: a entrega da coisa vendida); enquanto o empreiteiro realiza uma obra segundo as directrizes e sob a fiscalização de quem lha encomenda, entregando depois ao dono da obra o produto desse seu trabalho de execução da obra, na compra e venda a iniciativa e o plano da obra cabem a quem constrói ou fabrica a coisa, ainda que tenha presente os desejos do comprador e as características e qualidades que este pretende que a coisa tenha.
A dissemelhança entre a empreitada e a compra e venda radica essencialmente nos seguintes elementos diferenciadores:
i) O elemento típico nuclear da empreitada, no plano objectivo, consiste na realização de uma prestação de facto; na compra e venda o objecto essencial reside na transferência da propriedade de uma coisa ou de outro direito.
ii) Na empreitada a prestação dos materiais constitui um simples meio para a produção da obra, e o trabalho constitui o escopo essencial do negócio; ao invés, na compra e venda o fornecimento dos materiais constitui a finalidade típica do contrato.
iii) Na empreitada o bem produzido representa um quid novi relativamente à produção ordinária do empreiteiro, implicando a introdução de modificações substanciais relativas à forma, à medida, à qualidade do objecto fornecido; na compra e venda isso não sucede.
Naturalmente, o que importa é a vontade dos contraentes, aquilo que estes ao estabelecer a sua relação comercial efectivamente pretenderam quanto ao respectivo conteúdo, sendo certo que as partes «… não terão deixado de, em qualquer caso, de configurar na sua mente um dos dois contratos em causa e o seu regime» – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. II, pág. 546 –.
No caso, como vimos, não existe qualquer facto provado que explicite a vontade das partes para além do fornecimento dos bens a troco de um preço e/ou que evidencie se e em que medida a ré exerceu a orientação e fiscalização do processo de produção dos produtos que adquiriu, pelo que é forçoso concluir que nos encontramos perante um puro contrato de compra e venda, sendo certo que tal conclusão em nada é dificultada por ter sido a vendedora a produzir os bens que depois comercializou ou por se tratar de bens para uma finalidade específica que podem ter sido produzidos directamente para venda a este cliente determinado na sequência de encomenda deste.
Defende a recorrente e com razão que se trata inclusivamente de uma compra e venda comercial. Na verdade, trata-se de uma compra e venda celebrada entre dois comerciantes (artigo 13.º do Código Comercial) e tendo por objecto coisas que o comprador destina a revender não em bruto mas como parte integrante de outros bens que ele próprio fabrica com utilização das coisas compradas à autora, ou seja, de uma compra e venda prevista no ponto 1.º do artigo 463.º do Código Comercial.
Como se assinalou, no contrato de compra e venda o vendedor constituiu-se na obrigação de entregar a coisa vendida. Não se trata, contudo, de uma obrigação simples, cujo cumprimento se baste com a entrega de uma coisa qualquer. O vendedor está obrigado, juridicamente, a entregar ao comprador uma coisa isenta de defeitos, em conformidade com o contratado, já que só dessa forma opera o cumprimento exacto e pontual da prestação, satisfazendo, como é sua obrigação, o direito do comprador.
Esse dever de entrega de coisa sem defeitos, cumpre-se quando a coisa entregue não sofre de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada e tem as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim. É o que resulta do artigo 913.º do Código Civil que se refere às coisas defeituosas, às coisas com defeitos, e de entre estas apenas às coisas com defeitos essenciais. Na previsão do preceito compreendem-se mais concretamente os seguintes vícios: a) vício que desvalorize a coisa; b) vício que impeça a realização do fim a que a coisa é destinada; c) falta das qualidades asseguradas pelo vendedor; d) falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina.
Conforme escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. II, 3ª edição revista e actualizada, pág. 211, a propósito do artigo 913.º do Código Civil, «não se tratando de um dos vícios compreendidos na enumeração deste preceito, a anulação não é possível, nem serão aplicáveis as disposições desta secção ou da secção anterior, que concedem outros direitos ao comprador; tais vícios serão irrelevantes».
Nos termos do nº 2 do preceito, na dúvida quanto ao fim a que a coisa se destina, deve recorrer-se ao critério da normalidade: o fim da coisa é o fim a que normalmente são destinadas as coisas da mesma categoria. Tal como deve considerar-se que as qualidades asseguradas pelo vendedor são apenas aquelas cuja existência ele garantiu, por cuja existência ele se responsabilizou perante o comprador independentemente das qualidades que sejam ou possam ser usuais ou normalmente supostas – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, loc. cit., pág. 214 -.
Este preceito não contém uma definição de coisas defeituosas, contém apenas a delimitação das situações em que os defeitos apresentados pela coisa são juridicamente relevantes, em que a existência do defeito se torna intolerável para o sistema jurídico legitimando a reacção do comprador.
Na busca da definição de defeito ou de coisa defeituosa, não custa recorrer ao regime do contrato de empreitada já que também o empreiteiro se obriga, pelo contrato de empreitada, a realizar uma obra em conformidade com o convencionado, e sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato – artigo 1208º do Código Civil –.
Diz P. Romano Martinez, in Contrato de Empreitada, Almedina, pág. 189, que na empreitada o cumprimento «ter-se-á por defeituoso quando a obra tenha sido realizada com deformidades ou com vícios. As deformidades são as discordâncias relativamente ao plano convencionado (p. ex., encomendou-se uma mesa com três metros de comprimento e foi realizada uma mesa com dois metros e meio de comprimento). Os vícios são as imperfeições que excluem ou reduzem o valor da obra ou a sua aptidão para o uso ordinário ou o previsto no contrato (art. 1208.º), designadamente por violação de regras especiais de segurança. Ao conjunto das deformidades e dos vícios chamar-se-á, tal como faz o Código Civil, defeitos».
Defeitos em sentido técnico são aquelas manifestações ou exteriorizações na coisa que resultam de violações das boas práticas e técnicas de execução da mesma e que consistem na exteriorização na coisa de algo que lá não deveria estar ou da falta de algo que lá deveria estar, num caso ou no outro em prejuízo da funcionalidade, da durabilidade e da qualidade da coisa contratada.
Ao adquirente da coisa cabe fazer a prova da existência de defeitos na coisa e a prova de que tais defeitos assumem características ou um grau de gravidade tais que os integram na previsão do artigo 913º do Código Civil.
Se não for possível, de acordo com um critério puramente objectivo, extrair da própria configuração da anomalia ou imperfeição a conclusão de que a mesma é um defeito, o adquirente terá de alegar e demonstrar os factos necessários para suportar essa conclusão. A presunção de culpa que onera o contraente em sede de responsabilidade contratual é apenas uma presunção de culpa, ou seja, da imputação subjectiva ao autor do facto do resultado da sua actuação, não é, como por vezes se confunde nesta sede, uma presunção do facto que constitui o ilícito contratual.
Perante a existência de defeitos da coisa vendida, o comprador tem desde logo o direito de exigir a sua reparação ou substituição, no caso de se tratar de um bem fungível (artigo 914.º do Código Civil). O vendedor pode escusar-se do dever de reparação ou substituição da coisa demonstrando, nos termos da segunda parte do artigo 914.º, que desconhecia sem culpa a falta de qualidade de que a coisa padece.
Para o efeito, o artigo 916.º do Código Civil exige ao comprador que proceda à denúncia do vício ou falta de qualidade da coisa.
No caso em apreço não foi suscitada nenhuma questão nem quanto à eventual falta de denúncia nem quanto à eventual caducidade dos direitos decorrentes dos defeitos da coisa. Da mesma forma, em sede de resposta à defesa da ré a autora não invocou que desconhecesse sem culpa a falta de qualidade de parte das etiquetas vendidas.
Refira-se que muito embora estejamos perante uma compra e venda comercial não é possível concluir que os direitos da ré estejam caducados por aplicação do disposto no artigo 471.º do Código Comercial.
Em primeiro lugar porque o campo de aplicação deste preceito legal não são todas as compras e vendas comerciais mas apenas as vendas sobre amostra ou por designação de padrão e as vendas de coisas que não estejam à vista nem possam designar-se por um padrão. O artigo 471.º é claro ao consagrar que a sua estatuição se aplica apenas aos casos previstos «nos dois artigos antecedentes», isto é, aos casos dos artigos 469.º e 470.º. No caso não existem factos provados que nos permitam aferir se as compras e vendas celebradas pelas partes se reconduzem a alguma daquelas figuras.
Em segundo lugar, porque a interpretação do artigo 471.º do Código Comercial dominante na doutrina como na jurisprudência é a de que de que o prazo de oito dias nele fixado se deve contar a partir não do momento da entrega da coisa mas sim do momento em que o comprador tomou conhecimento dos defeitos da coisa ou do momento em que podia ter tomado conhecimento deles se usasse da normal e devida diligência (por todos Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 104º, pág. 254, Romano Martinez, in Cumprimento Defeituoso – Em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, 2001, págs. 375 e 376, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-11-2006, in Colectânea de Jurisprudência-AcSTJ, ano XIV, tomo 3, pág. 132, Acórdão da Relação do Porto de 15-01-2008, in Colectânea de Jurisprudência, ano XXXIII, tomo 1, pág. 167, Acórdão da Relação de Coimbra de 27-05-1993, Colectânea de Jurisprudência, ano XVIII, tomo 3, pág. 115, Acórdão da Relação de Lisboa de 06-12-1988, in Colectânea de Jurisprudência, ano XIII, tomo 5, pág. 114).
Ora resultando dos autos que os defeitos das coisas compradas consistiam na perda de cor após exposição aos raios ultravioleta, parece claro que tais defeitos só podiam manifestar-se depois de os bens terem sido entregues à ré, por esta aplicados nos andaimes que fabrica e estes por fim entregues aos clientes e colocados sob a acção dos agentes atmosféricos de modo a que a descoloração se pudesse manifestar por acção da qualidade que a determina.
A acção foi julgada improcedente com o argumento de que a ré excepcionou o não cumprimento do contrato.
A ré alegou que recebeu etiquetas autocolantes que vieram a apresentar defeitos que impediam a sua utilização para o fim a que se destinavam, que na sequência disso devolveu à autora as etiquetas «para substituição» (artigo 35.º da oposição) e que a requerente reconheceu as deficiências e procedeu à substituição apenas de algumas das coisas vendidas, não devendo a requerida a pagar o material defeituoso.
Por outras palavras, a ré, independentemente do seu eventual direito de indemnização pelos danos que a entrega de coisas defeituosas lhe causou, procedeu à denúncia dos defeitos que as coisas vieram a apresentar, requereu à vendedora a sua substituição e como essa substituição não foi feita em relação a todas as coisas com defeitos, pretende não pagar o preço das coisas defeituosas não substituídas.
Sendo assim, cremos dever ser entendido que ao invocar que não deve «ser obrigada a pagar um material que não serviu o fim para que se destinava e que lhe causou prejuízos» (artigo 37º da oposição) a ré invocou de facto a excepção de não cumprimento do contrato mas apenas no tocante ao preço das etiquetas que devolveu por terem defeitos a fim de serem substituídas. Não invocou essa excepção, nem poderia, em relação ao preço das etiquetas cuja substituição não pediu à autora já que se em relação a essas não denunciou a existência de defeitos também não lhe era consentido escusar-se ao cumprimento da correspondente contraprestação.
Assistindo à ré, nos termos do artigo 913.º e 914.º do Código Civil, o direito de exigir a substituição das etiquetas com defeitos por novas etiquetas sem defeitos, a ré, continuando privada das etiquetas devolvidas para substituição, pode escusar-se de efectuar o pagamento do respectivo preço (artigo 428.º e seguintes). O preço das etiquetas restantes terá obviamente de ser pago nos termos das respectivas facturas uma vez que relativamente a elas não só não foi feita a denúncia de defeitos, como não foi exigida a sua reparação.
Por conseguinte, a acção devia ter sido julgada parcialmente procedente, condenando-se a ré a pagar à autora o valor das facturas apresentadas, acrescido de juros de mora desde a data de vencimento de cada uma delas, mas com abatimento do preço das etiquetas que foram devolvidas à autora e não foram por esta substituídas.
O valor resultante dessa operação não está apurado nos autos uma vez que está demonstrado que foram devolvidas 400 etiquetas mas não se sabe quais são, a que factura correspondem, qual o respectivo preço unitário, o que terá de ser determinado em sede de liquidação. Acresce que ficou demonstrado que a autora procedeu à substituição de algumas etiquetas, pelo que em sede de liquidação terá igualmente de se determinar quais foram substituídas e qual o respectivo preço, de modo a calcular o valor em dívida à autora.
Procede assim em parte o recurso.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, revogam a sentença recorrida, substituindo-a por outra condenando a ré a pagar à autora o valor correspondente ao preço das etiquetas descritas nas facturas identificadas no requerimento inicial, acrescido de juros de mora contados à taxa legal desde a data de vencimento da factura correspondente, abatido do preço das etiquetas que a ré devolveu à autora para substituição e que esta não substituiu, a determinar em sede de liquidação.
Custas da acção e do recurso por ambas as partes, na proporção do respectivo decaimento, fixando-se provisoriamente essa proporção em 25% a cargo da autora e 75% a cargo da ré, proporção que será corrigida em conformidade com o que vier a resultar da liquidação.
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Porto, 2 de Julho de 2020.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 556)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva
[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas]