Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
301/14.0TBVCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
PAPEL DO JUIZ
ADMISSÃO
MEIOS DE PROVA
CONTROLO
Nº do Documento: RP20210909301/14.0TBVCD.P1
Data do Acordão: 09/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Uma das caraterísticas da jurisdição voluntária é a possibilidade que o tribunal tem de investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar as diligências e recolher as informações, só sendo admitidas as provas que o juiz considere convenientes.
II - No processo de Acompanhamento de Maior, com algumas caraterísticas dos processos de jurisdição voluntária, o juiz tem um papel decisivo na aceitação e rejeição de meios de prova, só devendo admitir as provas que considere convenientes, necessárias à tutela do interesse do Beneficiário, implicando a adoção de mecanismos de agilização do processo.
III - O controlo da (in)conveniência na produção de determinadas provas no Processo de Acompanhamento de Maior, requeridas pelos interessados, não se faz pela via da invocação de nulidade processual por omissão de atos, pois que não está em causa a omissão de uma formalidade processual ou um devido nom rito do processo, mas uma avaliação, em substância, da vantagem ou desnecessidade de, entre outras provas, as produzir no âmbito da realização da instrução do processo.
IV - Caso a casa, por ser variável o fundamento do acompanhamento, na ponderação da influência da vontade do Beneficiário na escolha do seu Acompanhante deve considerar-se o tipo de incapacidade e o grau de discernimento do Beneficiário, designadamente para entender o ato e o interesse em causa.
V - Numa situação em que o Beneficiário sofre de uma incapacidade definitiva da ordem dos 95%, por oligofrenia profunda, dificilmente se compreende o que diz, mas refere, relativamente às duas pessoas perfiladas para o exercício do cargo de Acompanhante, suas irmãs, que uma delas é sua amiga, que a outra não é, sendo que é aquela que, de facto, lhe tem prestado os cuidados de que necessita desde o ano de 2013 --- ainda que com o pagamento de retribuição do seu trabalho pela outra --- com a confiança do pai, mantida até à sua morte, em 2020, deve ser nomeada Acompanhante esta mesma irmã, assim se preservando a situação de continuidade e do seu bem-estar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 301/14.0TBVCD.P1 – 3ª Secção (apelação)
Comarca do Porto - Juízo Local Cível de Vila do Conde- J1

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I.
Na sequência do óbito do tutor, B…, ocorrido em agosto de 2020, nomeado ao seu filho interdito C… por sentença de 3.3.2015, veio uma irmã do Requerido, D…, por requerimento de 5.9.2020, instaurar incidente de nomeação de acompanhante ao Beneficiário que, por determinação judicial, foi incorporado no processo principal.
Naquele requerimento, defendeu que deve ser nomeada acompanhante do seu irmão, nada opondo a que as suas irmãs E… e F… mantenham os seus cargos no Conselho de Família.
Pronunciaram-se aquelas vogais do Conselho de Família no sentido de que o cargo do falecido deve ser ocupado pela Requerente F…, por vir exercendo, de facto, esse cargo, desde há cerca de 7 anos.
Foi junta ao processo prova constituída, designadamente documental, e foram ouvidas as interessadas F…, E… e D…, tem sido ouvido também o Beneficiário.
O Ministério Público promoveu a tomada de novas declarações ao C… “para que explicado ao mesmo de forma que o mesmo entenda se indague junto do mesmo se aceitaria a nomeação da sua irmã D… como acompanhante, como a pessoa que, doravante, assegurará os cuidados de que o mesmo, a nível pessoal e patrimonial, necessitar”.
Promoveu ainda “que se apure dos processos e inquéritos que correram termos entre os pais do beneficiário e as irmãs do mesmo (e designadamente, o processo número 814/10.3TBVCD do extinto 3.º Juízo Cível), a fim de, o MP, compulsar os mesmos (tudo no sentido de apurar da existência de outros elementos relevantes à decisão acerca da pessoa que deve exercer o cargo de acompanhamento do beneficiário)”.
Não obstante, o tribunal, considerando dispor já de elementos de prova suficientes, proferiu decisão com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Nestes termos, aplica-se ao beneficiário C… as medidas de acompanhamento de:
- Representação geral, e
- Administração total dos bens.
E nomeia-se para Acompanhante do beneficiário C…, a sua irmã F….
Para o conselho de família nomeia-se, como vogal, a irmã do beneficiário F….
Sem custas.»
*
Com a sentença, revelaram inconformismo a Requerente D… e o Ministério Público, dele tendo interposto recursos autónomos, nos quais produziram alegações com as seguintes CONCLUSÕES:
A D…:
«1. A Recorrente, salvo o devido respeito e não obstante a sentida diferenda com a M.ma. Juíza do Tribunal a quo entende que que o processo enferma de várias nulidades: porque não foi produzida a prova testemunhal por si oferecida, porque não foi notificada de qualquer despacho que dispensou a inquirição das testemunhas, porque não foi notificada do parecer do Ministério Público anterior à prolação da sentença, nem este sequer foi objeto de Despacho.
2. Por via disso, foi-lhe totalmente negada a Justiça que devia, porquanto a M.ma. Juíza do Tribunal a quo proferiu sentença, fazendo tábua rasa dos meios de prova carreados para os autos quer pela Recorrente quer ainda pelo Ministério Público na sua douta Promoção, o que, caso contrário, não teria sucedido.
3. A Recorrente carreou para o Processo prova documental e prova testemunhal (ainda não ouvida) e as Vogais do Conselho de Família E… e F…, apenas juntado prova documental e desta fazem parte dois testamentos outorgados pelo anterior Tutor /Acompanhante, pai de todos os intervenientes processuais, datados de 13/03/2014 e 26/10/2016, e do mesmo, além de direitos e deveres, para estas irmãs do Beneficiário – E… e F… - não consta a sua nomeação como Acompanhante(s)/Tutora(s) ou sequer exclusão da Recorrente desse cargo.
4. As demais declarações de intenção prestadas no Testamento de 26/10/2016, por B…, se por um lado, não correspondem à verdade atento o Acordo/Transação alcançado no âmbito do Processo 814/10.3TBVCD do extinto 3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila do Conde, também junto aos presentes autos e que sempre foi cumprido pela Recorrente, por outro lado, está ferido de nulidade parcial, porquanto viola o direito de propriedade da Recorrente no que respeita à casa de habitação que lhe foi doada.
5. Destaque-se que, a vogal do Conselho de Família, F…, apenas passou a cuidar do Beneficiário, em virtude do salário que a Recorrente D… passou a pagar ao pai de ambas, em cumprimento do Acordo alcançado em Tribunal no âmbito do aludido processo 814/10.3TBVCD, pois que, de outro modo, certamente continuaria a residir em Vila Nova de Famalicão.
6. E foi devido aos desentendimentos existentes e iminentes entre as irmãs E…, F… e D…, que aquelas, desde o óbito do pai, impedem esta de conviver com o irmão e Beneficiário C…, pelo que não se surpreende que a sua “resposta” quando questionado “se a D… era sua amiga?", pois que não se pode manifestar sentimentos positivos por quem não se vê, nem se convive ou partilha alegrias e momentos, sobretudo para quem, como o Beneficiário, não tem capacidade de discernimento e é influenciado na sua resposta.
7. Efetivamente, quando foi aberta Vista (eletrónica) ao Ministério Público, este pronunciou-se pela audição do beneficiário com nova perícia médica e pela audição das irmãs do mesmo bem como as testemunhas que apresentam, tendo a Mma. Juíza a quo agendado a audição do beneficiário, da Requerente D… e das vogais do Conselho de família E… e F…, o que sucedeu em 11/12/2020, com exceção da audição do beneficiário, tendo sido proferido Despacho em que designou a audição do Beneficiário no respetivo domicilio em 08/01/2021, tendo ainda ficado consignado que oportunamente o Tribunal se pronunciaria relativamente às testemunhas indicadas nos autos .
8. Por via disso, Em 05/05/2021, o Tribunal deslocou-se à habitação onde reside o Beneficiário, visando a sua audição, tendo a Mma. Juíza emitido Despacho no sentido de ser aberta Vista ao Ministério Público.
9. Por via disso, a Digníssima Magistrada em 10/05/2021 - Referência: 424519742 - promoveu e requereu:
*
nova audição ao Beneficiário para que fosse “explicado ao mesmo, de forma que o mesmo entenda, se indague junto do mesmo se aceitaria a nomeação da sua irmã D… como acompanhante, como a pessoa que, doravante, assegurará os cuidados de que o mesmo, a nível pessoal e patrimonial, necessitar.”
E ainda,
*
“Sem prejuízo do supra exposto, promove-se ainda que se apure dos processos e inquéritos que correram termos entre os pais do beneficiário e as irmãs do mesmo (e designadamente, o processo número 814/10.3TbVCD do extinto 3.º Juízo Cível), a fim de, o MP, compulsar os mesmos (tudo no sentido de apurar da existência de outros elementos relevantes à decisão acerca da pessoa que deve exercer o cargo de acompanhamento do beneficiário).”
10. A douta Promoção, é bem pertinente e encontra-se devidamente fundamentada, entre outra, no facto de:
a) o pai do beneficiário, já falecido, ter manifestado, em Testamento, vontade de que as suas filhas F… e E… cuidassem, no futuro, do beneficiário;
b) a partir de 2013, os cuidados prestados pela F… ao C…, maior acompanhado, terem sido pagos pela irmã D…, ora Recorrente;
c) e ainda de que a D… “ não contactou regularmente com o beneficiário devido aos desentendimentos com as suas duas irmãs que se encontravam na habitação do beneficiário e que ainda se encontram, manifestando agora a referida D… vontade em ser designada como acompanhante, para, entre o mais, ter acesso à casa, objeto de doação, encontrando-se atualmente impedida, devido à frequência da mesma, pelas irmãs F… e E…, com quem se encontra desentendida, aceitando a mesma, caso venha a ser nomeada como acompanhante do seu irmão, ser fiscalizada pelas referidas irmãs no trabalho que vier a desempenhar”.
11. No quadro da protecção da pessoa com deficiência, cabe ao Ministério Público um papel proeminente, como decorre do artigo 3º, nº 1, alínea a), do Estatuto do Ministério Público (aprovado pela Lei nº 47/86, de 15 de Outubro), preceito que dispõe competir, especialmente, a esta instituição representar os incapazes.
12. Dispõe ainda o nº 1 do art. 195.º do CPC, que «a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
13. Pelo que quando o processo foi concluso, deveria, pois, a Mma. Juíza, proferir despacho relativamente à prova testemunhal indicada pela Recorrente e bem assim deveria igualmente pronunciar-se quanto à douta promoção do Ministério Público, não o tendo feito.
14. Ora, in casu quer a falta de inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente D…, quer a ausência de Despacho quando à promoção do MP constitui nulidade processual à luz do regime do art. 195.º e segs. do CPC, porquanto tratam-se de irregularidades cometidas com manifesta influência na boa decisão da causa.
15. Com a sua preterição, existiu, por um lado, uma nítida falta de colaboração do douto Tribunal com a Recorrente, impedindo-a e negando-lhe, de modo sistemático, o cumprimento dos seus direitos e por outro lado, o dever de cooperação com o Ministério Público na defesa dos direitos e interesses do maior Acompanhado.
16. Por outro lado, não obstante a Intervenção Principal do Ministério Público, que ao caso se impõe, como refere José Lebre de Freitas, in Introdução ao Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra editora, no processo Civil vigora o princípio do dispositivo, sendo este a tradução processual do princípio constitucional do direito à propriedade privada e da autonomia da vontade, tendo-se, assim, que o exato limite da intervenção judicial, mormente do Juíz é fixado pelas partes que não só têm a exclusiva iniciativa de propor a ação (e de se defender), como delimitam o seu objeto.
17. Na verdade, “quer o direito de ação, quer de defesa, assentam numa determinada qualificação jurídica dos factos carreados para o processo, que as partes tiveram por pertinente e adequada quando procederam à respetiva articulação. Deste modo qualquer alteração do módulo jurídico perfilhado, designadamente quando assuma um grau particularmente relevante, é suscetível de comprometer a posição das partes…e daí a proibição imposta pelo nº 3” do artigo 195º do CPC, (artigo 201º do CPC revogado) - Abílio Neto in Breves Notas ao Código do Processo Civil, Ano 2005, pág.10 -.
18. A violação do contraditório inclui-se na cláusula geral sobre as nulidades processuais constante do artº 195, nº 1 do Código do Processo Civil - a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influenciar a decisão da causa.
19. Ora, dada a importância do contraditório é indiscutível que a sua inobservância pelo Tribunal é susceptível de influir no exame ou decisão da causa.
20. Assim, a Douta Sentença recorrida, salvo o devido respeito, é censurável do ponto de vista jurídico-legal porque enferma de irregularidade e nulidade processual por falta de notificação à Recorrente de actos essenciais, de nulidade processual por não terem sido inquiridas quer as testemunhas arroladas, quer a douta Promoção do Ministério Público, pois que tais omissões impediram que a Recorrente se pronunciasse sobre aqueles actos, o que poderia ter como consequência que o Tribunal a quo tivesse proferido uma diferente decisão da que veio a proferir.
21. No papel do Tribunal Juiz está subjacente a segurança e paz nas relações privadas, bem como no que ao caso respeita, o superior interesse do Incapaz, cuja paz e tranquilidade não deve ser agravada pela manutenção de situações de conflito, como a que a sentença preconiza, pois que, com o argumento de cuidarem do irmão, a propriedade da Recorrente mantém-se na posse e habitada pelas vogais do conselho de família e terceiros.
22. É ainda falso o teor e conteúdo do item 16º dos Factos Provados, onde se lê que são a F… e a E… quem presta cuidados diários de habitação ao beneficiário C… (item este que se encontra em nítida contradição com o vertido no item 9º dos Factos provados) porquanto a referida habitação é propriedade da Recorrente D….
23. Sem Prescindir, da prova documental carreada para os autos e bem assim do auto de Audição - parentes próximos – não resulta o vertido no ponto único dos factos não provados (“ D… e C… residem no mesmo espaço físico”), não resultando ainda evidente e provada que a nomeação como Acompanhante do Beneficiário da irmã F…, seja a melhor solução na defesa dos interesses e bem-estar do mesmo.
24. De facto, era a Recorrente D… quem cozinhava, limpava, dava banho e passeava quer o Beneficiário, quer o irmão G… e atenta a falta de mobilidade destes era coadjuvada pelo seu marido, o que deixou de suceder atento a Transação alcançada no âmbito da Acção de Condenação 814/10.3TBVCD, que os Progenitores intentaram contra a Recorrente, nos termos da qual esta ficou desonerada das obrigações que lhe haviam sido impostas pela Doação, mediante o pagamento da quantia de €550,00/mês àqueles para solver o salário à empregada contratada para o efeito.
25. Existiu, uma nítida falta de colaboração do douto Tribunal com a Recorrente, impedindo-a e negando-lhe, de modo sistemático, o cumprimento dos seus direitos, que lhe foram negados ao longo de vários anos, atentas as desavenças familiares.
26. Efetivamente, o Tribunal a quo, ao não ter procedido à inquirição da prova testemunhal carreada para o processo, impediu a Recorrente de provar parte substancial da matéria invocada no seu articulado e levou a que a Douta sentença ora recorrida fosse proferida sem todo o contraditório, logo em clara violação do Princípio do Contraditório, previsto no artigo 3.º do CPC, do Princípio da igualdade das Partes, do Princípio da Proibição da Indefesa e do Direito à Prova, e do Princípio da Justiça (Verdade Material), porque o Tribunal não realizou nem ordenou todas as diligências úteis ao apuramento da verdade.
27. As omissões, in casu, ferem o Princípio do Contraditório, previsto no artigo 3.º do Código de Processo Civil na vertente proibitiva da decisão-surpresa, e o Princípio da Igualdade das Partes.
28. Violou, pois a douta sentença ora em crise, por erro de integração e interpretação, o consignado nos artigos 3º, 195º e 897º, nº 1, todos do CPC.
29. Termos em que se requer seja julgado procedente o presente recurso e, consequentemente, anulada a sentença proferida, devendo, com o inerente prosseguimento dos autos de acordo com a tramitação que se impuser:
*
ser ouvido o beneficiário, na ausência quer da Recorrente, quer das vogais do Conselho de Família e outros familiares, se aceita que doravante seja a Recorrente D…, sua irmã, nomeada sua acompanhante;
*
seja concedido ao Ministério Público a consulta dos Processos e inquéritos, conforme doutamente promovido pela Sra. Magistrada na sua promoção de 10/05/2021; e *serem ouvidas as testemunhas pela Recorrente arroladas no seu Requerimento inicial.» (sic)
Pretende, assim, a revogação da sentença.
*
O Ministério Público:
«I - A douta sentença foi proferida, no âmbito da revisão das medidas aplicadas ao beneficiário C…, com a indicação de novo acompanhante do mesmo, atento o falecimento da pessoa que vinha exercendo essas funções (antigo tutor, o seu pai).
II - O Tribunal proferiu a supra aludida sentença, sem que se tivesse pronunciado, nos termos previstos pelo artigo 897.º do CPC: - quanto ao teor das diligências requeridas pela requerente D… no que concerne à audição de testemunhas – vide fls. 132 (inquirição essa, solicitada também pelo MP, a fls. 167) e - quanto ao teor das diligências requeridas pelo MP, a fls. 228 e 229, que aqui se consideram reproduzidas para os devidos efeitos legais.
III - Somos do entendimento que as irregularidades supra enunciadas, provocam nulidade dos atos subsequentes, porquanto, as mesmas, podem influir na decisão da causa, razão pela qual, as invocamos, nos termos e para os devidos efeitos legais.
IV - Por via da douta sentença proferida, foram violados os artigos 897.º, n.º 1 e 195.º do CPC.
V - Sem prejuízo do supra exposto, consideramos que decorre dos autos e, designadamente da audição realizadas aos parentes próximos do beneficiário e a este (prova esta que se encontra gravada), os seguintes dados factuais relevantes à tomada de posição, entre o mais, sobre a pertinência da prova requerida por D… e pelo Ministério Publico, a fls. 132, 167, 228 e 229:
b) A irmã do beneficiário, D…, sempre residiu na mesma morada dos seus pais, sendo que, a partir de determinada altura, passou a residir num anexo da habitação ali existente, com entrada independente;
c) Os pais do beneficiário, por escritura de 12/02/1998, fizeram uma doação à irmã do beneficiário, D…, nos termos que constam a fls. 138 a 142, doando à mesma o imóvel destinado a habitação onde o beneficiário tem a sua residência e com as obrigações ali referidas;
d) Posteriormente, os pais do beneficiário, interpuseram um processo cível contra aquela filha, com o número 814/10.3TbVCD que culminou, no dia 6 de maio de 2013, numa transação judicial nos termos que constam a fls. 142 e 143, passando a D… a proceder ao pagamento mensal de 550, 00 euros aos seus pais para pagamento de uma pessoa para tratar dos irmãos incapazes;
e) Na sequência desse acordo, a partir dessa altura, os pais do beneficiário passaram a proceder a esse pagamento à filha F… para que a mesma ficasse incumbida de tratar dos seus irmãos incapazes, o que veio a ser feito, com recebimento do referido pagamento até ao falecimento do seu pai e sem o recebimento de tal pagamento até à presente data;
f) Também no período referido em e), a irmã E… prestou apoio no tratamento referido aos seus irmãos incapazes, entre o mais, ao beneficiário;
g) Por via de douta sentença de fls. 95 a 100, em 11 de março de 2015, foi decretada, entre o mais, a interdição por anomalia psíquica de C… (com data do começo de incapacidade, o dia 17/10/1967) tendo sido designado como tutor, o seu pai, B… e como vogais do conselho de família, as irmãs do beneficiário, F… e E,,,;
h) Na altura dos factos acima referidos em d) e g), D… e as irmãs do beneficiário, F… e E…, encontravam-se desavindas;
i) O pai do beneficiário, antigo tutor, fez os testamentos, datados de 13/03/2014 e 26/10/2016, nos termos que constam a fls. 156 a 163, manifestando vontade que, o beneficiário venha a ser cuidado pelas suas irmãs F… e E…;
j) Ainda existem desentendimentos entre a irmã D… e as irmãs F… e E…;
k) Atualmente, a irmã do beneficiário, D… quer ser designada como acompanhante, para, entre o mais, ter acesso à casa, objeto de doação, encontrando-se atualmente impedida, devido à frequência da mesma pelas suas irmãs F… e E… que cuidam atualmente do seu irmão e com quem se encontra desavinda, aceitando a mesma, caso venha a ser nomeada como acompanhante do seu irmão, ser fiscalizada pelas referidas irmãs no trabalho que vier a desempenhar;
l) Devido aos referidos desentendimentos, a irmã D…, não vê o beneficiário, desde o mês de junho de 2020;
m) A irmã F… pretende ser designada como acompanhante do beneficiário e a irmã E… também é desse entendimento;
n) Atualmente, F… é quem cuida do beneficiário pernoitando na casa com a sua filha e quando trabalha umas horas para fora, a sua irmã E… desloca-se à habitação do beneficiário, para prestar-lhe apoio, na ausência da F…;
o) Em decorrência dos desentendimentos supra referidos, embora a irmã D… resida num anexo da referida casa, com entrada independente e ao lado da habitação onde se encontra o seu irmão, não visita o mesmo devido aos desentendimentos existentes com as irmãs.
VI - Como referimos na promoção de fls. 228 e 229:
“Decorre dos autos que o pai do beneficiário, antigo tutor do beneficiário, manifestou vontade de que sejam as suas filhas F… e E… a cuidarem, no futuro, do beneficiário e a vogal do conselho de família, E… entende que deve ser a vogal do conselho de família, F… a pessoa a exercer o cargo de acompanhante.
Não podemos de deixar de atentar também para o facto de os cuidados que foram prestados a partir de 2013 ao beneficiário pela F… foram pagos pela irmã D…, a qual não contactou regularmente com o beneficiário devido aos desentendimentos com as suas duas irmãs que se encontravam na habitação do beneficiário e que ainda se encontram, manifestando agora a referida D… vontade em ser designada como acompanhante, para, entre o mais, ter acesso à casa, objeto de doação, encontrando-se atualmente impedida, devido à frequência da mesma, pelas irmãs F… e E…, com quem se encontra desentendida, aceitando a mesma, caso venha a ser nomeada como acompanhante do seu irmão, ser fiscalizada pelas referidas irmãs no trabalho que vier a desempenhar.
Na audição que foi realizada ao beneficiário, não foi o mesmo, por lapso do MP, indagado se aceitaria que, doravante, fosse a sua irmã D… a sua acompanhante, no sentido de ser aquela pessoa a responsável por assegurar os cuidados de que o mesmo necessitará a nível pessoal e patrimonial.
Cremos que tal questão é relevante para a boa decisão nestes autos, levando em consideração o disposto na primeira parte do artigo 143.º do Código Civil (O acompanhante é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente).”
VII - Pelos motivos supra expostos, o MP, promoveu e requereu nova audição ao beneficiário para que explicado ao mesmo de forma que o mesmo entenda, se indague junto do mesmo se aceitaria a nomeação da sua irmã D… como acompanhante, como a pessoa que, doravante, assegurará os cuidados de que o mesmo, a nível pessoal e patrimonial, necessitar. Mais promoveu, para além da audição das testemunhas apresentadas pela requerente – ver fls. 132 e 167- se apure dos processos e inquéritos que correram termos entre os pais do beneficiário e as irmãs do mesmo (e designadamente, o processo número 814/10.3TbVCD do extinto 3.º Juízo Cível), a fim de, o MP, compulsar os mesmos , tudo no sentido de apurar da existência de outros elementos relevantes à decisão acerca da pessoa que deve exercer o cargo de acompanhamento do beneficiário.
VIII- O Ministério Público entende que a realização das referidas diligências são relevantes à boa decisão da causa, tendo sempre por referência os interesses do beneficiário.»
Terminou pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por outra que que se pronuncie sobre a prova que requereu.
*
O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pela D… em contra-alegações que sintetizou assim:
«I- No seguimento das alegações de recurso por nós apresentadas nos autos, também consideramos que, a douta sentença de fls. 230 a 235, foi proferida, sem que o Tribunal se tivesse pronunciado, nos termos previstos pelo artigo 897.º do CPC:
- quanto ao teor das diligências requeridas pela requerente D… no que concerne à audição de testemunhas – vide fls. 132 (inquirição essa, solicitada também pelo MP, a fls. 167);
- quanto ao teor das diligências requeridas pelo MP, a fls. 228 e 229, que aqui se consideram reproduzidas para os devidos efeitos legais.
II- A douta sentença foi proferida, no âmbito da revisão das medidas aplicadas ao beneficiário C…, com a indicação de novo acompanhante do mesmo, atento o falecimento da pessoa que vinha exercendo essas funções (antigo tutor, o seu pai).
III- Somos do entendimento que as irregularidades supra enunciadas, provocam, nos termos do artigo 195.º do CPC, nulidade dos atos subsequentes, porquanto, as mesmas, podem influir na decisão da causa, razão pela qual, as invocamos, nos termos e para os devidos efeitos legais.
IV- Sem prejuízo do supra exposto, consideramos que decorre dos autos e, designadamente da audição realizadas aos parentes próximos do beneficiário e a este (prova esta que se encontra gravada), os seguintes dados factuais relevantes à tomada de posição, entre o mais, sobre a pertinência da prova requerida por D… e pelo Ministério Publico, a fls. 132, 167, 228 e 229:
a) Os pais do beneficiário faleceram, respetivamente, nos dias 25/09/2013 (mãe) e entre os dias 3 e 4/08/2020 (pai).
b) A irmã do beneficiário, D…, sempre residiu na mesma morada dos seus pais, sendo que, a partir de determinada altura, passou a residir num anexo da habitação ali existente, com entrada independente;
c) Os pais do beneficiário, por escritura de 12/02/1998, fizeram uma doação à irmã do beneficiário, D…, nos termos que constam a fls. 138 a 142, doando à mesma o imóvel destinado a habitação onde o beneficiário tem a sua residência e com as obrigações ali referidas;
d) Posteriormente, os pais do beneficiário, interpuseram um processo cível contra aquela filha, com o número 814/10.3TbVCD que culminou, no dia 6 de maio de 2013, numa transação judicial nos termos que constam a fls. 142 e 143, passando a D… a proceder ao pagamento mensal de 550,00 euros aos seus pais para pagamento de uma pessoa para tratar dos irmãos incapazes;
e) Na sequência desse acordo, a partir dessa altura, os pais do beneficiário passaram a proceder a esse pagamento à filha F… para que a mesma ficasse incumbida de tratar dos seus irmãos incapazes, o que veio a ser feito, com recebimento do referido pagamento até ao falecimento do seu pai e sem o recebimento de tal pagamento até à presente data;
f) Também no período referido em e), a irmã E… prestou apoio no tratamento referido aos seus irmãos incapazes, entre o mais, ao beneficiário;
g) Por via de douta sentença de fls. 95 a 100, em 11 de março de 2015, foi decretada, entre o mais, a interdição por anomalia psíquica de C… (com data do começo de incapacidade, o dia 17/10/1967) tendo sido designado como tutor, o seu pai, B… e como vogais do conselho de família, as irmãs do beneficiário, F… e E…;
h) Na altura dos factos acima referidos em d) e g), D… e as irmãs do beneficiário, F… e E…, encontravam-se desavindas;
i) O pai do beneficiário, antigo tutor, fez os testamentos, datados de 13/03/2014 e 26/10/2016, nos termos que constam a fls. 156 a 163, manifestando vontade que, o beneficiário venha a ser cuidado pelas suas irmãs F… e E…;
j) Ainda existem desentendimentos entre a irmã D… e as irmãs F… e E…;
k) Atualmente, a irmã do beneficiário, D… quer ser designada como acompanhante, para, entre o mais, ter acesso à casa, objeto de doação, encontrando-se atualmente impedida, devido à frequência da mesma pelas suas irmãs F… e E… que cuidam atualmente do seu irmão e com quem se encontra desavinda, aceitando a mesma, caso venha a ser nomeada como acompanhante do seu irmão, ser fiscalizada pelas referidas irmãs no trabalho que vier a desempenhar;
l) Devido aos referidos desentendimentos, a irmã D…, não vê o beneficiário, desde o mês de junho de 2020;
m) A irmã F… pretende ser designada como acompanhante do beneficiário e a irmã E… também é desse entendimento;
n) Atualmente, F… é quem cuida do beneficiário pernoitando na casa com a sua filha e quando trabalha umas horas para fora, a sua irmã E… desloca-se à habitação do beneficiário, para prestar-lhe apoio, na ausência da F…;
o) Em decorrência dos desentendimentos supra referidos, embora a irmã D… resida num anexo da referida casa, com entrada independente e ao lado da habitação onde se encontra o seu irmão, não visita o mesmo devido aos desentendimentos existentes com as irmãs.
V - Como referimos na promoção de fls. 228 e 229:
“Decorre dos autos que o pai do beneficiário, antigo tutor do beneficiário, manifestou vontade de que sejam as suas filhas F… e E… a cuidarem, no futuro, do beneficiário e a vogal do conselho de família, E… entende que deve ser a vogal do conselho de família, F… a pessoa a exercer o cargo de acompanhante.
Não podemos de deixar de atentar também para o facto de os cuidados que foram prestados a partir de 2013 ao beneficiário pela F… foram pagos pela irmã D…, a qual não contactou regularmente com o beneficiário devido aos desentendimentos com as suas duas irmãs que se encontravam na habitação do beneficiário e que ainda se encontram, manifestando agora a referida D… vontade em ser designada como acompanhante, para, entre o mais, ter acesso à casa, objeto de doação, encontrando-se atualmente impedida, devido à frequência da mesma, pelas irmãs F… e E…, com quem se encontra desentendida, aceitando a mesma, caso venha a ser nomeada como acompanhante do seu irmão, ser fiscalizada pelas referidas irmãs no trabalho que vier a desempenhar.
Na audição que foi realizada ao beneficiário, não foi o mesmo, por lapso do MP, indagado se aceitaria que, doravante, fosse a sua irmã D… a sua acompanhante, no sentido de ser aquela pessoa a responsável por assegurar os cuidados de que o mesmo necessitará a nível pessoal e patrimonial.
Cremos que tal questão é relevante para a boa decisão nestes autos, levando em consideração o disposto na primeira parte do artigo 143.º do Código Civil (O acompanhante é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente).”
VI - Pelos motivos supra expostos, o MP, promoveu e requereu nova audição ao beneficiário para que explicado ao mesmo de forma que o mesmo entenda, se indague junto do mesmo se aceitaria a nomeação da sua irmã D… como acompanhante, como a pessoa que, doravante, assegurará os uidados de que o mesmo, a nível pessoal e patrimonial, necessitar. Mais promoveu, para além da audição das testemunhas apresentadas pela requerente – ver fls. 132 e 167- se apure dos processos e inquéritos que correram termos entre os pais do beneficiário e as irmãs do mesmo (e designadamente, o processo número 814/10.3TBVCD do extinto 3.º Juízo Cível), a fim de, o MP, compulsar os mesmos, tudo no sentido de apurar da existência de outros elementos relevantes à decisão acerca da pessoa que deve exercer o cargo de acompanhamento do beneficiário.
VII - O Ministério Público entende que a realização das referidas diligências são necessárias e relevantes à boa decisão da causa, tendo sempre por referência os interesses do beneficiário.» (sic)
*
Foram colhidos os vistos legais.
*
II.
O objeto dos dois recursos está delimitado pelas conclusões de cada um deles, acima transcritas, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º do Código de Processo Civil[1]).
As questões a decidir são as seguintes:
Do recurso da Requerente D…
1. Nulidades processuais;
2. Contradição entre os pontos 9 e 16 dos factos provados;
3. Impugnação da decisão proferida em matéria de facto.
Do recurso do Ministério Público
1. Nulidades processuais;
2. Adição de factos que devem ter-se por provados face a elementos probatórios disponíveis nos autos.
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III.
O tribunal deu como provados os seguintes factos[2]:
1. Por sentença proferida nestes autos, datada de 11 de março de 2015, transitada em julgado, foi decretada a interdição por anomalia psíquica de C… e fixada como data do começo da incapacidade 17.10.1967.
2. Foi nomeado tutor B…, residente na Rua …, …., …, Vila do Conde.
3. Para integrar o conselho de família foram nomeadas 1) E…, residente na Rua …, …, …, Vila do Conde, na qualidade de protutora; e 2) F…, residente na Rua …, …, …, Vila do Conde, na qualidade de vogal.
4. Na sentença referida 1. resultou provado que C… nasceu a 17 de outubro de 1967, na freguesia de …, concelho de Vila do conde, é filho de B… e de H….
5. Resultou, igualmente, provado que C… padece de oligofrenia profunda que o impede, de modo total e permanente, de reger a sua pessoa e bens, incapacidade que se reporta à data do nascimento e que determinou que lhe fosse fixada uma incapacidade definitiva de 95%.
6. B… faleceu em agosto de 2020.
7. D…, F… e E…, são irmãs de C….
8. G…, faleceu em 21 de novembro de 2019.
9. Por escritura de Doação de 12/02/1998, exarada desde fls. 53, do livro E-54, de Escrituras Diversas do extinto 1º Cartório da Secretaria Notarial da Póvoa de Varzim, os progenitores B… e H…, doaram à filha D…, o imóvel destinado a habitação, onde o Maior Acompanhado C… tem a sua residência, tendo sido imposta por aqueles progenitores e por esta filha aceite a reserva do direito de habitação.
10. Ficou ainda consignado na citada escritura a incumbência a D… do dever de vigiar e assistir o referido irmão C… na ausência de seus pais.
11. Entre B…, H… e D… foi celebrada a transação judicial no âmbito do processo n.º 814/10.3TBVCD.
12. D… a partir do mês de maio do ano de 2013 pagou ao seu pai e até ao óbito deste, a quantia mensal de €550,00, para solver o salário à empregada a contratar na sequência da transação referida em 11.
13. Nas ausências e impedimentos do Autor marido, os réus naqueles autos obrigavam-se a vigiar e fiscalizar a referida empregada.
14. Do testamento a fls. 158 e seguintes dos autos consta: “(…) o testador deixou a quota disponível às suas filhas F… e E… com a obrigação de elas prestarem até à sua morte, todos os cuidados e amparo de que aqueles seus filhos G… e C… necessitam, tanto na saúde, como na doença, prestando-lhes todos os serviços pessoais e domésticos de que eles carecerem e assegurando-lhes tratamento médico e de medicamentos. Obrigações essas que teve que impor a essas filhas, uma vez que a donatária D… não cumpriu idênticas obrigações que o testador tinha imposto na referida escritura de doação (…).”
15. O beneficiário depende de cuidados de terceira pessoa permanentes para todas as atividades da vida diária.
16. São F… e E… quem presta cuidados diários de alimentação, higiene e de habitação ao beneficiário C….
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O tribunal deu como não provada a seguinte matéria[3]:
a) D… e C… residem no mesmo espaço físico.
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IV.
Apreciação das questões do recurso
1. Nulidades processuais
A questão das nulidades processuais é comum a ambos os recursos e traduz-se nos seguintes fundamentos:
a- Preterição de diligências de prova requeridas pela recorrente D…, nomeadamente audição de testemunhas;
b- Omissão, sem pronúncia, da requerida (pelo Ministério Público) diligência de nova audição do Beneficiário para que se aceite ou negue a nomeação da sua irmã D… como sua Acompanhante;
c- Omissão de pronúncia sobre a requerida (pelo Ministério Público) diligência de consulta dos processos e inquéritos que correram termos entre os pais do Beneficiário e as suas irmãs, no sentido de apurar da existência de outros elementos relevantes à decisão acerca da pessoa que deve exercer o cargo de acompanhamento do beneficiário;
d- Omissão de notificação à recorrente de qualquer despacho de dispensa de inquirição das testemunhas que arrolou;
e- Omissão de notificação à recorrente do parecer do Ministério Público que precedeu a prolação da sentença.
As nulidades processuais consistem em desvios de ordem formal relacionados com o rito processual previsto na lei adjetiva e a que esta faça corresponder uma invalidade mais ou menos extensa de atos processuais. São erro in procedendo. De acordo com o art.º 186º e seg.s, podem consistir na prática de um ato proibido, omissão de um ato prescrito na lei, ou ainda, na realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.[4] Umas são principais, típicas ou nominadas, sendo-lhes aplicável a disciplina fixada nos art.ºs 186° a 194° e 196° a 198°, outras são secundárias, atípicas ou inominadas e têm a sua regulamentação genérica no n.º 1 do art.º 195°, estando a sua arguição sujeita ao regime previsto no art.º 199°.
Como já ensinava Alberto dos Reis[5], “os actos de processo têm uma finalidade inegável: assegurar a justa decisão da causa; e como a decisão não pode ser conscienciosa e justa se a causa não estiver convenientemente instruída e discutida segue-se que o fim geral que se tem em vista com a regulação e organização dos actos de processo está satisfeito se as diligências, actos e formalidades que se praticaram garantem a instrução, a discussão e o julgamento regular do pleito; pelo contrário, o referido fim mostrar-se-á prejudicado se se praticaram ou omitiram actos ou deixaram de observar-se formalidades que comprometem o conhecimento regular da causa e portanto a instrução, a discussão ou o julgamento dela».
O art.º 195º, nº 1, do Código de Processo Civil dispõe que “fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
Assim, caso seja verificado o vício, se a lei não prescrever expressamente que ele tem como consequência a invalidade do ato, segue-se verificar a influência que a prática ou omissão concreta pode ter no exame ou na decisão da causa, isto é, na sua instrução, discussão e julgamento.
Constatada que seja essa influência, os efeitos da invalidade do ato repercutem-se nos atos subsequentes da sequência processual que dele forem absolutamente dependentes (art.º 195°, nº 2, do Código de Processo Civil). Por isso, sempre que um ato da sequência pressuponha a prática de um ato anterior, a invalidade deste tem como efeito, indireto mas necessário, a invalidade do ato subsequente que porventura entretanto tenha sido praticado (e, por sua vez, dos que, segundo a mesma linha lógica, se lhe sigam).[6]
Vejamos.
O direito à prova encontra-se consagrado constitucionalmente sob art.º 20º da Constituição da República, como componente do direito geral à proteção jurídica e de acesso aos tribunais.
A regra que impera no nosso sistema jurídico-processual é a da livre admissibilidade dos meios de prova.
No julgamento da prova, consagrou-se abertamente o princípio da livre convicção do julgador. Tende paralelamente a admitir-se que, para formar a sua convicção, as partes possam socorrer-se de todos os elementos capazes de demonstrar a existência do facto, seja ele positivo ou negativo.[7]
Desse direito decorre, por um lado, o dever de o tribunal atender a todas as provas produzidas no processo, desde que lícitas, independentemente da sua proveniência --- princípio acolhido no art.º 413º, nº 1, do Código de Processo Civil --- e, por outro, a possibilidade de utilização pelas partes, em seu benefício, dos meios de prova que mais lhes convierem, devendo a recusa de qualquer meio de prova ser devidamente fundamentada na lei ou em princípio jurídico, não podendo o tribunal fazê-lo de modo discricionário.
Há que ter sempre presente que o fim primordial do processo é a composição justa de um litígio, o que implica a procura da verdade.
As limitações à regra da livre admissibilidade dos meios de prova têm natureza excecional, podendo resultar de exigências da lei substantiva, como acontece com a observância de formalidades ad substantiam (p. ex., a obrigatoriedade de escritura pública na prática de determinados atos e a inadmissibilidade de prova testemunhal sobre factos para que se exija prova documental – art.ºs 393º e 394º do Código Civil) ou simplesmente de exigências processuais que assentam em finalidades puramente adjetivas, de que são exemplo as incapacidades naturais e as inabilidades legais aplicáveis em matéria de prova testemunhal (art.ºs 495º e 496º).
O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem” (art.º 3º, nº 3).
Naquela norma radica a matriz do princípio do contraditório, segundo o qual, mesmo no sentido tradicional --- em quase toda a sua dimensão, desde a reforma do processo civil de 1995 ---, qualquer das partes tem o direito de conhecer a pretensão contra si deduzida e o direito de pronúncia prévia à decisão, ainda que esta seja de conhecimento oficioso. Através dele, a lei assegura às partes o desenvolvimento do processo em discussão dialética, com as vantagens decorrentes da fiscalização recíproca das afirmações e provas por elas efetuadas.
Consagra-se o direito de as partes serem ouvidas como ato prévio a qualquer decisão que venha a ser proferida no processo, entendendo-se, hodiernamente mais do que isso, a possibilidade de as partes intervirem em juízo em termos de influenciarem (pelos argumentos de que fizerem uso) a decisão a proferir.[8]
A propósito, Lebre de Freitas escreve[9]: «A esta conceção[10], válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do rechtliches Gehör germânico, entendida como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo».
São, assim, por regra, proibidas as decisões surpresa.
Todavia, não podemos confundir a jurisdição contenciosa com a jurisdição voluntária.
Referia já Alberto dos Reis[11]: “um julgamento pode inspirar-se em duas orientações ou em dois critérios diferentes: critério de legalidade, critério de equidade. No primeiro caso, o juiz tem de aplicar aos factos da causa o direito constituído; tem de julgar segundo as normas jurídicas que se ajustem à espécie respectiva, ainda que, em sua consciência, entenda que a verdadeira justiça exigiria outra solução. No segundo caso, o julgamento não está vinculado à observância rigorosa do direito aplicável à espécie vertente; tem liberdade de se subtrair a esse enquadramento rígido e de proferir a decisão que lhe pareça mais equitativa”.
Uma das caraterísticas da jurisdição voluntária, aqui assinalável, é a possibilidade que o tribunal tem de investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar as diligências e recolher as informações, só sendo admitidas as provas que o juiz considere convenientes. Admite-se ainda uma diferente modelação prática de certos princípios ou regras processuais[12], sendo que a característica geral dos processos desta jurisdição é a de que não há neles “um conflito de interesses a compor, mas só um interesse a regular, embora podendo haver um conflito de opiniões ou representações acerca do mesmo interesse”[13] ou “um interesse fundamental tutelado pelo direito (acerca do qual podem formar-se posições divergentes), que ao juiz cumpre regular nos termos mais convenientes”[14].
O legislador privilegiou a intervenção do tribunal, pela oficiosidade dos atos na instrução dos processos, sem prejuízo do contraditório. O que se procura é a melhor solução, alijada de peias normativas e de forma, orientada pelo conceito do interesse do Beneficiário.
No que especificamente respeita ao processo de Acompanhamento de Maiores, não sendo propriamente um processo de jurisdição voluntária (art.ºs 986º e seg.s) resulta do art.º 891º, nº 1, que, além de urgente, lhe é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos daquela jurisdição (voluntária) no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes.
Segundo Miguel Teixeira de Sousa[15], são três as principais características deste tipo de jurisdição que se aplicam no Processo de Acompanhamento de Maiores: em primeiro lugar, o princípio da liberdade de investigação dos factos previsto no n° 2 do artigo 986°, (o juiz não está limitado pelos factos alegados pelas partes, podendo conhecer de outros factos que possam relevar para uma adequada apreciação da providência que lhe solicitada); em segundo lugar, o critério de julgamento previsto no artigo 987º (o juiz não está adstrito a critérios de legalidade estrita, podendo tomar a decisão que entenda mais conveniente e oportuna para o caso); e, em terceiro lugar, a possibilidade de modificação das providências antes decretadas, prevista no n.° t do artigo 988º, (o acompanhamento cessa ou é modificado se assim o justificarem circunstâncias supervenientes).
Interessa aqui particularmente o que respeita ao exercício dos poderes do juiz, no que se destacam os art.ºs 894º e 897º, nº 1, segundo o qual, “findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos”. De acordo com o nº 2 deste último artigo, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre.
Assim, do processo de jurisdição voluntária emana também, de algum modo, para o processo de Acompanhamento de Maior, a ideia de que não se trata propriamente da decisão de uma controvérsia entre as partes, mas uma atividade de assistência e de fiscalização em relação a atos realizados pelos particulares, sendo a intervenção requerida pela parte interessada. Pode existir controvérsia entre os interessados mas o essencial, nestes casos, é que haja um interesse fundamental tutelado pelo Direito e ao juiz se tenha atribuído o poder de escolher a melhor forma de o gerir ou de fiscalizar o modo como se pretende satisfazê-lo.[16]
O tribunal, gerindo o processo, tem como dever último atender ao que, objetivamente, deve ter-se como relevante para a prossecução daquele desiderato e ao que mais julgar necessário.
O exercício dos poderes do juiz segundo o critério de conveniência não significa a atribuição de poderes discricionários e menos ainda arbitrários, mas de poderes orientados, vinculados pela prossecução do fim último do processo, que é a justa composição do litígio, a prevalência da verdade material sobre a verdade formal, e que, nos autos aqui em causa, se deve concretizar com prossecução da defesa do interesse do Beneficiário, descobrindo a verdade dos factos para que seja colocado na melhor situação de proteção possível. Os poderes do juiz devem respeitar o princípio da imparcialidade, sob pena de estarmos a falar de arbitrariedade.
O juiz tem aqui um papel decisivo na aceitação e rejeição de meios de prova, só devendo admitir as provas que considere convenientes, necessárias. Isto é, deve rejeitar as provas impertinentes, desnecessárias, inúteis, supérfluas, de modo a que a instrução seja, tanto quanto possível, simples e urgente, implicando a adoção de mecanismos de agilização do processo. O tribunal pode optar pelas providências que melhor prossigam o interesse posto a seu cargo, por serem as mais adequadas à situação concreta.
Mais importante do que aquilo que as partes alegam, são os documentos que elas juntam e o tribunal recolhe por sua livre iniciativa, assim como as diligências de prova, e o que de todos esses meios resulta provado (independentemente de ter sido alegado ou devidamente alegado).
Não existindo atualmente qualquer forma de processo totalmente dispositiva ou totalmente inquisitiva, o modelo do Processo de Acompanhamento de Maiores aproxima-se nos aspetos já referidos, previstos no nº 1 do art.º 891º, do modelo da jurisdição voluntária, um processo mais inquisitivo, mas com alguns carizes dispositivos. De acordo com o nº 1 do art.º 892º, o requerente deve, além do mais:
a) Alegar os factos que fundamentam a sua legitimidade e que justificam a proteção do maior através de acompanhamento;
b) Requerer a medida ou medidas de acompanhamento que considere adequadas;
c) Indicar quem deve ser o acompanhante (…)
d) (…)
e) Juntar elementos que indiciem a situação clínica alegada.
Nos casos em que for cumulado pedido de suprimento da autorização do beneficiário, deve o requerente alegar os factos que o fundamentam.
De acordo com o art.º 411º, onde se encontra a regra essencial do princípio do inquisitório, “incumbe ao Juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.” Para atingir a justa composição do litígio, o juiz deve ordenar todas as diligência necessárias.
O dever de gestão processual consagrado no art.º 6º impõe quatro deveres genéricos ao juiz: dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere; promover oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação; recusar o que for impertinente ou meramente dilatório; adotar mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.
No caso presente, em que se aplica, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária (art.º 891º, nº 1), o tribunal, sem autoritarismo judicial, deve ordenar as provas que considere convenientes, ainda que não indicadas pelo Requerente ou pelo Requerido, como deve também rejeitar a produção de provas por eles indicadas se as achar impertinentes ou desnecessárias.
Às partes assiste o direito de ser informadas sobre os motivos das decisões judiciais, para que as compreendam e controlem dentro dos limites da lei, segundo o princípio do Estado de direito.
Assim caraterizado o Processo de Acompanhamento de Maiores, analisemos à sua luz, mais proximamente, os fundamentos de nulidade invocados, pela ordem que se segue.
- Omissão de notificação à recorrente do parecer do Ministério Público que precedeu a prolação da sentença
Não prevê a lei, no rito desta forma especial de processo (art.ºs 891º e seg.s) a notificação aos demais interessados da posição assumida pelo Ministério Público antes da prolação da decisão.
Ainda que se admita, como dever geral de informação, dar-se conhecimento da posição do Ministério Público a outros intervenientes processuais, daí não resulta a prática de um direito de resposta que a lei preveja. A ser assim, estava descoberta a chave para o prolongamento da discussão, cujo contraditório ocorre nos articulados, contrariando a celeridade, a urgência e a avaliação judicial da conveniência que a lei consagrou.
Não havendo aqui direito de resposta, da preterição da notificação jamais poderia resultar uma nulidade processual, porquanto não só não está prevista como tal na lei, como tal omissão do ato de notificação jamais pode influir no exame ou na discussão da causa (art.º 195º, nº 1, a conrario).

- Omissão de notificação à recorrente de qualquer despacho de dispensa de inquirição das testemunhas que arrolou
Não há omissão de despacho de dispensa de inquirição de testemunhas, nem omissão da sua notificação.
Por respeito à urgência processual, o tribunal proferiu aquela decisão na própria sentença, consignando-a, na sua parte inicial, nos seguintes termos:
(…)
Assim, uma vez que os elementos já recolhidos nos autos se mostram suficientes à prolação de decisão, passa-se de imediato a proferir decisão sobre a requerida nomeação de Acompanhante ao beneficiário C….
(…)”.
Considerou, assim, a desnecessidade da produção de mais provas.
Notificada que foi a sentença, notificada ficou também a decisão de, por desnecessidade, não se admitir a produção de mais provas no processo.
Poderia argumentar-se que esta decisão não está fundamentada. Porém, não só estaria em causa uma nulidade diferente da que foi invocada (nulidade daquela decisão, ao abrigo dos art.ºs 613º, nº 3 e 615º, nº 1, al. b)), como, na realidade, a sua fundamentação resulta dos próprios termos da sentença, designadamente da respetiva motivação da decisão da matéria de facto, de onde resulta, ao menos implicitamente, que o tribunal entendeu poder decidir conscienciosamente, de acordo com o interesse do Beneficiários, sem necessidade de atender a outras provas.
Não ocorre também esta nulidade.

- A nulidade por preterição de diligências de prova requeridas pela recorrente D…, nomeadamente a audição das testemunhas que arrolou
Com o requerimento inicial do incidente de nomeação de acompanhante (requerimento de 31.8.2020) e com a resposta dada pelas irmãs do Beneficiário, F… e E… (requerimento de 7.9.2020), foram apresentados róis de testemunhas, tal como se apresentaram vários documentos.
O tribunal não ouviu nenhuma das testemunhas, mas tomou declarações ao Beneficiário (o que, aliás, é obrigatório – art.º 897º, nº 2) e às suas três irmãs D…, F… e E…, as pessoas que, no círculo social e familiar do C…, melhor conhecimento têm da sua situação e que se perfilam para o exercício do cargo de Acompanhante.
Está agora em causa saber se, nos termos da lei do processo, o tribunal estava obrigado a ouvir as testemunhas arroladas pela recorrente, ou seja, se, não as tendo ouvido, se afastou do seu dever de proceder, se omitiu um ato processual ou um formalidade que devia ter praticado.
Ora, é a própria lei do processo que, nos termos do art.º 897º, nº 1, determina que o juiz ordena as diligências que considere convenientes. O juízo de conveniência, próprio da jurisdição voluntária, está ligado ao interesse relativo a cada meio de prova, à substância da prova e ao conteúdo do direito que o processo visa tutelar. O que a lei do processo determina é a realização de diligências instrutórias, e essas não foram omitidas. Se as provas recolhidas são insuficientes, se não têm interesse ou se há conveniência ou necessidade na produção de outras provas, é matéria que envolve juízos de valor que têm que ser situado no devido lugar, designadamente no âmbito da impugnação da decisão proferida em matéria de facto, fazendo funcionar o disposto no art.º 662º, nºs 1 e 2.
De acordo com a lei do processo, na jurisdição voluntária, o juiz pode deixar de produzir prova indicada pelos interessados, segundo um critério de conveniência. Não constitui nulidade processual a sua não produção, porque não se trata de omissão de uma formalidade (processual).
É este o nosso entendimento.
Mas ainda que fosse devido verificar aqui se era conveniente inquirir as testemunhas arroladas pela Requerente/recorrente e, por consequência, também as testemunhas arroladas pelas suas irmãs F… e E…[17], tal análise sempre seria feita à luz dos elementos que, ainda assim, o processo disponibiliza e considerando sempre o interesse do Beneficiário que o processo visa acautelar e proteger.
Os autos evidenciam dissidências entre a D… e as irmãs F… e E… relativamente à ocupação da casa onde habita, por direito próprio, o irmão C…; não apenas um interesse altruísta no acompanhamento daquele, mas questões pessoais e egoístas de ordem económica, ligadas ao exercício de direitos relacionados com atos de disposição de seus pais e a bens e direitos que compõem as suas heranças.
Depois dos progenitores terem doado, em 1998, a casa de habitação à filha D…, com reserva do direito de habitação a favor dos dois filhos deficientes, ficando ela também obrigada a ajudar os doadores nos cuidados a dispensar-lhes e a vigiar e a assistir aqueles irmãos sempre que os pais estivessem ausentes, houve necessidade dos doadores instaurarem uma ação judicial contra a D… (proc. nº 814/10.3TBVCD) que culminou com a transação judicial de 6.5.2013[18] em que esta se obrigou a suportar o salário de uma empregada doméstica contratada para cuidar dos dois irmão deficientes e a vigiar o desempenho desse empregada; aliás, em conformidade com a obrigação que já anteriormente assumira no contrato de doação para a hipótese de não poder ser ela a prestar pessoal e diretamente os cuidados a favor dos doadores e dos dois irmãos necessitados.
Posteriormente, o entretanto falecido B…, por via dos testamentos que efetuou, alegou a falta de cumprimento de obrigações assumidas pela recorrente na doação relativamente aos cuidados a prestar em benefício dos doadores e dos irmãos deficientes e passou a manifestar-se mais confiante na prestação de tais cuidados pelas filhas E… e F…, dispondo por isso a seu contento nos anos de 2014 e 2016 (o filho G… faleceu em novembro do ano de 2019), reconhecendo-lhes o direito de frequentar a todo o tempo, e mesmo habitar, sem qualquer impedimento nem distúrbio, a casa de habitação onde os então já interditos residiam (e residem), com a condição da prestação dos cuidados até à sua morte.
Estas provas apontam claramente a última vontade do pai dos interessados, como sendo a de que a salvaguarda dos cuidados a prestar aos filhos portadores de deficiência e por causa dela, agora apenas ao filho sobrevivo C…, aqui Beneficiário, fosse garantida pelas irmãs E… e F…, devendo deixar de o ser pela filha D… em quem os confiara, deixando de confiar.
Note-se que foi necessário os progenitores instaurarem uma ação cível contra a D… para obterem uma transação judicial pela qual, essencialmente, aquela assumiu um encargo já então emergente do contrato de doação de que fora beneficiária e que deixou de o suportar logo que faleceu o seu pai, no estrito cumprimento do acordado. Diferentemente, a F… iniciou em 2013 e prosseguiu na prestação dos cuidados especiais a favor do Beneficiário, ainda que habitasse a casa onde reside o seu irmão e que foi doada à D….
Estas condutas das irmãs já abonam - embora não decisivamente - a favor do acompanhamento por aquela que tem sido a efetiva acompanhante, desde o ano de 2013, sem que se lhe aponte incúria ou incompetência. A própria recorrente, requerente do acompanhamento, que tinha a obrigação imposta na doação de vigiar e fiscalizar a ação da cuidadora, a sua irmã F… desde a referida data, não lhe aponta faltas, a esse nível, no requerimento inicial.
A vontade expressa pelo B… nos testamentos de 2014 e 2016 não deixa dúvida sobre a pessoa em quem deve recair a nomeação, como sendo uma das filhas F… ou E…, assim manifestando insatisfação com o desempenho anterior da ora Requerente. Foi essa a sua última vontade, por certo alicerçada no desempenho efetivo destas duas filhas.
Para último plano, relega-se o interesse pessoal da D… ou da F… na habitação da casa onde o Beneficiário tem sido e deverá continuar a ser acompanhado, por direito próprio, resultante da atribuição com encargo efetuada pela referida doação.
O Ministério Público pretende que seja, de novo, ouvido o Beneficiário a fim de realizar o propósito legal consignado no art.º 143º, nº 1, do Código Civil, de poder escolher o seu acompanhante, e ainda a junção de elementos processuais a extrair de outros processos que possam revelar-se interessantes para decisão final de Acompanhamento.
Pois bem.
De acordo com o art.º 143º, nº 1, do Código Civil, o acompanhante, maior e no pleno exercício dos seus direitos, é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente.
Segundo o nº 2 do mesmo artigo, na falta de escolha, o acompanhamento é deferido, no respetivo processo, à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário, atendendo, designadamente, à indicação de pessoas resultante das respetivas al.s a) a i).
Assim, tem sustentação legal a expressão da vontade do Beneficiário na escolha do seu Acompanhante, não sendo descabido atender à vontade de seus pais e não esquecendo que o seu pai, B…, foi também o seu tutor desde que foi decretada a interdição, em março de 2015, até à data do seu falecimento, ocorrido em agosto de 2020.
Aquilo que constitui o cerne do modelo do apoio é o papel central da vontade e preferências da pessoa com deficiência - decorrente do princípio da autonomia[19] - relativamente às quais terá de ser assumido um papel facilitador.[20]
Mas, devendo favorecer-se a nomeação do acompanhante pelo beneficiário, não pode descurar-se a necessidade de capacidade bastante para compreender esse ato, caso em que devem ser acolhidas indicações positivas e negativas relativamente às prováveis pessoas perfiladas para o exercício do cargo.
O fundamento da declaração de interdição, agora também justificativo do acompanhamento, é uma incapacidade definitiva de 95% de ordem intelectual, por oligofrenia profunda (afetação da capacidade intelectual, por debilidade, imbecilidade e idiotia).
Do relatório médico-legal realizado no processo para efeito da interdição e no qual esta assentou essencialmente, destacamos o seguinte (pág.s 721 e 722):
«
(…)
Á observação, que decorreu em casa do Requerido, na presença dps supracitados familiares e do advogado do avaliado, Dr. I…, com interditando deitado em cadeira apropriada ás suas limitações físicas (a paralisia cerebral de que padece – informação prestada pelo progenitor – não lhe permitiu diferenciação


»
Por efeito deste comprometimento, o C… padece de uma afetação intelectual muito significativa e altamente incapacitante, merecendo-nos grandes reservas a sua capacidade de manifestação séria sobre a pessoa que melhor poderá desempenhar o papel de seu acompanhante. Estão fortemente indiciadas as suas dificuldades em formular juízos de valor, construir ideias e expressar vontades.
Porém, a simplicidade da expressão dos seus sentimentos quando refere amizade para com a atual cuidadora e para com a E… e a nega relativamente à recorrente, ainda que possa sofrer influências diversas de quem dele cuida efetivamente, não deixa de se aproximar daquela que foi a última vontade de seu pai e da manutenção de uma relação de proximidade e afeto que dura já desde o ano de 2013, sem que se lhe aponte - nem mesmo no requerimento inicial da recorrente - fundamento de inconveniência no âmbito da sua razão de ser: a prestação de adequados cuidados pessoais e outros de que o Beneficiário tem estado e continuará dependente.
Face a estes elementos, não se vislumbra que outras provas pudessem ser julgadas convenientes para a correta decisão da causa, não relevando para o efeito a discussão das causas das dissidências económicas e dos interesses das irmãs do beneficiário no âmbito dos direitos relacionados com a propriedade e a utilização da casa de habitação e da futura partilha de bens e direitos deixados pelos seus pais.
Estamos convictos de que nem uma nova audição do Beneficiário, nem a audição de testemunhas e a junção de outras peças processuais extraídas de outros processos trariam algo de novo interessante, necessário e conveniente para a boa decisão desta causa.
Não ocorre também a referida nulidade.
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2. Contradição entre os pontos 9 e 16 dos factos provados
Diz-nos a recorrente que existe contradição entre os pontos 9 e 16 dos factos provados.
Vejamos aqueles pontos.
9. Por escritura de Doação de 12/02/1998 (…), s progenitores B… e H…, doaram à filha D…, o imóvel destinado a habitação, onde o Maior Acompanhado C… a sua residência, tendo sido imposta por aqueles progenitores e por esta filha aceite a reserva do direito de habitação.
16. São F… e E… quem presta cuidados diários de alimentação, higiene e de habitação ao beneficiário C….
Não vemos e temos dificuldade em vislumbrar onde é que outros podem encontrar qualquer contradição naquela matéria de facto.
O direito de propriedade ou qualquer outro direito real titulado por uma pessoa e existente sobre uma casa onde reside outra pessoa por direito próprio de habitação, não é incompatível com a prestação de cuidados diários àquele residente, deles carecido. Como é sabido o direito de propriedade sofre várias limitações de ordem económica e social, e restrições determinadas por direitos reais menores quando recaem sobre o mesmo objeto. Restringindo-nos à matéria de facto, como é devido nesta questão, uma pessoa pode receber cuidados de outra ou de outras pessoas na casa onde reside, quer esta lhe pertença ou não pertença.
Improcede também esta questão.
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3. A impugnação da decisão proferida em matéria de facto (apelação da D…)
A recorrente apela à necessidade de ouvir as testemunhas que arrolou por, em sua opinião, não resultar “ainda evidente e provada que a nomeação como Acompanhante do Beneficiário da irmã F…, seja a melhor solução na defesa dos interesses e bem-estar do mesmo”.
A recorrente não cumpriu, nem sequer mostrou vontade de cumprir, tanto no corpo das alegações como nas conclusões da apelação, os requisitos exigidos pelo art.º 640º, nº 1 e nº 2, al. a), norma que nem sequer invoca na apelação. Não colocou, concreta e determinadamente, em crise qualquer facto dado como provado, não indicou qualquer facto que ambicione como provado, para além de uma referência ao único ponto da matéria dada como não provada, relativamente à qual não concluiu sequer por resposta contrária.
Temos para nós que não foi sua intenção recorrer da decisão proferida em matéria de facto. Ainda que o tivesse sido, sempre seria de rejeitar, por incumprimento de requisitos.
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4. Adição de factos que devem ter-se por provados face a elementos probatórios disponíveis nos autos (apelação do Ministério Público)
No corpo das alegações e nas conclusões, o Ministério Público fez constar, depois de apelar à verificação de nulidades processuais:
«Sem prejuízo do supra exposto, consideramos que decorre dos autos e, designadamente da audição realizadas aos parentes próximos do beneficiário e a este (prova esta que se encontra gravada), os seguintes dados factuais relevantes à tomada de posição, entre o mais, sobre a pertinência da prova requerida por D… e pelo Ministério Publico, a fls. 132, 167, 228 e 229: (…)».
Fez seguir aqui um conjunto de factos que descreveu sob as al.s a) a o).
Não discrimina ali entre os factos relevantes para efeito da decisão de produzir mais prova, dos factos relevantes para a sentença, nem identifica qualquer passagem das gravações dos depoimentos registados com vista à sua reapreciação.
Se a invocação das gravações serve para admitir um recurso em matéria de facto interposto no 10º dia posterior ao prazo de 15 dias de que o ilustre recorrente dispunha para o efeito, ao abrigo dos art.ºs 891º, nº 1, 638º, nº 1, última parte, e nº 7, já não permite a sua efetiva reapreciação, por incumprimento dos pressupostos do já referido art.º 640º, nºs 1 e 2, al. a).
Para além de faltar uma diferenciação dos factos que o recorrente entende que ficaram provados (relativamente àqueles que apenas invoca para justificar a pertinência da prova requerida pela D…), não indica qualquer passagem da gravação que tem por pertinente para a prova de cada facto ou de um conjunto discriminado de factos cuja associação se justifique em função dessa mesma prova.
Tal incumprimento está patente tanto no corpo das alegações como nas suas conclusões.
Assim, rejeita-se o recurso do Ministério Público relativo à matéria de facto.
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Improcedem ambas as apelações.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação do Porto em julgar as apelações interpostas pelo Ministério Público e por D… improcedentes, mantendo-se a sentença recorrida.
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Apelação do Ministério Público sem custas, por delas estar isento (art.º 4º, nº 1, al. a), do Regulamento das Custas Processuais).
Quanto à apelação de D…, custas pela recorrente por nela ter decaído (art.º 527º, nº 1, do Código de Processo Civil)
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Porto, 9 de setembro de 2021
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[2] Por transcrição.
[3] Por transcrição.
[4] Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 1984, pág.s 373 e 376, e Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1956, pág.s 165 e 166.
[5] Comentário, vol. 2º, pág.s 486 e 487.
[6] J. Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 1996, págs. 18 a 20.
[7] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, 2ª edição, pág.s 467 e 468.
[8] Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 25.
[9] Introdução ao Processo Civil, 3ª edição, 2013, pág.s 124 e 125.
[10] Refere-se à conceção tradicional.
[11] Processos Especiais II, Coimbra Editora, p. 400.
[12] Neste sentido, Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código de Processo Civil Revisto, Coimbra, Almedina, pág.s 78-80.
[13] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 72.
[14] Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2.ª edição, pág. 69.
[15] O Regime do Acompanhamento de Maiores: Alguns Aspectos Processuais, O novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, CEJ, fevereiro de 2019, págs. 45 e 46, (http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf), acesso em 08.01.2020.
[16] Georgina Couto, “O QUE MUDOU NOS PROCESSOS DE DIVORCIO E DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS COM O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – EXISTIU ALGUMA OPORTUNIDADE PERDIDA? – Revista Julgar, nº 24, 2014, pág.s 29 e seg.s.
[17] Sob pena de violação do princípio da igualdade de armas.
[18] Pág. 616 do histórico processual digitalizado, a que pertencem todas as páginas do processo que forem citadas.
[19] Que emerge também do art.º 12º, § 4º, da Convenção das Nações Unidas dos Direitos das Pessoas com Deficiência (e seu Protocolo Adicional).
[20] Paula Távora Vítor, O MAIOR ACOMPANHADO À LUZ DO ARTIGO 12.° DA CDPD, in Revista Julgar, nº 41, 2020, citando MINKOWITZ, Tina, Abolishing Mental Heaith Laws to comply with the rights of persons with dfeab/y/í/es (in https://vwww.researchgate.net/publication/284306436_Abolishing_Mental_Heatth_ Laws to Compty_with_the_Convention_on_the_Rights_of_Persons_with_Disabiiities), p. 158.